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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

Site pessoal: www.pralmeida.net.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

A longa e dura luta da Ucrânia pela liberdade e pela vida - Timothy Garton Ash (El País)

 UCRÂNIA: LONGA LUTA 

A Ucrânia tem uma longa luta pela frente

Em Kiev e Lviv, os ucranianos são tristemente realistas e nós também devemos ser.

Timothy Garton Ash* - El País - 28/05/2025 

Da próxima vez que um apresentador agitado mencionar a possibilidade de um “acordo” para acabar com a guerra em que a Ucrânia “ceda território em troca de paz”, vou dizer-lhe que se sente e conversar com Adeline. Na semana passada, em Lviv, Adeline mostrou-me no mapa do telemóvel a casa que perdeu em Nova Kajovka, uma área ocupada pela Rússia na outra margem do Dniéper, bem do outro lado do território libertado pela Ucrânia em torno de Jérson. “Olha, aqui, nesta imagem de satélite, dá para ver o desastre ecológico depois que a Rússia destruiu a barragem de Kajovka em 2023. E aqui é onde eu sonhava em montar uma pequena galeria de arte. Por que eu tenho que desistir da minha casa? “, disse em lágrimas. Porquê, de fato?

O território ocupado pela Rússia é do tamanho de Portugal e Eslovênia juntos. É difícil saber números exactos, mas lá vivem cerca de cinco milhões de pessoas, enquanto outros dois milhões, pelo menos, tiveram de ir embora e estão refugiados noutros lugares. Dentro dos territórios ocupados, os ucranianos sofrem uma repressão brutal e uma russificação sistemática. Lá fora, refugiados como Adeline não têm nada além de suas memórias, fotos antigas e chaves da casa que lhes foram tiradas. Não devemos branquear este monstruoso crime de ocupação com palavras tranquilizadoras como “paz por territórios”.

Na Ucrânia, ninguém acredita que nenhum "acordo" seja o fim definitivo da guerra, mesmo que as negociações levem a um frágil cessar-fogo. O que a Rússia ocupou brutalmente não foi apenas “território”, mas também o lar, a história familiar, a vida e os meios de subsistência de milhões de homens, mulheres e crianças. A Ucrânia não cederia território, assim como eu não entrego o meu carro se um ladrão mo roubar e eu não o conseguir recuperar. E acima de tudo isso não será verdadeiramente paz. Uma paz justa, que permita que Adeline volte para casa após a libertação de todo o território ucraniano, que a Rússia pague indemnizações e Vladimir Putin compareça em julgamento em Haia, é inatingível a curto prazo. Para alcançar algo que mereça seriamente o rótulo de "paz", é imprescindível que haja segurança militar duradoura, recuperação económica, estabilidade política e integração na Europa de cerca de quatro quintos do território soberano ucraniano que ainda controla Kiev. Isso significa anos.

Não há ninguém que deseje tanto a paz como os ucranianos. É evidente que o presidente Volodímir Zelenski deve tentar dar-se bem com o presidente Donald Trump para que o bandido americano não venda totalmente a Ucrânia a Putin. Em uma sondagem recente do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, apenas 29% dos ucranianos afirmaram que poderiam aceitar o plano de paz de Trump, enquanto 51% poderiam aceitar o plano alternativo proposto pelos líderes europeus. O que todos os ucranianos sabem é que, enquanto o mundo fala de paz, a Rússia continuou a bombardeá-los com lançamentos maciços de drones e mísseis. E, por seu lado, o emissário que Putin enviou às conversações russo-ucranianas em Istambul, Vladimir Medinsky, referiu-se à Grande Guerra do Norte de 1700-1721 para provocar a delegação ucraniana: “Estivemos lutando contra a Suécia durante 21 anos. Quanto tempo vocês estão dispostos a lutar? ”.

Portanto, a verdadeira questão é se a Ucrânia vai poder continuar a defender-se e a fortalecer-se a longo prazo, com mais ajuda da Europa para compensar a ajuda que os EUA estão a deixar de prestar. As conversas mais optimistas que tive em Kiev foram com pessoas relacionadas à indústria da defesa. A Ucrânia é hoje o primeiro país do mundo em inovação, desenvolvimento e fabrico de drones, com mais de dois milhões produzidos no ano passado. E poderia progredir ainda mais se outros países aliados seguissem o exemplo da Dinamarca e adjudicassem contratos directamente aos fabricantes de armas ucranianos. O problema mais grave que o país tem é a falta de novos recrutas. Um comandante da linha de frente disse-me que agora tem armas e munições suficientes, mas que o seu batalhão só dispõe de 30% dos soldados que poderia ter. No leste, disse ele, há trincheiras vazias, defendidas apenas por drones.

