Transcrevo aqui, apenas para registro, meu mais recente artigo publicado em Mundorama.
Um congresso de Viena para o século 21?
Kissinger e o
‘sentido da História’
Publicado, sem o subtítulo, em Mundorama
Relação de Originais n. 2779; Publicados n. 1166.
Um congresso de Viena para o
século 21?
Kissinger e o “sentido da
História”
Paulo Roberto de Almeida
El mundo fue y será una porquería
ya lo se.
En el quinientos seis
y en el dos mil también.
(...)
Pero que el siglo veinte
es un despliegue
de maldad insolente,
ya no hay quien lo niegue.
Tango Cambalache,
letra de Enrique Santos Discépolo (1934)
Um dos mais famosos tangos
da história musical da Argentina foi escrito em plena “década infame”, quando
tem início a decadência daquele país, agravada depois pelo peronismo, que aliás
liberou a música, antes proibida, por sua letra ser justamente percebida como
uma crítica feroz à situação anterior (para a letra completa, de ácido teor,
ver o link: http://www.musica.com/letras.asp?letra=974519). Em todo caso, o que
Discépolo pensava do século 20, então recém ingressado em sua quarta década,
parece aplicar-se igualmente, e talvez até com mais razão, ao século 21, recém
entrado em sua segunda década: até aqui, foi um desabrochar de maldades
insolentes, ninguém pode negar; em certos países “resulta que es lo mismo,
ser derecho que traidor”. Onde foi parar aquela nova ordem mundial, defendida ou prometida
por Bush pai, em 1991?
Estaríamos, por acaso,
necessitados, tanto quanto a Europa do final das guerras napoleônicas, de uma
réplica do congresso de Viena, apto a reorganizar, num grande concerto de
nações, as bases de uma nova ordem mundial? Seria isso possível? Essa pergunta
me veio à mente ao ler o mais recente livro de Henry Kissinger, World Order (New York: Penguin Press, 2014), que não coloca exatamente a questão, mas a engloba
numa grande reflexão histórica, que começa, na verdade, pelo reordenamento da
paz de Westfália. Esta, como ele indica acertadamente, não foi uma única
conferência, mas um complexo processo negociador, com acordos separados em duas
diferentes cidades.
Todos os estudiosos das
relações internacionais e da história diplomática contemporânea sabem que
Mister Kissinger estaria em excelente companhia, e ficaria extremamente
satisfeito, se pudesse ser tele-transportado numa máquina do tempo para a Viena
de 1815, para poder assessorar, ao mesmo tempo, Metternich e Castlereagh. Até
mesmo Talleyrand, ministro de Luís XVIII, vindo do Ancien régime aristocrático,
convertido em aliado da revolução, ministro do Império, sobrevivente na Restauração
e finalmente servidor da monarchie de
Juillet, poderia receber seus conselhos de longevo servidor de vários
governos, tanto quanto o francês. Talvez seja maldade deste articulista, mas
tendo lido a admiração sincera com que Kissinger completou sua tese de doutorado
em torno dos dois primeiros estadistas, depois publicada como A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-22 (1954),
dá para imaginar o entusiasmo com o qual ele
se movimentaria apressadamente atrás de cada uma das três delegações, para
assoprar, aos ouvidos dos seus chefes respectivos, suas sugestões sobre como organizar
a melhor balança de poder possível, suscetível de contemplar os interesses das
grandes potências daquela época, e apenas os delas.
O mesmo sentido profundo da História transparece nesse
seu último livro (no sentido cronológico, apenas), intitulado simplesmente World
Order, sem qualquer subtítulo. Poucos autores na categoria das ciências
humanas ousariam desafiar as normas editoriais americanas e publicar um volume
de 400 páginas, com apenas duas palavras no seu título, o que aliás já tinha
sido o caso de On China (2011), seu livro sobre o grande contendor do
novo jogo geopolítico mundial. Os dois últimos livros, e o primeiro, nos trazem
o melhor Kissinger, o pensador, o historiador, mais do que o estrategista do
equilíbrio do terror nuclear, o memorialista dos anos de Casa Branca, ou o
consultor caríssimo de governos estrangeiros, o homem que ganhou um prêmio
Nobel por razões imerecidas, e que provavelmente merece mais distinções
acadêmicas por seu trabalho intelectual do que propriamente pelas suas
realizações a serviço de governos.
