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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Henry Kissinger era um hipócrita, e seu legado é a prova - Ben Rhodes (NYT; O Estado de S. Paulo)

Henry Kissinger era um hipócrita, e seu legado é a prova

Ben Rhodes (NYT)
O Estado de S. Paulo, 30/11/2023


'Política externa defendida pelo ex-secretário de Estado não tinha preocupação com seres humanos deixados em seu rastro', escreve ex-vice-conselheiro de segurança nacional dos EUA.
https://www.estadao.com.br/internacional/henry-kissinger-era-um-hipocrita-e-seu-legado-e-a-prova-leia-a-analise/?utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=manchetes&utm_term=20231130&utm_content=


THE NEW YORK TIMES - Henry Kissinger, que morreu na quarta-feira, era o exemplo vivo da lacuna entre a história que os Estados Unidos, a superpotência, conta e a maneira como os EUA agem no mundo. Por vezes oportunista e reativa, a política externa defendida por Kissinger era apaixonada pelo exercício do poder e sem preocupação com os seres humanos deixados em seu rastro. Justamente porque os Estados Unidos de Kissinger não eram a versão maquiada da “cidade na colina”, ele nunca se sentiu irrelevante: ideias entram e saem de moda, mas o poder não.

De 1969 a 1977, Kissinger se estabeleceu como um dos funcionários mais poderosos da história. Durante uma parte desse período, ele foi a única pessoa a ocupar simultaneamente os cargos de conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado, dois postos muito diferentes que o tornaram responsável por moldar e executar a política externa americana. Se suas origens judaico-alemãs e seu inglês carregado o diferenciavam, a facilidade com que exercia o poder fez dele um avatar natural para um estado de segurança nacional americano que cresceu e ganhou impulso ao longo do século XX, como um organismo que sobrevive ao se expandir.

Trinta anos depois que Kissinger se aposentou no conforto do setor privado, servi por oito anos em um aparato de segurança nacional maior, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro. Como assessor adjunto de segurança nacional, com responsabilidades que incluíam a redação de discursos e comunicações, meu trabalho muitas vezes se concentrava mais na história que os Estados Unidos contavam do que nas ações que tomávamos.

Na Casa Branca, você está no topo de uma estrutura que inclui as Forças Armadas e a economia mais poderosas do mundo e, ao mesmo tempo, detém os direitos de uma história radical: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”.

Mas eu era constantemente confrontado com as contradições embutidas na liderança americana, o conhecimento de que nosso governo arma autocratas enquanto sua retórica apela para os dissidentes que tentam derrubá-los ou que nossa nação impõe regras - para a condução da guerra, a resolução de disputas e o fluxo do comércio - enquanto insiste que os Estados Unidos sejam dispensados de segui-las quando elas se tornam inconvenientes.

Kissinger não se sentia desconfortável com essa dinâmica. Para ele, a credibilidade estava enraizada no que se fazia, não no que se defendia, mesmo quando essas ações anulavam os conceitos americanos de direitos humanos e direito internacional. Ele ajudou a estender a guerra no Vietnã e a expandi-la para o Camboja e o Laos, onde os Estados Unidos lançaram mais bombas do que na Alemanha e no Japão na 2ª Guerra Mundial.

Esses bombardeios - muitas vezes com massacre indiscriminado de civis - não contribuíram em nada para melhorar os termos em que a Guerra do Vietnã terminou; na verdade, apenas indicou até que ponto os Estados Unidos chegariam para expressar seu descontentamento com a derrota.

É irônico que esse tipo de realismo tenha atingido seu ápice no auge da Guerra Fria, um conflito que era ostensivamente sobre ideologia. Do lado do mundo livre, Kissinger apoiou campanhas genocidas - do Paquistão contra os bengaleses e da Indonésia contra os timorenses. No Chile, ele foi acusado de ajudar a preparar o terreno para um golpe militar que levou à morte de Salvador Allende, o presidente esquerdista eleito, dando início a um terrível período de governo autocrático.

