Tobias Barreto: um intelectual em sua própria escola de
inteligência
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: ensaio sobre Tobias Barreto; finalidade: texto para posse no IHG-DF]
Tobias Barreto foi uma personalidade
múltipla: latinista, poeta, jornalista, jurista, orador, político, filósofo,
sociólogo, darwinista, feminista, panfletário, abolicionista, polemista, adepto
do culturalismo, anticlerical, um dos raros germanistas brasileiros e uma
capacidade rara de combinar todas essas qualidades numa inteligência aberta aos
mais variados conhecimentos disponíveis em sua época, tudo isso num período
finalmente bastante curto, praticamente as últimas duas décadas e meia do
regime monárquico, em que pese sua precocidade como poeta e jornalista.
Impossível cingir a enormidade de sua produção num ensaio breve como este que
se oferece, daí a seleção de alguns traços apenas de sua contribuição
intelectual, a que mais apresenta persistência e relevância na perspectiva
diacrônica que é a nossa, aos 180 anos de seu nascimento, em 1839, e aos 130
anos de seu falecimento, em 1889.
Na apresentação de um de
seus biógrafos, um jornalista sergipano da primeira metade do século XX, em
obra publicada no exato centenário de seu nascimento, pode-se ler uma síntese
magistral do que ele representou para o pensamento brasileiro:
Tobias Barreto
ocupa no mapa geral da cultura brasileira um lugar do mais alto relevo. A sua
obra é uma espécie de linha divisória entre duas épocas. A sua vida, com as
circunstâncias em que ela decorreu, apenas em parte explica o seu pensamento.
Este, realmente, muito raro descia até aquela. Enquanto a vida estava
mergulhada num ambiente de miséria, de incompreensão, de necessidade, o
pensamento estava entregue às cogitações mais altas do estudo, divulgação e
análise do que o espírito humano vinha realizando. Foi um homem que, na falta
de ambiente em que pudesse desenvolver-se, construiu um ambiente particular
onde lhe fosse possível respirar à vontade. [Omer Mont’Alegre, Tobias Barreto. Rio de Janeiro: Vecchi
Editor, 1939]
Sua principal característica
intelectual é precisamente esta: a de ter sido único, absolutamente solitário
no panorama da inteligência nacional, a ponto de podermos dizer que ele era a
sua própria escola de pensamento, jamais igualada posteriormente. Nasceu na
monarquia, ao final das regências, converteu-se em republicano, mas faleceu
antes da derrocada do Segundo Reinado, em 26 de junho de 1889, e a despeito de
ser originário do Sergipe, onde se formou precocemente em Latim e exerceu suas
primeiras armas na poesia e no jornalismo em sua terra natal, fez-se famoso no
Recife, onde se exerceu como professor, depois de uma vida atribulada, sempre
em meio a dificuldades materiais. Como germanista, nos planos da filosofia, da
sociologia, do direito, foi um dos poucos no Brasil, talvez único no Nordeste. Mas,
como ressaltou Arnaldo Godoy, autor da melhor biografia intelectual sobre o
“insurreto sergipano”:
“Tobias era um germanista que jamais fora à Alemanha,
nem mesmo saíra do Nordeste...”. Quando residente em Escada, cidade próxima do
Recife, fundou um jornal em alemão, “do qual era provavelmente o único leitor”.
[Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Tobias
Barreto: uma biografia intelectual do insurreto sergipano e sua biblioteca com
livros alemães no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2018, p. 30 e 53;
nessa magnífica obra, um capítulo de 50 páginas é inteiramente dedicado a
examinar os autores alemães constantes da biblioteca de Tobias Barreto ou
referidos em sua atividade intelectual.]