Parece que a Rússia está planejando novas ofensivas terrestres, mas especialistas militares ocidentais acreditam que a Ucrânia pode continuar a defender a maior parte do território que controla atualmente. Pouco a pouco, ele pode aperfeiçoar métodos para rejeitar os russos no mar (onde já obteve sucesso), em terra (com um "muro virtual" dotado de drones e ataques de longo alcance, atrás das linhas russas) e, o mais difícil de tudo, no ar. Com a chegada do novo chanceler alemão Friedrich Merz, felizmente com um estilo muito distante do de Scholz, e a inesperada atitude churchilliana do primeiro-ministro britânico Keir Starmer, a coligação europeia dos dispostos é sólida. A ajuda mais útil que você pode preparar não é enviar soldados para o terreno, mas sim uma defesa aérea de múltiplas camadas para criar um escudo sobre a metade ocidental do país.

Os três elementos militares essenciais que ainda são necessários dos EUA são os seus serviços de inteligência (muito difíceis de substituir), os interceptores de defesa aérea Patriot, fabricados ali (os únicos capazes de derrubar os mísseis balísticos russos) e grandes quantidades de munições de 155 milímetros (embora a Europa esteja intensificando produção). Se Trump for convencido a não interromper o fornecimento destas três coisas, a Ucrânia poderá sobreviver com mais ajuda europeia. Então, pouco a pouco, especialmente se a Europa intensificar simultaneamente as sanções económicas contra a Rússia, Moscovo poderá começar a sofrer mais pressão do que Kiev. Talvez, em algum momento, até o próprio Putin possa começar a pensar que é hora de começar a arrefecer esta guerra, aceitar uma “linha de controlo” para um cessar-fogo e ordenar ao seu dispositivo interno de propaganda que proclame uma tremenda vitória. Nesta situação não há nada seguro e é possível que o regime de Putin não possa mais arriscar assinar a paz, mas esta é a forma mais realista de acabar com a maior guerra na Europa desde 1945.

A Ucrânia enfrentaria imediatamente uma série de problemas novos e assustadores. Como manter a unidade nacional alcançada durante a guerra quando as armas se calam? Como reintegrar mais de três milhões de veteranos? Quando realizar eleições e como garantir que elas sejam livres e justas? A política ucraniana será caótica e cheia de recriminações entre si mesmos e contra o Ocidente. Putin, que considera que a política é outra forma de continuar a guerra, terá muitas oportunidades de agitar o vespas e promover rancores e divisões.

Por outro lado, a Europa poderá perder o interesse a toda a velocidade, como aconteceu com a Bósnia após os acordos de paz de Dayton em 1995. Praticamente todo o orçamento não militar atual da Ucrânia é financiado graças à ajuda internacional. Serão necessárias centenas de milhares de milhões de euros mais para que a economia, uma vez reconstruída, possa recuperar o seu dinamismo. Os populistas europeus em plena ascensão, de Portugal à Polónia, dirão aos eleitores que não devem continuar a pagar essa conta. Será essencial que Merz se incline com todo o seu peso a favor da confiscar os bens congelados da Rússia para poder dispor de tal quantia.

No início deste mês, quatro líderes europeus viajaram para Kiev no dia seguinte ao chamado Dia da Vitória na Europa, que comemora a derrota total da Alemanha Nazi. Infelizmente, não haverá um único dia da vitória na Ucrânia que assinale a derrota total da Rússia de Putin. Falta muito para que haja uma paz duradoura e, certamente, não será graças a um acordo precipitado e descompensado. A Ucrânia e a Europa devem ter a visão de futuro, a resistência e a unidade necessárias para uma longa luta; só então será possível alcançar algo que realmente mereça o nome de paz até ao final desta década.

*Timothy Garton Ash é professor de Estudos Europeus da Universidade de Oxford e investigador da Hoover Institution da Universidade de Stanford. Seu último livro é Europa. Uma história pessoal (Touro).

