Como o Brasil se posicionaria caso ocorresse um ataque com armas nucleares por parte da Rússia?
Com histórico de respeito à segurança dos povos e busca pela solução pacífica de conflitos, país até agora se mantém neutro quanto ao conflito entre Moscou e Kiev, que pode evoluir para uma detonação nuclear
André Amaral
A Referência, 30/10/2022
Não há espaço para blefes. A possibilidade de a Rússia lançar um ataque nuclear contra a Ucrânia, levantada pelo presidente Vladimir Putin e seus aliados nas últimas semanas, é real e tem deixado Kiev e o Ocidente apreensivos. Enquanto isso, a diplomacia age para tentar proteger a humanidade do maior perigo em 60 anos, quando o mundo ficou a um passo de uma guerra avassaladora durante a Crise dos Mísseis de Cuba, sob o contexto da Guerra Fria.
Em solo ucraniano, as tensões são superlativas. Em entrevista à rede ABC News nesta semana, Oleksandr Syrskiy, comandante-chefe do exército do país invadido, foi questionado sobre seu grau de preocupação e se ele acha que o mundo deveria compartilhar seus temores quanto ao uso iminente de armas nucleares pelas forças inimigas.
“Estamos e devemos estar preocupados”, disse Syrskiy em resposta. “E eu acredito que essa ameaça realmente existe e temos que levar isso em consideração”.
Encontro entre líderes: Bolsonaro durante visita a Moscou em fevereiro (Foto: Kremli.ru/Divulgação)
Diante da ameaça, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) arregaçou as mangas e iniciou uma rodada de exercícios nucleares simulando o lançamento de bombas “táticas” B61 sobre a Europa.
Já nos EUA, o presidente Joe Biden ligou o sinal vermelho e deixou um recado que ninguém queria ouvir: o de que o mundo pode se preparar para o Armageddon no caso de seu homólogo russo colocar uma arma nuclear tática no front para tentar vencer o conflito iniciado em fevereiro.
Com exceção de países como Belarus, Irã e Coreia do Norte, a comunidade internacional repudia a guerra. Mas nem todo o mundo isolou a Rússia. Quando se viu pressionado por sanções ocidentais de todos os lados, à medida que sua economia se deteriorava, Vladimir Putin foi buscar um braço amigo em “parceiros internacionais confiáveis”. Em particular, o Brics, agrupamento de países de mercado emergente do qual faz parte ao lado de Brasil, Índia, China e África do Sul.
Nesse cenário, China – aliada de primeira ordem, apesar de alegar neutralidade – e Índia surgiram como principais financiadores do Kremlin durante a guerra. Parece haver alguma sinergia entre a autocracia do regime russo, a vigilância estatal de Xi Jinping e o ultranacionalismo de Narendra Modi.
Mas, e no caso de uma ofensiva nuclear, qual poderia ser a postura do Brics? E principalmente: qual seria o posicionamento da maior economia da América do Sul, velha parceira comercial russa, especialmente no agronegócio?
E se… ?
Para Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o velho “bom mocismo” do Brasil seria colocado à prova caso uma situação que não é vista há quase 80 anos – a última foi em Hiroshima, em 1945 – venha a ocorrer. Mas a atitude não deve causar surpresa.
“É difícil ter uma perspectiva precisa, porque um ataque nuclear seria um fato inédito desde a Segunda Guerra Mundial. Mas acredito que a veia pacifista do Brasil, no sentido de estabelecer relações cordiais e em defesa do direito internacional, que prevalece na política externa brasileira historicamente, impulsionaria o Brasil a condenar a utilização desse tipo de artefato”, supõe Brites.
Sendo assim, o professor aposta que o país se colocaria numa posição “mais de mediador”, chamando os Estados à razão.
“Vejo o Brasil com um discurso de que ‘o uso daquele tipo de armamento fere o direito internacional, que prejudica os povos e que pode trazer uma série de consequências para a ordem internacional’. E não acredito numa condenação que vá além disso. Porque essa é a posição que diplomática e historicamente o país atribui a si próprio. O Brasil é signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TPN) e tem um discurso muito vinculado do uso da energia nuclear para fins pacíficos. Então, acho que tudo isso pesaria numa eventual situação do tipo”, disse.
Míssil russo com capacidade nuclear (Foto: reprodução/Facebook)
No caso de um posicionamento do Brasil que desagrade, além da Rússia, também China e Índia, causando desconforto no Brics, Brites observa como algo improvável. Isso porque, segundo ele, o bloco “já teve dias melhores” e hoje há um certo afastamento.