Como mulato e abolicionista
não foi o único, nem o maior, dessa pequena tribo de lutadores pela emancipação
dos escravos, mas foi, provavelmente, o mais agitado dos agitadores literários
e políticos numa conjuntura de agitação social no Brasil, um intelectual dotado
de grande densidade intelectual quando comparado a outros homens de letras e de
pensamento no Brasil do Segundo Império, bem mais dominado pelo francesismo
literário e político da belle époque. Numa época em que o catolicismo romano
era a religião oficial do Estado, não hesita em entrar em polêmica contra a
Igreja e contra os dogmas religiosos do catolicismo, não uma única vez, mas
várias. Abolicionista, democrata, libertário, republicano, contra o
patrimonialismo tradicional da sociedade escravocrata – que aliás perdurou na
República –, Tobias Barreto pode ser considerado como situado na vanguarda do
pensamento brasileiro, e não apenas ao final do regime monárquico, mas exercendo
influência em direção ao futuro da República, que ele todavia não chegou a
conhecer.
É propriamente incrível a
intensidade, a variedade, a profundidade de sua produção intelectual em pouco
mais de três décadas de vida ativa, o que se reflete nos dez volumes de suas
“obras completas”, editadas sob a responsabilidade do governo do Sergipe, 1925-26,
reeditados em sete volumes meio século mais tarde, ademais dos muitos volumes
esparsos, organizados por admiradores tão distinguidos quanto Silvio Romero,
Graça Aranha, Paulo Mercadante e Antonio Paim. Em sua vida, apenas uma dúzia de
seus escritos, dos quais dois em alemão, vieram a público, mas as obras
póstumas e edições posteriores cobrem uma biblioteca inteira, numa volumetria
quase tão importante quanto sua famosa “biblioteca alemã”, objeto de um artigo
de Vamireh Chacon, na Revista Acadêmica,
da Faculdade de Direito do Recife (1971), da qual Tobias Barreto foi professor,
mas apenas por pouco mais de sete anos.
Clovis Beviláqua, o
redator final do Código Civil (que levava vários anos em preparação) e o mais
longevo consultor jurídico do Itamaraty, escreveu sobre o papel de Tobias
Barreto como renovador dos estudos jurídicos no Brasil: “Em Filosofia do
Direito, Tobias Barreto adotara a escola de [Rudolf von] Jhering e Hermann
Post, que refletiam no Direito, a teoria genealógica de [Charles] Darwin e [Ernest]
Haeckel. Não era, porém, espírito que se limitasse a reproduzir as lições dos
mestres. Filiado ao monismo, sabia extrair desse sistema filosófico a
interpretação exata do fenômeno jurídico.” Beviláqua considera que a campanha
que Barreto dirigiu contra o Direito Natural, em seus Estudos de Direito, e em Questões
Vigentes (Obras Completas, vol.
IX, 1926), constitui uma das partes mãos brilhantes de sua obra; transcreve
ele: “É preciso bater cem vezes e cem vezes repetir: o Direito não é filho do
céu, é, simplesmente, um fenômeno histórico, um produto cultural da
humanidade.” [Clovis Beviláqua, “Tobias Barreto e a renovação dos estudos
jurídicos no país”, in: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, Tobias Barreto (1839-1889): bibliografia e
estudos críticos. Salvador, 1990, p. 38-44; cf. pp. 39 e 40] Barreto lia e
escrevia em alemão, além de dominar várias outras línguas, entre elas inglês,
francês, italiano, russo, grego e, obviamente, latim.