Tradução: Maria Luisa Rodriguez Tapia

📷: Eulogia Merle

https://elpais.com/opinion/2025-05-28/a-ucrania-le-espera-una-larga-lucha.html 

(grato a Olympio Pinheiro pela transcrição)

Vitelio Brustolin: Linkedin Top Voice, uma grande distinção

 Transcrevo e cumprimento, o que apenas o reconhecimento de um trabalho acadêmico desempenhado ativamente e com grande honestidade intelectual. PRA

Agradecimento pela nomeação a LinkedIn Top Voice

Acabo de ser nomeado LinkedIn Top Voice. A primeira coisa que pensei foi: “por que eu?” Nunca tive um perfil pago em nenhuma rede social. Durante anos, só queria me dedicar aos estudos e à carreira científica. Costumava recusar pedidos de entrevistas e demorei para criar contas em redes sociais mais populares, como o Instagram, por exemplo. Até hoje não tenho Twitter – X, e nem TikTok.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, as áreas que venho estudando há mais de 25 anos passaram a fazer parte do debate público. Geopolítica, Direito Internacional, Estudos Estratégicos, Relações Internacionais... temas de guerra.

Um dos meus orientadores costumava justificar a escolha pelas nossas áreas de pesquisa como a necessidade de estudarmos guerras para as evitarmos ou reduzirmos o seu potencial destrutivo. Ele dizia que a guerra é um assunto sério demais para ser deixado apenas para os militares.

Einstein, um pacifista cujas teorias científicas fundamentaram parte da teoria atômica e cuja carta deu origem ao Projeto Manhattan, sempre é citado no estudo da Big Science e sobre o que silenciosos cientistas podem fazer quando suas pesquisas são usadas como duais. 

Assim, quando a Guerra na Ucrânia escalou, em 2022, achei que precisava cumprir com a minha obrigação e contribuir com o que tenho estudado. Afinal, estou só retribuindo à sociedade pelas bolsas de estudo que recebi no mestrado, doutorado e pós-doutorado.

A partir de então, vieram outras guerras, como as de Israel, Irã, Síria, Índia e Paquistão... além de conflitos velados entre superpotências, apagamento da ONU e ameaças nucleares.

Desde 2022, tenho sido entrevistado em média 320 vezes por ano. E posto trechos no LinkedIn e em outras redes sociais. Foram mais de 1.000 entrevistas nesses 3 anos e 3 meses. Tem sido difícil, mas se guerra e geopolítica se tornaram temas do cotidiano, é sinal de que nós, cientistas dessas áreas, precisamos compartilhar o que aprendemos.

Enfim, agradeço à equipe do LinkedIn pelo convite e parabenizo pela iniciativa. É raro se valorizar análises nas redes sociais. Espero continuar contribuindo para o debate público com os instrumentos que adquiri ao longo da vida.

Para quem quiser conectar, este é o meu perfil no LinkedIn: https://lnkd.in/dd2Fx8dB 

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O Brasil segue a Carta da ONU? - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil segue a Carta da ONU?

Paulo Roberto de Almeida

        Lavrov, chanceler eterno de Putin, disse, à margem de uma conferência sobre “segurança” na Rússia, que gostaria de ter mais apoio do Brasil em sua guerra de agressão contra a Ucrânia. Celso Amorim, chanceler informal do Brasil, reafirmou que o Brasil é “neutro” no conflito, mas que se opõe a sanções contra a Rússia.

        Ora, sanções contra um Estado agressor é justamente o que está prescrito na Carta das Nações Unidas, ademais de solidariedade e ajuda dos demais Estados membros à parte agredida, como aliás já recomendava a Liga das Nações. O Brasil não segue o espírito e a letra da Carta da ONU, e aumentou enormemente a importação de fertilizantes e combustíveis fósseis da Rússia, o que é uma forma de apoiar objetivamente a Rússia em sua guerra de agressão.

        Talvez Lavrov nem precisasse pedir mais apoio do Brasil; ele e a Rússia já os têm, contrariamente ao que prescreve a Carta da ONU.

