Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
"Poucos países devem tanto à diplomacia quanto o Brasil", afirma CEO do CEBRI
Exame.com | Últimas Notícias
13 de novembro de 2023
Na última sexta-feira, 10 de novembro, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais - , celebrou a marca dos 25 anos com um . O evento, com o tema "De onde viemos e para onde vamos", reuniu figuras importantes para a história do think thank, que discutiram assuntos vitais para o futuro das do Brasil.
O seminário abriu com a fala da Diretora-Presidente do , Julia Dias Leite e encerrou com um painel especial apresentado por Gilberto Gil e Luiz Fernando Furlan. A celebração trouxe à tona insights importantes e reafirmou o objetivo da instituição: servir como um centro de excelência que promove o diálogo entre os setores público, privado e acadêmico.
"Instituições como o desempenham um papel fundamental no engajamento e diálogo com múltiplos stakeholders para fortalecer o desenvolvimento dos interesses do Brasil no cenário internacional. Ao promover o diálogo e a cooperação entre diferentes atores, o também contribui para fortalecer a posição do Brasil como um ator respeitado e influente no cenário global, defendendo interesses do setor de maneira eficaz." afirmou Roberto Monteiro Jr., Diretor de Comunicação e Relações Institucionais da SPIC Brasil, patrocinadora oficial do evento.
Para a ocasião, analisando a história da instituição e refletindo sobre o futuro do Brasil nas , Julia Dias Leite concedeu ao Bússola uma entrevista exclusiva, onde fala sobre a trajetória do , os planos e ações que estão por vir.
Qual foi a principal contribuição do think tank para a sociedade brasileira nesse período?
O tem mostrado como é possível e necessária a participação da sociedade civil na construção da política externa brasileira. Essa percepção orientou o Embaixador Luiz Felipe Lampreia, ainda em 1998, a fundar um think-tank dedicado às do Brasil. Já naquela época, nossos fundadores entenderam que um país como o Brasil, por seu tamanho, sua cultura, sua economia, passaria a ter relevância crescente na vida internacional e, para isto, era preciso que oferecer à formulação diplomática os aportes dos muitos setores que tinham interesse e o que dizer sobre a presença do Brasil no mundo.
Hoje, o Brasil se projeta na comunidade internacional por meio da atuação das empresas brasileiras no exterior, da integração de universidades brasileiras em circuitos internacionais de ciência e tecnologia, de calendários artísticos em grandes cidades, e até mesmo pela atuação de entidades subnacionais que enfrentam desafios de porte global. Por meio de seus projetos, o articula e inclui os diversos atores sempre com o objetivo de oferecer o melhor debate e a melhor proposta para projetar a presença brasileira no mundo.
O tem entre seus associados importantes entidades do setor público, diversos consulados e dezenas de grandes empresas privadas. Como é feito esse network com interesses e políticas tão diversas?
O interesse desses atores é justamente o de se integrar a um ambiente aberto, plural e independente para troca e formulação de ideias sobre a posição brasileira na economia global e no concerto das nações. Podemos dizer que a capacidade de reunir expressiva diversidade de atores é um dos grandes ativos do . Nosso time de especialistas é independente da agenda de atores específicos e, em interlocução com esse caleidoscópio crescente de associados, produz conhecimento aplicado de ponta sobre as do Brasil dos mais variados prismas.
Quais são os principais desafios e projetos do hoje?
Estamos participando ativamente dos trabalhos que demandam a presidência brasileira do G20 em 2024. Junto com o IPEA e a FUNAG, organizamos o T20, uma das principais instâncias a oferecer sugestões e aporte para os debates que vão acontecer para preparar os documentos que serão endossados por Ministros e Chefes de Estado dos membros do G20.
Em temas como transição energética, mudança climática, transformação digital, reforma das instituições globais e combate às desigualdades, temos o desafio de juntar as principais vozes da sociedade civil, especialmente de think tanks, para produzir ideias e consensos que avancem uma agenda brasileira de desenvolvimento sustentável capaz de influenciar o debate internacional sobre esses temas. Papel semelhante vamos desempenhar por ocasião da COP30, que será realizada em Belém em 2025.
O Brasil retomou seu protagonismo na diplomacia mundial?
Sim, sem dúvida. Depois de um complicado período em que nossa política externa foi na contramão da melhor tradição da diplomacia brasileira, o país retoma uma atitude equilibrada e volta a ter papel relevante na diplomacia mundial. Poucos países devem tanto à diplomacia quanto o Brasil, um ativo de que jamais poderemos prescindir. Somos o único país, dentre aqueles denominados "países-monstro" pelo diplomata George Kennan, isto é, com grande território e população, sem grande capacidade militar ofensiva.
Nosso território, um dos maiores do mundo, foi recortado às custas do empenho negociador do Itamaraty e, apesar de dividirmos fronteiras com 10 países, vivemos em paz com todos entramos em guerra com qualquer um deles há mais de 150 anos. Quantos países do mundo com esse número de vizinhos pode dizer o mesmo? Quantos países podem orgulhar-se de manter relações com todos os demais Estados membros da ONU? Com o início do novo governo, temos visto o retorno da política externa brasileira a esta tradição, o que já tem refletido em resultados importantes, como a redução do desmatamento ilegal na Amazônia, fruto de nosso compromisso com o desenvolvimento sustentável.
Como você vê o Brasil nos próximos 25 anos? Temos a possibilidade de atingir um novo patamar no cenário internacional?