A defesa generosa é que Kissinger representava um ethos que via os fins (a derrota da União Soviética e o comunismo revolucionário) como justificativa para os meios. No entanto, para grandes áreas do mundo, essa mentalidade trazia uma mensagem brutal que os Estados Unidos sempre transmitiram às suas próprias populações marginalizadas: nós nos preocupamos com a democracia para nós, não para eles. Pouco antes da vitória de Allende, Kissinger disse: “As questões são importantes demais para que os eleitores chilenos decidam por si mesmos”.

Será que tudo valeu a pena? Kissinger estava obcecado com a credibilidade, a ideia de que os Estados Unidos devem impor um preço àqueles que ignoram nossas exigências para moldar as decisões de outros no futuro. É difícil ver como o bombardeio do Laos, o golpe no Chile ou os assassinatos no Paquistão Oriental (atual Bangladesh) contribuíram para o resultado da Guerra Fria.

Mas a visão não sentimental de Kissinger sobre os assuntos globais permitiu que ele conseguisse avanços consequentes com países autocráticos mais próximos da estatura dos Estados Unidos - uma distensão com a União Soviética que reduziu o ímpeto de escalada da corrida armamentista e uma abertura para a China que aprofundou a divisão sino-soviética, integrou a República Popular da China à ordem global e antecedeu as reformas chinesas que tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza.

O fato de essas reformas terem sido iniciadas por Deng Xiaoping, o mesmo líder chinês que ordenou a repressão aos manifestantes na Praça Tiananmen, mostra a natureza ambígua do legado de Kissinger. Por um lado, a aproximação entre os EUA e a China contribuiu para o fim da Guerra Fria e melhorou os padrões de vida do povo chinês. Por outro lado, o Partido Comunista Chinês emergiu como o principal adversário geopolítico dos Estados Unidos e a vanguarda da tendência autoritária na política global, colocando um milhão de uigures em campos de concentração e ameaçando invadir Taiwan, cuja situação não foi resolvida pela diplomacia de Kissinger.

Kissinger viveu metade de sua vida depois de deixar o governo. Ele abriu o que se tornou uma trilha bipartidária de ex-funcionários que criaram empresas de consultoria lucrativas enquanto negociavam com contatos globais. Durante décadas, ele foi um convidado cobiçado em reuniões de estadistas e magnatas, talvez porque sempre pudesse fornecer uma estrutura intelectual para explicar por que algumas pessoas são poderosas e justificam o exercício do poder.

Escreveu uma prateleira de livros, muitos dos quais poliram sua própria reputação como oráculo dos assuntos globais; afinal, a história é escrita por homens como Henry Kissinger, não pelas vítimas das campanhas de bombardeio das superpotências, incluindo as crianças do Laos, que continuam a ser mortas pelas bombas que não explodiram e que cobrem seu país.

Você pode optar por ver essas bombas não detonadas como a tragédia inevitável da condução dos assuntos globais. Do ponto de vista estratégico, Kissinger certamente sabia que o fato de ser uma superpotência trazia consigo uma grande margem de erro que pode ser perdoada pela história.

Apenas algumas décadas após o fim da Guerra do Vietnã, os mesmos países que havíamos bombardeado estavam buscando expandir o comércio com os Estados Unidos. Bangladesh e Timor Leste são agora nações independentes que recebem assistência americana. O Chile é governado por um socialista millenial cujo ministro da defesa é a neta do Allende. As superpotências fazem o que devem fazer. A roda da história gira. Quando e onde você vive determina se você será esmagado ou erguido por ela.

Mas essa visão de mundo confunde cinismo - ou realismo - com sabedoria. A história, o que está em jogo, é importante. No final das contas, o Muro de Berlim foi derrubado não por causa de movimentos de xadrez feitos no tabuleiro de um grande jogo, mas porque as pessoas do Leste queriam viver como as pessoas do Oeste. A economia, a cultura popular e os movimentos sociais eram importantes. Apesar de todas as nossas falhas, tínhamos um sistema e uma história melhores.

