Um romance "histórico" dos tempos em que alguns, no Itamaraty, colaboraram com o regime militar. Não foi o caso agora, quando das tentativas de golpe de um inepto desonesto e tresloucado ex-militar, que queria ter a 'sua ditadura'. Teria sido uma ditadura dos imbecis. A de 1964-1985 não, foi de militares preparados – para todo o mal que fizeram, mas também para a construção tentativa do "Brasil grande potência" – o que pode ter seduzido alguns oportunistas.
Resenha antiga, mas ainda interessante, quando falam de um outro golpe e tentativa de implantar uma ditadura.
Paulo Roberto de Almeida, 17/02/2024
Rendas faustianas, punhos wagnerianos...
Paulo Roberto de Almeida
Edgard Telles Ribeiro
O Punho e a Renda
(Rio de Janeiro: Editora Record, 2010, 560 p.; ISBN: 978-85-01-09162-8)
O autor adverte, em sua nota inaugural, que este livro “é obra de ficção”. Acredito. Mas, como ocorre com certas declarações de diplomatas, talvez se deva dar um desconto em afirmação tão peremptória, algo como 50% em relação ao seu valor de face. É uma obra de ficção em grande parte de seu enredo essencial, mas que tem muito de verdade, no que se refere à fundamentação dos personagens e situações. Trata-se de um “romance” verossímil, de uma história plausível, com a vantagem de ter sido concebida e modelada por um “insider”, um diplomata distinguido, que calha ser também um excelente escritor, autor de vários outros romances e livros de contos.
Eu começaria dizendo que se trata do “romance” (ou da história real) de uma geração: a dos diplomatas – estereotipicamente os de “punhos de renda” – que atravessaram os anos de chumbo do regime militar – feito quase só de punhos – e que conseguiram sobreviver, cada qual a seu modo. Diga-se, desde já, que quase todos “sobreviveram”, sem maiores percalços, e que os “sacrificados” foram poucos. Muitos outros brasileiros não sobreviveram, e é isto que interessa, talvez, não tanto ao Itamaraty, enquanto tal; mas aos brasileiros que saíram da anarquia “democrática” em vigor no início dos anos sessenta, enfrentaram mais de vinte anos de regime militar, e que ainda hoje tentam entender o que, afinal, aconteceu no Brasil, e na região, durante a longa noite de regimes autoritários na América Latina.
Mas obra não é exatamente o “romance” de uma geração, ou sequer de toda uma casta de servidores públicos, o que são, indiscutivelmente, os diplomatas. Trata-se, mais apropriadamente, de uma “biografia não-autorizada”, talvez goethiana, de uma parte dessa casta de servidores do Estado, em um dos ministérios mais respeitados da burocracia federal. Tudo gira em torno de Max, o codinome, se poderia dizer, que se deixa aprisionar pelos novos tempos e é envolvido em suas tramóias mais sórdidas – quando o Brasil, não contente em consolidar o domínio autoritário no interior de suas fronteiras, ajudava a “corrigir” os desmazelos das democracias populistas nos países vizinhos, ali patrocinando golpes militares violentos. Ele consegue, inclusive, sobreviver à derrocada do regime, sempre apostando nas “pessoas certas”, nas personalidades influentes (a começar por um beijo no anel do cardeal brasileiro, pouco antes do golpe de 1964). Max tem um nome ficcional: Marcílio Andrade Xavier. Mas, na verdade, ele é um amálgama de diversos diplomatas que existiram, realmente, ao longo do regime militar (e mais além...).
O estilo é brilhante, e o leitor atravessa esse “romance-história” sem parar, do começo ao fim de suas 550 páginas, sempre com o personagem principal no centro ou em surdina ao enredo. Este é talvez goethiano, mais exatamente faustiano, pelo menos em partes da obra. Em outras partes, a obra vira um itinerário de descoberta, um pouco como nos romances de John Le Carré, em que os personagens do submundo da inteligência civil, têm de lidar com sentimentos e frustrações, com as emoções humanas, aquilo que Graham Greene chamou, em um dos seus livros, “the human factor”. Parafraseando aquela velha canção sobre os desafinados, pode-se dizer que os homens de inteligência também têm um coração. Pode até ser, mas não propriamente Max, que apenas tem como objetivos poder e prestígio, o tempo todo mirando no futuro, e não apenas no presente de luta surda (e aberta) contra as ameaças comunistas na América Latina em plena era da Guerra Fria.