Vemos um país que, em meio a uma ordem internacional em transformação, vai ser cada vez mais demandado a assumir protagonismo na provisão de bens públicos globais, como a segurança alimentar global, o equilíbrio climático do planeta, e a prevenção e monitoramento de ameaças à saúde global.
Ao mesmo tempo, vemos um país que cada vez mais precisa se integrar ao resto mundo, seja para receber , seja para compartilhar desafios e oportunidades com parceiros internacionais. Para estar à altura deste futuro, o país precisa contar com uma sociedade civil internacionalmente engajada e relevante, papel em que o e outras instituições de excelência têm sido pioneiras.
1532. “Intelectuais na cultura e na diplomacia, no mundo e no Brasil”, revista do IHG-DF (n. 13, 2º semestre 2023, p. 131-168; ISSN: 2525-6653). Relação de Originais n. 4485.
Intelectuais na cultura e na diplomacia, no mundo e no Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
. revista do IHG-DF (n. 13, 2º semestre 2023, p. 131-168; ISSN: 2525-6653). Relação de Originais n. 4485; Relação de Publicados n. 1532.
Resumo: Ensaio sobre o papel de intelectuais nos campos da cultura e da diplomacia, no âmbito global e no caso especificamente brasileiro, com base em ampla literatura em torno da temática do papel formador de opiniões dos intelectuais públicos. A partir de evidências históricas de caráter geral, o ensaio se debruça sobre intelectuais brasileiros desde o Império à atualidade, e tanto diplomatas de carreira quanto personalidades que desempenharam funções diplomáticas eventualmente. Sua contribuição para a elevação da oferta cultural, no Brasil ou no mundo, é inegável, talvez bem mais no campo do conhecimento do que propriamente no âmbito de atividades diplomáticas.
Sumário:
O que é o intelectual? Qual o seu papel social?
(...)
Os intelectuais e o poder: relações sempre ambíguas
(...)
Intelectuais no Brasil: papel político e institucional
(...)
Intelectuais brasileiros na diplomacia: o que precede o que?
(...)
A produção intelectual dos diplomatas: o mercado dos livros
(...)
O que é o intelectual? Qual o seu papel social?
Uma primeira definição do que seja um intelectual é oferecida da maneira mais direta possível por um intelectual público brasileiro:
Os ‘intelectuais’ são um subconjunto muito maior, integrado por todas as pessoas de alta escolaridade. De fato, entre a posse de uma escolaridade elevada e a efetiva assunção do papel de intelectual, há uma distância que poucos letrados, doutos, savants se dispõem a percorrer. A exigência de uma dedicação genuína a valores public regarding é um primeiro fator de redução do conjunto inicial; o seguinte é o engajamento público na defesa de tais valores. A plena configuração do papel intelectual acontece à medida que o letrado se desloca em direção a uma fronteira imaginária que separa a vida cultural ou científica da vida pública.[1]
Intelectuais são personagens indissociáveis das sociedades organizadas em Estados, ou até de comunidades dotadas de religiões oficiais, desde a mais remota antiguidade. Já nesses tempos remotos, pessoas dotadas de certa sensibilidade para o sagrado refletiam sobre o universo, sobre os segredos da natureza e sobre as normas que deveriam governar suas sociedades. Os primeiros intelectuais, no sentido mais elementar do termo, constituíam uma fração diminuta dessas comunidades, pessoas capazes de assessorar líderes religiosos, políticos ou militares na elaboração de um discurso capaz de substituir, ou de complementar a força bruta na manutenção da ordem pública; eles necessariamente tinham de possuir alguma capacidade de ler e de redigir textos religiosos e políticos, ou escritos de cunho pedagógico, servindo ademais para registrar a memória de sociedades minimamente estáveis e funcionais.
(...)
[1] Cf. Bolivar Lamounier, Tribunos, profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 23-24. Os “tipos ideais” de intelectuais que Lamounier distingue são três: “O tribuno é motivado por um desejo de realizar a justiça de forma incidental, ou seja, em casos concretos. (...) O profeta é um iluminado, um visionário. Apresenta-se como portador de uma mensagem de salvação. (…) Por último, o sacerdote. Na comunidade religiosa ele é o intérprete autorizado dos livros sagrados.”; p. 25.
Em 2002, ainda antes que seu candidato, Ciro Gomes, perdesse para Lula, o professor Mangabeira Unger escreveu um artigo dizendo que o Brasil não tinha política externa. Ele tinha, pelo menos até 2002. Depois foram outros quinhentos, pois veio a política externa lulopetista e as deformações diplomáticas do partidarismo militante, contra as quais Mangabeira escreveu em opositor declarado, até um famoso artigo ao estilo Zola (J'Accuse), declarando ser Lula o mais corrupto presidente da República, antes de se filiar ao populista e se tornar seu ministro de Estado de Assuntos Estratégicos.
Eu li o artigo de Mangabeira na época e fiz comentários neste blog, reproduzidos em 2017, quando começava outra campanha presidencial. Reproduzo ambos abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 13/11/2023
domingo, 20 de agosto de 2017
Um duelo (diplomático) à distância com Mangabeira Unger (2002) - Paulo Roberto de Almeida
Mais um desses "inéditos redescobertos".