 

Ironicamente, parte do fascínio sobre Kissinger se deveu ao fato de sua história ser eminentemente americana. Sua família escapou por pouco da roda da história, fugindo da Alemanha nazista no momento em que Hitler colocava em prática seu plano diabólico. Kissinger retornou à Alemanha no Exército dos EUA e libertou um campo de concentração.

A experiência o impregnou de uma cautela em relação à ideologia messiânica associada ao poder do Estado. Mas isso não legou a ele muita simpatia pelos menos favorecidos. Tampouco o motivou a vincular a superpotência americana do pós-guerra à própria teia de normas, leis e fidelidade a certos valores que foi escrita na ordem do pós-guerra liderada pelos americanos para evitar outra guerra mundial.

A credibilidade, afinal, não se trata apenas de punir ou não um adversário para enviar uma mensagem a outro; trata-se também de saber se você é o que diz ser. Ninguém pode esperar perfeição nos assuntos de Estado, assim como nas relações entre os seres humanos. Mas os Estados Unidos pagaram um preço por sua hipocrisia, embora seja mais difícil de medir do que o resultado de uma guerra ou negociação.

Agora a história completou o círculo. Em todo o mundo, vemos um ressurgimento da autocracia e do etnonacionalismo, mais acentuadamente na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Em Gaza, os Estados Unidos apoiaram uma operação militar israelense que matou civis em um ritmo que, mais uma vez, sugeriu a grande parte do mundo que somos seletivos em nossa adoção de leis e normas internacionais.

Enquanto isso, em casa, vemos como a democracia se tornou subordinada à busca pelo poder em uma parte do Partido Republicano. É a isso que o cinismo pode levar. Porque quando não há uma aspiração maior, nenhuma história que dê sentido às nossas ações, a política e a geopolítica se tornam meramente um jogo de soma zero. Nesse tipo de mundo, o poder faz a razão.

Tudo isso não pode ser colocado sobre os ombros de Henry Kissinger. De muitas maneiras, ele foi tanto uma criação do estado de segurança nacional americano quanto seu autor. Mas ele também é um conto de advertência. Por mais imperfeitos que sejamos, os Estados Unidos precisam de nossa história para sobreviver. É ela que mantém unida uma democracia multirracial em casa e nos diferencia da Rússia e da China no exterior.

Essa história insiste que uma criança no Laos é igual em dignidade e valor às nossas crianças e que o povo do Chile tem o mesmo direito de autodeterminação que nós. Para os Estados Unidos, isso deve fazer parte da segurança nacional. Nós nos esquecemos disso por nossa conta e risco.


* Ben Rhodes foi vice-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA entre 2009 e 2017, no governo de Barack Obama

 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

O legado da Constituição de Cádiz na Constituinte de 1823 - Paulo Roberto de Almeida

 


O legado da Constituição de Cádiz na Constituinte de 1823 

 

Paulo Roberto de Almeida, sociólogo, diplomata e professor.

Notas para exposição oral no quadro do seminário comemorativo dos 200 anos da Assembleia Constituinte de 1823: Assembleia Constituinte de 1823: Antecedentes e Consequências; Mesa 4: “O ideário Jurídico da Constituinte de 1823”; Câmara dos Deputados, dia 9/11/2023, 9:00hs.

