Economia política do
intelectual
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
20 de julho de 2006
Revista
digital Espaço Acadêmico (ano 6, n.
63, agosto 2006)
Pretendo, nestas breves considerações em torno da
economia política dos intelectuais, oferecer uma visão cética, ou pelo menos
crítica, sobre alguns dos mitos da nossa época, entre eles o do intelectual
público enquanto figura de proa dos movimentos vanguardistas, ou progressistas,
e portanto, uma figura isenta que encarna, supostamente, os melhores valores da
racionalidade e do humanismo. Ainda que tudo isso possa ser justificado, em
bases racionais, ou legitimado socialmente, nenhuma restrição de ordem
conceitual ou filosófica deveria nos impedir de examinar essa figura ímpar da
modernidade – mas, na verdade, eles não são tão modernos assim, nem tão
excepcionais quanto se quer fazer acreditar –, tendo como base analítica
essencial a relação de custo-benefício que eles costumam apresentar para a
sociedade e como único critério de avaliação, a dissecação sem compaixão desse
obscuro objeto de admiração (por vezes indevida).
1. Certidão de nascimento
ou temporalidade difusa?
Não é verdade que o intelectual público seja um produto
da nossa época, como pretendem alguns. Obviamente, os que defendem tal posição
adotam a visão francesa do intelectual e têm até uma data para esse
“nascimento”: a publicação do panfleto J’accuse,
na verdade uma carta aberta que o escritor francês Émile Zola enviou ao
presidente Félix Faure a propósito do processo Dreyfus. Publicado no jornal L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898, o
panfleto acusava o comando militar francês de conivência com erros criminosos
no processo instaurado contra o capitão Alfred Dreyfus, injustamente condenado
por traição à pátria e espionagem a serviço do inimigo alemão. Aí teria
nascido, segundo os defensores dessa versão “moderna” do personagem, o
intelectual público contemporâneo.
Altamente questionável essa visão e monopólio gauleses
do intelectual. Talvez devêssemos recuar um pouco esse nascimento e falar, por
exemplo, dos enciclopedistas do século XVIII, ou dos ingleses e escoceses do
período da guerra civil, John Locke ou Thomas Hobbes, ou então do protótipo do
conselheiro do príncipe, isto é, Maquiavel em pessoa. Mais um pouco – passando
pela Idade Média, com tantos personagens brilhantes, como Avicena, Averroes, Maimonides e Tomás de Aquino – chegaríamos
à antiguidade clássica, com Sócrates e Platão. Existem muitos outros exemplos,
é claro, mas minha intenção não é a de retraçar as origens e desenvolvimento
dos intelectuais ao longo da história, mas tão simplesmente a de fazer uma
breve análise econômica das condições de produção, reprodução, circulação,
acumulação e eventual falsificação desse personagem, nas condições modernas e
brasileiras e também numa perspectiva crítica em relação aos possíveis defeitos
desse “produto”, que está quase virando uma commodity,
sob o império – é o caso de se aplicar o conceito – da globalização
avassaladora.
2. Natureza do produto e
valor agregado: ativos tangíveis e intangíveis
O intelectual pode ser definido como sendo,
essencialmente, um produtor de saber ou, pelo menos, de ideias (nem sempre
originais). Não qualquer saber, nem quaisquer ideias, que estariam disponíveis
ao comum dos universitários – que eles, sim, são uma commodity –, mas um saber especializado e ideias supostamente
únicas e aparentemente originais, pretensamente refinadas e dotadas de virtudes
eventualmente “explicativas” do mundo real e “propositivas” de novas vias para
se abordar os problemas do mundo real.
Seria isso verdade? Provavelmente não, ou então sim, mas
de uma forma muito restritiva, pois a maior parte dos pretensos intelectuais
não produz qualquer saber original – no sentido de elevar o estoque de
conhecimento humano a patamares superiores de criatividade e inovação –,
atuando mais como “porta-vozes” dos setores educados da população, sendo, por
isso mesmo, requisitados pelos meios de comunicação para pontificar sobre esta
ou aquela matéria. Estou obviamente referindo-me a alguns dos ilustres
pontífices das ciências humanas, uma vez que os cientistas, que são os
verdadeiros inovadores em nossa civilização tecnológica, não são habitualmente
considerados como intelectuais, mas como meros produtores de um “saber
instrumental”. Fiquemos, portanto, nesse estamento mais reduzido de
“processadores de ideias humanísticas” para traçarmos uma breve economia
política do intelectual.