Antonio Paim, no mesmo
volume de estudos críticos, apresenta a trajetória filosófica de Tobias
Barreto, do “surto de ideias novas” do final dos anos 1860, que buscava
argumentos em Comte, Renan e Taine, chega ao culturalismo dos anos finais,
passando pela recusa do comtismo e da “religião da humanidade” e pela fase
monista (haeckeliana) da constituição da Escola do Recife, que evolui para o
neokantismo. O germanismo de Tobias Barreto constitui o objeto de um estudo de
Paulo Mercadante, que ele atribui ao seu naturalismo científico e não a
qualquer subserviência acrítica aos grandes filósofos e juristas alemães de sua
época. Este pensador, autor de um famoso estudo sobre a consciência
conservadora no Brasil, coordenou com Antonio Paim dois volumes de estudos de
filosofia de Tobias Barreto, publicados pelo Instituto Nacional do Livro, do
MEC, em 1966, reeditados em 1977. Mercadante ainda se debruçou sobre uma
reavaliação de Barreto na cultura brasileira (1972) e Paim a ele dedicou vários
de seus escritos, tanto em seu livro de História
das Ideias Filosóficas no Brasil (1967), quanto um volume inteiro sobre A filosofia da Escola do Recife (1966).
Arnaldo Godoy enfatiza, em
seu capítulo sobre a biblioteca alemã de Tobias Barreto, e baseado no volume de
Estudos de Direito, de suas Obras
Completas, como ele chegou ao darwinismo pela via dos juristas alemães que ele
mais admirava:
Tobias citou
recorrentemente Ernest Haeckel, especialmente quanto ao tema da dificuldade de
se construir uma ciência social de natureza substancialmente descritiva.
Haeckel era admirador de Charles Darwin (1809-1882), que Tobias também
assimilou ao estudar Rudolf von Jhering (1818-1892). Tobias foi um veiculador
do darwinismo social no Brasil, resultado de sua admiração intelectual perene
que o pensador sergipano tinha para com autores como Haeckel e Jhering,
introdutores de Darwin nas ciências sociais aplicadas. [Godoy, op. cit., pp.
204-5]
A vida concreta de Tobias
Barreto não foi das mais fáceis, para não dizer que foi das mais dificultosas.
Sylvio Romero, num depoimento sobre a sua vida, conta que, quando ele morou
pela primeira vez no Recife, abriu uma escola secundária para ter “meios de
subsistência”, lecionando ao mesmo tempo “francês, latim, história, retórica,
filosofia e matemáticas elementares.” Numa segunda fase, já admitido como
professor na Faculdade de Direito, “regeu as cadeiras de filosofia do direito,
direito público, direito criminal, economia política e prática do processo.”
[“Tobias Barreto: breve notícia de sua vida”, na mesma obra de bibliografia e estudos críticos, pp. 86
e 88] Esse volume se conclui pela homenagem que lhe presta Graça Aranha, num
ensaio intitulado “O Milagre de Tobias”, sobre o concurso feito para a
Faculdade, que vale transcrever pela emoção daquele momento tão bem captada por
Aranha:
Abrira-se o
concurso para professor substituto da Faculdade. (...) Esperávamos,
inconscientes, a coisa nova e redentora. (...) Era dos primeiros a chegar ao
vasto salão da Faculdade e tomava posição junto à grade, que separava a
Congregação da multidão dos estudantes. Imediatamente Tobias Barreto se tornou
ou nosso favorito. Para estimular essa predileção havia o apoio dos estudantes
baianos ao candidato Freitas, baiano e cunhado do lente Seabra. Tobias, mulato
desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era para ele toda a admiração
da assistência, mesmo a da emperrada Congregação. O mulato feio, desgracioso,
transformava-se na arguição e nos debates do concurso. Os seus olhos
flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz maravilhosa, de
múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e
completando o pensamento. O que ele dizia era novo. Profundo, sugestivo. Abria
uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a nova semente, sem
saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos
transformávamos. Esses debates incomparáveis eram pontuados pelas contínuas
ovações que fazíamos ao grande revelador. Nada continha o nosso entusiasmo. A
Congregação, humilhada em seu espírito reacionário, curvava-se ao ardor da
mocidade impetuosa. Prosseguíamos impávidos, certos de que, conduzidos por
Tobias Barreto, estávamos emancipando a mentalidade brasileira, afundada na
teologia, no direito natural, em todos os abismos do conservantismo. Para mim,
era tudo isto delírio. (...) Quando terminou, recebeu a mais grandiosa
manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiram os lentes unânimes.
