Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Em 17 de abril, Roberto Campos estaria completando cem anos. Sua vida pública estende-se do início de 1939, quando toma posse como diplomata, na primeira turma em concurso organizado pelo DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público –, até o final do século, quando ele se despede da Câmara dos Deputados, ao final de dois mandatos como representante de Mato Grosso e do Rio de Janeiro, e de um mandato inicial como senador pelo Mato Grosso, a partir de 1983. Campos foi um tecnocrata esclarecido, o mais iluminista de nossos intelectuais, um estadista exemplar, embora frustrado em suas inúmeras tentativas de reformar o Brasil, de retirá-lo de uma pobreza evitável para colocá-lo numa situação de prosperidade possível, como argumentou diversas vezes ao longo de meio século.
Minha interação com o grande brasileiro ocorreu apenas duas vezes, de forma direta, e intensamente, de forma indireta, ao longo de quase 50 anos, quando passei de um suposto opositor ideológico do então “serviçal da ditadura militar” – enquanto ministro do Planejamento do governo Castello Branco, ao defender ele o Programa de Ação Econômica do Governo, em uma faculdade de São Paulo – a um admirador de sua lógica impecável, na defesa de políticas econômicas racionais, quando o visitei na Câmara dos Deputados, em meados dos anos 1990, cinco anos antes de sua morte, em 2001. Nessa época, eu já tinha lido a maior parte de sua produção jornalística, os artigos semanais que ele publicou ao longo de mais de 50 anos nos grandes jornais do Rio e de São Paulo. Nos últimos meses, dediquei-me a ler seus ensaios mais eruditos, artigos de corte acadêmico e de análise econômica empiricamente embasada, a começar por sua tese de mestrado de 1947 – praticamente uma tese de doutorado, na opinião do grande economista austríaco Joseph Schumpeter – sobre flutuações e ciclos econômicos, defendida na George Washington University, quando ele servia na embaixada em Washington, em sua primeira remoção ao exterior pelo Itamaraty.
Como resultado dessa revisão completa de toda a sua obra escrita – e de diversas entrevistas gravadas nos meios de comunicação – pude compor metade de um livro organizado por mim, O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris), que reúne ainda contribuições de dez outros colaboradores que se dedicaram a discorrer sobre as diversas facetas de um intelectual completo, provavelmente o maior do Brasil na segunda metade do século XX. Nele, o professor de história da UnB e assessor legislativo Antonio José Barbosa dedica-se por exemplo a examinar seu perfil parlamentar, a última etapa de uma vida inteiramente dedicada a tentar fazer do Brasil um país menos injusto, uma economia mais desenvolvida, uma nação mais integrada na grande interdependência global. O jovem historiador Rogério de Souza Farias examina a participação de Roberto Campos na comissão de reforma institucional do Itamaraty, na primeira metade dos anos 1950, quando ele tenta aplicar alguns dos procedimentos seguidos pelo diplomata americano George Kennan, então responsável pela área de planejamento político no Departamento de Estado. Ricardo Vélez-Rodríguez, outro colaborador, focaliza o patrimonialismo na visão de Roberto Campos, um dos cinco “ismos” negativos, junto com o protecionismo, o nacionalismo, o corporatismo e o estatismo, a comprometer o desenvolvimento sustentado do Brasil.
Em todas as demais contribuições a essa obra – de Antonio Paim, de Ives Gandra Martins, de Reginaldo Teixeira Perez, de Carlos Henrique Cardim, de Roberto Castello Branco, Rubem Freitas Novaes e Paulo Kramer, que traça um paralelo entre Campos e Raymond Aron – transparece a profunda adequação dos diagnósticos e das prescrições do economista e diplomata à atualidade dos problemas brasileiros, de uma maneira até angustiante, ao constatarmos que tudo o que ele dizia, desde meados dos anos 1950 até seus últimos anos, aplica-se quase que de maneira perfeita aos desafios que enfrentam os dirigentes do governo Temer, depois da Grande Destruição produzida pelas irresponsáveis administrações lulopetistas. Campos, que teve sobre Raymond Aron a sorte de ver suas previsões sobre a inviabilidade do socialismo enquanto regime econômico e político confirmadas pelo veredito da história, teve a duvidosa “felicidade” de não assistir ao desmantelamento da frágil estabilidade criada pelo Plano Real sob os golpes combinados da inépcia e da corrupção dos governos lulopetistas.
No dia do centenário de Roberto Campos, um outro livro, Lanterna na Proa, organizado por Paulo Rabello de Castro e Ives Gandra Martins (Editora Resistência Cultural), também será lançado, trazendo as contribuições de mais de sessenta autores sobre igual número de aspectos da vida e da obra do diplomata que assistiu à criação da ordem econômica contemporânea, em Bretton Woods, em 1944 (objeto de um dos meus textos), que participou do exercício pioneiro de planejamento econômico no âmbito da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que dirigiu e presidiu ao BNDE (outro dos meus capítulos no mesmo livro) e que exerceu, com Octávio Gouvêa de Bulhões, a liderança do maior esforço de reforma e de modernização da economia brasileira, em meados dos anos 1960. Os dois livros, diferentes em estilo mas animados do mesmo espírito de recuperação dos argumentos pertinentes de Campos em prol da superação das diversas crises econômicas a que assistiu desde a Segunda Guerra, trazem detalhes de como ele formulou suas recomendações de políticas públicas sem qualquer vezo ideológico, ou obsessão com a austeridade, apenas animado por sua postura eclética e abertura aos dados da realidade.
Aos cem anos, Roberto Campos ainda vive. Vale relê-lo...
O Metternich do século XX acabou ultrapassando o século em pelo menos 23 anos, mas contando…
Os 100 Anos de Henry Kissinger
Neste dia 27 Maio 2023, comemora-se os 100 anos de Henry Kisisnger.