O intelectual é um produto do seu meio, mas ele traz um
valor agregado, o que os marxistas chamariam de “mais valia”, no sentido em que
ele é capaz de acrescentar novos significados a velhos saberes, travestindo
conceitos antigos sob novas roupagens, o que o transforma em um personagem
próximo do prestidigitador. Atenção! Ele não um mero enganador, um embromador
com ideias alheias. Não!: ele apenas recupera parte do conhecimento disponível
em seu meio social e ambiente cultural e o apresenta de maneira relativamente
inédita, o que em latim – sim, os intelectuais deveriam, em princípio, saber
latim, tanto quanto grego antigo e inglês, essa novilíngua dos bárbaros da
globalização – se traduz por “non nova, sed nove”, ou seja, não inteiramente
novo, mas de forma nova.
A maior parte dos ativos do intelectual, o que seria o
seu valor agregado pessoal, é constituída de intangíveis, matéria volátil como
o calor dos sentidos e a luz das ideias, ainda que não se possa excluir que o
intelectual também ande armado de um grande porrete, para eventualmente melhor
enfiar suas ideias nas cabeças dos adversários. Nos tempos de Niccolò
Machiavelli, por exemplo, a adaga era um instrumento fundamental de trabalho,
tanto quanto os venenos pouco perceptíveis e as bolsas com ducados e fiorinos:
a defesa pessoal, as conspirações e a compra de espiões, ou mesmo de possíveis
adversários, figuravam no arsenal “intelectual” de qualquer condottiere ou candidato a príncipe por
um dia. As armas enferrujam, venenos desaparecem, o dinheiro é dilapidado, mas
o que fica são as ideias intangíveis dos intelectuais, que movimentaram líderes
políticos ambiciosos, que por sua vez mobilizaram exércitos inteiros de
mercenários – ou seriam militantes? – para defender suas causas, ou, mais
exatamente, suas propriedades (que ainda não foram conquistadas, obviamente).
3. Volatilidade e
imperfeição dos mercados intelectuais
Nosso intelectual atua em mercados imperfeitos, como
são, aliás, a maior parte dos mercados de bens e serviços. Esse mercado é
dominado por um número menor de “vacas sagradas” e muitos outros candidatos a
um nicho nesse mercado altamente volátil, mas caracterizado por alguns ciclos
perfeitamente definíveis. Esses ciclos obviamente têm a ver com a oferta e a demanda
de “ideias úteis” para a sociedade. Nem todas as ideias são úteis o tempo todo,
nem as supostas “utilidades” que se possa extrair de certas propostas
“intelectuais” conformam, de fato, ideias originais que configurem uma melhor
situação de “bem-estar” para o conjunto da sociedade. Determinadas “ideias” de
intelectuais reputados podem aparentar uma promessa de bem-estar superior, mas
na verdade representam, no entrechoque de sua implementação prática, uma
diminuição do retorno real, aquilo que os economistas chamam de “maximização da
satisfação”.
O mercado dos intelectuais “marxistas”, por exemplo, já
conheceu tempos melhores, quando as ações cotadas no nome do criador da seita –
que digo?, uma religião, com todos os rituais a que ela têm direito – conheciam
grande demanda e um alto “valor de troca”, valorizando-se indevidamente,
portanto (pelo menos em relação ao seu “valor de uso” real, sobretudo nas
sociedades do capitalismo avançado). Depois, elas saíram de moda, seus papéis
despencaram – as ações do socialismo de tipo soviético, por exemplo, deixaram
de ter cotação – e só tinham procura nos mercados periféricos, onde as ideias
aparentemente circulam tardiamente ou estão sempre fora do lugar. A manutenção
da demanda agregada para esse tipo de papel, em todo caso, só ocorreu nas
universidades públicas, conhecidas pela imperfeição ainda maior dos seus
mercados de ideias.
Os papéis liberais, em contrapartida, chegaram ao fundo
do poço durante a longa dominação do keynesianismo doutrinal e do planejamento
indicativo em quase todas as economias de mercado desenvolvidas. Durante o
longo período que vai dos anos 1940 aos 80 do século XX, eles praticamente não
tiveram cotação nas bolsas do pensamento econômico, ficando restritos – e
basicamente escondidos – em alguns poucos bastiões do academicismo conservador,
como Chicago ou a escola de Viena, limitada a alguns saudosistas da belle époque. Voltaram em peso no pregão
das ideias na moda a partir dos anos 1980, sob o travestimento de “papéis
neoliberais”, mas, de fato, as ações mais procuradas ainda pertenciam ao
liberalismo clássico, como os títulos “Von Mises” ou os blue chips “Friedrich
Hayek”.