(...) À noite, eu estava em sua casa... Nunca mais me separei intelectualmente
de Tobias Barreto. (...)
As nossas
afinidades eram principalmente nos problemas sociais, abolição e república. A
esses movimentos fui seguramente levado mais pelo sentimento do que pelas
ideias. (...)
Foi o milagre de
Tobias Barreto em mim. O milagre da libertação [idem, pp. 96 e 98]
O concurso de teses
compreendia praticamente todo um amplo espectro de disciplinas que eram
ensinadas nas duas escolas de direito do Brasil, a do Recife e a de São Paulo, grade
disciplinar que por sua vez refletia, em grande medida, as disciplinas inscritas
na Universidade de Coimbra, segundo informa Godoy com base num pesquisador da
área. [Godoy, Tobias, op. cit., p.
85] Tobias teria também falado sobre o direito autoral, tema até então inédito
no Brasil, se esse assunto tivesse sido arguido na ocasião, embora possa ser
argumentado que essa categoria já era conhecido no Brasil e no exterior sob o
nome de “propriedade literária”. Omer Mont’Alegre informa em sua biografia sobre
a variedade de disciplinas que entraram na lista das arguições a Tobias, então
com 42 anos:
Foi grande o
número de teses que Tobias apresentou para participar desse concurso. Temas de
Direito Natural, Direito Romano, Direito Público, Direito Constitucional,
Direito das Gentes [Internacional], Diplomacia, Direito Eclesiástico, Direito
Civil, Direito Criminal, Direito Comercial, Direito Marítimo, Hermenêutica
Jurídica, Processo Civil, Processo Criminal, Economia Política, Direito
Administrativo. [op. cit., p. 249]
Algum tempo antes desse
triunfo na capital de Pernambuco, Tobias Barreto tivera de se refugiar de uma
primeira incursão frustrada em Recife, em Escada, no seu Sergipe natal. Lá
decidiu criar, em 1877, um Clube de Cultura Popular, pronunciando ali o seu
célebre Discurso em Mangas de Camisa,
publicado dois anos depois em um opúsculo, no qual divulga o programa do clube,
reproduzido pouco depois num jornal do Recife. Hermes Lima, em sua apresentação
a uma reedição de 1970 desse famoso discurso, declara de pronto que se trata de
“obra prima da sociologia brasileira”, e especula que “se toda a obra de Tobias
Barreto houvesse desaparecido e dela só houvesse restado o Discurso, por ele se
poderia levantar o perfil intelectual do chefe da Escola do Recife.” [Tobias
Barreto. Um Discurso em Mangas de Camisa.
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1970, p. 13] Hermes Lima então destaca um
dos trechos mais claramente sociológicos desse opúsculo:
Entre nós, o que
há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por
seus altos funcionários na Corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus
ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e
dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos
costumes e do servilismo. [p. 13]
Tal atitude, praticamente
revolucionária naquele ambiente canhestramente conservador, logo levanta contra
ele problemas e animosidades que são destacados na biografia de Omer
Mont’Alegre: “a sua indisposição com o meio vinha do choque com a aristocracia
açucareira; tornou-se logo em advogado dos humildes contra o poderia dos ricos;
e nos seus jornais não poupava a pele dos que lhe caiam em desagrado. Tinha
bastante razões, pois, para se indispor com o meio...” [op. cit., p. 191]
Continua esse biógrafo: “Examina [Barreto] a situação particular do município,
dividido em classes, em castas, cheio de privilégios; e prevê: o município, a
província, o país inteiro, anseia a vinda de qualquer grande acontecimento:
‘não sei qual seja, mas ele há de vir’.” [p. 192]
Nesse mesmo discurso feito
no Clube Popular Escadense, depois de tecer considerações sobre a célebre
trilogia da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, Barreto
revela uma percepção já meridianamente clara sobre a tensão natural entre os
dois primeiros conceitos:
A liberdade
entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da
mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz
a escravidão. (...) A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se
confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere
particular encargo. Igual dependência de todos, ou igual sujeição de todos. O
mais alto grau imaginável da igualdade – o comunismo, – porque ele pressupõe a
opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da
servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e
da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais
baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são
exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que
tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e
reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. [Tobias Barreto. Um Discurso em Mangas de Camisa, op.
