Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Stendhal, é sabido, escreveu ele próprio seu epitáfio. Quem visita o túmulo do escritor no cemitério de Montmartre — e eu sou, ocasionalmente, um desses peregrinos — vê sobre a lápide, mais ou menos, a inscrição determinada por ele. Digo “mais ou menos” porque, como contei em O Dia em que vi o Crânio de meu Avô, seu primo e executor testamentário, Romain Colomb, inverteu a ordem dos três verbos escolhidos, e por isso lemos, em italiano: “escreveu, amou, viveu”, em vez do pretendido pelo romancista, que era “viveu, escreveu, amou”.
Outro desejo não respeitado de Stendhal é que o túmulo informasse o seguinte: Quest´anima/Adorava/Cimarosa, Mozart e Shakspeare [sic]. A vontade de que a declaração de amor aos três artistas fosse incluída no epitáfio aparece em Souvenirs d´égotisme, volume autobiográfico escrito em 1832, onde Stendhal declara que imaginara seu túmulo e o que nele deveria ser escrito. Mais tarde, em 1837, em um resumo de cinco páginas de sua vida, o autor acrescenta Correggio aos amados Cimarosa, Mozart e “Shakspeare” — e constatamos, então, que de fato faltava um pintor na lista anterior — mas já não parece querer incluir os artistas na inscrição na lápide.
O compositor Domenico Cimarosa (1749-1801), “essa bela planta napolitana”, como diz dele Stendhal em seu Diário, foi um dos objetos constantes da admiração do escritor. De Cimarosa, ouve-se hoje sobretudo uma ópera-bufa, Il matrimonio segreto (1792), a que assisti uma vez em Munique. Aos 25 anos, minha devoção ao escritor e a seus personagens tornava-se menos exclusiva do que fora até pouco tempo antes, mas perdurava então e perdura ainda. Stendhal já não dominava tanto meus pensamentos, mas foi o interesse por ele que me fez ouvir a ópera de Cimarosa. Sabia que conhecer o músico era uma forma de manter a proximidade com o escritor.
Conservo o programa. Nada nele escrevi, ao contrário do que frequentemente fazia naquela época, com comentários decididos em que destruía ou elevava aos céus uma obra, uma produção, uma atuação. Quatro anos antes, por exemplo, eu assistira em Londres a uma montagem da comédia inglesa em que Il matrimonio segreto é inspirada, The Clandestine Marriage (1766), de George Colman e do célebre ator David Garrick. Neste caso, escrevi em várias páginas do programa, elogiando os atores e julgando fraca a peça. Embora o programa da obra de Cimarosa nada contenha da minha mão, lembro bem que gostei da ópera e da produção, e saí feliz do teatro em Munique.
Sabemos, pela autobiografia de Stendhal escrita de 1835 a 1836 e denominada por ele Vie de Henry Brulard, que o escritor assistiu pela primeira vez a uma representação da ópera de Cimarosa em maio de 1800, em Ivrea. Ele tinha 17 anos, e estava na Itália acompanhando o exército francês. Era a segunda campanha da Itália, Napoleão Bonaparte tornara-se primeiro cônsul no ano anterior e o pintor David o retrataria atravessando o passo do Grande São Bernardo, casaco esvoaçante, jovem e heroico sobre seu cavalo empinado.
Sobre essa tela, diz o historiador americano David Bell, em seu livro de 2020, Men on Horseback: the Power of Charisma in the Age of Revolution, que ela se tornou “uma das imagens mais conhecidas da glória militar”, ao mostrar Bonaparte parecendo “se fundir na paisagem sublime que o quadro retrata, e comandar ao próprio vento”. A batalha de Marengo, em junho de 1800, se tornaria uma das etapas gloriosas da epopeia napoleônica, e a República Francesa triunfava das monarquias.
Em um dos prefácios em que pensou para a sua biografia de Napoleão, Stendhal escreveu: "Vi o general Bonaparte pela primeira vez dois dias após a sua passagem pelo São Bernardo, sob o forte de Bard [maio de 1800]; oito ou dez dias após a batalha de Marengo, fui admitido no seu camarote no La Scala", portanto, em junho de 1800. Em a Vie de Henry Brulard, ele não parece tão certo de ter visto Napoleão durante o assédio pelos franceses ao forte de Bard. Em todo caso, devemos supor que o general Bonaparte terá causado nele a mesma impressão que nos causa o quadro de David.
Mas estamos ainda em Ivrea onde, informa a Vie de Henry Brulard: “À noite, tive uma sensação que nunca esquecerei. Fui ao espetáculo”.