Em fevereiro de 2002, em fase de pré-campanha presidencial, o professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger, conselheiro político, e supostamente diplomático, do então (e eterno) candidato Ciro Gomes, publicava um artigo vitriólico contra a política externa e a diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo imediatamente. Eu comentei também imediatamente, e mandei o texto para o próprio, em seu endereço de Harvard. Nunca recebi resposta, sequer uma nota acusando recepção. Tampouco publiquei ou divulguei este texto que segue após o artigo original. Transcrevo agora pois talvez alguns dos debates de 2002 ainda tenham algum significado nos dias que correm. Provavelmente, pois durante os 13 anos da gestão companheira não avançamos em praticamente nada, nem em diplomacia, nem em qualquer outro terreno, a não ser na corrupção. Acho que o Brasil está rigorosamente atrasado mais de duas décadas, em suas políticas públicas e até em sua diplomacia. Mas este é outro debate. Paulo Roberto de Almeida Brasília, 20 de agosto de 2017
O Brasil não tem política exterior. Em vez dela, tem uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais. Mas o Brasil precisa ter política exterior. Estão se reunindo as condições para criá-la.
Os defensores da redução da política exterior a negociações comerciais afundaram num pragmatismo antipragmático. Prometeram resultados e entregaram frustrações. A única iniciativa forte da diplomacia brasileira, o Mercosul, agoniza e só ressurgirá se for reconstruída radicalmente.
A razão básica pela qual não temos política externa é que não temos projeto interno, a não ser um projeto que resultou no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia. Mas o descalabro tem outras causas também.
Satisfeitas em ter um presidente apresentável em salões e seminários, as elites brasileiras esqueceram que política exterior é um ramo da política, não da indústria de entretenimento. Encobertos pelo nevoeiro retórico da "diplomacia presidencial" e sem balizamento numa discussão nacional da nossa posição no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política externa. Não souberam, porém, o que fazer, a não ser regatear, sem rumo nem força, um pouco mais de vantagem comercial aqui e acolá. Ficaram paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos.
A perversão das práticas convergiu com o desvio das idéias. Rio Branco fundou a tradição da nossa política exterior sobre certos princípios elementares: que a política predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias; que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade. Esses compromissos foram sacrificados a um realismo que se revelou falso e contraproducente.
Quatro tarefas (a discutir) devem nortear uma nova política exterior que encarne hoje esses princípios. A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano. E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento. É obra que exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos. Nenhum país está mais bem posicionado do que o Brasil para liderar iniciativas nesse sentido. A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas. E ampliar nossa margem de manobra por meio da multiplicação dos vínculos em vez de nos refugiarmos no isolamento. A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul. A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.
Em provocador artigo sob o título “Por que o Brasil não tem política exterior?” (Folha de São Paulo, 12.02.02; site: http://www.idj.org.br/art0001.asp?SelectID=45), o coordenador do Instituto Desenvolvimento com Justiça, Roberto Mangabeira Unger, tece considerações sobre uma suposta diplomacia brasileira corrente em relação à qual eu, como diplomata com mais de 23 anos de carreira, tenho dificuldades em conectá-la à realidade de nossas relações exteriores ou de nossa prática diplomática. Certamente mais inspirado em seu papel de conselheiro intelectual do candidato presidencial Ciro Gomes, do que em sua função de intelectual público e respeitado acadêmico de Harvard, Mangabeira traça um retrato de uma (falta de) política exterior do Brasil da qual parece complicado reconhecer a existência, ainda mais em concordar com a maior parte de suas afirmações levianas.
Ainda que descontando-se o fato de que ele possa estar atuando motivado mais pelo impulso eleitoral do que pela necessidade legítima de estimular um debate que tem estado ausente das campanhas presidenciais no Brasil, deve-se reconhecer que os argumentos adiantados por Mangabeira não condizem com sua reconhecida capacidade analítica e com a presumida honestidade intelectual de que goza o conselheiro do candidato do PPS.
Mangabeira começa peremptoriamente por afirmar que o Brasil “não tem política exterior”, mas tão simplesmente “uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais”. Quaisquer observadores isentos de nossa tradição diplomática, entre eles vários outros serviços diplomáticos de países vizinhos ou mesmo de países desenvolvidos, sabem que se trata aqui de uma simplificação grosseira da realidade. Também soam como exagerados seus argumentos segundo os quais nosso “pragmatismo antipragmático” apenas entregou “frustrações” e que o Mercosul, descrito como “agonizante”, apenas poderá ressurgir “se for reconstruíd[o] radicalmente”. Nenhuma linha segue, porém, sobre as condições em que tal reconstrução poderia ser operada, nesta ou em outras frentes de trabalho diplomático. Na verdade, o artigo de Mangabeira apresenta poucas propostas concretas ou suscetíveis de implementação prática. Senão vejamos.
Concordo com Mangabeira quando ele vincula a política externa à existência de um “projeto interno”, mas torna-se singularmente difícil ver nos últimos anos de estabilização macroeconômica um processo que teria resultado, unicamente, “no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia”. O que é descrito como “descalabro” não corresponde à realidade de uma diplomacia que tem colocado o Brasil como interlocutor incontornável de processos negociadores nos mais diversos foros formais e informais das relações internacionais contemporâneas. Algo desse sucesso pode ser certamente creditado ao que vem jocosamente caracterizado por Mangabeira como sendo o “nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’”, mas o bom desempenho também pode ser creditado ao trabalho sistemático e paciente de nossas representações no exterior e de nossa Secretaria de Estado na defesa constante dos interesses do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Acusar esses diplomatas de terem ficado “paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos” é no mínimo criar uma figura de estilo para justificar uma crítica que não guarda a menor relação com a realidade, e que apenas ofende quem está na linha de frente de negociações por certo duras e sensíveis, mas que em nenhum momento foram caracterizadas por temor ou vacilação.