“Não vejo que isso possa gerar uma grande divergência a um nível máximo que cause danos no Brics mais do que esse afastamento dos últimos anos já tenha gerado”.
Para o professor, é muito provável que Beijing não faria qualquer discurso condenatório ao Brasil e igualmente lançaria mão de uma narrativa “clamando à razão e ao distensionamento”. E Nova Délhi faria igual.
“Uma eventual utilização de armas nucleares deixaria cautelosas tanto a China quanto a Índia, porque são países que não querem ver uma escalada muito crítica nas questões de competição entre as grandes potências. Principalmente Beijing, e isso ficou claro no último Congresso do Partido Comunista Chinês“, avalia Brites.
Já da parte da Rússia, a recepção à decisão brasileira pode ser outra. Uma incógnita. “Por ser efetivamente o ator responsável por esse eventual ataque, aí o contexto é um pouco diferente”, acrescentou.
Inclinado à paz
Em 2017, o Brasil, presidido então por Michel Temer, confirmou sua vocação pacífica ao ser o primeiro a assinar na sede da ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova York o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN). Mais de dois terços dos 86 Estados-membros fizeram o mesmo.
Segundo nota do Itamaraty à época, o país estava engajado com os esforços em prol do desarmamento nuclear e assumiu “compromisso constitucional com o uso pacífico da atividade nuclear e com a prevalência dos direitos humanos e do direito internacional humanitário nas relações internacionais”.
Brasil perde espaço nas discussões
Cristian Wittmann, membro do comitê gestor da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (Ican) e professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul, é um personagem atuante da luta antinuclear no mundo, inclusive tendo acompanhado in loco a assinatura de Temer em setembro de 2017. Como integrante da entidade ganhadora do Nobel da Paz de 2017, ele falou para A Referência sobre a forma como Brasília participa da discussão global pela eliminação completa de armas de destruição em massa e das tratativas diplomáticas para que elas nunca mais sejam usadas.
Segundo ele, embora o Brasil tenha sido o primeiro país a assinar o TPAN, em vigor desde 22 de janeiro de 2021, há uma morosidade para sua ratificação, que ainda tramita na Câmara dos Deputados.
“O Brasil hoje vive num cenário muito curioso, para não dizer espantoso, que é o fato de um procedimento rápido que poderia já ter sido ratificado, em perfeita sintonia com as aspirações históricas do país e com nossa constituição federal, permanece inerte junto à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Obviamente, isso traz uma consequência negativa”, disse Wittmann.
Teste nuclear no Atol Enewetak, nas ilhas Marshall, Estados Unidos, em 1º de novembro de 1952 (Foto: Governo dos EUA/Divulgação)
Ele relata que o país esteve presente na primeira reunião das partes contratantes do TPAN, realizada em junho em Viena, na Áustria. Uma participação um tanto quanto discreta.
“É uma vergonha e tanto o Brasil, que era parte do chamado ‘núcleo duro’ do Core Group [Grupo Central de Negociadores do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares], que negociou o tratado e estabeleceu em sintonia com outros seis países suas cláusulas, impulsionando reuniões em um trabalho árduo da diplomacia brasileira nas últimas décadas, chegar na primeira reunião com os Estados-parte do TPAN, um encontro tido como fundamental para estabelecer uma série de segmentos para a implementação do tratado, e participar como observador”, lamentou.
Para Wittmann, este foi um mau indício. “É um sinal muito ruim, simbolicamente, mas também é ruim pragmaticamente porque, enquanto observador, o Brasil não teve capacidade de voto, ou seja, não teve a mesma capacidade de contribuir de forma ativa como outras democracias presentes. E isso nos coloca numa posição muito negativa”.
Além de aspectos relacionados a armas nucleares, Wittmann trabalha com desarmamento humanitário, com foco em sistemas letais autônomos, tecnologia de inteligência artificial, robótica, minas terrestres antipessoal, bombas de fragmentação (cluster bombs) e comércio de armas. Com vasta trajetória, ele já levou esses temas a inúmeras audiências públicas e reuniões bilaterais no Brasil e fora. Em Brasília, o assunto tem sido difícil de levar adiante, segundo ele.