cit., pp. 22-23]
O Partido Liberal inclui o
seu nome, em 1878, na composição da chapa para deputados estaduais, e ele
resulta eleito; o Partido Conservador, após longo domínio, havia sido apeado do
poder, e com isso a verificação dos poderes também mudara de lado. Mas ele foi
um liberal contra o partido, pois lutava pelos direitos da mulher, pela reforma
das instituições. Um de seus artigos, no jornal que ele mesmo fundou, chamado Contra a Hipocrisia, revela-se
especialmente contundente naquele contexto:
Eu desejo a
abolição de todas as instituições caducas, que são outras tantas afrontas à
dignidade do homem; desejo a extinção de todas as excrescências, de todos os
órgãos rudimentares e deturpantes da sociedade humana. Neste caso, está sem
dúvida a escravidão. Porém, entendamo-nos, neste caso também está a monarquia.
[Mont’Alegre, p. 205]
Num dos discursos na
Assembleia de Pernambuco, em 22 de março de 1879, Tobias luta pela educação das
mulheres, pregando a sua admissão nas faculdades de medicina, a exemplo do que
já ocorria em determinados países:
É de esperar, e eu
espero da assembleia, eu comece desta vez a abrir a porta da ciência ao belo
sexo de Pernambuco, que muito necessita de instrução: e talvez seja esta mesma
a mais urgente necessidade da província. [“Educação da Mulher”, in: Tobias
Barreto, Estudos de Sociologia. Rio
de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962; p. 87]
Um dos projetos
apresentados em sua rápida carreira parlamentar visava justamente a criação no
Recife de um estabelecimento de ensino dedicado especialmente ao sexo feminino.
Segundo ressalta Godoy, em relação a esse debate:
Em passo
interessante de nossa história parlamentar, Tobias adiantou uma reflexão
comparativa entre homens e mulheres, concluindo que mulheres deteriam mais
disposições naturais do que os homens para a dedicação aos estudos. Afirmava
que não negava que nas mulheres havia predomínio da sentimentalidade, mas
justificava a assertiva justamente porque, alegava, a educação feminina era
essencialmente uma educação sentimental. Por isso, era o argumento de Tobias, a
sentimentalidade feminina era o resultado da educação, e não uma predisposição
natural. [Godoy, Tobias Barreto, op.
cit., p. 65]
Não surpreende que, nas
eleições seguintes, o Partido Liberal o tenha excluído da chapa; não voltou
mais à política. O mesmo Arnaldo Godoy discute amplamente as posturas políticas
de Tobias Barreto, assim como seu suposto republicanismo:
Tobias enfrentava
os chefes políticos de Recife que impunham listas fechadas a todo o interior.
Os caciques da política pernambucana deixavam poucas opções para os eleitores.
No caso de Escada, domicílio eleitoral de Tobias, os nomes já vinham prontos da
capital. Havia uma disciplina partidária que incomodava Tobias, que defendia
maior discricionariedade do eleitorado, no sentido de escolher efetivamente os
políticos com os quais queria se comprometer. Ainda que essa forma autoritária
de fazer política não fosse exclusiva de Escada, era mesmo nacional. Criticava
os chefes do partido, as imposições que se faziam aos eleitores, ainda que sua
ascensão se tenha dado exatamente dentro dessa moldura, então denunciada.
Curiosamente, não
discutia a troca de regime. Definitivamente, Tobias não era um republicano.