Não se consegue perceber onde estaria ocorrendo uma imaginária “perversão das práticas” como resultado de um suposto “desvio das idéias” do mítico chanceler Rio Branco (a ele são creditados os “fundamentos” da nossa política exterior). Que a política predomine sobre a economia, não deixa de ser verdade hoje como nos tempos do Barão; que “a defesa da nossa soberania” tenha como objetivo principal “criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria” é tão válido hoje como há exatos cem anos atrás, quando Rio Branco assumia por dez longos anos o comando de nossa diplomacia; que essa defesa passe pelo estabelecimento de um espaço sul-americano não representa nada mais do que o que vem sendo pacientemente articulado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 90, pelo menos; que essa visão possa ser materializada pela “construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias”, como quer Mangabeira, corresponde exatamente aos discursos brasileiros nas assembéias gerais da ONU desde muito tempo, como poderia ser facilmente verificado por Mangabeira. Enfim, as críticas de Mangabeira, aos conhecedores, soam como um déjà vu, all over again.
Ele elenca, em seguida, quatro tarefas que deveriam “nortear uma nova política exterior”. Suas propostas são simples e diretas e merecem citação explícita, seguidas de comentários.
1) “A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano.”
De acordo, mas a proposta não contradiz o que já vem sendo dito e feito pelo Brasil.\
Corolário: “E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento.”
Não poderia ser de outra forma. O irracional seria tentar perseguir a todo custo uma ilusória uniformização de posições em matéria de políticas econômicas e de modelos de desenvolvimento, o que apenas violentaria as condições próprias e o contexto exclusivo em que se dão nosso próprio processo de desenvolvimento e nossa inserção internacional. Não se compreenderia aliás uma política externa que tentasse encaixar o Brasil em moldes pré-fabricados.
Corolário: Essa tarefa, segundo Mangabeira, “exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos”.
Não se percebe bem o ineditismo de tais propostas, uma vez que a diplomacia do Brasil vem atuando precisamente nessa linha, de diversificar parcerias externas e lograr uma intensificação do relacionamento com grandes países emergentes, como podem ser a China, a Índia e a Rússia. A relação com a UE é tradicional e muito intensa, atuando como contrapeso aos Estados Unidos pelo menos desde o Império e começo da República. Seria, por outro lado, muito útil que fossem identificados esses “aliados potenciais” dentro dos Estados Unidos que não estão muito claros quem sejam exatamente. Se forem os anti-globalizadores do movimento sindical e ecológico ou, ainda, protecionistas enrustidos ou declarados à la Ralph Nader, o Brasil teria muito pouco a ganhar com eles, já que eles atuam, justamente, para dificultar o acesso de nossos produtos (sobretudo agrícolas) ao mercado dos EUA.
2) “A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas.”
De acordo novamente, mas é preciso obter um mapeamento preciso, a ser fornecido por Mangabeira, dessas contradições existentes na economia global, a partir das quais seria possível traçar o quadro de alianças preferenciais que a diplomacia brasileira buscaria. Do que pode ser observado atualmente, trata-se exatamente do que vem sendo feito pela atual diplomacia, que está longe de refugiar-se no “isolamento”, como quer nosso articulista.
3) “A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul.”
Perfeito: mais uma vez aguarda-se o detalhamento desses empreendimentos e instituições comuns “que faltaram ao Mercosul”, pois fica parecendo que a crise deste último deve-se à falta dessas instituições, não à existência de condições econômicas objetivas em cada um dos países membros.
4) “A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.”
Esta parte entra num terreno que pertence mais à obrigação moral do que ao cálculo racional. Se temos alguma obrigação sagrada para com a “África sofredora”, que justifique sacarmos nosso talão de cheques para atender necessidades daqueles povos, seria o caso de discutir com o Congresso como empregar esse dinheiro, pois vários parlamentares podem argumentar que temos sofredores de sobra, aqui mesmo no Brasil, com os quais temos deveres igualmente, ou mais, sagrados.
Em síntese, o Brasil dispõe de uma diplomacia que pode e deve sofrer diversos aperfeiçoamentos de forma e de conteúdo. Tal tarefa será empreendida com a colaboração de todos aqueles interessados num debate sério sobre a questão. A condição primeira para que tal debate seja feito seria evitar as simplificações e as meias-verdades, evitando caracterizar os dados da realidade pelo seu travestimento indevido numa série de conceitos que relevam mais da acusação gratuíta do que da análise serena.
No Brasil, e no Ocidente, 99,9% das pessoas nada sabem sobre o Hezbollah; dos restantes, algumas pessoas sabem algumas coisas, mas não o suficiente
Eu estava escrevendo um post, há muito devido, sobre a Palestina, tentando traçar um balanço parcial da situação…
E de repente a notícia mais quente da cidade (pelo menos no Brasil) passa a ser aquela sobre a detenção de dois homens brasileiros – supostamente de nacionalidade libanesa também – sob a suspeita de planejarem ataques terroristas no Brasil, contra edifícios e alvos judeus, e de pertencerem a uma organização terrorista.
Tudo isto, foi-nos dito e relatado, apontando para uma ligação com o Hezbollah libanês! Uma parte muito importante da história teve a ver com o fato de o Mossad israelense ser a parte responsável pela descoberta da conspiração.
Deixe-me dizer desde o início: nada do que sei sobre o Médio Oriente, o Líbano, o Hezbollah, e sobre o Brasil, São Paulo, a região fronteiriça entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina, e nada do que sei sobre o cenário árabe e islâmico no Brasil, absolutamente nada, me permite conceber, por um momento, que haveria algum crédito à ideia do Hezbollah planejando um ataque no Brasil!