DefesaNet, 27 maio 2023
Nenhuma pessoa viva tem mais experiência em assuntos internacionais, primeiro enquanto estudioso da diplomacia do século 19, depois como conselheiro de segurança nacional dos EUA e secretário de Estado — e ao longo dos últimos 46 anos como consultor e emissário de monarcas, presidentes e premiês. Kissinger está preocupado. “Ambos os lados convenceram a si mesmos de que o outro representa um perigo estratégico”, afirma ele. “Nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências.” No momento em que amadores geopolíticos estão sentados em cadeiras importantes no Planalto Central, é bom ler esta entrevista dada à revista inglesa The Economist e traduzida pelo O Estado de São Paulo.
Neste dia 27 Maio 2023, comemora-se os 100 anos de Henry Kisisnger.
Nenhuma pessoa viva tem mais experiência em assuntos internacionais, primeiro enquanto estudioso da diplomacia do século 19, depois como conselheiro de segurança nacional dos EUA e secretário de Estado — e ao longo dos últimos 46 anos como consultor e emissário de monarcas, presidentes e premiês. Kissinger está preocupado. “Ambos os lados convenceram a si mesmos de que o outro representa um perigo estratégico”, afirma ele. “Nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências.” No momento em que amadores geopolíticos estão sentados em cadeiras importantes no Planalto Central, é bom ler esta entrevista dada à revista inglesa The Economist e traduzida pelo O Estado de São Paulo.
Henry Kissinger explica, em seu centenário, como evitar a Terceira Guerra Mundial entre China e EUA. Ao completar 100 anos, no dia 27 Maio 2023, Henry Kissinger, fala sobre um mundo que ele praticamente formou junto com o presidente Richard Nixon
The Economist Publicado Portal Estadão Tradução de Augusto Calil e Guilherme Russo
Em Pequim, concluiu-se que os Estados Unidos farão de tudo para manter a China por baixo. Em Washington, a convicção é que a China conspira para suplantar os EUA enquanto principal potência mundial. Para obter uma análise lúcida desse antagonismo crescente — assim como um plano para evitá-lo e evitar uma guerra entre superpotências — visite o 33.º andar de certo edifício em estilo art déco na região central de Manhattan, o escritório de Henry Kissinger.
Em 27 de maio, Kissinger fará 100 anos. Nenhuma pessoa viva tem mais experiência em assuntos internacionais, primeiro enquanto estudioso da diplomacia do século 19, depois como conselheiro de segurança nacional dos EUA e secretário de Estado — e ao longo dos últimos 46 anos como consultor e emissário de monarcas, presidentes e premiês. Kissinger está preocupado. “Ambos os lados convenceram a si mesmos de que o outro representa um perigo estratégico”, afirma ele. “Nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências.”
No fim de abril, The Economist conversou com Kissinger por mais de oito horas, sobre como evitar que a competição entre China e EUA descambe para a guerra. Hoje sua postura é curvada e ele caminha com dificuldade, mas sua mente é aguçada e precisa. Conforme contempla seus próximos dois livros, sobre inteligência artificial (IA) e a natureza das alianças, ele continua mais interessado em olhar adiante do que revolver o passado.
“Estamos na situação clássica pré-1.ª Guerra em que nenhum lado tem muita margem de concessão política e qualquer perturbação ao equilíbrio pode ocasionar consequências catastróficas”. Henry Kissinger
O impacto da IA na Nova Guerra Fria
Kissinger está alarmado com a intensificação da competição entre China e EUA por proeminência tecnológica e econômica. Mesmo enquanto a Rússia orbita a China e a guerra obscurece o flanco oriental da Europa, ele teme que a inteligência artificial esteja prestes a super-energizar a rivalidade sino-americana. Em todo o mundo, o equilíbrio do poder e a base tecnológica da guerra estão mudando tão rapidamente e de tantas maneiras que falta aos países qualquer princípio acordado sobre o qual eles possam estabelecer a ordem. E se não conseguirem encontrar alguma, eles podem apelar para a força. “Estamos na situação clássica pré-1.ª Guerra”, afirma Kissinger, “em que nenhum lado tem muita margem de concessão política e qualquer perturbação ao equilíbrio pode ocasionar consequências catastróficas”.
Kissinger é insultado por muitos críticos que o acusam de promover a guerra e o qualificam como belicista pelo seu papel na Guerra do Vietnã, mas ele considera evitar o conflito entre grandes potências o foco do trabalho de sua vida. Depois de testemunhar a carnificina causada pela Alemanha nazista e o sofrimento e assassinato de 13 parentes próximos no Holocausto, ele se convenceu de que a única maneira de evitar conflitos catastróficos é a diplomacia pragmática, idealmente fortificada por valores compartilhados. “Este é o problema que tem de ser resolvido”, afirma Kissinger. “E creio que eu passei minha vida inteira tentando lidar com ele.” Em sua visão, o destino da humanidade depende de EUA e China se entenderem. Ele acredita que o rápido progresso da inteligência artificial, em particular, lhes dá apenas entre cinco e dez anos para encontrar um caminho.
Como interpretar a ambição chinesa?
Kissinger tem alguns conselhos preliminares para aspirantes a líder: “Identifique onde você está. Inclementemente”. Nesse espírito, o ponto inicial para evitar a guerra é analisar a crescente inquietação da China. Apesar da reputação de conciliador em relação ao governo em Pequim, ele reconhece que muitos pensadores chineses acreditam que os EUA rumam ladeira abaixo e, “portanto, como resultado de uma evolução histórica, eles por fim nos suplantarão”.