[idem, pp. 69-70]
Mais adiante, na sua magnífica
biografia intelectual daquele que foi chamado de “feiticeiro da tribo” –
segundo a designação de Paulo Mercadante –, desta vez apoiado em biografia elaborada
pelo jurista Hermes Lima, quando do centenário do nascimento de Tobias Barreto,
Godoy retoma sua postura em relação aos dois grandes problemas do final do
Império, a abolição e o regime republicano:
Lima... tocou [em
seu livro Tobias Barreto: a época e o
homem] no delicado assunto relativo às atitudes de Tobias para com a
escravidão; lembrou que Tobias possuía escravos e que deliberadamente ignorou o
problema social da escravidão. O filogermanismo de Tobias de igual modo chamou
a atenção de Lima... (...) A força e a disciplina da cultura alemã teriam
reforçado uma hostilidade que Tobias nutria para com os dogmas liberais. Tobias
viveu os anos mais intensos da propaganda republicana; no entanto, também
registra Hermes Lima, ‘(...) Tobias nada
escreveu por onde se pudesse inferir, de sua parte, sequer uma vaga simpatia
republicana.’
Comparado com Rui
Barbosa, por exemplo, que era abolicionista e republicano, Tobias revela-se
como absolutamente apático para com os dois grandes problemas de seu tempo, em
relação aos quais seu filogermanismo não ofereceu nenhuma munição para
expressar seus pontos de vista, se é que os tinha nesses delicados temas, ainda
que, prossegue Lima, ‘nem a monarquia lhe
pareceu signa de defesa, nem a república de adesão’. [Godoy, op. cit., pp. 183-84]
Arnaldo Godoy termina seu
apelo à biografia de Tobias por Hermes Lima sintetizando os traços mais
característicos da personalidade irreverente do germanista nordestino:
O Tobias da obra
de Hermes Lima é cético, irreverente, diferente. De acordo com essa leitura,
Tobias permanentemente rompia com as concepções dominantes, ‘insubmisso aos moldes vigentes,
constituindo, por isso mesmo, um desaforo, quase um escândalo’. O desaforo
e o escândalo são, de fato, características recorrentes na trajetória de
Tobias. [idem, p. 185]
As críticas de Tobias
Barreto à monarquia eram relativamente bem conhecidas dos contemporâneos, assim
como suas diatribes contra representantes da Igreja católica, como refletidas
num discurso de paraninfo, já como professor no Recife. Arnaldo Godoy, em sua
biografia intelectual completíssima, sintetiza uma vez mais o lado crítico de
Tobias Barreto:
Esse discurso
acentuava as características iconoclastas de seu pensamento. Tobias era um
destruidor de mitos e verdades pré-estabelecidas. Chama a atenção em Tobias a
atitude iconoclasta e crítica que manifestou para com algumas instituições, a
exemplo do poder moderador, bem como para com ilustres personalidades do
Império, a exemplo de José de Alencar, Joaquim Nabuco, Zacarias de Goes e
Vasconcelos, Visconde do Uruguai, Pimenta Bueno, Coelho Rodrigues, Tavares
Bastos, aos ministros de D. Pedro II em geral, assim como ao próprio Imperador.
[idem, p. 124]
Sua postura, durante todo
o seu percurso intelectual, quer na política, quer na vida acadêmica, sempre
foi invariavelmente crítica, seja em relação ao ambiente em que vivia, seja em
relação aos próprios grandes mestres que analisava em suas obras. Como sublinha
Godoy, mesmo antes de ingressar na Faculdade de Direito do Recife, “Tobias
dividia as opiniões, provocando, ao mesmo tempo, uma crítica feroz e uma defesa
apaixonada e radical” [idem, p. 75]. Invariavelmente, destoava do meio
intelectual que lhe era dado contemplar. Por exemplo, na sua “Recordação de
Kant”, incluída nas Questões Vigentes de
Filosofia e de Direito – uma das poucas obras que publicou em vida, em
1888, ou seja, um ano antes de falecer –, começa por um argumento depreciativo
sobre a pouca propensão de seus colegas pela reflexão filosófica:
Não há domínio
algum da atividade intelectual, em que o espírito brasileiro se mostre tão
acanhado, tão frívolo e infecundo, como no domínio filosófico.