Agora, devo dizer também: estudei direito e dou aulas de direito; por algum tempo, num passado distante, trabalhei com direito penal; tudo isto ensinou-me que não se pode comentar um processo judicial em curso, uma investigação criminal em curso, se não se tiver acesso à informação. E é certo que não tenho qualquer acesso aos fatos sob investigação.
No Brasil, porém, nos habituamos a que o material das investigações seja entregue aos jornalistas e comentado pelos meios de comunicação. A estas fontes secundárias, tem-se acesso, mas é impossível confiar no seu conteúdo. É preciso lidar com as informações duvidando de tudo, o tempo todo.
A terceira coisa que devo dizer é a seguinte: no Brasil, e, acrescentaria, no Ocidente, 99,9% das pessoas nada sabem sobre o Hezbollah; dos restantes, algumas pessoas sabem algumas coisas, mas não o suficiente. Apesar disso, fomos treinados, durante 30 ou 40 anos, para imaginar as piores cenas de violência ilegítima assim que o nome é mencionado. Para a maioria de nós, existe uma ligação automática entre o nome e a noção de terrorismo. Disseram-nos isso e naturalizamos isso.
Não é apenas ignorância. É a ignorância aliada a um poderoso preconceito negativo. Nestas circunstâncias, uma vez divulgadas tais notícias, espalham-se com grande facilidade e serão tidas por verdadeiras, na sua pior versão, mesmo que mais tarde se prove que não têm substância.
Os efeitos esperados são produzidos instantaneamente e não podem ser desfeitos por uma futura eventual demonstração de que não havia realidade nas notícias ou acusações.
Provavelmente não sabemos mais sobre o Mossad do que sabemos sobre o Hezbollah, mas também fomos alimentados com uma imagem dele: a imagem de um organismo de inteligência muito capaz, talvez o melhor do mundo, e implacável, que procura e obtém vingança contra seus inimigos em qualquer lugar do mundo.
Quando ouvi que o Mossad era a fonte das investigações – e os israelenses foram rápidos e insistentes em divulgar essa informação – pensei que se deveria pelo menos considerar a possibilidade de termos uma conspiração diferente diante dos nossos olhos. Afinal de contas, uma organização que não se deterá perante nada, assumindo inclusive o crédito por assassinatos em todo o mundo, não se sentiria impedida de criar uma falsa conspiração terrorista por considerações morais. Não hesitaria se visse algum ganho político daí advindo.
Apenas uma hipótese
As partes da investigação que os meios de comunicação optam por tornar públicas – parece que alguns meios de comunicação tiveram acesso pelo menos ao depoimento completo de um dos detidos, mas não sabemos o que não é publicado – dizem-nos algumas coisas: o suspeito teria feito trocas por WhatsApp com número do Paraguai; ele teria recebido algum dinheiro, cerca de US$ 500,00, de algum contato em São Paulo, em bairro conhecido pela grande quantidade de comerciantes árabes que ali operam seus negócios; ele teria então sido levado ao Líbano e sido alojado em hotéis; ele teria tido uma longa reunião com um chefe da organização e lhe teriam dito que seria necessário ter força para matar e sequestrar; ele, nesse momento, teria dito que não tinha essa disposição; só quando já estava de volta ao Brasil o suspeito teria percebido que havia sido alvo de uma tentativa de recrutamento do Hezbollah!! Se esta última afirmação for verdadeira, ele pode ter apenas imaginado que tinha estado em contato com membros do Hezbollah…
Então, considerando apenas o que está ao alcance de todos nós, como informação pública, da qual, no entanto, deve-se sempre duvidar, e considerando o que o suspeito supostamente revelou à Polícia Federal, eu diria que: é perfeitamente possível que o os suspeitos possam ter perpetrado crimes e que estivessem planejando estar outros crimes; pode haver provas de trocas e comunicações entre eles e com outros suspeitos que seriam incriminatórias; alguém pode ter dito, ouvido ou imaginado que estava lidando com membros do Hezbollah. Nenhuma destas coisas seria suficiente para dar credibilidade às teses de um envolvimento real do Hezbollah, isoladamente ou em combinação.
O que foi revelado a partir do depoimento do suspeito à polícia diz-nos que a pessoa não sabe o suficiente sobre o Líbano ou sobre o Hezbollah. Também dá a impressão de que os suspeitos não eram e não são agentes capazes e experientes que seriam escolhidos para operações de inteligência ou sabotagem.
Mais uma vez, tudo o que sei sobre o Hezbollah diz-me que o grupo – o partido político e o movimento de resistência – que representa uma parte tão importante da paisagem social e política libanesa, não está empenhado em organizar ataques contra civis em qualquer parte do mundo. E me diz também que o que fazem, fazem profissionalmente.
Portanto, não estou convencido de que o que quer que seja aquilo em que os suspeitos estivessem envolvidos tenha algo a ver com o Hezbollah.
Sei, porém, que isso e tudo mais cabe à Política Federal e ao Judiciário brasileiro esclarecer e julgar. E a missão dessas instituições é muito vital, por mais de um motivo.
A primeira razão, óbvia e vital, é garantir a segurança e a paz na sociedade brasileira. Qualquer suspeita de atos violentos em preparação deve ser minuciosamente investigada e, se for real, ser prevenida e punida.
A outra importância igualmente vital da missão é esta: temo que tais acusações, dirigidas, de modo imediato, contra o Hezbollah, possam ter o propósito ou a consequência não intencional de ferir uma parte da população brasileira, nomeadamente os brasileiros muçulmanos e especificamente os muçulmanos xiitas e ascendência libanesa.
