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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Henry Kissinger, pensador a ator das relações internacionais - Luiz Alberto Machado (Espaço Democrático)

 { ARTIGO }

Henry Kissinger, pensador a ator das relações internacionais

Luiz Alberto Machado escreve que o secretário de Estado de dois presidentes americanos nos deixa legado de ensinamentos de relações internacionais, segurança e diplomacia

Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum


Fazendo uma rápida retrospectiva de minha trajetória profissional, constatei que estive quase integralmente vinculado à vida acadêmica em universidades ou a instituições de produção de ideias, pensamentos ou políticas públicas, os chamados think tanks.

No que se refere à vida universitária, embora tenha ministrado aulas no Mackenzie (onde me formei) e nas Faculdades São Judas Tadeu, minha relação maior e mais longa foi com a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), onde permaneci por mais de 35 anos. Das inúmeras lembranças que guardo da FAAP, algumas merecem destaque especial: o envolvimento com a criatividade e a economia criativa, e, na Faculdade de Economia, a criação do curso de Relações Internacionais, as missões estudantis e o Fórum FAAP, simulações de reuniões das agências multilaterais organizadas por alunos da Fundação para estudantes de ensino médio em São Paulo e em Ribeirão Preto.

Já no que tange aos think tanks, iniciei no Convívio – Sociedade Brasileira de Cultura, passando depois pelo Instituto Liberal, pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, definido por seu fundador, Norman Gall, não apenas como um think tank, mas como um think and do tank, antes de chegar ao Espaço Democrático.

Essas rememorações foram provocadas pela notícia do falecimento de Henry Kissinger, aos 100 anos de idade, no dia 29 de novembro último.

E por que me recordei dessas passagens?

Primeiro porque ao me interessar cada vez mais pela área de relações internacionais em função do curso da FAAPacabei tomando conhecimento da importância de Kissinger, inicialmente como ator e protagonista do mundo real (realpolitik), como secretário de Estado da nação mais poderosa do mundo. Nessa condição de ator e, por vezes, protagonista, Kissinger passou por diferentes momentos e, embora tenha recebido o Prêmio Nobel da Paz em 1973, juntamente com o vietnamita Le Duc Tho, está longe de ser considerado uma unanimidade, colecionando, ao longo do tempo, tanto admiradores como severos críticos.

Nascido na Alemanha e ocupando as funções de assessor de segurança nacional e secretário de Estado de dois presidentes norte-americanos, Richard Nixon e Gerald Ford (1969-1977), Kissinger esteve diretamente envolvido em alguns dos mais marcantes episódios da segunda metade do século 20, entre os quais a Guerra do Vietnã, a Guerra Fria, a reaproximação diplomática dos Estados Unidos e da China, a Guerra do Yom Kippur e o apoio às ditaduras latino-americanas, com destaque para as do Chile, da Argentina e do Brasil.

Não foi por outra razão que a concessão do Prêmio Nobel da Paz a ele foi amplamente contestada, a ponto de um editorial do jornal The New York Times ter classificado o caso como “Prêmio Nobel da Guerra”.

A relevância de Kissinger, no entanto, está longe de ter se esgotado com sua saída da secretaria de Estado, estendendo-se por muito tempo tanto no plano real, na condição de consultor que oferecia aconselhamento à elite empresarial mundial e atuando em conselhos de empresas em vários fóruns de política externa e segurança, quanto no plano intelectual, graças à influência de seus livros. Essa influência, aliás, começou antes mesmo de ele se tornar o diplomata mais importante de sua geração, uma vez que o livro baseado em sua tese de doutorado, O mundo restaurado, publicado em 1957, em que ele analisa como Metternich, primeiro-ministro da Áustria-Hungria durante o Congresso de Viena de 1815, procurou restabelecer a ordem política anterior à revolução Francesa e às guerras napoleônicas, teve enorme aceitação em Washington. Posteriormente, seus livros Diplomacia (Saraiva Universitária, 2012) e Liderança: seis estudos sobre estratégia (Objetiva, 2023) transformaram-se em leituras recomendadas a qualquer pessoa interessada em relações internacionais e diplomacia. O mesmo vale para a biografia sobre ele assinada por Walter Issacson (2005).

Kissinger, que era fascinado pelo Brasil, esteve no País por diversas vezes. Numa delas, ministrou palestra na FAAP para alunos, professores e convidados especiais. Admirador também de futebol, contribuiu para a ida de Pelé para o Cosmos de Nova York, numa das inúmeras tentativas de popularização da modalidade nos Estados Unidos.

Por todas essas razões. Henry Kissinger é um autêntico exemplo de alguém que se notabilizou tanto como pensador como ator. Ainda em plena atividade aos 100 anos, nos deixa legando muitos ensinamentos aos estudiosos de relações internacionais, segurança e diplomacia.

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

"Henry Kissinger ignorou violações de direitos humanos, se aproximou de ditadura e colocou Brasil na posição de aliado principal dos EUA" - Entrevista Matias Spektor (G1)

"Henry Kissinger ignorou violações de direitos humanos, se aproximou de ditadura e colocou Brasil na posição de aliado principal dos EUA"

Matias Spektor, entrevista

Mundo | G1, 1/12/2023

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/11/30/henry-kissinger-ignorou-violacoes-de-direitos-humanos-se-aproximou-de-ditadura-e-colocou-brasil-na-posicao-de-aliado-principal-dos-eua.ghtml


Para Henry Kissinger, um dos mais influentes diplomatas da história dos Estados Unidosmorto aos 100 anos nesta quarta-feira (29), o Brasil ditatorial era um país a ser apoiado e fortalecido.

“Deveríamos ser capazes de trabalhar com mais frequência com eles [brasileiros] para avançar nossos interesses mútuos no hemisfério”, afirmou o então Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos em 1970, quando o Brasil enfrentava alguns dos anos mais duros do regime militar (1964-1985).

A frase está no livro “Kissinger e o Brasil”, de Matias Spektor, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador visitante na Universidade de Princeton, nos EUA.

Naquele momento, os interesses em comum consistiam, principalmente, em evitar a manutenção e a proliferação de governos de esquerda na América do Sul.

“Quando Kissinger chega ao poder, em 1969 [como conselheiro do então presidente Richard Nixon], ele enxerga que o Brasil pode ser uma âncora de estabilidade para a América do Sul. Era o auge da guerra fria, vários países do continente pareciam estar indo para esquerda, mais especificamente ArgentinaUruguai e Chile. O Brasil era, então, a única ditadura de direita. Já havia denúncias de pau de arara, mas ele faz vista grossa”, diz Spektor, em entrevista ao g1.\

O diplomata americano não só ignorou as denúncias de violações de direitos humanos. Ele foi muito além: desenvolveu uma ótima relação pessoal com o presidente general Emílio Médici, apoiando o governo dele, assim como o programa nuclear brasileiro.

Também atuou para que fosse instituído um canal de comunicação secreto entre o governo americano e o brasileiro (que possibilitava a troca de informações sobre iniciativas dos dois países na América do Sul) e para que os Estados Unidos reconhecessem o Brasil como principal aliado no continente.

“Eles [os dois governos] fazem uma reunião secreta em 1971, na qual combinam que vão trabalhar juntos para impedir que governos de esquerda cheguem ao poder pela via eleitoral na América do Sul. Também combinam que, juntos, vão tentar desestabilizar o governo de Salvador Allende no Chile, que era um socialista”, conta Spektor.

Os esforços de Kissinger na relação com o aliado sul-americano podem ser resumidos na frase com que o então presidente Richard Nixon recebeu Médici em 1971: “Para onde o Brasil for, irá o resto da América Latina”. Era a expressão do desejo do governo americano de que o restante dos países do continente caminhassem para regimes autoritários e anticomunistas.