É certo que todas
as outras manifestações da nossa vida espiritual dão também testemunho de uma
singular e incomparável fraqueza. Mas é sempre dar testemunho de alguma coisa.
Um certificado de doença é em todo caso menos triste que um certificado de
morte.
Assim, não temos
poetas, nem artistas de merecimento; mas a poesia e as artes se cultivam entre
nós. Não podemos lisonjear-nos de possuir um só jurista de estatura europeia,
...; porém ao menos é certo que o direito constitui uma das nossas mais
constantes ocupações intelectuais.
Ciência, história,
literatura – tudo isto é muito fútil; mas seria uma injustiça querer exprimir
tudo isto por meio de uma fórmula absolutamente negativa. No fundo da crítica
fica sempre algum resíduo, que ainda pode servir de fermento a mais sérias e
mais dignas produções futuras.
Com a filosofia o
caso é bem diverso. Se nas outras esferas do pensamento, somos uma espécie de
antropoides literários, meio-homens e meio-macacos, sem caráter próprio, sem
expressão, sem originalidade, – no distrito filosófico é ainda pior o nosso
papel: não ocupamos lugar algum, não temos direito a uma classificação. [Tobias
Barreto, Obras Completas, IX, Questões Vigentes. Rio de Janeiro:
Edição do Estado de Sergipe, 1926, pp. 245-6]
Em todo caso, sua crítica
não se dirige apenas aos brasileiros e sua pouca aptidão para a reflexão
filosófica. Numa longa nota de rodapé ao mesmo ensaio “Recordação de Kant”,
Barreto acusa Auguste Comte de nunca ter lido Kant e de, ainda assim, “falando
de oitiva”, ousar interpretar equivocadamente o autor da Crítica da Razão Pura (op. cit., pp. 253-54). Tobias Barreto
possuía uma predisposição natural para a polêmicas, tanto é assim que um volume
inteiro de suas obras completas, o segundo da série, de 426 páginas, tem
justamente por título Polêmicas. Arnaldo
Godoy menciona duas outras peculiaridades de Tobias Barreto, que seriam a
“vaidade incontida e soberba intelectual ilimitada”. [Godoy, Tobias Barreto, op. cit., p. 26]
Sua trajetória de
professor, brilhante e também sujeita a várias polêmicas, foi precocemente
interrompida pela doença, aparentemente de “lesão cardíaca” [Jornal do Recife, 27/06/1889; apud
Godoy, p. 154]; ele vem a morrer aos exatos cinquenta anos, deixando na miséria
sua mulher e nove filhos. O governo de Sergipe, desejoso, ainda que
tardiamente, de homenagear tão distinto filho – depois de transladar, em 1920,
seus restos mortais do cemitério Santo Amaro, no Recife, para uma praça de
Aracaju, que recebeu o seu nome –, tratou de mandar editar, em 1923, as obras
completas de Tobias Barreto. Arnaldo Godoy é quem oferece, nas Considerações
Finais de sua estupenda biografia de Tobias, uma excelente avaliação sintética
sobre um dos personagens mais extraordinários do pensamento político brasileiro,
na verdade da inteligência e da cultura brasileira do último século e meio:
Definido como um Rousseau às avessas por um de seus
biógrafos, Tobias foi um pessimista moldado por intenso realismo, o que somente
ocorre com aqueles que conhecem as vicissitudes da vida e que sabem que entre
as canduras das promessas da metafísica e os acidentes da vida real há uma
distância que, percorrida, nos imprime dolorosamente o verdadeiro sentido da
existência. Essa tensão é permanente nas ambiguidades que Tobias viveu com a
religião. Incrédulo, era ao mesmo tempo um estudioso das sutilezas teológicas,
um oponente de padres obtusos, um benemérito de ordens religiosas, um atento e
disciplinado leitor das Escrituras.