Enquanto aceitarmos acriticamente a demonização do Hezbollah e virmos com suspeita qualquer pessoa que se diga ter “contatos” com o Hezbollah, corremos o risco de criminalizar todo e qualquer libanês e todo e qualquer muçulmano xiita.
*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]
O problema de Gaza foi resolvido: resta um outro, bem mais dramático
Paulo Roberto de Almeida
Os brasileiros-palestinos saíram, finalmente. Mas os mesmos problemas continuam: uma diplomacia que se esforça para dar conta dos recados, múltiplos, complexos, em contraposição a uma política externa errática, hesitante, improvisada, feita mais de arroubos e de retórica mal pensada do que de reflexões ponderadas, mas que pende para um dos lados na disputa geopolítica global, em total descompasso com os interesses nacionais e sem que nenhum deles esteja contemplado no jogo que não é nosso, mas no qual se insiste em meter o bedelho.
O único que é verdadeiramente nosso, a ameaça de uma invasão armada ilegal da Venezuela contra a Guiana, permanece carente de qualquer manifestação ou tomada de posição, em que pese o registro da História — arbitragem Brasil-Reino Unido pelo território do Essequibo — e os reclamos do Direito Internacional.
O convite partiu do embaixador da Espanha. Perguntou-me se eu aceitaria ser incluído no grupo. Concordei sem hesitar. A ideia era celebrar em Kuala Lumpur o "Dia do Idioma Espanhol". O cenário seria o pequeno palco da livraria Eslite Spectrum, inaugurada há pouco tempo e pertencente a uma cadeia de Taiwan. Cada participante leria um texto em espanhol, de sua escolha, por não mais do que cinco minutos.
Fiquei pensando sobre o que selecionar. Lembrei de um soneto de Jorge Luis Borges que é, de certo modo, um tributo à língua portuguesa, cuja data se celebraria dois dias depois da leitura na Eslite.
O embaixador da Argentina leu o prefácio de Ernesto Sabato (1911-2011) para seu livro de recordações, seu “testamento”, Antes del fin, publicado em 1998. A frase este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera, foi dita no tom certo, sem entonação melodramática.
O embaixador do México optou por “Hombres necios que acusáis”, de Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), cuja primeira estrofe é:
Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón, sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis
Chile escolheu o poema de Nicanor Parra (1914-2018) em homenagem à sua irmã, “Defensa de Violeta Parra”; Colômbia, parágrafos de uma das novelas de Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero, de Álvaro Mutis (1923-2013). Cuba leu o conto “Francisca y la muerte”, de Onelio Jorge Cardoso (1914-1986); Peru, o poema “Hallazgo de la vida”, de César Vallejo (1892-1938).
A embaixadora do Uruguai selecionou parágrafos de La insumisa, autobiografia romanceada, publicada em 2020, de Cristina Peri Rossi (1941- ), único autor vivo escolhido. Teria sido uma felicidade poder escutar a obra por mais do que cinco minutos.
Nascida em Montevidéu, Cristina Peri Rossi exilou-se em 1972 na Espanha. Autora prolífica, é também tradutora, inclusive de literatura brasileira: Clarice Lispector, Osman Lins, Ignácio de Loyola Brandão, Graciliano Ramos e Fernando Gabeira. Ganhou o Prêmio Miguel de Cervantes em 2021. Havia, aliás, concentração de ganhadores do prêmio entre os autores selecionados: Borges o recebeu em 1979, Sabato em 1984, Álvaro Mutis em 2001, Nicanor Parra em 2011.
O trecho lido pela embaixadora uruguaia incluía a seguinte frase: Al exiliarnos juntas, fue, en realidad, como si no nos hubiéramos exiliado, como si transportáramos con nosotras todo aquello que amábamos hasta entonces. Na lista das coisas amadas em comum estavam las canciones de María Bethânia. Sobre a ruptura dessa relação amorosa, um ano depois, a autora diz: comprendí que el exilio no era solo cambiar de espacio, el exilio era separarse de la persona amada.
Assim vivi eu entre 2020 e 2022, por causa da pandemia e o fechamento das fronteiras no Sudeste asiático, sem nunca poder ver a mulher amada, eu morando na Malásia, ela em Singapura. No dia seguinte, telefonei para minha colega uruguaia e pedi emprestado seu exemplar do livro.
La insumisa já começa de maneira surpreendente, com a frase: La primera vez que me declaré a mi madre, tenía tres años. É a história de uma infância e uma adolescência anticonformistas. Com ironia, Cristina Peri Rossi descreve um mundo soturno. Um hospital é palco de um estupro. O pai mantém com ela uma relação conflitiva; ele é agressivo, e sua vida, nos diz a autora, foi una larga, única y sostenida depresión. Um capítulo quase nos ilude, parecendo ser a poética descrição de uma estação de trem provinciana, no campo, chefiada por um tio-avô. A narradora tem agora quatro anos e atravessa um período feliz, correndo livre entre animais domésticos e avestruzes: El pueblo se llamaba Casupá, en honor a un cacique indio especialmente resistente a la Conquista.
Pesquiso e vejo que o povoado fica em terras que pertenceram ao avô do General Artigas. Chego a lamentar, a essa altura do livro, que, tendo vivido três anos em Montevidéu na infância, nunca tenha ido a Casupá, não tenha conhecido aquele cenário idílico.