“E veja que foi o que aconteceu: em 1964, quando tem o golpe no Brasil, a única ditadura na América do Sul era o Paraguai. Em 1974, dez anos depois, os únicos dois países que não são ditaduras são a Colômbia e a Venezuela. O período Kissinger coincide com a transformação de uma América do Sul democrática para um América do Sul ditatorial”, explica Spektor.

Vista grossa e anuência tácita

Em 1974, o então diretor da CIA, a agência de inteligência do governo americano, enviou um telegrama a Kissinger, então secretario de Estado (posição equivalente a de ministro das Relações Exteriores), com o seguinte assunto: “Decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar com as execuções sumárias de subversivos perigosos, sob certas condições”.

O documento, descoberto por Spektor durante pesquisas em 2018, demonstra não apenas o envolvimento direto da cúpula do governo militar no assassinato de opositores, mas também o fato de que Kissinger, então uma das principais autoridades do governo americano, tinha pleno conhecimento das brutais ações repressivas cometidas pelo governo aliado.

“Ele era informado, sabia do que estava acontecendo e não deixava isso atrapalhar a relação. Estamos falando de uma região do mundo na qual os EUA tem mais autoridade. Se o governo americano tivesse dito: ‘parem de torturar’, isso teria tido um efeito”, diz Spektor.

“Se o chefe da diplomacia dá uma anuência tácita à tortura, isso faz toda diferença”.

A mudança de postura do governo americano só aconteceu após a vitória eleitoral, em 1976, de Jimmy Carter que, durante a campanha, afirma que a relação desenvolvida por Kissinger com o Brasil era um “tapa na cara dos americanos” -- àquela altura, o Congresso americano já havia começado uma investigação para apurar o papel dos EUA nas torturas na América Latina, o que, segundo Spektor, diminuiu o espaço político para que Kissinger continuasse apoiando os regimes autoritários.

Mesmo assim, a “anuência tácita” de Kissinger continuou tendo graves consequências. Um exemplo se deu durante a Operação Condor, atividades coordenadas das ditaduras sul-americanas, lideradas pelo Chile e pela Argentina, para perseguir e eliminar opositores a partir de meados da década de 1970.

Em setembro de 1976, descobrem que a Operação Condor pretendia assassinar opositores no exterior e preparam um documento aos líderes sul-americanos dizendo que os Estados Unidos não tolerariam algo assim. Kissinger não aprovou a mensagem e instruiu que mais nada fosse feito.

Cinco dias depois, um atentado matou, em Washington, o ex-ministro de Relações Exteriores do Chile, Orlando Letelier, durante o governo Allende, e uma colega americana.

“A partir daí o movimento de solidariedade ao Chile nos Estados Unidos torna impossível que Kissinger continue apoiando Pinochet [ditador no país sul-americano], diz Spektor.

O envolvimento do americano em ações violentas em outros países não acaba aí. Ele também autorizou bombardeios no Camboja, durante a Guerra do Vietnã, que deixaram centenas de milhares de mortos, e apoiou um massacre cometido pela Índia em Bangladesh.

Plano para o Brasil frustrado

A ideia de Kissinger de que os Estados Unidos pudessem, eventualmente, delegar funções para o Brasil na América do Sul e a visão dele de que o país pudesse assumir uma posição de liderança no continente foi frustrada ao longo dos anos.

Durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), discordâncias em outras áreas começam a afetar a relação entre os dois países, especialmente na área comercial. Diferentemente do esperado pelos americanos, o Brasil não se alinhou automaticamente aos Estados Unidos em votações em fóruns multilaterais e na negociações de tratados internacionais.

“É uma relação que fica progressivamente tensa. O projeto que o Kissinger tinha em 1969 de fazer uma grande aproximação geopolítica com o Brasil afunda ao longo dos anos e termina fracassando”, explica Spektor.

Segundo o professor, o americano também começa a se frustrar ao perceber que o Brasil não queria assumir a função de intervir mais diretamente nos processos políticos e eleitorais dos outros países sul-americanos.

“Não pelo Brasil ser bonzinho, mas por achar que não tinha força pra desempenhar essa função em todo o continente”, diz. “O Brasil cumpre essa função no Uruguai, apoia o golpe de Pinochet, mas não foi a causa. Kissinger esperava mais”.

Depois de deixar o governo americano, em 1977, Kissinger manteve relações com o Brasil, mas como consultor de empresas americanas que faziam negócios em terras brasileiras e de firmas brasileiras que atuavam nos Estados Unidos.

Em 1981, ele esteve no Brasil e foi convidado para dar uma palestra na Universidade de Brasília. Foi recebido por estudantes com uma chuva de ovos e tomates e saiu escoltado.

SAIBA MAIS:

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Henry Kissinger era um hipócrita, e seu legado é a prova - Ben Rhodes (NYT; O Estado de S. Paulo)

Henry Kissinger era um hipócrita, e seu legado é a prova

Ben Rhodes (NYT)
O Estado de S. Paulo, 30/11/2023


'Política externa defendida pelo ex-secretário de Estado não tinha preocupação com seres humanos deixados em seu rastro', escreve ex-vice-conselheiro de segurança nacional dos EUA.
https://www.estadao.com.br/internacional/henry-kissinger-era-um-hipocrita-e-seu-legado-e-a-prova-leia-a-analise/?utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=manchetes&utm_term=20231130&utm_content=


THE NEW YORK TIMES - Henry Kissinger, que morreu na quarta-feira, era o exemplo vivo da lacuna entre a história que os Estados Unidos, a superpotência, conta e a maneira como os EUA agem no mundo. Por vezes oportunista e reativa, a política externa defendida por Kissinger era apaixonada pelo exercício do poder e sem preocupação com os seres humanos deixados em seu rastro. Justamente porque os Estados Unidos de Kissinger não eram a versão maquiada da “cidade na colina”, ele nunca se sentiu irrelevante: ideias entram e saem de moda, mas o poder não.

De 1969 a 1977, Kissinger se estabeleceu como um dos funcionários mais poderosos da história. Durante uma parte desse período, ele foi a única pessoa a ocupar simultaneamente os cargos de conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado, dois postos muito diferentes que o tornaram responsável por moldar e executar a política externa americana. Se suas origens judaico-alemãs e seu inglês carregado o diferenciavam, a facilidade com que exercia o poder fez dele um avatar natural para um estado de segurança nacional americano que cresceu e ganhou impulso ao longo do século XX, como um organismo que sobrevive ao se expandir.

Trinta anos depois que Kissinger se aposentou no conforto do setor privado, servi por oito anos em um aparato de segurança nacional maior, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro. Como assessor adjunto de segurança nacional, com responsabilidades que incluíam a redação de discursos e comunicações, meu trabalho muitas vezes se concentrava mais na história que os Estados Unidos contavam do que nas ações que tomávamos.

Na Casa Branca, você está no topo de uma estrutura que inclui as Forças Armadas e a economia mais poderosas do mundo e, ao mesmo tempo, detém os direitos de uma história radical: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”.

Mas eu era constantemente confrontado com as contradições embutidas na liderança americana, o conhecimento de que nosso governo arma autocratas enquanto sua retórica apela para os dissidentes que tentam derrubá-los ou que nossa nação impõe regras - para a condução da guerra, a resolução de disputas e o fluxo do comércio - enquanto insiste que os Estados Unidos sejam dispensados de segui-las quando elas se tornam inconvenientes.