Kissinger acredita que a liderança da China se ressente da fala dos formuladores de políticas americanos a respeito de uma ordem internacional com base em regras, quando eles falam na realidade de regras e ordem dos EUA. Os governantes chineses se insultam com o que percebem como uma barganha condescendente oferecida pelo Ocidente, de garantir à China privilégios se ela se comportar (os chineses certamente pensam que os privilégios deveriam ser deles por direito, enquanto potência em ascensão). Realmente, alguns na China suspeitam que os EUA jamais tratarão os chineses como iguais e que é um engano pensar que o fariam.
Contudo, Kissinger também alerta a respeito de erros de interpretação sobre as ambições da China. Em Washington, “dizem que a China quer dominar o mundo (…). A resposta é que eles (os chineses) querem ser poderosos”, afirma Kissinger. “Eles não estão rumando para a dominação do mundo em um sentido hitleriano”, diz ele. “Não é dessa maneira que eles pensam a ordem mundial, eles nunca pensaram assim.”
O confucionismo chinês
A guerra da Alemanha nazista foi inevitável porque Adolf Hitler precisava dela, afirma Kissinger, mas a China é diferente. Ele se encontrou com vários líderes chineses, começando por Mao Tsé-tung, e nunca duvidou da convicção ideológica deles, mas isso sempre foi ligado a uma percepção arguta a respeito dos interesses e capacidades da China.
Kissinger considera o sistema chinês mais confucionista do que marxista. Isso ensina os líderes chineses a arrancar o máximo de força de que seu país é capaz e a buscar ser respeitado por suas realizações. Essa elite governante quer ser reconhecida como os juízes finais de seus próprios interesses no sistema internacional. “Se eles atingissem uma superioridade que pudesse ser usada genuinamente, a levariam ao ponto de impor a cultura chinesa?”, pergunta ele. “Eu não sei. Meu instinto diz ‘não’… (mas) acredito que está dentro de nossa capacidade evitar que essa situação emerja, por meio de uma combinação entre diplomacia e força.”
É possível para China e EUA coexistir sem a ameaça de uma guerra total entre si? Sempre achei e ainda acho que sim. Mas o fracasso é possível. E, portanto, nós temos de ser fortes militarmente para aguentar esse fracasso.” Henry Kissinger
Uma resposta natural para o desafio da ambição chinesa é estudar a China, como maneira de identificar como promover o equilíbrio entre as duas potências. Outra é estabelecer um diálogo permanente entre China e EUA. “A China está tentando desempenhar um papel global. Temos de analisar em cada ponto se as concepções de papel estratégico são compatíveis”. Se não forem, a questão da força emergirá. “É possível para China e EUA coexistir sem a ameaça de uma guerra total entre si? Sempre achei e ainda acho que sim.” Mas ele reconhece que o sucesso não é garantido. “O fracasso é possível”, afirma ele. “E, portanto, nós temos de ser fortes militarmente para aguentar esse fracasso.”
O futuro de Taiwan
O teste urgente é como China e EUA se comportarão em relação a Taiwan. Kissinger recorda-se que, durante a primeira visita de Richard Nixon à China, em 1972, somente Mao tinha autoridade para negociar sobre a ilha. “Onde quer que Nixon levantasse algum tema concreto, Mao dizia, ‘Eu sou um filósofo, não lido com esses assuntos. Deixe que Zhou (Enlai) e Kissinger discutam isso’. (…) Mas quando a conversa tratou de Taiwan, ele foi muito explícito. Ele disse, ‘Eles são um bando de contrarrevolucionários. Nós não precisamos deles agora. Nós podemos esperar 100 anos. Algum dia nós os requisitaremos. Mas isso está muito longe de acontecer’.”
Kissinger acredita que o entendimento forjado entre Nixon e Mao foi revertido depois de apenas 50 desses 100 anos por Donald Trump — que quis inflar sua imagem de durão arrancando concessões comerciais da China. O governo Biden seguiu o exemplo de Trump, mas com retórica progressista.
Kissinger não teria escolhido esse rumo sobre Taiwan, porque uma guerra como a ucraniana por lá destruiria a ilha e devastaria a economia mundial. Uma guerra também poderia complicar as coisas para a China domesticamente, e o maior medo se seus líderes segue sendo uma insurreição interna.
O medo da guerra cria condições para a esperança. O problema é que nenhum dos lados tem muito campo para abrir concessões. Todos os líderes da China afirmaram a conexão de seu país a Taiwan. Ao mesmo tempo, porém, “da maneira que as coisas evoluíram agora, não é simples para os EUA abandonar Taiwan sem prejudicar sua posição em outros lugares”.
Desarmando a bomba de Trump e Biden
A solução de Kissinger para esse impasse decorre de sua experiência no governo. Ele começaria simplesmente baixando a temperatura e então, gradualmente, construiria confiança e uma relação funcional. Em vez de listar suas queixas, o presidente americano diria ao seu homólogo, “Sr. presidente, os dois maiores perigos para a paz neste momento somos nós dois, pois nós temos capacidade de destruir a humanidade”. China e EUA, então, sem anunciar formalmente nenhum movimento, colocariam foco na prática do comedimento.
Kissinger, que nunca foi fã das burocracias da formulação política, gostaria de ver um pequeno grupo de assessores, com acesso fácil entre si, trabalhando tacitamente. Nenhum dos lados mudaria fundamentalmente sua posição sobre Taiwan, mas os EUA teriam cuidado com a maneira que acionam suas forças e tentariam não alimentar suspeitas de que apoiam a independência da ilha.
O segundo conselho de Kissinger para um aspirante a líder é, “Defina objetivos capazes de agregar as pessoas. Descubra meios, descritíveis, de alcançar esses objetivos”. Taiwan seria apenas a primeira de várias áreas em que as superpotências poderiam encontrar objetivos comuns e assim fomentar a estabilidade global.