 

Existem, por certo, inúmeros afluentes doutrinais e conceituais que vão conjugar-se, entre o final do século 18 e o início do 19, na formação do grande rio jurídico que desemboca nos trabalhos da brevíssimo primeira Constituinte brasileira, a que começou os debates sobre a Carta inaugural do Império do Brasil, em meados de 1823, e que terminou brutalmente cerceada na “noite de agonia” no final desse mesmo ano, sem poder concluir seu mandato pela vontade arbitrária do primeiro imperador. Esses afluentes intelectuais, no campo doutrinal, podem ser brevemente listados, num itinerário de aprofundamento do constitucionalismo escrito – à diferença do direito costumeiro da tradição anglo-saxã – até as Cartas que foram sendo elaboradas sucessivamente no hemisfério americano e mesmo em alguns reinos europeus, como referido cronologicamente a seguir: desde a Declaração da independência das trezes colônias americanas, passando pela Constituição da Filadélfia, de 1787, pela Revolução francesa de julho de 1789 e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto do mesmo ano, mas sobretudo pelo grande monumento do constitucionalismo liberal representado pela Constituição de Cádiz  de 1812, e sua influência direta na Revolução do Porto de 1820, nos trabalhos das Cortes de Lisboa de 1821-22 e nos trabalhos incipientes do nosso primeiro exercício soberanos de elaboração constitucional, experimentos esses intermediados pelas elaborações doutrinas de um Benjamin Constant, todos esses afluentes vão enriquecer e desembocar no caudaloso rio do ideário Jurídico da Constituinte de 1823, como já refletido em ensaios e estudos de diversos especialistas em história constitucional, brasileira, hemisférica e continental europeia. 

No plano conceitual, por outro lado, sobressaem, no enriquecimento do debate político em torno da construção progressiva des regimes de monarquia constitucional na Europa e na América portuguesa, os aportes extremamente ricos do jornalista Hipólito da Costa em torno de todos esses processos revolucionários e de construção jurídica que partem do imenso tsunami constitucional registrado na França da Convenção, do Diretório, do Consulado e do Império napoleônico, até a Restauração, escritos de circunstância e análises mais detidas, publicadas nas páginas do Correio Braziliense, e que incidem, justamente sobre as revoluções constitucionais ibéricas e mesmo em Nápoles, com destaque para a Constituição de Cádiz de 1812, não particularmente apreciada por Hipólito – por sua extrema restrição aos poderes do monarca –, mas que estará inteiramente refletida no triênio liberal espanhol de 1820-23, que viu a Fênix de Cádiz renascer espetacularmente, até servir de inspiração ao Sinédrio português que protagonizou a Revolução do Porto de 1820, viu-se adotada temporariamente em Portugal e no Brasil (em 1821), para ser depois suplantada pelas Cartas Magnas de 1822, em Portugal, e a de 1824 no Brasil, outorgada pelo imperador a partir de um texto de comissão, mas que ainda assim guarda muitas conexões com o texto de Cádiz. 

Uma conferência conceitual e comparações textuais entre o tronco exacerbadamente parlamentarista da Carta original de Cádiz e o projeto de Antonio Carlos na Constituinte de 1823, assim como com vários dispositivos constitucionais da Carta outorgada em 1824, revelam essa aproximação e esse legado de Cádiz, embora obscurecido pelas diferenças de itinerários políticos e por um contraste mais significativo, que é o do poder moderador, o sustentáculo oportunista de certa preeminência do monarca sobre as tendências nitidamente parlamentaristas – ao estilo inglês de 1688, “o rei reina, mas não governa” – de quase todos os exercícios de elaboração constitucional aqui referidos. Cabe, com efeito, registrar, que o texto de Cádiz chegou a ser temporariamente adotado como base constitucional provisória por ocasião das Cortes de Lisboa, em 1821, e pela própria regência de D. Pedro no Brasil, inspirando as bases para a constituição da monarquia portuguesa, as primeiras eleições gerais no Brasil, o trabalho dos brasileiros nas Cortes Portuguesas e aqueles que se seguiram em 1823 na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro, em 1823, com diversos reflexos sobre a própria Constituição outorgada em 1824.