Brasília, 30/05/2025



quarta-feira, 28 de maio de 2025

Comentários à margem do Discurso do Dia do Diplomata, lido pelo vice-presidente Geraldo Alckmin - Paulo Roberto de Almeida

Comentários à margem do Discurso do Dia do Diplomata, 2025:

Desta vez, com a ausência física do presidente, que conduz uma diplomacia presidencial (contra a qual eu não tenho restrições maiories, desde que não seja) personalista, o discurso oficial lido pelo vice-presidente no Dia do Diplomata de 2025, contém, de modo geral, os conceitos gerais da diplomacia corporativa do Itamaraty, com alguns pequenos acréscimos típicos da ideologia lulopetista. Mas também certas ambiguidades que não deixarei de comentar aqui, transcrevendo pequenas partes desse discurso: 

1) "Na diplomacia, cresce o unilateralismo.

Grandes potências agem à revelia dos órgãos e das normas criadas coletivamente ao longo de décadas.

Nos planos interno e externo, proliferam tentativas de impor visões de mundo e de sociedade, desconsiderando a diversidade que enriquece a experiência humana.

O desprezo pelas diferenças é um convite à desumanização."

PRA: As grandes potências sempre foram unilaterais, em conformidade com seus interesses e estratégias essencialmente nacionais. Ora, não existe unilateralismo diplomático E MILITAR mais flagrante do que a guerra de agressão conduzida pela Rússia contra um Estado soberano, a vizinha Ucrânia. O dicurso é genérico nesse particular, e fica evidente o incômodo do presidente e de seus assessores internacionais em expressar toda a realidade do unilateralismo mais bárbaro do que aquele conduzido pela Rússia na Ucrânia. Sobre isso, o presidente é silente.

2) "Na Ucrânia, o Brasil se manteve firme na defesa do direito internacional e de uma abordagem que leve em conta as causas profundas desse conflito.

Junto com a China, criamos um Grupo de Amigos da Paz, composto por 13 países emergentes, que podem contribuir para uma negociação satisfatória.

 A única solução é o diálogo entre as partes.

Só existe entendimento quando há respeito à pluralidade.

Relações de Estado não podem ficar à mercê de diferenças políticas entre os governos."

PRA: Falar em "causas profundas desse conflito" é subscrever INTEIRAMENTE à visão russa da sua guerra de agressão unilateral contra a Ucrânia. As causas profunda são, nessa visão, uma suposta ameaça da OTAN contra a Rússia, o que é uma deformação da realidade observável. Os três países báltico são membros da OCDE, da UE e da OTAN e nenhum deles parece ameaçar a segurança da Rússia, assim como a Polônia e quase todos os demais países que foram liberados da dominação do imperialismo soviético (e anteriormente czarista) e que buscaram se proteger do abraço do urso russo que sempre os teve sob a sua tutela. "Diálogo entre partes" é uma hipocrisia, como se a guerra fosse recíproca e como se as partes fossem equivalentes, sem distinguir o país agressor e o país agredido. "Diferenças políticas" nunca foram um obstáculo às relações pacíficos entre Estados, sobretudo vizinhos, desde que se observem os principios mais elementares do Direito Internacional, das convenções diplomáticas em vigor, por acaso também constantes da Constituição brasileira.

3) "O Brasil não precisa e não vai escolher lados em disputas geopolíticas."

PRA: Curiosamente, o governo Lula, não o Brasil, já fez a sua escolha em disputas geopolíticas, pois que o presidente, não o Itamaraty, já se referiu, diversas vezes, ao vago projeto de "construção de uma nova ordem global multipolar", o que é uma tese muito repetida por Putin, Xi Jinping e outros notoriamente contrários à atual "ordem global ocidental", que lhe parece muito enviesada em favor dos EUA. Ora, isso é justamente escolher o seu lado nas atuais disputas geopolíticas.

4) "O BRICS é, hoje, o porta-voz de uma ordem internacional diversa, que já não cabe nos limites estreitos da arquitetura construída em 1945."

PRA: Ainda não se sabe, exatamente, em que consiste essa "ordem internacional diversa", e como ela não cabe nos limites estreitos da arquitetura construída em 1945. Depois da criação da atual ordem multilateral, diferentes outros grupos foram constituídos sem qualquer contradição com essa arquitetura: o Gatt (1947), o TIAR (1947), a OECE (1948), a OTAN (1949), a CECA (1951), o Pacto de Varsóvia (1955),  o Mercado Comum Europeu (1957), a Alalc (1960), a OCDE (1960), a UNCTAD (1964), o Grupo Andino (1969), o G5-G7 (1975), a Aladi (1980), o Mercosul (1991), a União Europeia (1993), o G8 (1998), o BRIC (1999), a Organização de Cooperação de Xangai (2001), o BRICS (2011), e muitas outras entidades internacionais todas elas competíveis com a arquitetura construída em 1945, ainda que em escala regional ou plurilateral. Não se sabe porque o BRICS deveria ser o portavoz fundador de uma "ordem internacional diversa".