A ópera causou, afirma ele retrospectivamente, 35 anos depois, uma emoção mais forte do que ter atravessado os Alpes pelo Grande São Bernardo e passado por uma descarga de canhões perto do forte de Bard. Comparadas à ópera de Cimarosa, a guerra e a perigosa, por estreita, passagem pelos Alpes — Napoleão, na verdade, tivera de cruzar as montanhas a dorso de mula, e o cavalo empinado é parte da propaganda — pareceram-lhe algo “grosseiro e baixo”. No entanto, percebemos que as sensações causadas pela travessia das montanhas e os tiros de canhão lembram as experimentadas por Fabrice del Dongo na batalha de Waterloo, em La Chartreuse de Parme.
Em todo caso, assegura-nos Stendhal, ouvir Il matrimonio segreto aos 17 anos determinou-o a vivre en Italie et entendre de cette musique, e isso tornou-se para ele “a base de todos os meus raciocínios”. Aparentemente, apenas uma vez antes ele assistira a uma representação operística, em Paris, aos 15 anos, mas essa fora uma obra francesa contemporânea medíocre, Le Traité nul — ”un fio de vinagre” diz ele: ce filet de vinaigre continu et saccadé — de um compositor hoje esquecido, Pierre Gaveaux.
Com a descoberta de Cimarosa, ir à ópera torna-se uma de suas razões de viver e ele nos fala a respeito inúmeras vezes nas obras autobiográficas. Gosto desta frase, que está em Vie de Henry Brulard: “Eu andaria dez léguas a pé, pisando sobre excrementos, coisa que mais detesto no mundo, para assistir a uma representação de Don Giovanni bem interpretada”.
Textos autobiográficos de Stendhal, contudo, não são necessariamente confiáveis, e não é seguro que ele tenha ouvido Cimarosa pela primeira vez em Ivrea. Em 1808, em uma carta a sua irmã Pauline, ele diz: “Gostei de música pela primeira vez em Novara, alguns dias antes da batalha de Marengo. Fui ao teatro; davam Il matrimonio segreto”. Que a representação tenha sido em Novara ou Ivrea, o leitor percebe que nem tudo foi perfeito nessa iniciação musical. O escritor comenta: “Faltava um dos dentes da frente à atriz que cantava Carolina”. Esse detalhe ficou na sua memória como sendo “o que sobrou daquela felicidade divina”.
W. G. Sebald, em Vertigem (1990), no capítulo, não muito satisfatório, em que ficcionaliza a relação de Stendhal com o amor e a Itália, decide que o dente ausente é "o canino superior direito". Pessoalmente, imagino que seria algum dos incisivos laterais; a falha ficaria mais visível, e a observação de Stendhal mais natural.
E, de repente, penso que talvez houvesse aí o tema de um conto, certamente não muito alegre, nessa história de uma soprano que, em 1800, era obrigada a cantar, para sobreviver, ostentando a falta de um dente, em uma pequena cidade no Norte da Itália, talvez deambulando de um teatro provinciano a outro. O autor não nos dá seu nome, mas afirma que, no dia seguinte, estava apaixonado por ela enquanto partia a cavalo de Ivrea. Obviamente, não é pela intérprete de Carolina que Stendhal se apaixonara, mas pela Itália, a sua própria juventude, a libertação do jugo familiar, a aventura e a música. É possível que Cimarosa tenha marcado de forma duradoura sua imaginação porque passou a cristalizar todos esses sentimentos.
Outro músico sobre quem Stendhal fala frequentemente é Rossini. Se a adoração por Cimarosa foi constante, o apreço pelo compositor de Il barbiere di Siviglia e La Cenerentola revela-se oscilante. Em Rome, Naples et Florence — uso a edição de 1826 — o romancista nos conta que, em 1817, viajando a Nápoles, em um albergue em Terracina, no Lácio, notou “um homem louro bonito, um pouco careca”, de cerca de 25 anos. Stendhal perguntou-lhe se podia ainda ter esperança de assistir, em Nápoles, de onde chegava o viajante, ao Otello de Rossini, e passa a elogiar o talento do compositor.
O interlocutor fica levemente embaraçado, seus companheiros de viagem sorriem: enfin, c´est Rossini lui-même. A frase seguinte resume bem a forma como Stendhal escreve sobre Rossini em seus textos autobiográficos: “Felizmente, e por um grande acaso, eu não falara nem da preguiça desse gênio admirável e nem dos seus numerosos plágios”. Rossini, como se sabe, frequentemente reutilizava suas próprias melodias em diferentes composições, mas Stendhal gosta de dizer que ele também tomava empréstimos de outros compositores. Ao ouvir O Barbeiro de Sevilha pela primeira vez, opina: “isso me pareceu um pouco pilhado de Cimarosa”, o que não o impede de escrever, uma página depois: J’admire de plus en plus le Barbier.