“Não é de nosso interesse levar a China à dissolução” Henry Kissinger
As lições do Século 19
Em um discurso recente, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, sugeriu que eles deveriam incluir as mudanças climáticas e a economia. Kissinger é cético em relação a ambos. Apesar ser “completamente favorável” à ação a respeito do clima, ele duvida que isso possa colaborar muito para criar confiança ou ajudar a estabelecer um equilíbrio entre as duas superpotências. Em relação à economia, o perigo é que a agenda comercial seja sequestrada por falcões que não estão dispostos a dar nenhum espaço para a China se desenvolver de alguma maneira.
Essa atitude tudo ou nada é uma ameaça para a busca da detente maior. Se os EUA querem encontrar um modo de conviver com a China, não deveriam ter na mira mudança de regime. Kissinger recorre a um tema presente em seu pensamento desde o tenro início. “Em qualquer diplomacia de estabilidade, tem de haver algum elemento do mundo do século 19″, afirma ele. “E o mundo do século 19 tinha como base a proposta de que a existência de Estados em disputa não estava em questão.”
Alguns americanos acreditam que uma China derrotada se tornaria uma democracia pacífica. Contudo, por mais que Kissinger prefira uma China democrática, ele não vê nenhum precedente para esse desfecho. Mais provavelmente o colapso do regime comunista levaria a uma guerra civil que amalgamaria um conflito ideológico e colaboraria para a instabilidade global. “Não é de nosso interesse levar a China à dissolução”, afirma ele.
Os riscos na Ucrânia
Em vez de se entrincheirar, os EUA terão de aceitar que a China tem interesses. Um bom exemplo é a Ucrânia.
O presidente chinês, Xi Jinping, entrou em contato apenas recentemente com seu homólogo ucraniano, Volodmir Zelenski, depois que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro do ano passado. Muitos observadores deram pouca importância para o telefonema de Xi, qualificando-o como um gesto vazio destinado a acalmar os europeus, que reclamam afirmando que a China está próxima demais da Rússia. Em contraste, Kissinger considera a atitude uma declaração de intenção séria que complicará a diplomacia em torno da guerra, mas que também pode criar precisamente o tipo de oportunidade para a construção de confiança mútua entre as superpotências.
Kissinger começa sua análise condenando o presidente russo, Vladimir Putin. “No fim, isso foi certamente um erro de julgamento catastrófico”, afirma ele. Mas o Ocidente não é isento de culpa. “Acho que a decisão de (…) abrir a possibilidade da adesão na Otan para a Ucrânia foi muito equivocada.” Isso foi desestabilizador, porque sinalizar com a promessa da proteção da Otan sem um plano de concretização deixou a Ucrânia mal defendida mesmo enquanto garantiu enfurecer não apenas Putin, mas também muitos de seus compatriotas.
A tarefa agora é pôr fim à guerra sem montar o cenário de uma próxima rodada de conflito. Kissinger quer que a Rússia desista o quanto possível do território que conquistou em 2014, mas a realidade é que em qualquer cessar-fogo a Rússia deverá manter no mínimo Sevastopol (a maior cidade na Crimeia e principal base naval da Rússia no Mar Negro). Tal arranjo, no qual a Rússia perde alguns ganhos mas mantém outros, poderia ocasionar insatisfação tanto na Rússia quanto na Ucrânia.
Em sua visão, esta é uma receita para um confronto futuro. “O que os europeus estão dizendo agora é, na minha opinião, loucamente perigoso”, afirma Kissinger, “Porque os europeus estão dizendo, ‘Nós não queremos eles na Otan porque é arriscado demais. Por isso, nós vamos armá-los absurdamente, dar-lhes as armas mais avançadas.” Sua conclusão é brutal: “Agora nós armamos a Ucrânia ao ponto de transformá-la no país mais bem armado na Europa e com a liderança menos experiente estrategicamente”.
Estabelecer uma paz duradoura na Europa requer dois saltos da imaginação por parte do Ocidente. O primeiro no sentido da Ucrânia aderir à Otan, como meio tanto de contê-la quanto de protegê-la. O segundo no sentido da Europa arquitetar uma reaproximação com a Rússia para criar uma fronteira oriental estável.
Vários países ocidentais relutariam, compreensivelmente, em relação a algum desses objetivos. Com a China envolvida, enquanto aliada da Rússia e oponente da Otan, a tarefa ficará ainda mais difícil. A China tem um interesse predominante de ver a Rússia emergir intacta da guerra na Ucrânia. Xi não apenas tem uma parceria “sem limites” com Putin para honrar, mas a ruína de Moscou dificultaria as coisas para a China ao criar um vácuo de poder na Ásia Central que arrisca ser preenchido por uma “guerra civil em estilo sírio”.
“O que os europeus estão dizendo agora é loucamente perigoso. Eles estão dizendo: ‘Nós não queremos eles na Otan porque é arriscado demais. Por isso, nós vamos armá-los absurdamente’ Agora nós armamos a Ucrânia ao ponto de transformá-la no país mais bem armado na Europa e com a liderança menos experiente estrategicamente”. Henry Kissinger
China, Rússia e a desconfiança mútua
Após o telefonema de Xi para Zelenski, Kissinger acredita que a China pode estar se posicionando para mediar negociações entre Rússia e Ucrânia. Como um dos arquitetos da política que opôs EUA e China à União Soviética, Kissinger duvida que Pequim e Moscou sejam capazes de trabalhar bem juntos. É verdadeiro que ambos compartilham suspeições a respeito dos EUA, mas ele também acredita que ambos têm uma desconfiança mútua instintiva. “Eu nunca conheci nenhum líder russo que fale bem da China”, afirma ele. “E nunca conheci nenhum líder chinês que fale bem da Rússia.” Os países não são aliados naturais.