Kissinger parece o contrário de um Winston
Churchill, que ganhou um prêmio Nobel por seu trabalho como historiador (tarefa
que ele desempenhou em seu próprio benefício, obviamente), quando merecia o
prêmio por ter salvo a civilização ocidental do assalto horrífico dos bárbaros
nazifascistas, e ousado resistir, ao custo de “sangue, suor e lágrimas”, quando
muitos recomendavam um pacto com o diabo em pessoa (isto é, Hitler). Kissinger
talvez merecesse um prêmio literário por sua obra acadêmica, em especial os
três livros citados, e mais Diplomacy (1994), uma vez que ele passou o
seu tempo de estrategista tentando justamente fazer pactos com os diabos
(Brejnev, Mao), como fazem, por sinal, os estadistas das grandes potências
quando a ocasião lhes é dada. Talvez nem o júri do Nobel literário concordasse
com esse tipo de galardão, uma vez que mesmo seus livros de caráter histórico
estão igualmente contaminados por certa visão do mundo – do tipo “eu sei, eu
fiz, eu estava lá” – que tende a impregnar as suas sugestões de uma “boa ordem mundial”
como a única possível nas circunstâncias dadas (este é um viés a que nem mesmo
Churchill escapou, seja em sua história da Segunda Guerra, ou na sua precedente
história dos povos de língua inglesa).
O problema com Mister Kissinger é que ele teria gostado
de um mundo mais “vienense” do que o que temos atualmente, já que se trata de uma
“ordem mundial” que não é propriamente uma ordem, nem é universal, como ele
mesmo reconhece no livro homônimo. O mundo parece se estilhaçar, não em novas
conflagrações globais, mas em rivalidades hegemônicas, em proxy wars,
com vilões proliferadores protegidos por uma ou outra das grandes potências, com
desafios vindos de atores não estatais, alguns até se pretendendo califados
expansionistas, ou mesmo com bravatas anti-imperialistas de líderes de
pacotilha, num estilo parecido ao de certos fascistas do entre-guerras.
Tudo isso é real, e já está acontecendo, um pouco
em vários cantos do planeta, inclusive numa Europa que já reproduziu, em pleno
século 20, uma segunda “guerra de trinta anos”, uma repetição, em larga escala,
dos terríveis conflitos que deram a partida, no século 17, à ordem westfaliana
que ainda constitui o horizonte insuperável de nossa época, e pela qual tem
início, justamente, World Order. Na impossibilidade de se chegar a novos
acordos westfalianos – que, de resto, já estão incorporados na Carta da ONU –
talvez Kissinger sonhe com novo Congresso de Viena, capaz de estabelecer as
bases da nova “ordem mundial” que ele deve intimamente desejar. Talvez ele até se
dispusesse a assessorar um ou outro soberano dos novos tempos, com conselhos
sempre sensatos sobre como melhor organizar uma balança de poder entre as grandes
potências, como fizeram os estadistas de dois séculos atrás.
Seria isto possível? Levaria um congresso do mesmo
estilo a resultados efetivos e duráveis? Provavelmente não, pois faltaria a tal
arranjo fundacional aquilo que existiu em cada reorganização anterior da ordem
mundial: uma contestação radical da ordem anterior, com uma alteração
fundamental das relações de força entre as grandes potências, e um
reordenamento baseado no novo equilíbrio de poder. Westfália veio depois da
“guerra de trinta anos”; Viena veio após as guerras napoleônicas; Versalhes e a
Liga das Nações sucederam à Grande Guerra; Ialta e Potsdam, em 1945, prepararam
São Francisco, que foi quase uma formalidade, depois que certas questões já
estavam acertadas em Teerã (1943), em Dumbarton Oaks (1944) e naqueles dois
encontros decisivos. Mas não é apenas pela falta de uma grande conflagração
global que um novo congresso de Viena – que obviamente não seria em Viena – se
revela impossível em nossos dias. O que falta, na verdade, seria uma espécie de
entendimento prévio sobre o que discutir e o que se buscar. “Na construção de
uma ordem mundial”, diz Kissinger no capítulo final de seu livro, “uma questão
chave refere-se inevitavelmente à substância de seus princípios unificadores”,
mas, acrescenta ele imediatamente após, “nos quais reside uma distinção
fundamental entre as abordagens ocidentais e não ocidentais a essa ordem” (p.