Quanto às regras do “consenso de Washington”,
contrariamente ao que parecem crer alguns neófitos do mercado de ideias –
sempre existem inexperientes ou aventureiros nesse tipo de negócio –, elas não
representam, na verdade, ações “neoliberais”, mas tão simplesmente um conjunto
de propostas pragmáticas, visando oferecer prescrições macro e microeconômicas
para ajudar os turbulentos mercados latino-americanos a superar as duras
tarefas dos ajustes emergenciais e a encontrar novos patamares de estabilidade.
O mercado para elas foi ingrato, submetidas que foram a fortes ataques
especulativos dos antiglobalizadores – alguns preferindo ser chamados de
“desenvolvimentistas” –, o que fez oscilar erraticamente os seus preços,
trazendo pouca demanda a esse nicho restrito do mercado de ideias práticas.
4. Um tipo específico de
intelectual: a “vaca sagrada”
Volto, agora, ao problema das “vacas sagradas” e às suas
ideias eventualmente nocivas à sociedade em que vivem ou a que servem.
Contrariamente ao que alguns podem crer, eles não são naturais da Índia, nem
têm algo a ver com o planejamento estatal que foi a característica mais
marcante daquele país durante suas décadas de baixo crescimento e de isolamento
dos mercados globais. Nossa vaca sagrada também pode ser um planejador, mas ele
é, sobretudo, um vendedor de ideias mortas. Qual é a minha noção de “vaca
sagrada”?
Vacas-sagradas são aquelas pessoas
que atingiram tal grau de excelência em suas áreas respectivas, que elas se
tornam verdadeiras referências para o campo de estudos ou de atividades a que
elas se dedicam. Viram mitos, pessoas inatingíveis e inatacáveis e tudo o que elas
dizem – o que pode eventualmente incluir coisas anódinas ou até besteiras
completas – é acatado com todo o respeito, vem repetido na imprensa e acaba
sendo aceito com toda a reverência que essas vacas-sagradas merecem, por vezes
indevidamente, e que elas exibem com certa arrogância na vida diária.
Eu – anarquista e iconoclasta que
sempre fui – considero pessoalmente uma pena esse respeito indevido de que
gozam as “vacas sagradas”, uma vez que esse acatamento reverencial por parte
dos “candidatos” a intelectuais pode ser nefasto à “circulação” de novas ideias.
Sim, pela boa e simples razão de que as verdadeiras vacas sagradas, por
definição, ostentam velhas ideias, congeladas no tempo, que elas (as vacas, não
as ideias) continuam a estender e dispensar aos discípulos como quem se esforça
por espalhar os últimos restos do pote de geleia num pedaço muito grande de
pão. Com isso, algumas dessas vacas-sagradas podem fazer muito mal a um país.
Considerem, por exemplo, este
depoimento de uma das maiores vacas sagradas de todos os tempos, o finado
economista Celso Furtado, no qual ele diz que o Brasil está dominado pelo
neoliberalismo e que a “coisa microeconômica é um disparate completo”. Em
depoimento prestado em agosto de 2004, poucos meses antes de morrer, ele disse
exatamente o seguinte: “A hegemonia do pensamento neoclássico-neoliberal acabou
com a possibilidade de pensarmos um projeto nacional; em planejamento
governamental, então, nem se fala... O Brasil precisa se pensar de novo, partir
para uma verdadeira reconstrução. Para mim, o que preza é a política. Essa
coisa microeconômica é um disparate completo.” (Maria Inês Nassif, “O CDES e o
consenso que não é neoliberal”, jornal Valor
Econômico, 13/07/2006).
É realmente uma pena que a nossa
maior vaca sagrada pensasse assim, pois o dinheiro da sua aposentadoria, o de
todas as outras aposentadorias, aliás, todo o dinheiro que movimenta e sustenta
o governo, assim como a qualquer outra pessoa no Brasil e no mundo, toda a
riqueza que movimenta as relações, em quaisquer instâncias que se possa
conceber, tudo isso deriva dessa “coisa microeconômica” tão desprezada e
vilipendiada por Celso Furtado. Sem ela, não haveria empregos, renda e riqueza,
pois é evidente que é a microeconomia que produz todo e qualquer valor na
sociedade – o que Marx sabia muito bem – uma vez que a famosa macroeconomia –
tão apreciada pelos keynesianos e por toda a torcida de economistas
desenvolvimentistas – apenas se dedica, pura e simplesmente, à singela
organização das melhores condições possíveis para o exercício de uma boa
microeconomia pelos agentes econômicos. Não acredito que os economistas
keynesianos pensem que governos sejam capazes de criar valor, ou que eles
retiram dinheiro a partir do nada, como se fosse de uma lâmpada mágica. Até os
economistas desenvolvimentistas sabem perfeitamente que são os produtores
diretos, os agentes microeconômicos, tão desprezados por Celso Furtado, os
ÚNICOS que criam valor numa sociedade.