Kissinger não se sentia desconfortável com essa dinâmica. Para ele, a credibilidade estava enraizada no que se fazia, não no que se defendia, mesmo quando essas ações anulavam os conceitos americanos de direitos humanos e direito internacional. Ele ajudou a estender a guerra no Vietnã e a expandi-la para o Camboja e o Laos, onde os Estados Unidos lançaram mais bombas do que na Alemanha e no Japão na 2ª Guerra Mundial.

Esses bombardeios - muitas vezes com massacre indiscriminado de civis - não contribuíram em nada para melhorar os termos em que a Guerra do Vietnã terminou; na verdade, apenas indicou até que ponto os Estados Unidos chegariam para expressar seu descontentamento com a derrota.

É irônico que esse tipo de realismo tenha atingido seu ápice no auge da Guerra Fria, um conflito que era ostensivamente sobre ideologia. Do lado do mundo livre, Kissinger apoiou campanhas genocidas - do Paquistão contra os bengaleses e da Indonésia contra os timorenses. No Chile, ele foi acusado de ajudar a preparar o terreno para um golpe militar que levou à morte de Salvador Allende, o presidente esquerdista eleito, dando início a um terrível período de governo autocrático.

A defesa generosa é que Kissinger representava um ethos que via os fins (a derrota da União Soviética e o comunismo revolucionário) como justificativa para os meios. No entanto, para grandes áreas do mundo, essa mentalidade trazia uma mensagem brutal que os Estados Unidos sempre transmitiram às suas próprias populações marginalizadas: nós nos preocupamos com a democracia para nós, não para eles. Pouco antes da vitória de Allende, Kissinger disse: “As questões são importantes demais para que os eleitores chilenos decidam por si mesmos”.

Será que tudo valeu a pena? Kissinger estava obcecado com a credibilidade, a ideia de que os Estados Unidos devem impor um preço àqueles que ignoram nossas exigências para moldar as decisões de outros no futuro. É difícil ver como o bombardeio do Laos, o golpe no Chile ou os assassinatos no Paquistão Oriental (atual Bangladesh) contribuíram para o resultado da Guerra Fria.

Mas a visão não sentimental de Kissinger sobre os assuntos globais permitiu que ele conseguisse avanços consequentes com países autocráticos mais próximos da estatura dos Estados Unidos - uma distensão com a União Soviética que reduziu o ímpeto de escalada da corrida armamentista e uma abertura para a China que aprofundou a divisão sino-soviética, integrou a República Popular da China à ordem global e antecedeu as reformas chinesas que tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza.

O fato de essas reformas terem sido iniciadas por Deng Xiaoping, o mesmo líder chinês que ordenou a repressão aos manifestantes na Praça Tiananmen, mostra a natureza ambígua do legado de Kissinger. Por um lado, a aproximação entre os EUA e a China contribuiu para o fim da Guerra Fria e melhorou os padrões de vida do povo chinês. Por outro lado, o Partido Comunista Chinês emergiu como o principal adversário geopolítico dos Estados Unidos e a vanguarda da tendência autoritária na política global, colocando um milhão de uigures em campos de concentração e ameaçando invadir Taiwan, cuja situação não foi resolvida pela diplomacia de Kissinger.

Kissinger viveu metade de sua vida depois de deixar o governo. Ele abriu o que se tornou uma trilha bipartidária de ex-funcionários que criaram empresas de consultoria lucrativas enquanto negociavam com contatos globais. Durante décadas, ele foi um convidado cobiçado em reuniões de estadistas e magnatas, talvez porque sempre pudesse fornecer uma estrutura intelectual para explicar por que algumas pessoas são poderosas e justificam o exercício do poder.

Escreveu uma prateleira de livros, muitos dos quais poliram sua própria reputação como oráculo dos assuntos globais; afinal, a história é escrita por homens como Henry Kissinger, não pelas vítimas das campanhas de bombardeio das superpotências, incluindo as crianças do Laos, que continuam a ser mortas pelas bombas que não explodiram e que cobrem seu país.

Você pode optar por ver essas bombas não detonadas como a tragédia inevitável da condução dos assuntos globais. Do ponto de vista estratégico, Kissinger certamente sabia que o fato de ser uma superpotência trazia consigo uma grande margem de erro que pode ser perdoada pela história.

Apenas algumas décadas após o fim da Guerra do Vietnã, os mesmos países que havíamos bombardeado estavam buscando expandir o comércio com os Estados Unidos. Bangladesh e Timor Leste são agora nações independentes que recebem assistência americana. O Chile é governado por um socialista millenial cujo ministro da defesa é a neta do Allende. As superpotências fazem o que devem fazer. A roda da história gira. Quando e onde você vive determina se você será esmagado ou erguido por ela.

Mas essa visão de mundo confunde cinismo - ou realismo - com sabedoria. A história, o que está em jogo, é importante. No final das contas, o Muro de Berlim foi derrubado não por causa de movimentos de xadrez feitos no tabuleiro de um grande jogo, mas porque as pessoas do Leste queriam viver como as pessoas do Oeste. A economia, a cultura popular e os movimentos sociais eram importantes. Apesar de todas as nossas falhas, tínhamos um sistema e uma história melhores.

 

Ironicamente, parte do fascínio sobre Kissinger se deveu ao fato de sua história ser eminentemente americana. Sua família escapou por pouco da roda da história, fugindo da Alemanha nazista no momento em que Hitler colocava em prática seu plano diabólico. Kissinger retornou à Alemanha no Exército dos EUA e libertou um campo de concentração.

A experiência o impregnou de uma cautela em relação à ideologia messiânica associada ao poder do Estado. Mas isso não legou a ele muita simpatia pelos menos favorecidos. Tampouco o motivou a vincular a superpotência americana do pós-guerra à própria teia de normas, leis e fidelidade a certos valores que foi escrita na ordem do pós-guerra liderada pelos americanos para evitar outra guerra mundial.

A credibilidade, afinal, não se trata apenas de punir ou não um adversário para enviar uma mensagem a outro; trata-se também de saber se você é o que diz ser. Ninguém pode esperar perfeição nos assuntos de Estado, assim como nas relações entre os seres humanos. Mas os Estados Unidos pagaram um preço por sua hipocrisia, embora seja mais difícil de medir do que o resultado de uma guerra ou negociação.

Agora a história completou o círculo. Em todo o mundo, vemos um ressurgimento da autocracia e do etnonacionalismo, mais acentuadamente na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Em Gaza, os Estados Unidos apoiaram uma operação militar israelense que matou civis em um ritmo que, mais uma vez, sugeriu a grande parte do mundo que somos seletivos em nossa adoção de leis e normas internacionais.

Enquanto isso, em casa, vemos como a democracia se tornou subordinada à busca pelo poder em uma parte do Partido Republicano. É a isso que o cinismo pode levar. Porque quando não há uma aspiração maior, nenhuma história que dê sentido às nossas ações, a política e a geopolítica se tornam meramente um jogo de soma zero. Nesse tipo de mundo, o poder faz a razão.

Tudo isso não pode ser colocado sobre os ombros de Henry Kissinger. De muitas maneiras, ele foi tanto uma criação do estado de segurança nacional americano quanto seu autor. Mas ele também é um conto de advertência. Por mais imperfeitos que sejamos, os Estados Unidos precisam de nossa história para sobreviver. É ela que mantém unida uma democracia multirracial em casa e nos diferencia da Rússia e da China no exterior.

Essa história insiste que uma criança no Laos é igual em dignidade e valor às nossas crianças e que o povo do Chile tem o mesmo direito de autodeterminação que nós. Para os Estados Unidos, isso deve fazer parte da segurança nacional. Nós nos esquecemos disso por nossa conta e risco.