363). A distinção não é obviamente geográfica tão simplesmente, mas
fundamentalmente política e de valores.
A dificuldade, portanto,
não resulta de um simples problema de agenda, ou seja, da falta de uma ordem do
dia consensual, uma lista de questões sobre a base das quais discutir um novo
arranjo global num formato similar ou equivalente àquele de 1815. Mister
Kissinger acredita que a carência de uma ordem mundial para o século 21 pode
ser explicada por aspectos, ou dimensões, que diferem da ordem precedente.
Primeiro, a natureza do estado, em si – a unidade básica da vida internacional
– que tem sido submetida à uma variedade de pressões desagregadoras (seja por
falta de uma soberania efetiva, como no caso da UE, seja pela sua contestação
por novos “senhores da guerra”), quando não se cai na falta de governança tout court, em estados falidos, ou territórios
inteiros sem governo. Depois, uma descoordenação entre as organizações
econômicas e políticas internacionais, as primeiras acompanhando o processo de
globalização, mas as segundas ainda baseadas no estado-nação. Finalmente, a
falta de um mecanismo de consulta e cooperação entre as grandes potências “on
the most consequential issues” (p. 370). Aqui já estamos em face de cenas explícitas
de kissingerianismo geopolítico: todas as instâncias existentes – CSNU, Otan,
Apec, G-7 ou G-8, G-20 – lhe parecem carentes de maior foco, pois os chefes de
governo ali presentes estão mais preocupados com o seu público interno, e com o
comunicado final, do que com problemas concretos.
Pode ser isso, ou também
pode ser que o mundo de Viena já não tem mais condições de existir: ele era a
expressão de um arranjo westfaliano entre potências europeias, ou seja cristãs,
numa época em que a Europa dominava o mundo, o que ela fez durante praticamente
cinco séculos, o último junto com os Estados Unidos, mas já contestados pelas
novas potências emergentes. A própria Alemanha tinha desafiado as bases da
ordem europeia e internacional no arranjo precedente, por ter chegado tarde,
bem depois da Prússia, na mesa de negociações e nas conquistas imperiais subsequentes
(ainda que ela se tenha talhado alguns pedaços na Ásia e na África). Foi
justamente o seu desejo de redistribuir as cartas do jogo que provocou uma nova
guerra de trinta anos e a derrocada definitiva da hegemonia europeia sobre os
assuntos do mundo.
A China provavelmente não
tem nenhuma pretensão de ser uma nova Alemanha nas condições do século 21, nem
a Rússia tem capacidade para aspirar a tal papel, muito embora ela ainda talvez
gostasse de poder determinar o que podem e, sobretudo, o que não podem fazer as
antigas satrapias do império soviético. O problema, na verdade, não é só de
ordem geopolítica, mas também de valores e de concepções do mundo. Não se pode
ser um Metternich – como talvez gostasse Kissinger – se não se tem do outro
lado, como interlocutores afinados nesse tipo de jogo, estadistas como Castlereagh
ou mesmo Talleyrand. Aparentemente, nem Xi Jin-ping nem Putin se dispõem a amoldar-se
em papeis equivalentes aos de Hardenberg ou de Nesselrode, os representantes
respectivos da Prússia e da Rússia imperiais em Viena. O que se buscava, na
capital do Império dos Habsburgos, era um arranjo europeu, no máximo alcançando
a periferia mais próxima, a do Império Otomano e suas dependências balcânicas. Os
arranjos que se fizeram com os impérios ibéricos e suas possessões coloniais o
foram por causa da herança napoleônica, não porque as grandes potências
estivessem tentando traçar um esquema equivalente a Tordesilhas, ou seja, uma primeira
divisão do mundo que só seria tentada novamente em Ialta, quase cinco séculos
mais tarde.