“Nos colocamos à disposição para uma audiência pública, solicitada pela Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional e, infelizmente, ela não aconteceu. Para nossa preocupação, o relator, o deputado Orleans Bragança (PSL-SP), quando se manifesta sobre o TPAN, costuma ser crítico. Não sei se por uma má compreensão do instrumento ou por um anseio pessoal de que talvez armas nucleares possam ter algum benefício, do que discordamos completamente”, disse.
O Ministério das Relações Exteriores, segundo Wittmann, também não tem levado esse tema como um assunto principal da sua agenda, diferentemente do que ocorria no passado, quando o Brasil estava mais atuante na Coalizão da Nova Agenda (NAC, da sigla em inglês), iniciativa que reúne em alto nível representantes de ministérios e secretarias gerais no âmbito de levar a pauta do desarmamento nuclear.
“Hoje, dentro desse cenário político conturbado, o Brasil não avança nessa temática”, acrescentou.
Nem sempre foi assim. O membro da Ican ressaltou o exemplo de país pacifista dado pelo Brasil, que deu grande contribuição para a solução de diferentes dilemas do mundo.
“A questão do desarmamento nuclear sempre foi uma prioridade dentro da nossa política externa, inclusive no âmbito regional, como ocorre entre Brasil e Argentina pela Abacc (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), que é um exemplo para o mundo de como duas nações conseguem estabelecer um mecanismo conjunto de verificações e acompanhamento desses materiais”, disse Wittmann.
Também por isso, não à toa, o país é reconhecido como um dos líderes da NAC (composta também por África do Sul, Egito, Irlanda, México e Nova Zelândia), através da qual vários avanços nas tratativas sobre o desarmamento nuclear foram alcançados com a participação brasileira, relata Wittmann.
Para ele, “a vocação pacífica brasileira não é só uma vocação”: ela serviu de instrumento para implementar no mundo o respeito à segurança dos povos e a solução pacífica dos conflitos. E poderia fazer a diferença na atual guerra em andamento no leste europeu.
“O Brasil teria, em situações normais, muito a contribuir para o encontro de uma solução pacífica no conflito da Ucrânia, sendo uma voz muito enérgica quanto à impossibilidade, à ilegalidade do eventual uso ou até mesmo do que estamos vendo hoje da ameaça de uso de armas nucleares”, observou.
Segundo Wittmann, é um contexto em que o Brasil, também pelo comportamento prostrado de outras nações, deixa de advogar em prol da segurança global, como agiu tantas vezes.
“Deveria haver um compromisso sério de ambos os grupos, seja dos que defendem Moscou, seja dos que defendem Kiev, como é o caso da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que todos esses envolvidos não só fizessem declarações, mas principalmente adotassem um compromisso de não usar armas nucleares em qualquer hipótese. Então, sem dúvida, o Brasil em situações normais, seria um dos principais advogados, tratando do bem comum e ajudando a evitar uma eventual detonação nuclear”.
A reportagem tentou contato com o deputado federal Pedro Vilela (PSDB-AL), presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, além de outros integrantes, mas não obteve resposta para tratar sobre a ratificação do TPAN.
Por que isso importa?
Calcula-se que a Rússia tenha à disposição de suas forças armadas cerca de 1,9 mil ogivas nucleares táticas, o maior arsenal do tipo no mundo. E a facilidade de dispará-las cria um problema, vez que podem partir da maioria dos jatos das forças armadas russas, bem como de lançadores de foguetes e mísseis convencionais.
“Quase todas as armas dos russos têm capacidade nuclear. Se for um sistema de artilharia, se for um sistema de defesa aérea, se for um torpedo, se for um míssil de cruzeiro, pode ter uma arma nuclear”, disse ao site Politico um ex-funcionário sênior do Conselho de Segurança Nacional que ainda assessora o Comando Estratégico dos EUA e não quis se identificar.
Dessa forma, é praticamente impossível saber quando a Rússia substituiu munição convencional por nuclear em seus jatos ou lança-foguetes. “Para essas armas nucleares menores, provavelmente não saberemos”, disse outra autoridade norte-americana com acesso às informações de inteligência sobre a Rússia e que igualmente falou sob condição de anonimato.
O eventual ataque poderia, inclusive, sequer partir do território russo. No final de agosto, o presidente de Belarus Alexander Lukashenko direcionou uma ameaça clara ao Ocidente ao anunciar que as forças armadas do país modificaram seus aviões militares para que sejam capazes de carregar ogivas nucleares.