Um esquema interpretativo sobre esse legado gaditano pode ser conferido, no plano jurídico-doutrinal, com a ajuda de uma dissertação de mestrado em Direito, defendida em 2013 na Universidade do Rio Grande do Sul, nomeadamente a de Wagner Silveira Feloniuk – A Constituição de Cádiz e sua influência no Brasil –, que mereceria ser editada e publicada em formato de livro, talvez por iniciativa de uma das duas casas do Congresso brasileiro. No plano político-constitucional, a referência incontornável e obrigatória são os muitos textos analíticos, que permeiam os registros puramente factuais e documentais, do Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, cujos exemplos mais eloquentes foram reunidos por Sergio Goes de Paula, a partir da transcrição seletiva desses verdadeiros ensaios de direito constitucional que foram elaborados pelo grande pioneiro do jornalismo brasileiro independente, relativos aos anos cruciais de 1820 a 1822, culminando pela própria proposta de Constituição para o reino do Brasil que ele elaborou quase ao término de sua grande aventura de pensador do Brasil como Estado nação. 

 

Referências bibliográficas: 

Costa, Hipólito José da (2002-2003)Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. reedição fac-similar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Braziliense; coordenação de Alberto Dines e Isabel Lustosa (disponível Biblioteca Mindlin-USP: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/1303).

Feloniuk, Wagner Silveira (2013). A Constituição de Cádiz e sua influência no Brasil. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito; orientador: Professor Doutor Cezar Saldanha Souza Júnior (disponível: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/URGS_0a056903b81ce0108c93cfe5b717fd54).

Goes de Paula, Sergio (org., introdução) (2001). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34; coleção Formadores do Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4488, 8 outubro 2023, 3 p. 

 

Participantes da mesa 4, “O ideário Jurídico da Constituinte de 1823”:

José Bonifácio de Andrada - Subprocurador-Geral do Ministério Federal-MPF e Vice-Presidente do Conselho do MPF.

Paulo Roberto de Almeida - Diplomata e escritor 

Gilmar Mendes - Ministro do Supremo Tribunal Federal

Presidente da mesa: Dep. Arlindo Chinaglia

 

sábado, 23 de outubro de 2010

Brasil eleitoral: uma pequena reflexao sobre o dia seguinte

Brasil: the day after
Paulo Roberto de Almeida

Brasil, 1ro. de Novembro de 2010: o país amanhece irremediavelmente dividido, qualquer que seja o resultado das eleições. Quem quer que seja o vencedor, sua herança será um clima pesado de divisão, uma fratura que cinde a nação praticamente ao meio de suas preferências eleitorais, com terríveis consequências para os quatro anos seguintes.
Num caso, podemos antecipar quatro anos de greves, manifestações, invasões, a favor ou contra o governo, não importa, em busca de vantagens políticas, de chantagens econômicas, em torno de simples alinhamentos corporativos.
No outro caso, teremos quatro anos de greves, manifestações, invasões, a favor ou contra o governo, não importa, em busca de vantagens políticas, de chantagens econômicas, em torno de velhos alinhamentos grupais.
Esta é a lógica da divisão do país. Estarei sendo muito pessimista?
Não creio. Infelizmente, eu vejo o Brasil aproximando-se do modelo de alguns vizinhos, países nos quais o processo político também conduziu à fragmentação social, à divisão política, à fratura institucional e a uma predisposição mental de conceber a arena do jogo político, não como uma sadia competição entre propostas alternativas de políticas públicas, mas como um enfrentamento entre inimigos irreconciliáveis, como uma batalha de vida ou morte em torno de escolhas excludentes.
Este é, lamentavelmente, o legado desses anos de simplificação do debate eleitoral como sendo uma oposição entre o passado e o futuro, entre o antes e o agora, entre “nós” e “eles”, entre o povo e as "elites", entre o bom e o mau. Este é o legado da visão confrontacionista do mundo, aquela que pretende que todos os vícios estão de um lado, e que todas as virtudes estão do outro.
Gostaria, pessoalmente, que não fosse assim. Como analista político constato, porém, que é assim! É assim que se comportam certos personagens, que deveriam atuar como magistrados, encarregados de presidir uma simples disputa eleitoral. Ao contrário: eles vêem na contenda uma luta terrível entre um projeto de poder, o “seu” projeto, e todas as demais propostas que não se submetem à sua visão do mundo.
Este parece ser o destino para o Brasil nos próximos anos, infelizmente: descoordenado, dividido, com quase metade da população sentido um gosto amargo de derrota e desiludida de que a política possa representar uma oportunidade para melhorar o Brasil, de forma gradual e consensualmente. Para nossa tristeza, temos apenas de aceitar que uma única solução é exclusivamente aceitável, sem qualquer outra possibilidade. Esta é a lógica dos que nos levaram a essa divisão insana e improdutiva entre brasileiros que simplesmente ostentam opiniões opostas sobre como melhor encaminhar os problemas da nação.