Os chineses entraram na diplomacia em torno da Ucrânia para expressar seu interesse nacional, afirma Kissinger. Apesar de se recusar a aprovar a destruição promovida pela Rússia, a China reconhece que a Ucrânia deve permanecer um país independente e alertou contra o uso de armas nucleares. E pode até aceitar o desejo ucraniano de adesão à Otan. “A China faz isso em parte porque não quer se chocar com os EUA”, afirma Kissinger. “Os chineses estão criando sua própria ordem mundial onde quer que consigam.”
“Eu nunca conheci nenhum líder russo que fale bem da China. E nunca conheci nenhum líder chinês que fale bem da Rússia.” Henry Kissinger
Um diálogo sobre IA
A segunda área em que China e EUA precisam dialogar é a inteligência artificial. “Estamos bem no início de um desenvolvimento em que máquinas poderiam impor contaminações globais ou outras pandemias”, afirma Kissinger, “não apenas nucleares, mas em qualquer campo da destruição humana”.
Kissinger reconhece que nem mesmo os especialistas em inteligência artificial sabem quais serão os poderes da nova tecnologia (a julgar pela nossa conversa, transcrever uma fala com sotaque alemão pesado e rouco ainda está além de suas capacidades). Mas Kissinger acredita que a IA se tornará um fator crucial na segurança em cinco anos. Ele compara seu poder de disrupção à invenção da imprensa, que espalhou ideias que colaboraram para causas de guerras devastadoras nos séculos 16 e 17.
“(Nós vivemos) em um mundo de destrutividade sem precedentes”, alerta Kissinger. Apesar da doutrina de que um humano deve estar no controle, armamentos automáticos e irrefreáveis podem ser criados. “Se olhamos para a história militar, podemos afirmar que nunca foi possível destruir todos os nossos oponentes em razão de limitações de geografia e precisão. (Agora) não há nenhuma limitação. Qualquer adversário está 100% vulnerável.”
A inteligência artificial não pode ser abolida. China e EUA irão, portanto, explorar seu poder militarmente em alguma medida, como forma de dissuasão. Mas eles podem também limitar a ameaça que a IA representa da mesma maneira que negociações de controle de armas limitaram a ameaça das bombas nucleares. “Acho que devemos iniciar intercâmbios a respeito do impacto da tecnologia sobre todos nós”, afirma Kissinger. “Temos de dar passos preliminares no sentido do controle de armas, nos quais cada lado apresenta ao outro elementos controláveis a respeito das capacidades.”
Na realidade, ele acredita que sentar à mesa de negociação, em si, poderia ajudar a construir confiança mútua e uma sensação de segurança que possibilitaria às superpotências praticar comedimento. O segredo para isso é haver líderes fortes e sábios o suficiente para entender que a inteligência artificial não deve ser levada ao seu limite. “E se uma pessoa se fia inteiramente no que consegue alcançar por meio do poder, ela é capaz de destruir o mundo.”
“Se olhamos para a história militar, podemos afirmar que nunca foi possível destruir todos os nossos oponentes em razão de limitações de geografia e precisão. Agora não há nenhuma limitação. Qualquer adversário está 100% vulnerável.” Henry Kissinger
Uma América mais pragmática
O terceiro conselho de Kissinger para aspirantes a líder é “ligar tudo isso aos seus objetivos domésticos, sejam eles quais forem”. Para os EUA, isso envolve aprender a ser mais pragmático, colocando foco sobre as qualidades da liderança e, acima de tudo, renovando a cultura política do país.
O modelo de Kissinger de pensamento pragmático é a Índia. Ele se recorda de uma solenidade em que um ex-funcionário do alto-escalão do governo indiano explicou que política externa deve ter base em alianças não permanentes voltadas para temas específicos, em vez de amarrar o país em grandes estruturas multilaterais.
Essa abordagem transacional não virá naturalmente para os EUA. O tema que atravessa o épico sobre história das relações internacionais de Kissinger, “Diplomacia”, é que os EUA insistem em retratar todas as suas principais intervenções no exterior como expressões de seu destino manifesto de recriar o mundo à sua própria imagem, enquanto sociedade livre, democrática e capitalista.
O problema para Kissinger é o corolário de que os princípios morais se sobreponham com frequência demais aos interesses — mesmo quando não produzem mudanças desejáveis. Ele reconhece que direitos humanos são importantes, mas discorda que os coloquemos no centro da nossa política. A diferença está entre impor o respeito a eles ou afirmar que isso afetará as relações, mas que a escolha é deles.
“Tentamos (impor) no Sudão”, nota Kissinger. “Olhe para o Sudão agora.” De fato, a insistência impensada em fazer o que é certo pode virar desculpa para deixar de pensar em todas as consequências das políticas, afirma ele. As pessoas que querem usar o poder para mudar o mundo, argumenta Kissinger, são com frequência idealistas, apesar de os realistas serem vistos mais comumente como pessoas dispostas a usar a força.
A Índia é um contrapeso essencial ao crescente poder da China. Mas também tem um registro de intolerância religiosa que piora, um Judiciário parcial e uma imprensa silenciada. Uma implicação — apesar de Kissinger não a ter mencionado diretamente — é que a Índia, portanto, colocará em teste a capacidade de pragmatismo dos EUA. Assim como o Japão. As relações se desgastarão, conforme prevê Kissinger, se o Japão se movimentar para obter armas nucleares nos próximos cinco anos. Com um olho nas manobras diplomáticas que bem ou mal mantiveram a paz no século 19, ele olha para o Reino Unido e a França para ajudar os EUA estrategicamente em relação ao equilíbrio de poder na Ásia.
O poder dos indivíduos
A liderança também será importante. Kissinger acredita há muito no poder dos indivíduos. Franklin D. Roosevelt via longe o suficiente para preparar seus EUA isolacionistas para o que percebia como uma guerra inevitável contra as potências do Eixo. Charles de Gaulle fez a França acreditar no futuro. John F. Kennedy inspirou uma geração. Otto von Bismarck operou a unificação da Alemanha e governou com destreza e comedimento — para seu país sucumbir à febre da guerra após ele ser deposto.