* Ben Rhodes foi vice-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA entre 2009 e 2017, no governo de Barack Obama

 

Death of a diplomat: Henry Kissinger, 1923-2023 (The Washington Post)

Death of a diplomat

The Washington Post, Nov 30, 2023

Henry A. Kissinger, a scholar, statesman and celebrity diplomat who wielded unparalleled power over U.S. foreign policy throughout the administrations of Presidents Richard M. Nixon and Gerald Ford, and who for decades afterward, as a consultant and writer, proffered opinions that shaped global politics and business, died Nov. 29 at his home in Connecticut. He was 100.

His death was announced in a statement by his consulting firm, which did not give a cause.

As a Jewish immigrant fleeing Nazi Germany, Dr. Kissinger spoke little English when he arrived in the United States as a teenager in 1938. But he harnessed a keen intellect, a mastery of history and his skill as a writer to rise quickly from Harvard undergraduate to Harvard faculty member before establishing himself in Washington.

As the only person ever to be White House national security adviser and secretary of state at the same time, he exercised a control over U.S. foreign policy that has rarely been equaled by anyone who was not president.

He and Vietnam’s Le Duc Tho shared the Nobel Peace Prize for the secret negotiations that produced the 1973 Paris agreement and ended U.S. military participation in the Vietnam War. His famous “shuttle diplomacy” after the 1973 Middle East war helped stabilize relations between Israel and its Arab neighbors.

As the impresario of Nixon’s historic opening to China and as the theoretician of détente with the Soviet Union, Dr. Kissinger earned much of the credit for seismic policy shifts that redirected the course of world affairs.

When he was appointed secretary of state, a Gallup poll found him to be the most admired person in the country. But he also became the target of relentless critics.

On the left, loud voices accused him of a coldblooded pragmatism that put strategic gains ahead of human rights. Some of his critics said the Paris agreement left a longtime ally, the government of South Vietnam, to a dark fate as the North Vietnamese seized control. Others accused him of letting the war continue for three years while he negotiated a deal that he could have had from the beginning.

Throughout his life, Dr. Kissinger ruminated on power and strategy in philosophical and even existential terms, but he always described himself as a realist, able to see which risks were worth taking.

“Policy is the art of weighing probabilities; mastery of it lies in grasping the nuances of possibilities,” he wrote as a young man. “To attempt to conduct it as a science must lead to rigidity. For only the risks are certain; the opportunities are conjectural.”

By Thomas W. Lippman, a former Washington Post reporter who covered Dr. Kissinger’s diplomatic activities in Vietnam and the Middle East.

Read more: Henry Kissinger, who shaped world affairs under two presidents, dies at 100.
https://s2.washingtonpost.com/3bf32b1/6568175fee20006aed835632/596b79f3ade4e24119b43ed3/26/61/6568175fee20006aed835632

segunda-feira, 12 de junho de 2023

O ''negócio'' do futuro e os conselhos de Kissinger - Pedro S. Malan (Estadão)

 O ''negócio'' do futuro e os conselhos de Kissinger

Por Pedro S. Malan
O Estado de S. Paulo11/06/2023

“It is the business of the future to be dangerous” (é o negócio do futuro ser perigoso) escreveu o grande matemático e filósofo Alfred Whitehead em 1926. Tempos atrás, cometi a ousadia de parafrasear o autor na forma “o futuro tem por ofício ser incerto”, porque penso que incerteza engloba não só perigos, como também imprevisibilidades, sonhos, expectativas e oportunidades que o futuro sempre encerra. Este artigo explora certas imprevisibilidades – e possibilidades – do futuro neste sexto e problemático mês do governo Lula 3.

Começo com o conselho de um grande investidor americano, Howard Marks: “Você pode não conhecer o futuro, mas é bom que tenha uma boa ideia sobre onde você se encontra” (you may not know the future, but you would better have a good idea of where you are). Sempre achei que esse conselho se aplica não apenas a pessoas, mas também a empresas, a países e ao mundo.

Em imperdível e longa matéria publicada na The Economist e em português neste jornal (20/5/2023), Henry Kissinger apresenta três lições a “aspirantes a líder”. A primeira: “Identifique onde você está”. E acrescenta a palavra-chave: impiedosamente (pitilessly). O que deveria englobar a compreensão de como e por que se chegou até o momento atual – base para vislumbrar futuros possíveis.

Os conselhos de Marks e Kissinger aplicam-se a Lula e seu “núcleo duro”, que deveriam estar impiedosamente avaliando a situação em que se encontram – e olhando à frente, com foco na governabilidade, para os cruciais 18 meses à frente, até outubro de 2024. Já em 2021, Marcos Mendes concluiu artigo (FSP, 3/12) com sugestões ao presidente da República a ser eleito em outubro de 2022: “Ou Vossa Excia. constrói e controla uma coalizão majoritária no Congresso ou alguém vai construí-la e inviabilizará o seu governo. E Vossa Excia. já terá um ponto de partida ruim, tendo de desfazer os erros que ora se acumulam”. Mendes não precisou lembrar ao futuro presidente que a composição do Congresso Nacional para a legislatura que se iniciaria (2023-2026) já estaria definida desde o primeiro turno. E que os então incumbentes teriam sobre novos candidatos a enorme vantagem decorrente dos bilionários Fundos Eleitoral e Partidário, bem como das crescentes emendas parlamentares transferindo maior poder ao Legislativo em matéria orçamentária.

A propósito, em excelente artigo recente (Governos e coalizões, FSP, 5/6), Marcus André Melo nota uma característica de nosso fragmentado sistema de presidencialismo multipartidário com partidos não programáticos: “Partidos diferentes ocupando o Executivo e Legislativo decorrem de suas bases eleitorais serem diferentes, e a estrutura de incentivos com que se deparam, radicalmente distinta. Para os deputados, a sobrevivência política é função dos recursos que alimentam redes locais via ministérios, cargos no segundo escalão e emendas orçamentárias. Para o presidente, ela é nacional e de outra natureza: ele (a) é punido (a) ou premiado (a) por desempenho econômico e políticas redistributivas”. O alinhamento entre incentivos tão díspares, nota o autor, não é orgânico. “Há espaço para ganhos de troca, embora o resultado social líquido seja marcado por grande ineficiência alocativa.”

Agora, o segundo conselho de Kissinger: defina objetivos capazes de agregar (enlist, no original) as pessoas. “Encontre meios que sejam enunciáveis (describable means, no original) para alcançar esses objetivos.” Esse conselho é particularmente relevante para o Brasil no momento atual. É importante, na expressão, o describable, porque não bastará enunciar uma longa lista de objetivos desejáveis, sem a preocupação de descrever os meios para alcançá-los. É na identificação destes que surgem os difíceis trade-offs.

O terceiro e último conselho de Kissinger para aspirantes a líder com pretensões de protagonismo global é também particularmente significativo para o Brasil de hoje, que tem claras (e legítimas) pretensões na arena global e que exercerá a presidência do G-20 em 2024. O conselho é: “Ligue tudo isto aos seus objetivos domésticos, sejam eles quais forem”. Afinal, o prestígio, a voz, a influência e o protagonismo de um país no mundo dependem fundamentalmente de sua capacidade de mostrar a si próprio, à sua região, e ao mundo que está sendo capaz de equacionar os seus numerosos problemas domésticos nas áreas econômica, social, ambiental e político-institucional.