O personagem principal aparece como um intelectual brilhante. Ele poderia, assim, ter tido sucesso apenas fazendo um pouco mais do que recomendaria o estrito dever funcional; ou então, como muitos outros na carreira, por meio de um desempenho “correto” numa profissão certamente exigente em qualidades pessoais, mas também marcada por tarefas aborrecidamente burocráticas na maior parte do tempo; em qualquer hipótese, ele teria tido a chance de se distinguir no cumprimento de suas “missões” e, dessa forma, ser promovido antes dos seus colegas de turma.
Max, no entanto, dotado de uma ambição desmedida, acaba fazendo um pacto faustiano: cercado, ou encurralado, por um manipulador de carreiras, aceita servir ao SNI, cooperar com a CIA e colaborar com a inteligência britânica, o MI6 (excusez du peu, como diriam os franceses). Sim, tudo isso por motivações puramente pessoais, sem qualquer desejo de vingança; menos ainda por amor ao dinheiro ou qualquer outro motivo mais mesquinho. Apenas um gosto inexplicável por uma vida de dupla, ou tripla, personalidade. Traço de caráter que, aliás, permanece não explicado ao longo do “romance”, o que acrescenta ao mistério (e que poderia ter sido explorado psicanaliticamente, como conviria, talvez, nessa espécie de Bildungsroman).
Todos os personagens têm nomes próprios no “romance”, ainda que ligeiramente trocados, por simples precaução do autor, como o agente da CIA morto pelos Tupamaros no Uruguai, por exemplo. Menos o personagem que introduziu Max no submundo da inteligência brasileira, alegadamente seu chefe em Montevidéu, um antigo embaixador por demais conhecido (dos mais velhos) na carreira, como um anticomunista profissional, e que deixou dois volumes de memórias até interessantes pela sinceridade com que revelou seus “golpes” contra os comunistas da carreira e os de fora dela. O “homem da capa preta” fica sem nome, mas não é difícil descobrir quem seja, e seria até interessante reler, hoje, certas passagens de suas memórias.
Os diplomatas também se precipitarão sobre alguns currículos de colegas, vivos ou “desaparecidos”, para saber o quanto existe de coincidências ou de similitudes, em termos de postos, datas e situações, com colegas que eles possam ter conhecido e que imaginam “retratados” no romance. Muitos se sentirão frustrados, mais, talvez, pelas não-coincidências do que por estas, que são todas absolutamente plausíveis, até mesmo possíveis, tomadas globalmente, ao longo de um itinerário de descobertas muito bem encadeado na competente e absorvente escrita do autor.
Como especialista em cinema – tendo, aliás, servido duas vezes em Los Angeles e dado aulas de cinema na UnB – ele traça um roteiro, um script, melhor dizendo, impecável, com flashbacks e cenas paralelas que prendem a atenção de qualquer leitor, ainda mais se este for da carreira e estiver interessado em conhecer um pouco mais do submundo em que o Itamaraty se envolveu durante os chamados anos de chumbo. O personagem Max, obviamente, confunde os colegas de carreira do autor, pois não corresponde a um diplomata em particular, mas sim a um “compósito literário”, elaborado a partir daqueles poucos que atuaram nas sombras e nos cenários cinzentos que marcaram os anos mais duros do regime militar: poucos desses, aliás, estariam em condições de assumir completamente a figura faustiana que emerge nesta obra, aspecto que se encontra na trama de alguns grandes “romances” clássicos.
Curiosamente, é um livro de Thomas Mann que oferece ao MI6 britânico a chave, involuntária e inconscientemente fornecida por Max, para penetrar nos segredos do programa nuclear brasileiro, ainda em gestação no início dos anos 1970 – quando o Brasil colaborava com a CIA na montagem dos golpes militares no Uruguai e no Chile – mas cuja interface tecnológica alemã já deixava de cabelos em pé os “não-proliferadores” de Washington. Não, não se trata do Doktor Faustus (que só veio à luz nos anos 1950), mas de uma primeira edição autografada pelo autor de Der Zauberberg (A Montanha Mágica, publicado pela primeira vez em 1924), da qual o embaixador em Montevidéu jamais se separava (mas eu deixo esse spy-catch para os leitores do livro). Este aspecto talvez seja o “detalhe” mais realista – ainda que ficcional – do “romance”, pois se as perseguições a comunistas há muito ficaram para trás, determinadas “opções” nucleares continuam rigorosamente atuais (um pouco como uma baleia que emerge de vez em quando para respirar, segundo uma imagem, hors-roman, do autor).