5) "A prosperidade permanecerá um privilégio de poucos enquanto as vozes do Sul Global não estiverem devidamente representadas no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional."

PRA: Não se sabe bem quem, exatamente, está integrado ao assim chamado Sul Global. Por exemplo, Rússia e China fazem parte dessa geografia indefinida? E porque só no FMI e no Banco Mundial, e não no CSNU?

6) "O papel de vocês, diplomatas, implica levar para a frente externa as batalhas que travamos internamente."

PRA: A agenda econômica e social, até diplomática, do Brasil não pode ser automaticamente equiparada à agenda global. Seria muita pretensão e até um equívoco conceitual, pois que nem todos os países do mundo, ricos ou pobres, apresentam problemas que exigem "batalhas" gerais contra problemas que seriam de todos.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 28 de maio de 2025


A íntegra do discurso do Dia do Diplomata 2025, está disponível neste link: 

https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/05/discurso-na-comemoracao-do-dia-do.html


Discurso na comemoração do Dia do Diplomata, lido pelo vice-presidente Geraldo Alckmin

Com pequenas exceções, que destacarei em postagem à parte, o teor do discurso tem um copyright quase completo do Itamaraty, em sua vertente progressista lulopetista. PRA

Discurso na comemoração do Dia do Diplomata

Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lido pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin, na cerimônia de comemoração do Dia do Diplomata, em 27 de maio de 2025, em Brasília.  (27/05/2025)

Ao longo de quase onze anos como presidente, tive o privilégio de comparecer a quase todas as formaturas de egressos do Instituto Rio Branco.

Com a cerimônia de hoje, cerca de 700 diplomatas já se formaram em meus três mandatos.

Eles correspondem a quase metade dos 1.600 membros do corpo diplomático brasileiro.

Em seus 80 anos de existência, o Instituto Rio Branco contribuiu de forma decisiva para o profissionalismo do serviço exterior brasileiro e foi fundamental para a inserção internacional do país.

Mas o peso da responsabilidade que recai sobre a diplomacia brasileira é hoje maior do que nunca.

Voltei a ser presidente em uma época de negação da política.

Caberá a vocês serem diplomatas em uma era de negação da diplomacia. 

Na política, a democracia está em perigo.

O extremismo ameaça as instituições pelas quais Eunice Paiva, homenageada pelos formandos de 2024, e muitos outros lutaram para construir e defender.

Na diplomacia, cresce o unilateralismo.

Grandes potências agem à revelia dos órgãos e das normas criadas coletivamente ao longo de décadas.

Nos planos interno e externo, proliferam tentativas de impor visões de mundo e de sociedade, desconsiderando a diversidade que enriquece a experiência humana.

O desprezo pelas diferenças é um convite à desumanização.

A professora Ana Flávia Magalhães Pinto, paraninfa desta turma, retrata em sua obra o silenciamento da população negra.

Indígenas e mulheres partilham dessa dor.

Migrantes são criminalizados por desejarem uma vida melhor.

Levado às últimas consequências, o apagamento do outro leva a seu extermínio.

A guerra em Gaza é um sintoma trágico desse mal.

O Brasil condenou o terrorismo do Hamas de maneira clara e contundente. Mas não podemos nos calar ante a carnificina praticada contra civis palestinos, que resultou na morte de milhares de mulheres e crianças inocentes.

A comunidade internacional precisa reconhecer o Estado palestino.     

Na Ucrânia, o Brasil se manteve firme na defesa do direito internacional e de uma abordagem que leve em conta as causas profundas desse conflito.

Junto com a China, criamos um Grupo de Amigos da Paz, composto por 13 países emergentes, que podem contribuir para uma negociação satisfatória.

 A única solução é o diálogo entre as partes.

Só existe entendimento quando há respeito à pluralidade.

Relações de Estado não podem ficar à mercê de diferenças políticas entre os governos.

Esse equívoco contaminou, nos últimos anos, o processo de integração em nossa região.