Kissinger reconhece que noticiários 24 horas e redes sociais dificultam seu estilo de diplomacia. “Não acho que um presidente hoje poderia enviar um representante com os poderes que eu tinha”, afirma ele. Mas Kissinger argumenta que afligir-se sem saber se um caminho adiante sequer é possível seria um erro. “Se você considerar os líderes que respeitei, nenhum fazia essa pergunta. Eles perguntavam, ‘Isso é necessário?’.”
Kissinger recorda-se do exemplo de Winston Lord, que integrava sua equipe no governo Nixon. “Quando nós interviemos no Camboja, ele quis pular fora. E eu lhe disse, ‘Você pode abandonar o barco e marchar por aí levantando um cartaz; ou pode nos ajudar a solucionar a Guerra do Vietnã’. Então ele decidiu ficar (…) O que nós precisamos é de pessoas que tomem esse tipo de decisão — que vivam no momento atual e queiram fazer algo a respeito em vez de sentir pena de si mesmas.”
A liderança reflete a cultura política de um país. Kissinger, como muitos republicanos, preocupa-se com o foco da educação americana nos momentos mais obscuros dos EUA. “Para adquirir uma visão estratégica, você precisa ter fé em seu país”, afirma ele. A percepção compartilhada do valor dos EUA foi perdida.
Kissinger também reclama da falta de senso de proporção e julgamento nos meios de comunicação. Quando ele estava no governo, a imprensa era hostil, mas ele ainda dialogava com os jornalistas. “Eles me deixavam doido”, afirmou ele. “Mas isso era parte do jogo (…) eles não eram injustos.” Hoje, em contraste, Kissinger afirma que os meios de comunicação não têm nenhum incentivo à reflexão. “Meu mote é a necessidade de equilíbrio e moderação. De institucionalizar isso. O objetivo é esse.”
“Nós (os EUA) não estamos em um grande momento na história, mas a alternativa é a abdicação completa. Esse é o grande desafio que temos de solucionar. Se não conseguirmos, as previsões de fracasso serão comprovadas.” Henry Kissinger
A ameaça da polarização política
Pior de tudo, porém, é a própria política. Quando Kissinger chegou em Washington, políticos de ambos os partidos jantavam juntos rotineiramente. Ele tinha amizade com George McGovern, que foi candidato do Partido Democrata à presidência.
Isso seria incomum hoje para um conselheiro de segurança nacional do outro time, acredita ele. Gerald Ford, que assumiu após a renúncia de Nixon, era o tipo de indivíduo cujos oponentes não duvidavam que sempre agiria com decência. Hoje, qualquer método é considerado aceitável.
“Eu acho que Trump e, agora, Biden levaram (a animosidade) ao extremo”, afirma Kissinger. Ele teme que uma situação como o Watergate poderia ocasionar violência e que faltam lideranças nos EUA. “Não acho que Biden seja capaz de inspirar e (…) espero que os republicanos consigam encontrar uma pessoa melhor”, afirma ele. “Não estamos em um grande momento na história”, lamenta ele, “mas a alternativa é a abdicação completa”.
Os EUA precisam desesperadamente do pensamento estratégico de longo prazo, acredita Kissinger. “Esse é o grande desafio que temos de solucionar. Se não conseguirmos, as previsões de fracasso serão comprovadas.”
Um novo mundo
Se o tempo é curto e faltam lideranças, como ficam os prospectos para China e EUA encontrarem uma via para conviver em paz?
“Todos temos de admitir que estamos em um mundo novo”, afirma Kissinger, “pois qualquer coisa que fizermos pode dar errado e não existe nenhum caminho infalível”. Mesmo assim ele diz que sente esperança. “Veja, minha vida foi difícil, mas argumenta a favor do otimismo. E a dificuldade também é um desafio, não deveria ser sempre um obstáculo.”
Kissinger enfatiza que a humanidade fez avanços enormes. É verdade que esse progresso com frequência ocorreu na esteira de conflitos terríveis — após a Guerra dos Trinta Anos, das Guerras Napoleônicas e da 2.ª Guerra, por exemplo, mas a rivalidade entre China e EUA poderia ser diferente. A história sugere que quando duas potências desse tipo se encontram, o desfecho normal é o conflito militar. “Mas a atual circunstância não é normal”, argumenta Kissinger, “em razão da aniquilação mútua assegurada e da inteligência artificial”.
“Acho que é possível criar uma ordem mundial com base em regras na qual Europa, China e Índia poderiam se unir, o que já é uma boa porção da humanidade. Então, se considerarmos a exequibilidade disso, a coisa pode acabar bem — ou pelo menos sem catástrofe — e nós poderemos progredir.”
Esta é a tarefa dos líderes das superpotências de hoje. “Immanuel Kant afirmou que a paz ocorreria por meio do entendimento humano ou de algum desastre”, explica Kissinger. “Ele pensou que ocorreria por meio da razão, mas não pôde garantir que seria assim. É isso, mais ou menos, o que eu penso.”
Os líderes mundiais, portanto, arcam com uma responsabilidade pesada. Exige-se deles realismo para enfrentar os perigos adiante, visão para perceber que a solução reside em alcançar um equilíbrio entre as forças de seus países e comedimento para se abster de usar seus poderes ofensivos ao máximo. “É um desafio sem precedentes e uma grande oportunidade”, afirma Kissinger.
O futuro da humanidade depende de acertarmos nisso. Passada mais da metade da quarta hora de conversa do dia e a poucas semanas das celebrações de seu centenário, Kissinger acrescenta, com uma expressão característica, “De qualquer modo, eu não estarei aqui para ver”.