Foi, enfim, como
ele mesmo percebeu, a serpente que deveria matar a serpente: a força foi sua
condição de existência, o meio hostil sua razão de luta pela sobrevivência, a
autoimagem o resultado de sua insurgência. [p. 256]
Em 1925, o jornal O País, do Rio de Janeiro, transcreveu
em sua edição de 7 de julho de 1925, o rascunho das “Notas a lápis”, que
Barreto havia rabiscado num caderno de 1872, posteriormente incluídas em edições
diversas de suas obras, algumas delas dignas de reflexão ainda em nossos dias:
Parece que cada
povo deve ter sua liberdade política, isto é, que cada um deve entendê-la a seu
modo.
Qualquer obra deve
conter, para ser apreciada, ou fatos novos, ou novamente descobertos, ou
princípios novos ou novas observações sobre princípios já conhecidos; brilhando
em todos esses pontos a verdade.
A Alemanha ensina
a pensar e a França a escrever.
Se a igreja ainda
luta com a ciência, é que esta não chegou a uma altura bastante para impor
silencio à sua adversária.
Um povo que ama a
liberdade, infalivelmente há de produzir de si mesmo a forma sob a qual ela se
lhe torne familiar.
O desgosto da vida
não é mais do que a incapacidade de criar um ideal.
Os escritores que
não têm ideias próprias são como os que não têm capital e tomam emprestado a um
para negociar com outros.
O Estado quer
saber se os meninos aprendem – e por que, antes, não procura saber se eles
comem?
A razão é tão
incompetente para corrigir as ilusões do coração como os ouvidos para corrigir
as ilusões do olfato.
Eu não sou bastante
forte para fazer à minha imagem e semelhança a sociedade em que vivo; mas esta,
por sua vez, não é também bastante forte para me levar em sua corrente. Daí uma
eterna irredutibilidade entre nós.
Um dia virá em que
a escola dar-nos-á mães e esposas republicanas e reanimará o vigor dos costumes
sem os quais não pode existir um povo verdadeiramente grande. [“Notas a lápis”,
in: Tobias Barreto, Estudos de Sociologia,
op. cit.; pp. 283-86]
Finalmente, numa coleção
de avulsos, retirados de uma preleção feita em 5 de julho de 1884, e coletados
no volume X de suas Obras completas: Vários escritos, pode-se ler esta pérola
sintética que certamente fará pensar mais de um diplomata, mas recolhendo
provavelmente o pleno assentimento de um soldado:
A soberania é um
fato, não é um direito. [idem, op. cit., p. 277.]
Se ele foi, ou não, um dos
fundadores de uma propalada “Escola do Recife” essa é uma questão a ser
debatida entre especialistas, não apenas do Direito, mas da cultura, de modo
amplo. A certeza que se pode ter, ao cabo deste exame perfunctório sobre sua
extraordinária trajetória intelectual, é que Tobias Barreto constituiu, ele
mesmo, uma escola singular no contexto da cultura brasileira do último terço do
século XIX, um trabalhador intelectual que construiu, ele próprio, uma escola
de inteligência em quase nenhum aspecto similar ao que se tinha no Brasil
daquele época. Ele foi único naquele ambiente cultural e jurídico, mas de certa
forma continua único, inclassificável na nossa “República das Letras”; um
acadêmico dissidente, iconoclasta, que se insurgia contra a academia e contra o
establishment de modo geral. Como bem resumiu Arnaldo Godoy no subtítulo de sua
biografia, foi um intelectual insurreto. Sem dúvida! Tobias Barreto continua
vivo, aos 180 anos do seu nascimento e aos 130 anos de sua morte.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de junho de 2019