Dar prioridade ao entorno não é uma escolha, é uma necessidade.

Estradas, ferrovias e linhas de transmissão não têm ideologias.

A circulação de pessoas e de bens passa ao largo das desavenças entre governantes.

Reunir os doze presidentes sul-americanos, como fizemos em 2023, tornou-se praticamente impossível.

Mas o Brasil não pode perder do horizonte a revitalização dos órgãos da integração. Precisamos reconstruir a UNASUL e dotar a CELAC de maior institucionalidade.

Em junho, promoveremos a segunda Cúpula Brasil-Caribe.

Se permanecer fragmentada, a região será marginalizada no rearranjo do tabuleiro global.

O Brasil não precisa e não vai escolher lados em disputas geopolíticas.

Os Estados Unidos são uma presença incontornável para a América Latina e para o Brasil.

Os laços entre as sociedades brasileira e americana são robustos.

A parceria com a China, onde acabo de realizar uma segunda visita de Estado, tem imenso potencial transformador.

Nosso diálogo político e sinergias vão impulsionar planos nacionais de transição energética, reindustralização e infraestrutura.

A Ásia como um todo vem-se consolidando como eixo dinâmico da economia global.

Temos no Japão um parceiro de longa data e na Índia um vasto campo inexplorado de colaboração.

Com vários países do Sudeste Asiático, já temos volume de comércio superior ao que possuímos com sócios tradicionais.

A relação com a Europa continua estratégica.

Dentro de alguns dias estarei na França, país importante na construção de uma ordem multipolar.

O acordo Mercosul-União Europeia é um símbolo contra o protecionismo.

Estamos criando uma das maiores áreas de livre comércio do mundo, reunindo mais de 700 milhões de pessoas.

Nossas economias, juntas, representam um PIB de 22 trilhões de dólares.

A defesa dos valores democráticos é, hoje, a mais importante missão que compartilhamos.

Laços históricos conectam o Brasil não só ao continente europeu, mas também ao africano.

Temos com a África uma dívida que só pode ser paga em solidariedade, cooperação e transferência de tecnologia.

Foi com esse espírito que realizamos na semana passada o Segundo Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, e que se encerrou com a visita de Estado do presidente João Lourenço, de Angola.

Em breve, sediaremos, no Rio de Janeiro, a Cúpula dos BRICS.

O BRICS é, hoje, o porta-voz de uma ordem internacional diversa, que já não cabe nos limites estreitos da arquitetura construída em 1945.

Quando a ONU foi fundada, ela contava com apenas 51 membros. Hoje somos 193 nações na organização.

Não é admissível que cinco países tornem os demais reféns de suas vontades e interesses.

A prosperidade permanecerá um privilégio de poucos enquanto as vozes do Sul Global não estiverem devidamente representadas no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional.

Há quem critique o conceito de Sul Global, argumentando que somos muito diferentes entre nós.

Mas países de renda baixa e média continuam na periferia de um sistema que só beneficia o centro.

Os países ricos foram, historicamente, os grandes responsáveis pela mudança do clima, mas serão os mais pobres quem sofrerão o maior impacto.

A noção de justiça climática será crucial na COP30, em Belém.

É preciso lembrar que embaixo de cada árvore há uma pessoa.

É inconcebível que se gastem 2,4 trilhões de dólares por ano com armamentos enquanto existem mais de 730 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.

A presidência brasileira do G20 deixou como legado a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que está trabalhando para erradicar esses flagelos de uma vez por todas.

Caras formandas e caros formandos,

O multilateralismo é ferramenta fundamental para que o Brasil atinja seus objetivos nacionais.

Não poderemos falar em justiça tributária sem que haja um entendimento internacional sobre a tributação de super-ricos.

Não conseguiremos coibir violações de direitos em plataformas digitais sem que haja um esforço coletivo para regulá-las.

Não lograremos preservar a Amazônia sem que todos os países façam sua parte para combater o aquecimento global.

O papel de vocês, diplomatas, implica levar para a frente externa as batalhas que travamos internamente.

Precisamos combater o extremismo e as desigualdade lá fora com o mesmo vigor com que lutamos aqui dentro.

Em pouco mais de um mês, nos despedimos do Papa Francisco, do presidente Mujica e do fotógrafo Sebastião Salgado.

O humanismo e a solidariedade que eles representavam são fonte de inspiração para o mundo.