Henri Martineau, um dos especialistas clássicos de Stendhal, em seu estudo L´Oeuvre de Stendhal: histoire de ses livres et de sa pensée (1945) opina que o escritor apreciava o artista em Rossini, mas que “o homem, em troca, sempre despertou antipatia nele: o seu cinismo o chocava assim como o enorme apetite e a desenvoltura grosseira em relação às mulheres”.
Em 1823, Stendhal publicaria a primeira biografia do compositor em francês. Abro a Vie de Rossini ao acaso e leio o seguinte trecho: Vif, léger, piquant, jamais ennuyeux, rarement sublime, Rossini semble fait exprès pour donner des extases aux gens médiocres. Hagiográfico isso não é. Em todo caso, o primeiro encontro, em Terracina, transcorreu de forma idílica. O francês e o italiano ficaram “tomando chá até depois da meia-noite”. Escreve Stendhal: c´est la plus aimable de mes soirées d´Italie. E comenta: “despedi-me desse grande compositor com um sentimento de melancolia”.
Alguns estudiosos, porém, colocam em dúvida se Rossini e Stendhal realmente interagiram na Itália, como Rome, Naples et Florence e a correspondência do escritor afirmam. Em um ensaio intitulado Stendhal et Rossini: Une étude documentaire, de 1999, Stéphane Dado e Philippe Vendrix debruçam-se sobre essa questão. Apontam que mesmo o encontro fortuito em Terracina talvez nunca tenha acontecido e que Stendhal, em Milão, possivelmente só viu Rossini de longe, na qualidade de maestro, regendo suas óperas no La Scala. O ensaio dos dois pesquisadores belgas é bastante útil. Lista todas as vezes em que o compositor é citado na obra do escritor, e calcula que Stendhal terá assistido a 23, talvez 25, das 39 óperas de Rossini.
Enquanto eu escrevia o parágrafo acima, amigos vieram de Roma me visitar em Kuala Lumpur. Trouxeram-me de presente uma tradução para o italiano, por Donata Feroldi, publicada em 2019, de Promenades dans Rome, que conta com uma excelente apresentação do escritor e ensaísta Emanuele Trevi.
Logo na primeira frase, Trevi nos diz: L´Italia di Stendhal è una gigantesca soperchieria, un castello di carte truccate, una sistematica impudenza. Ao contrário do que poderia parecer, o ensaio é elogioso a Stendhal, ajudando a confirmar ao leitor que o amor do francês pela Itália é reciprocado pelos italianos. Mais adiante, Emanuel Trevi opina "não haver nada mais verdadeiro do que a Itália de Stendhal", ou seja: a Itália descrita pelo francês é condizente com sua "reação subjetiva, alterada constantemente pela força dos seus mutáveis estados de ânimo". Avalia Trevi ser Stendhal o primeiro entre os modernos a transformar a literatura em um punto di vista personale, necessariamente eccentrico perché generato dall´individuo e dal suo egotismo.
De maneira divertida, o ensaísta italiano comenta que os estudiosos de Stendhal se dedicam, paradoxalmente, a descobrir as inverdades nas obras de seu scrittore prediletto, e que cada um tem a sua mentira stendhaliana preferida. Para Trevi, justamente, il non plus ultraè l´incontro fortuito com Gioacchino Rossini em Terracina, onde o diálogo descrito por Stendhal é, na sua avaliação, una bellissima intervista immaginaria.
A Vie de Rossini foi, em termos de vendas, a obra mais bem-sucedida de Stendhal, durante a existência do escritor. A publicação, provavelmente em novembro de 1823, coincidiu com a chegada do compositor a Paris, para uma temporada de um mês. Posteriormente, Rossini moraria na capital francesa mais de uma vez e lá morreria em 1868.
Frequentemente associo o compositor italiano, símbolo mesmo do bel canto, à França, e particularmente a Stendhal. O músico, aliás, entrou na minha vida antes mesmo do romancista, por causa de um dos meus álbuns prediletos de Tintin, Les Bijoux de la Castafiore, que terei lido pela primeira vez aos 7 ou 8 anos. Na história em quadrinhos, a cantora lírica Bianca Castafiore vem visitar Tintin e o Capitão Haddock no castelo de Moulinsart. Uma ópera de Rossini, La gazza ladra, ajuda a resolver o roubo de uma esmeralda. O enredo lembra o de uma ópera-bufa. Na capa, o gesto de Tintin revela que vamos adentrar um mistério e também nos convida a manter silêncio diante de uma ária daquela que é conhecida, no universo de Hergé, como "o rouxinol milanês".