A frase de Whitehead que citei no início tem uma importante segunda parte: “(...) and it is among the merits of Science that it equips the future for its duties” (e está entre os méritos da Ciência equipar o futuro para seus deveres). Os países mais bem-sucedidos do mundo foram aqueles que entenderam, ainda que em momentos históricos distintos, que seu desenvolvimento de longo prazo dependeria da força propulsora dada por educação de qualidade e facilitação de avanços científicos, tecnológicos e inovações que permitissem aumentos de produtividade e capacidade de inserção internacional. São estes os elementos que, em última análise, asseguram o desenvolvimento econômico social sustentável no longo prazo de qualquer país. O Brasil não é – e não será – exceção.

*

ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM


sábado, 27 de maio de 2023

Henry Kissinger – Aos 100 anos, como evitar a Terceira Guerra Mundial - The Economist, Estadão, DefesaNet

 O Metternich do século XX acabou ultrapassando o século em pelo menos 23 anos,  mas contando…

Os 100 Anos de Henry Kissinger

Neste dia 27 Maio 2023, comemora-se os 100 anos de Henry Kisisnger.

DefesaNet, 27 maio 2023

Nenhuma pessoa viva tem mais experiência em assuntos internacionais, primeiro enquanto estudioso da diplomacia do século 19, depois como conselheiro de segurança nacional dos EUA e secretário de Estado — e ao longo dos últimos 46 anos como consultor e emissário de monarcas, presidentes e premiês.
Kissinger está preocupado. “Ambos os lados convenceram a si mesmos de que o outro representa um perigo estratégico”, afirma ele. “Nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências.”
No momento em que amadores geopolíticos estão sentados em cadeiras importantes no Planalto Central, é bom ler esta entrevista dada à revista inglesa The Economist e traduzida pelo O Estado de São Paulo.

Henry Kissinger – Aos 100 anos, como evitar a Terceira Guerra Mundial entre China e EUA


Os 100 Anos de Henry Kissinger

Neste dia 27 Maio 2023, comemora-se os 100 anos de Henry Kisisnger.

Nenhuma pessoa viva tem mais experiência em assuntos internacionais, primeiro enquanto estudioso da diplomacia do século 19, depois como conselheiro de segurança nacional dos EUA e secretário de Estado — e ao longo dos últimos 46 anos como consultor e emissário de monarcas, presidentes e premiês.
Kissinger está preocupado. “Ambos os lados convenceram a si mesmos de que o outro representa um perigo estratégico”, afirma ele. “Nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências.”
No momento em que amadores geopolíticos estão sentados em cadeiras importantes no Planalto Central, é bom ler esta entrevista dada à revista inglesa The Economist e traduzida pelo O Estado de São Paulo.

Henry Kissinger – Aos 100 anos, como evitar a Terceira Guerra Mundial entre China e EUA


Henry Kissinger – Aos 100 anos, como evitar a Terceira Guerra Mundial entre China e EUA

Henry Kissinger explica, em seu centenário, como evitar a Terceira Guerra Mundial entre China e EUA. Ao completar 100 anos, no dia 27 Maio 2023, Henry Kissinger, fala sobre um mundo que ele praticamente formou junto com o presidente Richard Nixon 

The Economist
Publicado Portal Estadão 
Tradução de Augusto Calil e Guilherme Russo

Em Pequim, concluiu-se que os Estados Unidos farão de tudo para manter a China por baixo. Em Washington, a convicção é que a China conspira para suplantar os EUA enquanto principal potência mundial. Para obter uma análise lúcida desse antagonismo crescente — assim como um plano para evitá-lo e evitar uma guerra entre superpotências — visite o 33.º andar de certo edifício em estilo art déco na região central de Manhattan, o escritório de Henry Kissinger.

Em 27 de maio, Kissinger fará 100 anos. Nenhuma pessoa viva tem mais experiência em assuntos internacionais, primeiro enquanto estudioso da diplomacia do século 19, depois como conselheiro de segurança nacional dos EUA e secretário de Estado — e ao longo dos últimos 46 anos como consultor e emissário de monarcas, presidentes e premiês. Kissinger está preocupado. “Ambos os lados convenceram a si mesmos de que o outro representa um perigo estratégico”, afirma ele. “Nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências.”

No fim de abril, The Economist conversou com Kissinger por mais de oito horas, sobre como evitar que a competição entre China e EUA descambe para a guerra. Hoje sua postura é curvada e ele caminha com dificuldade, mas sua mente é aguçada e precisa. Conforme contempla seus próximos dois livros, sobre inteligência artificial (IA) e a natureza das alianças, ele continua mais interessado em olhar adiante do que revolver o passado.

  • Estamos na situação clássica pré-1.ª Guerra em que nenhum lado tem muita margem de concessão política e qualquer perturbação ao equilíbrio pode ocasionar consequências catastróficas”.
    Henry Kissinger

O impacto da IA na Nova Guerra Fria

Kissinger está alarmado com a intensificação da competição entre China e EUA por proeminência tecnológica e econômica. Mesmo enquanto a Rússia orbita a China e a guerra obscurece o flanco oriental da Europa, ele teme que a inteligência artificial esteja prestes a super-energizar a rivalidade sino-americana. Em todo o mundo, o equilíbrio do poder e a base tecnológica da guerra estão mudando tão rapidamente e de tantas maneiras que falta aos países qualquer princípio acordado sobre o qual eles possam estabelecer a ordem. E se não conseguirem encontrar alguma, eles podem apelar para a força. “Estamos na situação clássica pré-1.ª Guerra”, afirma Kissinger, “em que nenhum lado tem muita margem de concessão política e qualquer perturbação ao equilíbrio pode ocasionar consequências catastróficas”.

Kissinger e o vietnamita Le Duc Tho em Paris, nas negociações que levaram ao fim do envolvimento americano no Vietnã 

Kissinger é insultado por muitos críticos que o acusam de promover a guerra e o qualificam como belicista pelo seu papel na Guerra do Vietnã, mas ele considera evitar o conflito entre grandes potências o foco do trabalho de sua vida. Depois de testemunhar a carnificina causada pela Alemanha nazista e o sofrimento e assassinato de 13 parentes próximos no Holocausto, ele se convenceu de que a única maneira de evitar conflitos catastróficos é a diplomacia pragmática, idealmente fortificada por valores compartilhados. “Este é o problema que tem de ser resolvido”, afirma Kissinger. “E creio que eu passei minha vida inteira tentando lidar com ele.” Em sua visão, o destino da humanidade depende de EUA e China se entenderem. Ele acredita que o rápido progresso da inteligência artificial, em particular, lhes dá apenas entre cinco e dez anos para encontrar um caminho.

Como interpretar a ambição chinesa?

Kissinger tem alguns conselhos preliminares para aspirantes a líder: “Identifique onde você está. Inclementemente”. Nesse espírito, o ponto inicial para evitar a guerra é analisar a crescente inquietação da China. Apesar da reputação de conciliador em relação ao governo em Pequim, ele reconhece que muitos pensadores chineses acreditam que os EUA rumam ladeira abaixo e, “portanto, como resultado de uma evolução histórica, eles por fim nos suplantarão”.

Kissinger acredita que a liderança da China se ressente da fala dos formuladores de políticas americanos a respeito de uma ordem internacional com base em regras, quando eles falam na realidade de regras e ordem dos EUA. Os governantes chineses se insultam com o que percebem como uma barganha condescendente oferecida pelo Ocidente, de garantir à China privilégios se ela se comportar (os chineses certamente pensam que os privilégios deveriam ser deles por direito, enquanto potência em ascensão). Realmente, alguns na China suspeitam que os EUA jamais tratarão os chineses como iguais e que é um engano pensar que o fariam.