A ciência mostrou recentemente que o Brasil é o país com a maior diversidade genética do mundo.

Sem desconsiderar a história de violência por trás da miscigenação que nos caracteriza, é significativo que o povo brasileiro tenha a pluralidade inscrita em seu DNA.

Em um mundo que está substituindo pontes por muros, é essa a pluralidade que vocês representarão no exterior.

As recentes premiações do cinema brasileiro em festivais internacionais dão prova da vitalidade da cultura nacional e da nossa política audiovisual.

Quero aproveitar essa cerimônia para cumprimentar Fernanda Torres, Walter Salles, Kleber Mendonça, Wagner Moura e todos os que contribuíram para esse feito.

Estou certo de que a turma Eunice Paiva contribuirá para continuar fazendo do Brasil uma força positiva para a humanidade e para o planeta.

Muito obrigado.


Destruição Criativa: Maartim Vasques da Cunha recomenda o livro de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira: Siameses

Destruição Criativa

O livro mais importante da literatura brasileira contemporânea que não está na lista da Folha de S. Paulo

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira fala sobre o romance “siameses” | Itaú  Cultural

A publicação recente da lista, feita pela Folha de S. Paulo, dos livros mais importantes dos últimos 25 anos comprova o que falo há anos, desde a época em que lancei A Poeira da Glória: a literatura brasileira se transformou em uma casa vazia, soterrada entre os restos dos arados tortos, dos últimos gozos do mundo, dos racismos estruturais que desintegram a sociedade, dos feminismos que acentuam o machismo e da política que jamais foi para todos. A evidência máxima desta moléstia é um livro que não foi sequer mencionado entre os jurados e o qual, entre as dobras do deserto particular de cada sobrevivente no mundo das letras, certamente fez a ambição dos nossos literatos explodir de inveja ou desprezo.

Trata-se do assombroso e gigantesco siameses, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira – um romance de 1300 páginas que, ao ser corajosamente publicado por uma editora à margem do mercado editorial (Kotter), apenas faz no nosso vazio intelectual o que, em 1956, Guimarães Rosa provocou com o lançamento praticamente simultâneo de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. No caso, recuperar o centro do que realmente importa.

Os superlativos não são um exagero. São os termos mais exatos. Quando um livro deste tipo surge no panorama, não devemos ter medo de elogiá-lo. Há de se ter a obrigação de fazer o que o poeta polonês Adam Zagajewski chamava de “em defesa do fervor”. Pois siameses é, de fato, um romance concebido, criado e escrito no meio do fervor. Porém, um fervor extremamente calculado, construído sobre bases múltiplas que misturam o grotesco, o lírico, o digressivo, o intelectual – e, sobretudo, o diabólico.

Como toda boa trama romanesca (voltaremos em breve a este termo: “trama”), torna-se impossível resumir o assunto do livro. Tentemos: em uma longa conversa entre dois amigos, Osmar (o único que fala) e Procópio (o que fica aparentemente calado o tempo todo), sabemos do triângulo amoroso (ou seria quadrado?) entre o operário metido a intelectual Tomás, sua esposa, a enfermeira Rebeca, e a vendedora Azelina, uma jovem apetitosa que atiça os desejos do primeiro e o coloca em uma verdadeira odisseia do azar. Aparentemente, essa história não nos diz nada – e mal seria uma razão para o leitor comum acompanhá-la se não fosse por um detalhe que Antonio Geraldo menciona constantemente no livro: o que estamos a ler não é uma mera quadrilha a lá Drummond, e sim um resumo histórico dos últimos quarenta anos do que aconteceu, em microcosmo, nesta nação gigantesca que é o Brasil.

Para relacionar esses dois planos, siameses constrói – olhem de novo a palavra – uma trama de símbolos e de metáforas, espalhadas por meio de digressões que visam a despistar o leitor. Por um lado, ela dialoga tanto com a tradição temática do Modernismo Brasileiro de 1922, em seu antropofagismo, ao analisar a brasilidade esteticista, como com a linha do Modernismo Europeu, em especial o romance enciclopédico celebrado por James Joyce em Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) ou pelo poema A Terra Devastada (1922), de T.S. Eliot.