Rossini é tão associado a Paris para mim que suas óperas me fazem pensar na Restauração e na Monarquia de Julho e, portanto, em Stendhal e Balzac, cujas obras sintetizam, a meu ver, a vida durante esses sucessivos períodos da história francesa.
Julien Sorel, uma noite, vai à ópera assistir Le Comte Ory, penúltima ópera rossiniana, cuja estreia se deu em Paris em 1828. Durante a pandemia de Covid-19, quando a Metropolitan Opera passava gratuitamente, no que parece hoje o distante ano de 2020, gravações de algumas de suas produções, Le Comte Ory foi mostrada ao menos duas vezes, em uma montagem de 2011, com Juan Diego Flórez, Joyce DiDonato e Diana Damrau.
Essa nunca será minha obra predileta do compositor. Mas foram bons momentos, na solidão dos confinamentos na Malásia, ver Juan Diego Flórez, como o Conde Ory, e Diana Damrau, no papel de Condessa Agnès, cantando “Ce téméraire”. Ele tenta seduzi-la fantasiado, histrionicamente, de freira. Essa cena, que dura apenas três minutos, aparece na Internet, mas com outra soprano, Pretty Yende, fazendo o papel de Agnès. Vale a pena assistir. Levanta a alma.
Reli agora os parágrafos em Le Rouge et le Noir sobre a ida de Julien à ópera. Dá um certo reconforto saber que, na sua curta e penosa vida, ele pelo menos ouviu Rossini.
Um sábado de março, enquanto eu estava no teatro em Kuala Lumpur, Stendhal, seus personagens, suas obras reapareceram na minha imaginação, logo no início de um concerto. Naquele momento, eu estava imerso na realidade do Sudeste Asiático. Acabara, em duas semanas sucessivas, de ir a trabalho a Bornéu. Pela primeira vez viajara a Bandar Seri Begawan, capital de Brunei, e, poucos dias depois, a Kota Kinabalu, capital do estado malásio de Sabá. Preparando-me para as duas viagens, lera livros sobre a história de Bornéu e, ao chegar, visitara museus e mercados. Mergulhara na realidade local. As reuniões de trabalho que eu lá mantivera haviam revelado muito a mim sobre a economia, as relações diplomáticas, os interesses estratégicos dos países do Sudeste Asiático.
Sentado em Kuala Lumpur no Istana Budaya, ou Palácio da Cultura, a literatura francesa, a música italiana estavam bem longe da minha mente quando, de repente, iniciou-se o concerto. E no entanto, eu sabia o que me esperava, o programa era claro: abertura de Semiramide, de Rossini, e, de Respighi, o Concerto Gregoriano para violino e Os Pinheiros de Roma. Entre as duas obras de Respighi, uma composição do músico malásio contemporâneo Yeo Chow Shern.
Aberturas de óperas de Rossini representam uma forma hábil de iniciar um concerto. Sua energia motiva a plateia. A de Semiramide é particularmente rica, brilhante e tonitruante. Stendhal, em um artigo de imprensa que escreveu em 1825, logo após assistir a uma récita da ópera em Paris, opinou sobre a abertura: elle est jolie, mais a semblé un peu longue. Em gravações, ela dura cerca de 12 minutos. A mim, esse tempo pareceu curto. À medida que a orquestra tocava, Bornéu, a Associação de Nações do Sudeste Asiático, o Mar do Sul da China, a história da Malásia e de Brunei iam se fundindo, como em um casamento inesperado, improvável, secreto, com Henri Beyle, Julien Sorel, Mme. de Rênal, Fabrice del Dongo e a duquesa Sanseverina. Como tem acontecido com frequência, pensei que não nos ensinam, na escola, o suficiente sobre a história da Ásia.
Em 1830, ano em que Le Rouge et le Noir foi publicado e Julien Sorel guilhotinado, houve revoluções na Europa. Carlos X perdeu o trono, e Luís Filipe de Orléans tornou-se rei dos Franceses. Na Bélgica, durante uma representação de ópera no Teatro La Monnaie inicia-se a revolta que levaria à revolução e à independência. No Brasil, D. Pedro I estava a meses de sua abdicação, e pessoas escravizadas continuavam sofrendo e sofreriam ainda por muito tempo. Mas o que estaria acontecendo na China? A quantas andava a progressão do imperialismo britânico na Índia? Como se vivia em Java sob o colonialismo holandês? Como via o Sultanato de Aceh, em 1830, a crescente presença holandesa em Sumatra? Qual dos reis da dinastia Chakri reinava no Sião? Seriam felizes os seus súditos?