Mas deixemos as vacas sagradas em
paz para voltarmos aos nossos intelectuais de mercado. Nossa economia política
ainda não acabou...
5. Intelectuais de marca
ou genéricos?
Existem muitos modelos de intelectuais, alguns
ostentando marcas de prestígio, outros sendo simples genéricos, como ocorre,
aliás, com a maior parte dos universitários. Os primeiros custam mais caro, ou
melhor, cobram mais caro do que a média do mercado para trabalhadores
não-manuais, mas, como no caso das ações “marxistas”, seu valor de troca
encontra-se indevidamente valorizado em relação ao seu efetivo “valor de uso”. Et pour cause: poucas de suas “ideias”
são implementáveis de fato, consistindo, no mais das vezes, de prescrições
quiméricas – só imagináveis por quem vive na torre de marfim, sem qualquer
contato com as linhas de montagem ou as seções de contabilidade das firmas –,
além de considerações genéricas do tipo “o que falta ao país é um projeto
estratégico nacional” (proposição tão ingênua quanto inexequível, em condições
democráticas).
Os intelectuais “genéricos”, em contrapartida, não costumam
propor um “projeto nacional” pronto e acabado, contentando-se com comentários
pretensamente profundos sobre temas do momento, a partir de frases de colegas
de “marca” ou de algumas figuras do passado (as “vacas sagradas”, justamente,
que se tornam ainda mais míticas do que já eram). Com os progressos da
globalização, e a disseminação fácil das ideias geniais – a maior parte agora
disponível num simples clicar de “cut-and-paste” – os intelectuais de marca se
tornam cada vez mais genéricos – pois que amplamente disseminados nas
engrenagens da tecnologia da informação – e os genéricos, por sua vez, podem
aspirar a ter seus quinze minutos de fama, como se fossem uma marca legítima.
Atenção: se você pretende ser um legítimo intelectual de
marca, não generalize as suas ideias, em todo caso, não antes de registrá-las
em algum suporte comercial, devidamente protegido pela legislação de
propriedade intelectual, o que lhe poderá assegurar não apenas o monopólio de
continuar explorando aquelas ideias – ou pelo menos a forma em que foram
expressas – durante bastante tempo, recolhendo no caminho alguns bons royalties
pela circulação dessas ideias porventura geniais (não precisam ser, basta que
tenham um ar de sê-lo).
6. A substituição de
importações intelectuais no caso brasileiro
O intelectual, no Brasil, sempre foi um produto
importado, não vindo no porão dos navios, como o bacalhau, o azeite e vinho,
mas na coberta das caravelas, veleiros e outros transportes que faziam o
trajeto da metrópole, que era onde se dispensavam os saberes d’antanho. Muito
antigamente eles vinham de Coimbra, depois essas importações foram amplamente
diversificadas, com muitos saberes em várias línguas, mas com a predileção
especial por Paris e seus modismos intelectuais. Apesar da decadência francesa
em todas as coisas mais vis que possa haver no mundo, commodities, mercadorias ordinárias e outras bugigangas, é da
França, e mais especificamente de Paris, que ainda provêm, junto com perfume e
as roupas da moda burguesa, as ideias que constituem le dernier cri dos nossos intelectuais.
Aparentemente, toda a filosofia uspiana é uma demoiselle que aqui aportou depois de um
long séjour parisien, como se
estivesse num département d’outre mer.
N’importe, o fato é que nós já
fizemos nossa substituição de importações no terreno das ciências sociais,
aliás com ideias, conceitos e metodologias que falavam inglês – vindas com os
famosos brazilianists dos anos 1960 e
1970 – e não precisaríamos mais importar essas ideias francesas que só servem
mesmo para a França, pois são tão específicas daquela cultura como o foie-gras, o camembert, o reblochon.