Importante momento que redesenhou o mundo após. Nesta visita a dupla Nixon - Kissinger trouxxe a China paaraa as grandes potência e a inexorável superação da Rússia
[Objetivo: registrar um artigo de opinião; finalidade: informação pública]
O PCC, ao chegar aos 100 anos, se sente orgulhoso por tudo o que fez de progressos materiais na China atual. Esquece as horas mais sombrias do maoísmo demencial, com o sacrifício de dezenas de milhões de chineses, e a sempre persistente ditadura, nos últimos 4 mil anos na verdade, para ressaltar os sucessos do presente.
De fato, fez muito, nos últimos 30 ou 40 anos, em termos de progressos materiais e de realizações sociais, arrancando centenas de milhões de chineses, sobretudo rurícolas (80% da população até os anos 1980), de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável e, agora, para modestos patamares de bem-estar social (com milhares de milionários e dezenas de bilionários e grande concentração de renda, mas progressos em todas as faixas).
Tudo isso aderindo à economia de mercado, desprezada por Mao e outros marxistas ignorantes, e fazendo dos atuais membros do Partido perfeitos mandarins, ao estilo dos funcionários imperiais de um passado extremamente remoto.
Sim, a China é hoje a maior economia de mercado do mundo, possuindo estatais, planejamento setorial e monopólios — como várias democracias capitalistas —, apenas que dirigida por um Partido Comunista que detém o monopólio do poder e que pretende estar construindo um “socialismo com características chinesas”.
Não, não está: está construindo um capitalismo com características chinesas, o que significa um regime político centralizado e altamente burocratizado, talvez a “gaiola de ferro” de que falava Max Weber, que também fez as suas incursões pelo “despotismo oriental”.
A China atual não é mais despótica, mas sim autoritária, tem as suas formas internas de escolha democrática de representantes (não todos do PCC) e detesta que estrangeiros lhe venham dar lições de democracia ou de direitos humanos. Ela foi muito humilhada pelas grandes potências ocidentais, e barbaramente estraçalhada pelo Japão fascista, durante seu largo período de declínio político e econômico, e não aceita qualquer arrogância imperial, depois do término dos tratados desiguais (que no seu caso durou até 1943).
Na verdade, foi o PCC que restabeleceu a plena soberania da China (totalmente ilusória sob Chiang Kai-shek) e construiu a vibrante economia de mercado, totalmente inserida na interdependência global.
Ela não ameaça a paz e a segurança internacionais, embora existam pendências que ela considera como sendo de sua inteira soberania — Hong Kong, Taiwan, Tibete, Xinjiang — que potências ocidentais (que fizeram muito pior no seu passado colonialista e imperialista) pretendem sinalizar como sendo “violações do Direito Internacional”, ao lado de disputas no Mar “do Japão” e do “Sul da China”, nas quais ela assume a defesa acirrada de seus interesses, desprezando inclusive resoluções da CIJ-Haia.
Um balanço objetivo das realizações do PCC não pode deixar de reconhecer as imensas realizações alcançadas sob a sua autoridade incontrastável e ditatorial. Um regime ao estilo do Kuomintang, ou seja, uma República burguesa, corrupta e disfuncional, teria obtido os mesmos êxitos — abstraindo-se os anos tirânicos e demenciais do maoísmo — que o regime totalitário e atualmente autoritário do PCC?
É muito improvável que o conseguisse num tempo absolutamente recorde de 30 ou 40 anos, ainda que talvez o tivesse conseguido em maior período de tempo — talvez cem anos —, com menor sacrifício das liberdades democráticas. Mas o que a China do PCC fez em matéria de progressos tecnológicos e de mudanças sociais é excepcional em toda a história da Humanidade. Muito disso não se deve exclusivamente ou essencialmente ao PCC, e sim à extraordinária energia inventiva e disposição para o trabalho do povo chinês, uma vez liberto das idiotices do maoísmo no terreno econômico. Registre-se que pelo seu atraso — temporal e estrutural — o “comunismo” chinês foi mais superficial do que o regime soviético, destruindo menos as instituições tradicionais e o substrato cultural do povo chinês do que o fez o stalinismo totalitário na Rússia.
Creio, pessoalmente, que não se deve julgar a China pelos parâmetros ocidentais no campo do poder político, seja pelo simplismo infantil dos “democratismos” dos ocidentais, seja mesmo pelas explicações mais sofisticadas à la Barrington Moore, por exemplo.
A história é sempre única e original, e se desenvolve pelas vias mais surpreendentes, avançando com um velho carro de bois, com rodas desequilibradas por uma estrada muito esburacada, para usar uma imagem do historiador britânico Lawrence Stone.
Se tivéssemos de dar notas ao PCC pelos seus primeiros cem anos, eu arriscaria no máximo 30, na primeira metade do século XX, menos do que 20 sob o maoísmo demencial, talvez 30 sob Deng Xiaoping, mais de 40 ou mesmo 50 na direção colegiada e rotativa que se seguiu, e provavelmente 70 nos primeiros anos da era Xi Jinping, recuando sensivelmente depois que ele se tornou “imperador”. Mas aqui seria preciso distinguir entre as realizações materiais — absolutamente impressionantes, mesmo fulgurantes nos últimos anos — e o reforço do monopólio autoritário no campo político. O que não deixa de se encaixar na longa história do “despotismo oriental”, embora com progressos materiais para o seu povo que jamais existiram nos 4 mil anos de história de uma civilização extremamente sofisticada.
[Objetivo: texto de apoio a palestra; finalidade: Evento Embaixada Bélgica]
Palestra Terça-feira 28 de julho, 17h00 – 17h40 (BRT), no quadro do programa comemorativo do centenário da visita do rei Albert ao Brasil (1920), organizado pela embaixada da Bélgica.