Após conhecer — ou não — Rossini em Terracina, Stendhal, em 1817, continuou rumo a Nápoles. Lá, maravilhou-se com o Teatro San Carlo, que estava sendo reinaugurado depois de ter pegado fogo no ano anterior. Em Rome, Naples et Florence, ele declara: je me suis cru transporté dans le palais de quelque empereur d’Orient. Mes yeux sont éblouis, mon âme ravie.
Nápoles significou, para Stendhal, ir à ópera. É sobretudo do Teatro San Carlo que ele fala nas muitas páginas sobre a cidade. E o Rio de Janeiro paga a conta. Segundo ele, somente em Nápoles há “uma tal mistura de mar, montanhas e civilização. Está-se no meio dos mais belos aspectos da natureza; e 35 minutos depois, pode-se ouvir cantar o Matrimonio segreto. Em Constantinopla e no Rio de Janeiro nunca se verá isso, ainda que fossem tão belas como Nápoles”.
Stendhal é injusto. Em D. João VI no Brasil (1908), Oliveira Lima nos fala da vida musical no Rio de Janeiro durante a estada entre nós daquele rei. Parece ter sido rica, embora no Real Teatro de São João, inaugurado em 1813, onde se davam apresentações operísticas, "a orquestra deixava um tanto a desejar, exceção feita de um flautista francês e de um excelente violinista". A essa ideia opõe-se Vasco Mariz. Em artigo de 2008, "A música no Rio de Janeiro no tempo de D. Joao VI", o musicólogo e diplomata escreve sobre o São João: "Viajantes de passagem pelo Rio louvaram a qualidade da execução e consideraram a orquestra como uma das melhores do mundo de então". O teatro, porém, queimou em 1824, e seu substituto não se lhe podia comparar. Admite Vasco Mariz: "Aquele grande fausto musical dos anos anteriores acabara. Não havia mais meios financeiros para manter o mesmo nível dos espetáculos".
As fontes sobre a vida musical no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX são numerosas. Um ensaio do musicólogo Rogério Budasz, intitulado "New sources for the study of early opera and musical theatre in Brazil", menciona que uma ópera de Cimarosa, L´Italiana in Londra, já havia sido apresentada antes mesmo da chegada da família real. Não encontrei registro, nos diversos textos que consultei, de alguma apresentação de Il matrimonio segreto. Entre 1820 e 1826 — ano de publicação da edição revista de Rome, Naples et Florence— oito óperas de Rossini foram apresentadas no Rio, informa Budasz citando outro musicólogo, Ayres de Andrade. Segundo Oliveira Lima, antes disso, em 1819, Tancredi já havia sido montada no São João. Essa era uma das óperas de Rossini que Stendhal preferia.
Oliveira Lima lembra que, em fevereiro de 1821, tendo D. João VI jurado a contragosto fidelidade à futura constituição portuguesa, na mesma noite ele foi ao Teatro de São João assistir à Cenerentola. Como no caso de Julien Sorel, esperemos que ouvir Rossini tenha trazido alguma alegria ao contrariado monarca.
Enquanto isso, em um teatro em Kuala Lumpur, estou ainda escutando a abertura de Semiramide, com os pensamentos vagando de Stendhal para o estado malásio de Sarawak, onde ainda não estive. Lia por aqueles dias a biografia do “Rajá Branco”, o inglês James Brooke, que fizera daquele pedaço da ilha de Bornéu um território independente em 1841. A história de Sarawak é inusual, rica, cheia de reviravoltas. E é tão violenta quanto a história do Brasil ou de qualquer outro lugar na Terra. Onde há seres humanos há ambições, vinganças, crueldades, assassinatos, guerras; e há também o teatro, a literatura e a música. É uma combinação paradoxal, um consternante casamento.
Terminara a abertura da ópera de Rossini. Aplausos. Aparece no palco o violinista italiano Domenico Nordio, estrela da noite, prestes a tocar o Concerto Gregoriano de Respighi, que eu não conhecia e viria a considerar, possivelmente de forma errônea, um pouco maçante. Sentado na segunda fila na plateia, ouço com clareza Nordio queixar-se com os músicos ao seu redor da temperatura do ar condicionado no teatro, de fato excessivamente fria.
No dia seguinte, domingo, acordei gripado. Não pude sair de casa.