Não quero, contudo, deixar a impressão de que, seja num caso, seja no outro, tudo vai resultar inevitavelmente no mesmo clima de brigas e impasses em torno da governança. Nem tudo são “parecenças” e semelhanças entre um e outro projeto. Existem diferenças, por certo, e eu não me privo de apontá-las. Com minha habitual franqueza e total abertura de linguagem.
Nutro pela classe política as mais fundadas desconfianças, como é público e notório. Mas não posso deixar de reconhecer diferenças entre os personagens. Isto porque não se pode confundir as partes com o todo. Cada um tem responsabilidades individuais e diferenciadas, e não se pode amalgamar o comportamento de todos num mesmo conjunto indivisível. No assunto da corrupção, porém, ocorre algo curioso, justamente. Sempre tivemos a corrupção “normal” do sistema político: políticos se apropriando individualmente de bens públicos, desviando o orçamento para suas pequenas causas (algumas grandes), interferindo no processo decisório em torno de investimentos públicos, etc. Isso é conhecido e até mesmo esperado e sei situa num nível, digamos assim, artesanal, ou manufatureiro, da corrupção.
O que não tínhamos conhecido, porém, era a corrupção sistêmica, estrutural, de natureza “fabril”, em escala industrial, ou seja, organizada e mantida, até estimulada e “agregada” por um grupo que se movimenta em torno do poder com o único objetivo de mantê-lo indefinidamente. Nem se trata de construir um sistema alternativo, pois ninguém mais acredita nesse tipo de bobagem; se trata apenas de explorar as vantagens do sistema para o seu grupo, exclusivamente, fazendo sua “acumulação primitiva”, inclusive no plano individual.
Isto é novo no Brasil, e propriamente aterrador.
Creio, infelizmente, que é este o legado que teremos destas eleições, um legado que nos acompanhará pelos próximos anos.

(Tóquio, 24 outubro 2010)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O velho Kissinger: o realismo cínico de um grande intelectual e um estadista sem escrúpulos

Aproveitando a (duvidosa) homenagem que se faz o intelectual e homem de Estado (ver post Os novos Kissingers), transcrevo um artigo que escrevi em 2008.

O legado de Henry Kissinger
Paulo Roberto de Almeida
Mundorama, 05/06/2008

Não, o velho adepto da realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado 85 anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo das idéias aplicadas às relações de poder).
Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger – querem ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa.
Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de “vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena (1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”.
O legado de Henry Kissinger é multifacético e não pode ser julgado apenas pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta anti-comunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction -, como consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriomente a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações internacionais.
A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros lançamentos.
Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal, em sua opinião, o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais comprometidos com a causa anti-comunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos seus olhos.
Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto.
O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista” – como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de juizes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à “causa democrática” no mundo -, tem de ser necessariamente diferente do julgamento daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”. Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu En-lai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos.
Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet – que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não “acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar.
Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação – qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena.
Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano, tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico, ou histórico. Grandes estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de suas ações e pensamento.
Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos. Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser apenas o seu intérprete tardio. Nada mau, afinal de contas, para alguém que foi, acima de tudo, um intelectual…