É um fenômeno já descrito por Richard M. Morse em seu magnífico ensaio O Espelho de Próspero, em que a imersão no caos e no anonimato das grandes cidades – ou, no caso de siameses, no interior fronteiriço entre São Paulo e Minas Gerais – somente nos leva a um centro desatado do que deveria ser a “comoção da vida”, em um caleidoscópio que apenas confirma a vastidão de reflexos a nos devorar. Tudo isso converge para uma visão de mundo que acompanhava Antonio Geraldo em seu romance anterior, o celebrado as visitas que hoje estamos (2014), na qual o colapso existencial do país se soma agora ao encontro da raiz de todos os nossos problemas políticos, morais, sexuais e econômicos. Trata-se da nossa atração insaciável por aquilo que hoje podemos chamar sem hesitação de “o contágio da mentira”, a corroer o Brasil – e com certeza o mundo – do início ao fim, do topo até o chão, do chão até o nosso subsolo irracional.

Em siameses, enquanto o leitor acompanha as peripécias de Tomás para seduzir Azelina e enganar Rebeca, com toda a destreza narrativa comunicada por Osmar a Procópio, pouco a pouco as noções de verdade e mentira, fato e ficção, realidade e alucinação tornam-se cada vez mais imprecisas – e elas se amalgamam sem que ninguém (principalmente os personagens) mais saiba onde começa uma e onde termina a outra. Daí o título do romance: tudo está inevitavelmente ligado, numa irmandade macabra que, como o próprio projeto estético de Antonio Geraldo antecipou desde a primeira linha do romance, nos leva desses filhos da mentira ao próprio pai da falsidade.

A ambiguidade que surge desta trama – olhem aí a palavra de novo – é poderosa pois ela se alimenta da própria inovação que o gênero romance apresenta à sociedade onde se insere. Em inglês, o romance é também “novel”, que, se aqui pode ser a novela (um gênero anfíbio assim simplificado por causa do tamanho das suas páginas), é também o novo a surgir toda vez que nos encontramos na casa vazia das palavras sem sentido. Apesar de se cercar de contemporâneos igualmente brilhantes – como Evandro Affonso Ferreira, Juliano Garcia Pessanha, Ana Paula Maia, Erico Nogueira, Joca Reiners Terron, Alberto Mussa, Fernando Monteiro, Antonio Fernando Borges esses dois infelizmente falecidos nos últimos meses), André De Leones, entre outros –, cabe agora a Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira ser quem o capitão desta reviravolta provocada pela nova literatura a surgir do seu livro.

Assim, o que siameses faz para as nossas letras é uma espécie de “destruição criativa”, algo que Hermann Broch antecipou ao analisar o Ulisses de Joyce em um ensaio pioneiro, publicado em 1935. Neste texto, lemos que “Joyce busca com todos os meios do domínio do estilo e da arquitetura literária, com toda a capacidade de abranger a essência e com toda a ironia, que essa cosmogonia que se desdobra por trás do Ulisses resulte ao fim das contas em um sistema platônico, um corte no mundo, que no entanto não é outra coisa a não ser um corte no eu, um eu que é ao mesmo tempo o sum e o cogito, o logos e a vida, novamente se tornando Um, uma simultaneidade em cuja unidade refulge o religioso em si.”

É esta divisão – entre a palavra a descrever a vida e a própria vida – que fraciona cada linha do romance de Antonio Geraldo, para depois ele sempre retornar à unidade (aparentemente platônica) da trama literária. Mesmo assim, o escritor preserva o fervor típico de quem sabe que, para criar, é necessário muitas vezes demolir o que achávamos ser o fundamento de todas as coisas petrificadas do nosso passado e que precisam de um novo sopro. No caso específico de siameses, a religiosidade ocorre sempre na via negativa, pois os personagens caminham num Hades interior onde as paixões (jamais a virtude) são o que comandam as ações de cada um. No fundo, a tragédia de Tomás, Rebeca e Azelina (e talvez a de Osmar) é a tragédia tupiniquim de saber que, como diria o narrador a lá Riobaldo Tatarana, a “impossibilidade do indivíduo é ser ele mesmo, caralho!”.

Assim, neste espelho literário, digno de Próspero, a obra-prima de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira nos presenteia com um modo para reconstruir o Brasil, esteticamente e moralmente, ao impedir, por meio da grande literatura, que os cães que nos governam continuem a latir, noite e dia, dentro desta nossa casa vazia. Azar da turma da Folha de S. Paulo que não percebeu essa maravilha