Kissinger talvez gostasse
que Estados Unidos e China chegassem a um acordo básico sobre as relações
recíprocas, e foi em grande medida em vista desse objetivo que ele escreveu On China, uma obra particularmente
compreensiva e leniente para com as lideranças chinesas. Da Guerra Fria
política dos tempos de Stalin à nova Guerra Fria econômica dos nossos dias, o
mundo mudou perceptivelmente em termos de atores e de interesses nacionais
projetados internacionalmente. Viena-1815 nunca foi um encontro filosófico entre
potências cristãs interessadas primariamente no bem estar de seus respectivos
povos: o que estava em jogo ali era apenas o equilíbrio de poderes para evitar
uma nova conflagração global. Westfália se revelou mais durável porque tratou
basicamente de procedimentos, não de substância, como ele diz em outra parte do
livro.
Esse objetivo, hoje em
dia, está na prática assegurado pela detenção dos arsenais atômicos, o que
restringe a subida aos extremos por parte de qualquer uma das grandes potências
nucleares. Mas uma Viena do século 21 não poderia mais eludir os avanços registrados
em matéria de direito internacional, de democracia e de direitos humanos. Tais
dimensões, aparentemente, só seriam hoje defendidos pelos Estados Unidos, e se dependesse
de Mister Kissinger talvez nem isso. Tais critérios certamente não fariam parte
da agenda das outras grandes potências. Ah, sim, ainda tem a Europa, se ela é verdadeiramente
um membro dessa pequena tribo, na vertente democrática; Kissinger, nos seus
velhos tempos de guardião da paz no mundo, se perguntava: “se eu quiser falar
com a Europa, eu telefono para quem?” Parece que o problema continua o mesmo.
O que dizer, então, das
chamadas “potências emergentes”? A julgar pelas tomadas de posição de algumas
delas, em suas próprias esferas regionais, talvez não se possa contar tampouco
com elas para algum arranjo nouvelle
manière, seja no formato Viena 2.0, seja uma reforma do sistema onusiano,
esse dinossauro que também ostenta um cérebro totalmente desproporcional em
relação ao seu imenso corpo. Em resumo, vamos esquecer essa história de um novo
arranjo diplomático para a tal “ordem mundial do século 21”, e nos
concentrarmos em tarefas mais prosaicas de administração da governança
econômica e da defesa dos direitos humanos e da democracia onde isso for
possível. O mundo ainda é bem mais hobbesiano do que grociano, e certos
dirigentes atuais estão bem mais para Átila ou Gengis-Khan do que para Locke ou
Montesquieu.
O progresso pode até ser
uma fatalidade, como queria Mário de Andrade, alguns anos antes do milonguero
argentino desconfiar de qualquer avanço, mas talvez seja porque a história
parece andar a um ritmo similar ao dos carros de bois de antigamente. Quando alguns
mais apressadinhos tentaram forçar a passagem em marcha acelerada, não deixaram
de ocorrer acidentes de percurso, como descobriu, para sua infelicidade, o
último xá da Pérsia. O próprio Kissinger confessa, ao final do seu livro (p.
374), que perdeu sua esperança de juventude de descobrir o “sentido da
História”. Provavelmente, ele não existe, pelo menos não no sentido
hegeliano-marxista. Quanto ao seu ritmo, talvez caiba se contentar com o de
certas partituras: vivace, ma non troppo!
Em todo caso, poderíamos repetir com Discépolo: “Todo es igual, nada es
mejor…”.
Recomendação
de leitura:
Peter W. Dickson: Kissinger
and the Meaning of History (Cambridge University Press, 1978). [Nota: o
autor é um acadêmico formado em filosofia que trabalhou para a CIA, o que
revela quão eclética é essa agência de inteligência.]
[Hartford, 2779: 23 fevereiro 2015, 5 p; revisão: 6 de
março, 6 p.]