Aliás, desde que aqui começou a se fazer o legítimo conhaque – sim, com “que”,
sem “c” – de alcatrão de São João da Barra, no distante século XIX, que não precisaríamos
mais importar ideias francesas, superadas que elas deveriam estar por nossa
genialidade adaptativa e imensa capacidade de digerir e reproduzir o que há de
mais avançado no mundo das ideias.
Mas, qual o quê! Nossos intelectuais são preguiçosos:
eles não se dedicam a criar ideias próprias e continuam a consumir ideias
francesas que na atualidade vêm mais em modelos prêt-à-porter do que sob a forma elegante do fait-à-la-main. É por isso que nossos alunos universitários
continuam a ser torturados pelos Derridas de aluguel, pelos Lacan de
contrabando, pelos Foucault de um imaginário que não tem muita imaginação.
Vejam vocês que eu já encontrei estudos sociológicos sobre os nossos
garimpeiros – sim, aqueles seres brutos que despejam mercúrio na natureza e
usam as pepitas para comprar o amor das donzelas disponíveis – elaborados com a
mais refinada técnica foucaultiana, como se não fosse possível analisar o
imaginário rude desses seres singulares das nossas fronteiras da civilização, a
não ser com tecnologia importada de Paris. Épatant,
n’est-ce-pas?
Quero crer que a substituição de importações já se
completou no caso das nossas ciências sociais e que não precisaríamos mais
estar pagando royalties e serviços técnicos por essas contribuições
dispensáveis ao nosso universo mental, e que só não o fazemos por absoluta
preguiça conceitual e vagabundagem metodológica dos nossos intelectuais. Ao
trabalho, rapazes e moças: libertem-se do que é importado, do que é supérfluo,
para diminuir esse “passivo externo”, essa terrível dependência intelectual do
estrangeiro, que só agrava a nossa “vulnerabilidade externa”, pesando
indevidamente em nosso balanço de pagamentos do setor universitário.
7. Regulação e
concorrência do mercado de intelectuais
Todos os intelectuais
dizem amar a liberdade, as pugnas intelectuais, o combate de ideias, a
liberdade de expressão e a livre circulação das opiniões. Na verdade, como
várias outras categorias sociais, sempre temerosas da livre concorrência, eles
adoram uma boa reserva de mercado, um nicho garantido por um título de
exclusividade, uma licença régia qualquer que lhe garanta a exploração
monopólica de um serviço qualquer.
Existiria outra
razão para o jornalismo ser exercido por “intelectuais” portadores de
certificado? Ou eles não são intelectuais os jornalistas? Pela nossa definição,
eles se encaixam: lidam com conceitos, opiniões, argumentos, produzem ideias,
informações, dicas úteis à sociedade, ao corpo e ao espírito, quem vai dizer
que eles não são o que pretendem ser? Eles vivem, em última instância, da
palavra escrita e, portanto, se encaixam na definição.
Ainda que não
fossem: os que se pretendem verdadeiros intelectuais são uma espécie de
jornalistas universitários: vivem processando informações, elaborando dados em
novas apresentações externas, remodelando o conteúdo daquelas ideias que possam
ter fabricado no passado, aplicando um Lavoisier em outras que são recicladas
de colegas porventura falecidos, enfim, fazem aquilo que se faz nas redações,
apenas que eles têm um público cativo, e o mais das vezes passivo, ao passo que
os outros, os intelectuais da imprensa precisam, pelo menos, fazer com que a
clientela compre a sua produção como condição de sobrevivência física.
O intelectual
universitário não: ele dispõe de uma reserva de mercado, que pode explorar à
vontade – stricto et lato sensi – e
não precisa nem mesmo se preocupar com a satisfação do consumidor: as condições
estão dadas pela estabilidade, uma tenure
que em outros países – que exibem intelectuais mais competitivos – só se
alcança ao cabo de longos e longos anos de produtividade desenfreada, segundo o
velho princípio do publish or perish,
e que é aferida regularmente para fins de patrocínio ou financiamento quanto a
seus resultados efetivos, não os proclamados pela própria casta. Na verdade,
nosso intelectual não quer concorrência, ele não gosta de concorrência, ele
aprecia mesmo um bom monopólio, de preferência público, que explora
privadamente.
Querem um exemplo? O projeto de lei que cria o escritor de carteirinha. Trata-se do projeto
de lei nº 4641, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Antônio Carlos
Pannunzio (PSDB-SP) e que “dispõe sobre o exercício da profissão de escritor”.
Será que esse escritor profissional terá de trabalhar 8 horas por dia, vai
descontar imposto sindical, terá férias remuneradas, direito a FGTS, essas
coisas?