Contudo, Kissinger também alerta a respeito de erros de interpretação sobre as ambições da China. Em Washington, “dizem que a China quer dominar o mundo (…). A resposta é que eles (os chineses) querem ser poderosos”, afirma Kissinger. “Eles não estão rumando para a dominação do mundo em um sentido hitleriano”, diz ele. “Não é dessa maneira que eles pensam a ordem mundial, eles nunca pensaram assim.”

O confucionismo chinês

A guerra da Alemanha nazista foi inevitável porque Adolf Hitler precisava dela, afirma Kissinger, mas a China é diferente. Ele se encontrou com vários líderes chineses, começando por Mao Tsé-tung, e nunca duvidou da convicção ideológica deles, mas isso sempre foi ligado a uma percepção arguta a respeito dos interesses e capacidades da China.

Kissinger considera o sistema chinês mais confucionista do que marxista. Isso ensina os líderes chineses a arrancar o máximo de força de que seu país é capaz e a buscar ser respeitado por suas realizações. Essa elite governante quer ser reconhecida como os juízes finais de seus próprios interesses no sistema internacional. “Se eles atingissem uma superioridade que pudesse ser usada genuinamente, a levariam ao ponto de impor a cultura chinesa?”, pergunta ele. “Eu não sei. Meu instinto diz ‘não’… (mas) acredito que está dentro de nossa capacidade evitar que essa situação emerja, por meio de uma combinação entre diplomacia e força.”

  • É possível para China e EUA coexistir sem a ameaça de uma guerra total entre si? Sempre achei e ainda acho que sim. Mas o fracasso é possível. E, portanto, nós temos de ser fortes militarmente para aguentar esse fracasso.”  
    Henry Kissinger

Uma resposta natural para o desafio da ambição chinesa é estudar a China, como maneira de identificar como promover o equilíbrio entre as duas potências. Outra é estabelecer um diálogo permanente entre China e EUA. “A China está tentando desempenhar um papel global. Temos de analisar em cada ponto se as concepções de papel estratégico são compatíveis”. Se não forem, a questão da força emergirá. “É possível para China e EUA coexistir sem a ameaça de uma guerra total entre si? Sempre achei e ainda acho que sim.” Mas ele reconhece que o sucesso não é garantido. “O fracasso é possível”, afirma ele. “E, portanto, nós temos de ser fortes militarmente para aguentar esse fracasso.”

Kissinger e Mao Zedong (Tsé Tung) e atrás a eminência do regime chinês Chu Enlai

O futuro de Taiwan

O teste urgente é como China e EUA se comportarão em relação a Taiwan. Kissinger recorda-se que, durante a primeira visita de Richard Nixon à China, em 1972, somente Mao tinha autoridade para negociar sobre a ilha. “Onde quer que Nixon levantasse algum tema concreto, Mao dizia, ‘Eu sou um filósofo, não lido com esses assuntos. Deixe que Zhou (Enlai) e Kissinger discutam isso’. (…) Mas quando a conversa tratou de Taiwan, ele foi muito explícito. Ele disse, ‘Eles são um bando de contrarrevolucionários. Nós não precisamos deles agora. Nós podemos esperar 100 anos. Algum dia nós os requisitaremos. Mas isso está muito longe de acontecer’.”

Kissinger acredita que o entendimento forjado entre Nixon e Mao foi revertido depois de apenas 50 desses 100 anos por Donald Trump — que quis inflar sua imagem de durão arrancando concessões comerciais da China. O governo Biden seguiu o exemplo de Trump, mas com retórica progressista.

Kissinger não teria escolhido esse rumo sobre Taiwan, porque uma guerra como a ucraniana por lá destruiria a ilha e devastaria a economia mundial. Uma guerra também poderia complicar as coisas para a China domesticamente, e o maior medo se seus líderes segue sendo uma insurreição interna.

O medo da guerra cria condições para a esperança. O problema é que nenhum dos lados tem muito campo para abrir concessões. Todos os líderes da China afirmaram a conexão de seu país a Taiwan. Ao mesmo tempo, porém, “da maneira que as coisas evoluíram agora, não é simples para os EUA abandonar Taiwan sem prejudicar sua posição em outros lugares”.


Desarmando a bomba de Trump e Biden

A solução de Kissinger para esse impasse decorre de sua experiência no governo. Ele começaria simplesmente baixando a temperatura e então, gradualmente, construiria confiança e uma relação funcional. Em vez de listar suas queixas, o presidente americano diria ao seu homólogo, “Sr. presidente, os dois maiores perigos para a paz neste momento somos nós dois, pois nós temos capacidade de destruir a humanidade”. China e EUA, então, sem anunciar formalmente nenhum movimento, colocariam foco na prática do comedimento.

Kissinger, que nunca foi fã das burocracias da formulação política, gostaria de ver um pequeno grupo de assessores, com acesso fácil entre si, trabalhando tacitamente. Nenhum dos lados mudaria fundamentalmente sua posição sobre Taiwan, mas os EUA teriam cuidado com a maneira que acionam suas forças e tentariam não alimentar suspeitas de que apoiam a independência da ilha.

O segundo conselho de Kissinger para um aspirante a líder é, “Defina objetivos capazes de agregar as pessoas. Descubra meios, descritíveis, de alcançar esses objetivos”. Taiwan seria apenas a primeira de várias áreas em que as superpotências poderiam encontrar objetivos comuns e assim fomentar a estabilidade global.

  • Não é de nosso interesse levar a China à dissolução”  
    Henry Kissinger

As lições do Século 19

Em um discurso recente, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, sugeriu que eles deveriam incluir as mudanças climáticas e a economia. Kissinger é cético em relação a ambos. Apesar ser “completamente favorável” à ação a respeito do clima, ele duvida que isso possa colaborar muito para criar confiança ou ajudar a estabelecer um equilíbrio entre as duas superpotências. Em relação à economia, o perigo é que a agenda comercial seja sequestrada por falcões que não estão dispostos a dar nenhum espaço para a China se desenvolver de alguma maneira.

Essa atitude tudo ou nada é uma ameaça para a busca da detente maior. Se os EUA querem encontrar um modo de conviver com a China, não deveriam ter na mira mudança de regime. Kissinger recorre a um tema presente em seu pensamento desde o tenro início. “Em qualquer diplomacia de estabilidade, tem de haver algum elemento do mundo do século 19″, afirma ele. “E o mundo do século 19 tinha como base a proposta de que a existência de Estados em disputa não estava em questão.”

Alguns americanos acreditam que uma China derrotada se tornaria uma democracia pacífica. Contudo, por mais que Kissinger prefira uma China democrática, ele não vê nenhum precedente para esse desfecho. Mais provavelmente o colapso do regime comunista levaria a uma guerra civil que amalgamaria um conflito ideológico e colaboraria para a instabilidade global. “Não é de nosso interesse levar a China à dissolução”, afirma ele.

Os riscos na Ucrânia

Em vez de se entrincheirar, os EUA terão de aceitar que a China tem interesses. Um bom exemplo é a Ucrânia.

O presidente chinês, Xi Jinping, entrou em contato apenas recentemente com seu homólogo ucraniano, Volodmir Zelenski, depois que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro do ano passado. Muitos observadores deram pouca importância para o telefonema de Xi, qualificando-o como um gesto vazio destinado a acalmar os europeus, que reclamam afirmando que a China está próxima demais da Rússia. Em contraste, Kissinger considera a atitude uma declaração de intenção séria que complicará a diplomacia em torno da guerra, mas que também pode criar precisamente o tipo de oportunidade para a construção de confiança mútua entre as superpotências.