Sumário:
1. Os conceitos de diplomacia mundial, internacional, global ou multilateral
2. Como o Brasil emerge para a diplomacia mundial, ou multilateral
3. A passagem do Brasil da política regional para a política internacional
4. O Brasil na conferência da paz da Haia (1907)
5. Rui Barbosa defende a neutralidade da Bélgica na Grande Guerra (1916)
6. O Brasil nas negociações de paz de Paris (1919)
7. Encontros entre o presidente Epitácio Pessoa e o Rei Albert
1. Os conceitos de diplomacia mundial, internacional, global ou multilateral
Existem vários sentidos, já consolidados, ao conceito de diplomacia mundial, que pelo seu adjetivo seria algo equivalente a internacional, ou global, embora esse termo seja mais recente. Mas o conceito pode também querer dizer diplomacia multilateral, ou seja, a de organismos internacionais, que podem ser intergovernamentais, de tipo setorial, mas podem também ser de âmbito universal, continental ou regional, ou no sentido plurilateral.
No primeiro sentido, isto é, mundial, significaria uma diplomacia nacional capaz de cobrir todo ou a maior parte do planeta, ou um conjunto significativo de atores relevantes, países, Estados, economias relevantes do ponto de vista das relações internacionais, da dinâmica dos intercâmbios globais, ou tocando aos temas mais sensíveis da comunidade internacional, ou mundial, que tem a ver com a paz (ou a guerra), a segurança, as relações de comércio, de investimentos, de transações financeiras, de movimentos de pessoas, tanto quanto de bens intangíveis (cultura, arte, conhecimento, cooperação), e suas respectivas instituições de suporte.
Num contexto mais tradicional desse primeiro conceito ele tem a ver com a ação das grandes potências, os chamados poderes hegemônicos, as antigas nações coloniais ou imperiais, ou seja, os grandes atores, definidos pela sua capacidade de projetar poder externamente com base em seus recursos intrínsecos. São atores capazes de imprimir sua vontade num contexto transfronteiras, ou seja, deslanchar guerras de conquista, eventualmente de defesa, incorporar territórios sem jurisdição própria, se constituir um império colonial, ou participar ativamente de ações em âmbito global ou regional, geralmente de cooperação, que também podem ser de caráter unilateral – ou seja, tomadas por sua própria iniciativa – ou em acordo com outros países envolvidos nesse tipo de ação.
No segundo sentido, multilateral, a diplomacia de um Estado se faz no quadro de acordos estabelecidos, geralmente ao abrigo de alguma instituição dotada de um mandato específico, que pode ser setorial ou “global” (como a ONU), ou estruturais informais de cooperação em torno de um objetivo preciso ou mutuamente acordado. Esta é a forma contemporânea por excelência, que emergiu progressivamente desde o final do século XIX, nas organizações de cooperação técnica, evoluindo progressivamente para o terreno da cooperação política, como por exemplo as duas conferências da paz da Haia (1899 e 1907), com destaque para as negociações de paz de Paris, ao final da Grande Guerra, em 1919, das quais resultaram a criação da Liga das Nações e a formalização do Escritório Internacional do Trabalho. A forma especificamente contemporânea da diplomacia mundial, ou internacional, ou ainda global, se identifica, evidentemente, com a Organização das Nações Unidas, criada na conferência de San Francisco de 1945, e suas agências especializadas, que foram sendo criadas antes ou imediatamente depois da entidade global.
A conjuntura histórica examinada no presente ensaio sintético refere-se ao início do regime republicano no Brasil, na última década do século XIX, e às duas primeiras décadas do século XX, quando têm lugar os eventos ou processos aqui enfocados: a emergência da nova diplomacia republicana, as conferências da paz da Haia (sendo que o Brasil participou unicamente da segunda, em 1907), a Grande Guerra e as negociações de paz de Paris, em 1919, com referência especial para as relações do Brasil com o Reino da Bélgica, em vista da solidariedade demonstrada por ilustres brasileiros – com destaque para Rui Barbosa – por ocasião da invasão do país pelas forças militares do Império Alemão e para as relações pessoais entre o presidente Epitácio Pessoa e o rei Albert, que visitou o Brasil em 1920. A melhor síntese sobre a posição internacional do Brasil nesse período foi oferecida na obra do embaixador Rubens Ricupero, na seção “As novas tendências da política exterior”, parte VI, “A Política Externa da Primeira República (1889-1930), como segue:
A evolução do panorama externo agiu nessa fase sobre a diplomacia brasileira por meio de três fatores estruturantes, capazes de fazer surgir tendências profundas e sistêmicas, destinadas a durar muito além de 1930 como características diferenciadoras da orientação da política exterior do Brasil.
O primeiro consistiu na emergência e afirmação do poder político e da irradiação econômica dos Estados Unidos. O segundo fez-se sentir pela intensificação de um relacionamento mais intenso e cooperativo entre países da América Latina, seja sob a modalidade do pan-americanismo patrocinado por Washington, seja por iniciativas latino-americanas autônomas. Finalmente, o terceiro residiu no aprendizado de novo tipo de ação diplomática nas instâncias do incipiente multilateralismo da Liga das Nações, estágio inicial de uma forte tradição da diplomacia multilateral que se desenvolveria nas fases seguintes.
Em termos sintéticos, as três transformações estruturais da política exterior na Primeira República resumem-se: 1ª) no estreitamente da relação ou “aliança não escrita” com os Estados Unidos; 2ª) na sistemática solução das questões fronteiriças e na ênfase em maior cooperação com os latino-americanos; e 3ª) nos primeiros lances da diplomacia multilateral, na versão regional, pan-americana, ou global, da Liga das Nações. (Ricupero, 2017: 258).
2. Como o Brasil emerge para a diplomacia mundial, ou multilateral?