Mas o tom logo muda. As vias ferroviárias são fechadas, os vagões abandonados no campo, alejados de cualquier camino y sin destino. Na ditadura militar uruguaia, serviram de campos de concentração, pois las cárceles y los cuarteles no fueron suficientes para encerrar a todos los presos políticos. Lemos detalhes do que significava viver trancado, amontoado, sem luz, sem banheiro, no ar rarefeito dos vagões. A narrativa, encantadora e bucólica poucos parágrafos atrás, torna-se agora terrível. Afinal, como observa a autora, los seres humanos tenemos una capacidad extraordinaria para hacer sufrir a los demás.
O príncipe Segismundo, esse Hamlet espanhol, teria também algo a nos contar sobre o sofrimento de viver, e na verdade contou-nos, aos ouvintes na livraria em Kuala Lumpur. Personagem principal da peça mais conhecida de Calderón de la Barca (1600-1681), La vida es sueño, ele foi interpretado pelo Embaixador da Espanha. Versos de suas duas falas mais famosas, habilmente mesclados, foram declamados, no pódio, com verdadeiro talento teatral.
Herdeiro do trono da Polônia, Segismundo cresce, por ordem do rei Basilio, seu pai, preso em uma torre nas montanhas. O rei é também astrólogo; os astros lhe comunicaram, ao nascer seu filho, que este — víbora humana del siglo — causaria grandes dores ao país e a ele próprio, o pai. O nascimento, de fato, dá-se sob algum signo infeliz: a rainha morre no parto, e isto coincide com um eclipse apocalíptico, descrito por Basilio em versos que me fazem pensar mais em outro fenômeno natural, as erupções vulcânicas que testemunhei em Quito:
Los cielos se oscurecieron, temblaron los edificios, llovieron piedras las nubes, corrieron sangre los ríos.
Com a consciência inquieta diante da longa prisão a que submeteu o filho, o rei decide um dia testar se os astros estavam certos. Manda trazerem Segismundo ao palácio real. Ao descobrir-se príncipe, e que apesar disso fora criado de maneira solitária, como um animal capturado, Segismundo torna-se violento, o que parece confirmar a profecia. É enviado de volta à torre. Convencem-no de que a ida ao palácio, o encontro com o rei, a revelação de sua verdadeira condição foram apenas cenas de um sonho.
Uma revolta de soldados, que querem aclamá-lo, liberta-o, no entanto, do enclausuramento. No final, pai e filho se reconciliam, Basilio abandona o trono, Segismundo se torna rei, deduzimos que governará com moderação, e seu casamento com a prima Estrella é anunciado.
La vida es sueño causou-me impacto quando a li pela primeira vez, aos 21 anos. Meu objetivo era familiarizar-me com o texto antes de assistir, em Londres, a uma produção da Royal Shakespeare Company, no The Pit, sala menor do Barbican Centre, teatro onde a companhia naquela época se apresentava na capital, em alternância com Stratford-upon-Avon. No meu programa da peça, anotei ter gostado das atuações e da produção, mas considerei o texto em inglês mais uma adaptação do que uma tradução. Nunca esqueci essa montagem.
Este ano, em abril, outra companhia de teatro, a fenomenal Cheek by Jowl, fez quatro apresentações da peça, em espanhol, e com atores espanhóis, na sala grande do Barbican. Essa produção, muito comentada, fora primeiro mostrada na Espanha, em turnê, nos últimos meses de 2022, e terminou no Festival de Edimburgo, em agosto. Uma das resenhas menciona que, na torre, o único consolo de Segismundo é ouvir Carmen Miranda cantando “Cuanto le gusta”, em uma gravação com as Andrews Sisters.
Se eu não tivesse, no começo de junho, rompido dois ligamentos no tornozelo direito, teria sonhado em tirar férias e viajar a Edimburgo em agosto. Fundada por Declan Donnellan e Nick Ormerod, Cheek by Jowl é uma companhia que apresenta peças em diversos idiomas, em diferentes países. Há muitos anos, assistimos à sua produção de Macbeth, em inglês, em Namur, e a Andromaque, em francês, em Bruxelas. A montagem da peça de Racine era particularmente notável.
Mas voltemos a Kuala Lumpur, onde o embaixador da Espanha declama versos do primeiro solilóquio de Segismundo na torre, no início de La vida es sueño:
Apurar, cielos, pretendo, ya que me tratáis así qué delito cometí contra vosotros, naciendo; aunque si nací, ya entiendo qué delito he cometido; bastante causa ha tenido vuestra justicia y rigor, pues el delito mayor del hombre es haber nacido.
Para emendar, em seguida, com as igualmente célebres linhas do regresso à prisão. Convencido por Clotaldo, seu tutor e cortesão do rei, de que as experiências que viveu no palácio foram apenas uma miragem, Segismundo conclui:
Es verdad, pues: reprimamos esta fiera condición, esta furia, esta ambición, por si alguna vez soñamos. Y sí haremos, pues estamos en mundo tan singular, que el vivir sólo es soñar; y la experiencia me enseña, que el hombre que vive, sueña lo que es, hasta despertar. Yo sueño que estoy aquí, de estas prisiones cargado; y soñé que en otro estado más lisonjero me vi. ¿Qué es la vida? Un frenesí. ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción, y el mayor bien es pequeño; que toda la vida es sueño, Y los sueños sueños son.
Borges menciona Calderón com alguma frequência em suas obras, e até Segismundo uma ou outra vez. É, porém, em uma entrevista concedida a Fernando Sorrentino e publicada por este em 1974 no livro Siete conversaciones con Jorge Luis Borges que encontro a opinião mais contundente, e surpreendentemente negativa: En cuanto a la versificación de Calderón, la encuentro excesivamente pobre y será, quizá, porque no lo he leído bien. Quem sou eu para condenar Borges? E no entanto, eu o faço.