Kissinger começa sua análise condenando o presidente russo, Vladimir Putin. “No fim, isso foi certamente um erro de julgamento catastrófico”, afirma ele. Mas o Ocidente não é isento de culpa. “Acho que a decisão de (…) abrir a possibilidade da adesão na Otan para a Ucrânia foi muito equivocada.” Isso foi desestabilizador, porque sinalizar com a promessa da proteção da Otan sem um plano de concretização deixou a Ucrânia mal defendida mesmo enquanto garantiu enfurecer não apenas Putin, mas também muitos de seus compatriotas.

A tarefa agora é pôr fim à guerra sem montar o cenário de uma próxima rodada de conflito. Kissinger quer que a Rússia desista o quanto possível do território que conquistou em 2014, mas a realidade é que em qualquer cessar-fogo a Rússia deverá manter no mínimo Sevastopol (a maior cidade na Crimeia e principal base naval da Rússia no Mar Negro). Tal arranjo, no qual a Rússia perde alguns ganhos mas mantém outros, poderia ocasionar insatisfação tanto na Rússia quanto na Ucrânia.

Em sua visão, esta é uma receita para um confronto futuro. “O que os europeus estão dizendo agora é, na minha opinião, loucamente perigoso”, afirma Kissinger, “Porque os europeus estão dizendo, ‘Nós não queremos eles na Otan porque é arriscado demais. Por isso, nós vamos armá-los absurdamente, dar-lhes as armas mais avançadas.” Sua conclusão é brutal: “Agora nós armamos a Ucrânia ao ponto de transformá-la no país mais bem armado na Europa e com a liderança menos experiente estrategicamente”.

Estabelecer uma paz duradoura na Europa requer dois saltos da imaginação por parte do Ocidente. O primeiro no sentido da Ucrânia aderir à Otan, como meio tanto de contê-la quanto de protegê-la. O segundo no sentido da Europa arquitetar uma reaproximação com a Rússia para criar uma fronteira oriental estável.

Vários países ocidentais relutariam, compreensivelmente, em relação a algum desses objetivos. Com a China envolvida, enquanto aliada da Rússia e oponente da Otan, a tarefa ficará ainda mais difícil. A China tem um interesse predominante de ver a Rússia emergir intacta da guerra na Ucrânia. Xi não apenas tem uma parceria “sem limites” com Putin para honrar, mas a ruína de Moscou dificultaria as coisas para a China ao criar um vácuo de poder na Ásia Central que arrisca ser preenchido por uma “guerra civil em estilo sírio”.

  • “O que os europeus estão dizendo agora é loucamente perigoso. Eles estão dizendo: ‘Nós não queremos eles na Otan porque é arriscado demais. Por isso, nós vamos armá-los absurdamente’ Agora nós armamos a Ucrânia ao ponto de transformá-la no país mais bem armado na Europa e com a liderança menos experiente estrategicamente”.  
    Henry Kissinger

China, Rússia e a desconfiança mútua

Após o telefonema de Xi para Zelenski, Kissinger acredita que a China pode estar se posicionando para mediar negociações entre Rússia e Ucrânia. Como um dos arquitetos da política que opôs EUA e China à União Soviética, Kissinger duvida que Pequim e Moscou sejam capazes de trabalhar bem juntos. É verdadeiro que ambos compartilham suspeições a respeito dos EUA, mas ele também acredita que ambos têm uma desconfiança mútua instintiva. “Eu nunca conheci nenhum líder russo que fale bem da China”, afirma ele. “E nunca conheci nenhum líder chinês que fale bem da Rússia.” Os países não são aliados naturais.

Os chineses entraram na diplomacia em torno da Ucrânia para expressar seu interesse nacional, afirma Kissinger. Apesar de se recusar a aprovar a destruição promovida pela Rússia, a China reconhece que a Ucrânia deve permanecer um país independente e alertou contra o uso de armas nucleares. E pode até aceitar o desejo ucraniano de adesão à Otan. “A China faz isso em parte porque não quer se chocar com os EUA”, afirma Kissinger. “Os chineses estão criando sua própria ordem mundial onde quer que consigam.”

  • Eu nunca conheci nenhum líder russo que fale bem da China. E nunca conheci nenhum líder chinês que fale bem da Rússia.”  
    Henry Kissinger

Um diálogo sobre IA

A segunda área em que China e EUA precisam dialogar é a inteligência artificial. “Estamos bem no início de um desenvolvimento em que máquinas poderiam impor contaminações globais ou outras pandemias”, afirma Kissinger, “não apenas nucleares, mas em qualquer campo da destruição humana”.

Kissinger reconhece que nem mesmo os especialistas em inteligência artificial sabem quais serão os poderes da nova tecnologia (a julgar pela nossa conversa, transcrever uma fala com sotaque alemão pesado e rouco ainda está além de suas capacidades). Mas Kissinger acredita que a IA se tornará um fator crucial na segurança em cinco anos. Ele compara seu poder de disrupção à invenção da imprensa, que espalhou ideias que colaboraram para causas de guerras devastadoras nos séculos 16 e 17.

“(Nós vivemos) em um mundo de destrutividade sem precedentes”, alerta Kissinger. Apesar da doutrina de que um humano deve estar no controle, armamentos automáticos e irrefreáveis podem ser criados. “Se olhamos para a história militar, podemos afirmar que nunca foi possível destruir todos os nossos oponentes em razão de limitações de geografia e precisão. (Agora) não há nenhuma limitação. Qualquer adversário está 100% vulnerável.”

A inteligência artificial não pode ser abolida. China e EUA irão, portanto, explorar seu poder militarmente em alguma medida, como forma de dissuasão. Mas eles podem também limitar a ameaça que a IA representa da mesma maneira que negociações de controle de armas limitaram a ameaça das bombas nucleares. “Acho que devemos iniciar intercâmbios a respeito do impacto da tecnologia sobre todos nós”, afirma Kissinger. “Temos de dar passos preliminares no sentido do controle de armas, nos quais cada lado apresenta ao outro elementos controláveis a respeito das capacidades.”

Na realidade, ele acredita que sentar à mesa de negociação, em si, poderia ajudar a construir confiança mútua e uma sensação de segurança que possibilitaria às superpotências praticar comedimento. O segredo para isso é haver líderes fortes e sábios o suficiente para entender que a inteligência artificial não deve ser levada ao seu limite. “E se uma pessoa se fia inteiramente no que consegue alcançar por meio do poder, ela é capaz de destruir o mundo.”

  • “Se olhamos para a história militar, podemos afirmar que nunca foi possível destruir todos os nossos oponentes em razão de limitações de geografia e precisão. Agora não há nenhuma limitação. Qualquer adversário está 100% vulnerável.”  
    Henry Kissinger

Uma América mais pragmática

O terceiro conselho de Kissinger para aspirantes a líder é “ligar tudo isso aos seus objetivos domésticos, sejam eles quais forem”. Para os EUA, isso envolve aprender a ser mais pragmático, colocando foco sobre as qualidades da liderança e, acima de tudo, renovando a cultura política do país.

O modelo de Kissinger de pensamento pragmático é a Índia. Ele se recorda de uma solenidade em que um ex-funcionário do alto-escalão do governo indiano explicou que política externa deve ter base em alianças não permanentes voltadas para temas específicos, em vez de amarrar o país em grandes estruturas multilaterais.

Essa abordagem transacional não virá naturalmente para os EUA. O tema que atravessa o épico sobre história das relações internacionais de Kissinger, “Diplomacia”, é que os EUA insistem em retratar todas as suas principais intervenções no exterior como expressões de seu destino manifesto de recriar o mundo à sua própria imagem, enquanto sociedade livre, democrática e capitalista.