8. As finanças dos
intelectuais: transparência e recursos não-contabilizados
Assunto nebuloso este, aliás como tudo o que diz
respeito a renda e pagamento de impostos em nosso país. O intelectual detesta
ser um mero assalariado, o que ele acaba frequentemente sendo, geralmente do
Estado. O intelectual assalariado não consegue ter liberdade para dispor de
seus recursos. Se for para ser um assalariado, melhor ser como aqueles antigos
artistas e intelectuais sustentados por mecenas endinheirados – o que é uma
tautologia, obviamente – ou príncipes ainda não decadentes de cortes europeias,
com castelos funcionais (com quadras de tênis, banheiros modernos e ar
condicionado). Ser um Da Vinci, um Voltaire, e levar uma vida de palácio, de
doces tertúlias na verdura suave de uma tarde de verão, isso é que é vida. Stop o sonho e voltemos à realidade.
O intelectual precisa, como qualquer mortal, se
preocupar com o supermercado, o salário da empregada – sim, eles ainda não
aboliram totalmente a escravidão – e o avanço do fisco sobre seus rendimentos
não declarados. Claro que eles têm esse tipo de renda extra: quantas palestras,
quantos artigos ou resenhas, quantas crônicas para essas revistas corporativas
não surgem assim do nada e não é que “pinga”, em contrapartida, algum dinheiro
ocasional para o choppinho da sexta-feira? Mais importante: quantos projetos e
seminários, e visitas e convites, e livros coletivos e tantas outras oportunidades
mais não surgem na vida do intelectual, sobretudo quando o seu preço de mercado
já subiu por força de alguma ideia poderosa que encontrou muitos tomadores no
mercado?
Como todo e qualquer brasileiro, intelectual também é
gente, assim que, ao lado dos rendimentos declarados, e mesmo dos investimentos
de portfólio, sempre existe uma parte de recursos não contabilizados e de
“seguro de risco”. De preferência bem discreto, pois como todo mundo sabe,
transparência demais é burrice. Mas aqui não vai nenhuma distinção especial,
nenhuma exclusividade do intelectual. Ele é simplesmente como qualquer um de
nós...
9. Uma lei de
responsabilidade social para os intelectuais?
Seria bem vinda, sobretudo para aplicar naqueles que
pretendem revender ideias alheias, métodos não testados, sugestões que não
funcionam, problemas que estão longe de problematizar adequadamente, anomalias
conceituais, paralaxes cognitivas, enfim, num conceito popularizado por Alain Sokal et Jean Bricmont, “imposturas
intelectuais”.
Existem muitas imposturas intelectuais em nossas
universidades, algumas até não percebidas como tais e que passam pelo mais puro
produto do espírito que anda. (Ou alguém já conseguiu matar a praga do
Foucault, que continua a torturar nossos aluninhos mesmo muitos anos depois de
morto?) Difícil terminar com todas elas, sobretudo porque as ideias e seus
criadores não se submetem a um simples teste da verdade, já não digo a
falsificabilidade popperiana, mas um simples teste de sua adequação à
realidade, de verificação empírica, de comprovação de laboratório, de validação
socrática pela lógica das aproximações sucessivas. Elas são pragas renitentes.
Uma lei de responsabilidade social para os intelectuais
os obrigaria a trazer a prova de suas afirmações, a fazer um simples cálculo de
custo-benefício para verificar o retorno social de suas propostas de reforma da
natureza e de transformação da sociedade. Os intelectuais parecem ser como a
Emília, naquela história homônima de Monteiro Lobato: eles saem por aí com uma
varinha mágica sociológica, um pó de pirlimpimpim filosófico, e se dispõem a
oferecer a políticos incautos – sobretudo em épocas eleitorais – grandes
projetos nacionais, a custo quase zero (no papel, mas as comissões são à
parte), e uma indefinição absoluta quanto aos resultados. São tão traficantes
quanto políticos que oferecem empregos na máquina pública, com a diferença que
depois eles não precisam mourejar para produzir algum resultado tangível a
partir de suas ideias malucas.
Uma lei dessas viria a calhar, mas não é provável que
ela venha a existir any time soon:
intelectuais são como cartomantes, eles oferecem um futuro qualquer, mas não
garantem exatamente quando ele vai se realizar, e não admitem cobranças a
respeito. Se calhar, eles até vendem suas ideias em dez vezes “sem juros”.
Querem apostar?
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
20 de julho de 2006