Hoje, aliás, os perseguidos dos anos 1970 se encontram em grande medida no poder – alguns até pretendendo se vingar de seus antigos torturadores – e revelações de arquivos diplomáticos (muito antes do Wikileaks) já demonstraram algumas facetas da colaboração de diplomatas com os antigos serviços de repressão. Max, quaisquer que sejam suas encarnações reais, continuou, no romance, atuando nas entrelinhas desses tempos sombrios, sempre com as cautelas necessárias, para emergir depois, aparentemente impoluto, e se adaptar aos novos tempos de república dos companheiros. Ele sobreviveu de um jeito ou de outro, até ver os antigos perseguidos do regime no comando do novo Estado, em uma situação de poder à qual ele mesmo aspirava chegar, como uma espécie de Santo Graal meritório, por suas grandes qualidades intelectuais (também reconhecidas pelos agentes da CIA e do MI6).
Diplomatas e leitores externos ficarão perturbados, por diferentes razões, pelo desenvolvimento geral da trama deste “romance verdadeiro”, que refaz, por assim dizer, o itinerário dessa geração de diplomatas que teve de conviver, suportar ou então se aproveitar – no caso de muitos – das novas condições criadas pelo regime militar no Brasil. Ainda não existe uma história – por algum insider ou por um historiador profissional – de como o Itamaraty “conviveu” com – e se adaptou a – esses tempos sombrios, embora eu mesmo tenha tentado reconstituir uma parte da história neste capítulo de um livro coletivo: “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, In Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (orgs.), “Tempo Negro, temperatura sufocante": Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de Janeiro: PUC-Rio, Contraponto, 2008; p. 65-89). Sem se lograr, contudo, a colaboração dos envolvidos, é virtualmente impossível reconstituir as tramas mais importantes desse período que muitos querem esquecer.
Os próprios diplomatas que viveram esses tempos – o que não foi o meu caso, para aquela fase precisa da “diplomacia blindada”, digamos assim – ainda não escreveram sobre isso e duvido que venham a empreender a dolorosa tarefa de falar sobre as pequenas e grandes misérias do período. Que Edgard Telles Ribeiro o tenha feito – ainda que sob a forma de um “romance verdadeiro” – oferece uma prova de sua coragem, depois de tantos romances e livros de contos, em lançar-se no que poderia ser chamado de “revisão intelectual” de alguns dos personagens mais emblemáticos do ancien régime militar.
Um livro perturbador para uns e outros da carreira, certamente curioso, ou mais do que isso, para os de fora, em todo caso inédito para os padrões reservados ou circunspectos da Casa de Rio Branco. Os interessados na História, a real, tentarão estabelecer onde termina a realidade e onde começa a ficção; uma separação muito difícil de se fazer, dado o próprio envolvimento do autor com alguns dos que “colaboraram” – involuntariamente, por certo – para a montagem do personagem principal. Algum psicanalista talvez diga que a obra representou a forma de seu autor “matar” uma parte de seu passado, o que também é legítimo, sobretudo para os que viveram intensa e preocupadamente aqueles anos de escolhas difíceis e de futuros incertos. Nem todos os “sobreviventes” o fizeram com tanta dignidade e honestidade intelectual quanto o autor deste “romance”.
Para todos nós, leitores, o importante é saber que o “romance” – quaisquer que sejam suas partes de verdade e ficção – nos prende do começo ao fim, tão absorvedora é a “história” e tão cativantes são a escrita e o estilo do autor: dá para ler, em menos de 24 horas, uma trama de meio século...
Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 6 de fevereiro de 2011; 2ª versão: 8/02/2011]
Versão reduzida desta resenha foi publicada neste formato:
1025. “Diplomacia de capa e espada? Quase...”, Boletim ADB (ano 17, n. 72, jan-fev-mar 2011, p. 29-30; link: www.adb.org). Relação de Originais n. 2243b.
2243. “Rendas faustianas, punhos wagnerianos...”, Brasília, 6 fevereiro 2011, 5 p. Resenha de Edgard Telles Ribeiro: O Punho e a Renda (Rio de Janeiro: Editora Record, 2010, 560 p.; ISBN: 978-85-01-09162-8). Revista em 8/02/2011, com base em observações do autor. Feita versão reduzida, sob o título “Diplomacia de capa e espada? Quase...”, publicada no Boletim ADB (ano 17, n. 72, jan-fev-mar 2011, p. 29-30; link: www.adb.org). Versão completa publicada na Revista de Economia e Relações Internacionais (FAAP-SP; vol. 10, n. 19, julho de 2011, p. 183-186; ISSN: 1677-4973; link: http://www.faap.br/faculdades/economia/ciencias_economicas/pdf/revista_economia_19.pdf). Versão da ADB Divulgado no blog Diplomatizzando (24/12/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/12/o-punho-e-renda-romance-verdade-de.html). Postado novamente no blog Diplomatizzando, 17/02/2024: link: ). Relação de Publicados n. 1025 e 1057.