O problema para Kissinger é o corolário de que os princípios morais se sobreponham com frequência demais aos interesses — mesmo quando não produzem mudanças desejáveis. Ele reconhece que direitos humanos são importantes, mas discorda que os coloquemos no centro da nossa política. A diferença está entre impor o respeito a eles ou afirmar que isso afetará as relações, mas que a escolha é deles.

“Tentamos (impor) no Sudão”, nota Kissinger. “Olhe para o Sudão agora.” De fato, a insistência impensada em fazer o que é certo pode virar desculpa para deixar de pensar em todas as consequências das políticas, afirma ele. As pessoas que querem usar o poder para mudar o mundo, argumenta Kissinger, são com frequência idealistas, apesar de os realistas serem vistos mais comumente como pessoas dispostas a usar a força.

A Índia é um contrapeso essencial ao crescente poder da China. Mas também tem um registro de intolerância religiosa que piora, um Judiciário parcial e uma imprensa silenciada. Uma implicação — apesar de Kissinger não a ter mencionado diretamente — é que a Índia, portanto, colocará em teste a capacidade de pragmatismo dos EUA. Assim como o Japão. As relações se desgastarão, conforme prevê Kissinger, se o Japão se movimentar para obter armas nucleares nos próximos cinco anos. Com um olho nas manobras diplomáticas que bem ou mal mantiveram a paz no século 19, ele olha para o Reino Unido e a França para ajudar os EUA estrategicamente em relação ao equilíbrio de poder na Ásia.

O poder dos indivíduos

A liderança também será importante. Kissinger acredita há muito no poder dos indivíduos. Franklin D. Roosevelt via longe o suficiente para preparar seus EUA isolacionistas para o que percebia como uma guerra inevitável contra as potências do Eixo. Charles de Gaulle fez a França acreditar no futuro. John F. Kennedy inspirou uma geração. Otto von Bismarck operou a unificação da Alemanha e governou com destreza e comedimento — para seu país sucumbir à febre da guerra após ele ser deposto.

Kissinger reconhece que noticiários 24 horas e redes sociais dificultam seu estilo de diplomacia. “Não acho que um presidente hoje poderia enviar um representante com os poderes que eu tinha”, afirma ele. Mas Kissinger argumenta que afligir-se sem saber se um caminho adiante sequer é possível seria um erro. “Se você considerar os líderes que respeitei, nenhum fazia essa pergunta. Eles perguntavam, ‘Isso é necessário?’.”

Kissinger recorda-se do exemplo de Winston Lord, que integrava sua equipe no governo Nixon. “Quando nós interviemos no Camboja, ele quis pular fora. E eu lhe disse, ‘Você pode abandonar o barco e marchar por aí levantando um cartaz; ou pode nos ajudar a solucionar a Guerra do Vietnã’. Então ele decidiu ficar (…) O que nós precisamos é de pessoas que tomem esse tipo de decisão — que vivam no momento atual e queiram fazer algo a respeito em vez de sentir pena de si mesmas.”

A liderança reflete a cultura política de um país. Kissinger, como muitos republicanos, preocupa-se com o foco da educação americana nos momentos mais obscuros dos EUA. “Para adquirir uma visão estratégica, você precisa ter fé em seu país”, afirma ele. A percepção compartilhada do valor dos EUA foi perdida.

Kissinger também reclama da falta de senso de proporção e julgamento nos meios de comunicação. Quando ele estava no governo, a imprensa era hostil, mas ele ainda dialogava com os jornalistas. “Eles me deixavam doido”, afirmou ele. “Mas isso era parte do jogo (…) eles não eram injustos.” Hoje, em contraste, Kissinger afirma que os meios de comunicação não têm nenhum incentivo à reflexão. “Meu mote é a necessidade de equilíbrio e moderação. De institucionalizar isso. O objetivo é esse.”

  • Nós (os EUA) não estamos em um grande momento na história, mas a alternativa é a abdicação completa. Esse é o grande desafio que temos de solucionar. Se não conseguirmos, as previsões de fracasso serão comprovadas.” Henry Kissinger

A ameaça da polarização política

Pior de tudo, porém, é a própria política. Quando Kissinger chegou em Washington, políticos de ambos os partidos jantavam juntos rotineiramente. Ele tinha amizade com George McGovern, que foi candidato do Partido Democrata à presidência.

Isso seria incomum hoje para um conselheiro de segurança nacional do outro time, acredita ele. Gerald Ford, que assumiu após a renúncia de Nixon, era o tipo de indivíduo cujos oponentes não duvidavam que sempre agiria com decência. Hoje, qualquer método é considerado aceitável.

“Eu acho que Trump e, agora, Biden levaram (a animosidade) ao extremo”, afirma Kissinger. Ele teme que uma situação como o Watergate poderia ocasionar violência e que faltam lideranças nos EUA. “Não acho que Biden seja capaz de inspirar e (…) espero que os republicanos consigam encontrar uma pessoa melhor”, afirma ele. “Não estamos em um grande momento na história”, lamenta ele, “mas a alternativa é a abdicação completa”.

Os EUA precisam desesperadamente do pensamento estratégico de longo prazo, acredita Kissinger. “Esse é o grande desafio que temos de solucionar. Se não conseguirmos, as previsões de fracasso serão comprovadas.”

Um novo mundo

Se o tempo é curto e faltam lideranças, como ficam os prospectos para China e EUA encontrarem uma via para conviver em paz?

“Todos temos de admitir que estamos em um mundo novo”, afirma Kissinger, “pois qualquer coisa que fizermos pode dar errado e não existe nenhum caminho infalível”. Mesmo assim ele diz que sente esperança. “Veja, minha vida foi difícil, mas argumenta a favor do otimismo. E a dificuldade também é um desafio, não deveria ser sempre um obstáculo.”

Kissinger enfatiza que a humanidade fez avanços enormes. É verdade que esse progresso com frequência ocorreu na esteira de conflitos terríveis — após a Guerra dos Trinta Anos, das Guerras Napoleônicas e da 2.ª Guerra, por exemplo, mas a rivalidade entre China e EUA poderia ser diferente. A história sugere que quando duas potências desse tipo se encontram, o desfecho normal é o conflito militar. “Mas a atual circunstância não é normal”, argumenta Kissinger, “em razão da aniquilação mútua assegurada e da inteligência artificial”.

“Acho que é possível criar uma ordem mundial com base em regras na qual Europa, China e Índia poderiam se unir, o que já é uma boa porção da humanidade. Então, se considerarmos a exequibilidade disso, a coisa pode acabar bem — ou pelo menos sem catástrofe — e nós poderemos progredir.”

Esta é a tarefa dos líderes das superpotências de hoje. “Immanuel Kant afirmou que a paz ocorreria por meio do entendimento humano ou de algum desastre”, explica Kissinger. “Ele pensou que ocorreria por meio da razão, mas não pôde garantir que seria assim. É isso, mais ou menos, o que eu penso.”

Os líderes mundiais, portanto, arcam com uma responsabilidade pesada. Exige-se deles realismo para enfrentar os perigos adiante, visão para perceber que a solução reside em alcançar um equilíbrio entre as forças de seus países e comedimento para se abster de usar seus poderes ofensivos ao máximo. “É um desafio sem precedentes e uma grande oportunidade”, afirma Kissinger.

O futuro da humanidade depende de acertarmos nisso. Passada mais da metade da quarta hora de conversa do dia e a poucas semanas das celebrações de seu centenário, Kissinger acrescenta, com uma expressão característica, “De qualquer modo, eu não estarei aqui para ver”.

Importante momento que redesenhou o mundo após. Nesta visita a dupla Nixon - Kissinger trouxxe a China paaraa as grandes potência e a inexorável superação da Rússia