La vida es sueño é uma peça filosoficamente complexa, e a qualidade poética do texto não é menos sofisticada. Relendo-a no amarelado exemplar comprado em Londres há tantos anos, duas ideias me capturam. Primeiro, a beleza estética que encontro na linguagem:
que hoy he de dar la batalla, antes que las negras sombras sepulten los rayos de oro entre verdinegras ondas.
Parece-me extraordinário que a língua espanhola possa acomodar um vocábulo específico, verdinegro, para definir uma cor indefinida, aquela tonalidade verde, quase negra que, de fato, o mar adquire, em um entardecer ensolarado, logo antes de ficar completamente escuro.
A segunda ideia é o dilema metafísico vivido por Segismundo. É curioso que Borges, cuja obra ilumina nossa leitura atual de Calderón, minimize o dramaturgo espanhol.
Mesmo Manuel Bandeira, em geral tão clarividente, oferece em Noções de História das Literaturas (1942) uma interpretação meramente moralista, ou talvez cristã, de La vida es sueño. Considera uma fala de Clotaldo a Segismundo — aun en sueños no se pierde el hacer bien — a síntese da peça, e comenta: “realidade ou sonho que seja a vida, o que importa é voltarmo-nos para o que é eterno”. Essa visão se aproxima daquela de Borges sobre a peça. Na entrevista de 1974, o escritor argentino afirma que, para Calderón, a frase la vida es sueño possui um sentido teológico, e não metafísico. Estima que, para o dramaturgo espanhol, a vida é apenas una breve parte de la realidad, pois lo verdadero son el cielo y el infierno. La idea de Calderón es una idea cristiana. Creo que Calderón le daba el énfasis a la idea de lo transitorio de la vida, comparado con lo transitorio de un sueño.
Na verdade, a peça do "Siglo de Oro", montada pela primeira vez por volta de 1635, coloca em questão, de uma maneira muito borgiana, a própria realidade da realidade. Segismundo é um prisioneiro que sonha em ser príncipe? É um príncipe resgatado do pesadelo de uma prisão? A vida é real? Ou é um sonho? “Uma sombra”? “Uma ficção”?
O que significa estar vivo, existir? Os versos pues el delito mayor / del hombre es haber nacido são citados com reverência por Arthur Schopenhauer, que por sua vez foi uma forte influência intelectual sobre Borges. Este aliás opina, na entrevista supracitada, que Calderón es una invención de los alemanes. A resolução edificante do enredo — Segismundo vira um bom rei, pai e filho se reconciliam — era apropriada para a Espanha do século XVII, e em nada diminui a profundidade das questões metafísicas suscitadas.
Se Jorge Luis Borges tinha reticências em relação a Pedro Calderón de la Barca, eu nenhuma tenho quanto a seu soneto “A Luis de Camoens”, da coleção El hacedor (1960). É esse o poema que decidi ler, em 3 de maio, ao público presente na livraria em Kuala Lumpur.
Expliquei à plateia que o "Dia da Língua Portuguesa" seria logo em seguida, em 5 de maio. Mencionei ser Camões o poeta nacional de Portugal, e um dos pilares das literaturas de língua portuguesa. Comentei que a colonização do Brasil começara simultaneamente à derrocada pelos portugueses do Sultanato de Malaca (1511), quando Portugal se instalara naquela área da Península Malaia, primeira potência europeia a fazê-lo. Como consequência, o malaio contém vários vocábulos derivados do português. O próprio Luís de Camões vivera em Malaca. Apontei os versos em que Borges lembra ter o poeta voltado à patria nostálgica para morir en ella y con ella, já que em 1580, mesmo ano de sua morte, Portugal e suas colônias passaram sob o domínio espanhol.
É este o soneto:
Sin lástima y sin ira el tiempo mella las heroicas espadas. Pobre y triste a tu patria nostálgica volviste, oh capitán, para morir en ella y con ella. En el mágico desierto la flor de Portugal se había perdido y el áspero español, antes vencido, amenazaba su costado abierto. Quiero saber si aquende la ribera última comprendiste humildemente que todo lo perdido, el Occidente y el Oriente, el acero y la bandera, perduraría (ajeno a toda humana mutación) en tu Eneida lusitana.
Os últimos versos são uma celebração do ofício poético e, por extensão, da literatura como um todo, e da arte. Os grandes autores e artistas fazem perdurar, em nossas mentes, a experiência humana ao longo da história, e dão sentido ao que, sem eles, talvez não tenha sentido algum. Essa é uma constatação sempre presente para mim. Em 1580, Portugal perdeu el Occidente y el Oriente, a glória da espada e da bandeira. Mas tudo isso é resgatado, e magicamente sobrevive, em Os Lusíadas.
O evento na livraria chegava ao fim. Faltava contudo algo. Seria inconcebível que Dom Quixote, no "Dia do Idioma Espanhol", não fosse lembrado. Uma aluna universitária malásia levantou-se, subiu ao pódio e leu parágrafos da obra de Cervantes, primeiro em castelhano, depois em malaio. Como convinha, um dos grandes mitos da literatura universal, o leitor de romances medievais que resolveu atacar moinhos de vento, surgira para encerrar a sessão.
Este texto foi primeiro publicado, em 5 de agosto de 2023, no jornal de literatura Rascunho
A foto da atriz Goizalde Núñez no papel de Clarín, na produção do Cheek by Jowl de La vida es sueño, é de Javier Naval