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sábado, 11 de maio de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (8) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (8)
Paulo Roberto de Almeida
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Onde a luta armada se desenvolveu? A “geografia humana” da luta armada é feita, basicamente, de idealistas de classe média guiados por uma adesão equivocada a certas causas – basicamente as da revolução cubana, mais até do que a do socialismo de inspiração soviética – e de alguns egressos do comunismo histórico, seduzidos pelo chamamento e o apoio cubano a um grande empreendimento que se pretendia de libertação do continente do latifundismo, do imperialismo e, em última instância, da burguesia capitalista. Ela raramente envolveu legítimos trabalhadores – senão alguns poucos “líderes” sindicais já adquiridos à ação militante, de natureza política, não exatamente sindical – e menos ainda camponeses típicos, senão alguns poucos agitadores políticos que já tinham base em zonas rurais. Ela foi basicamente urbana.
Foi um fenômeno essencialmente de, e restrito à classe média, em algumas metrópoles brasileiras, recrutando adeptos no mesmo universo de universitários conquistados às teses leninistas ou gramscianas, e emocionalmente estimulados pela epopeia vitoriosa – em grande medida romantizada e idealizada – dos revolucionários cubanos. Creio poder dizer que sou um típico representante dessas camadas de estudantes “revoltados” que viam na luta armada não apenas – ou talvez não exclusivamente – o meio de “libertar o Brasil dos generais gorilas”, mas basicamente uma via romântica de atuação política-prática, seguindo o exemplo daquele pequeno grupo de bravos guerrilheiros que conduziram uma luta exemplar até a vitória. Essa perspectiva da “tomada do poder” por colunas guerrilheiras, secundadas, no momento decisivo, por uma greve geral da população contra a ditadura opressiva, fazia parte do universo mental de todo candidato a guerrilheiro urbano, que forneceu, de modo geral, 90% do contingente humano para a luta armada (o experimento do PCdoB nas selvas do Araguaia jamais assumiu proporções significativas, em termos humanos e materiais, e nunca teria tido qualquer influência no debate político contemporâneo, se esse partido não fosse constituído de fundamentalistas devotados às suas causas esquizofrênicas).
Como a luta armada se desenvolveu? Jamais de forma coordenada, unificada ou organizada, de forma a representar um risco real para o governo, ou o próprio regime. Foram impulsos isolados, dispersos, desorganizados, improvisados, ao sabor das decisões dos líderes que se sucediam, alguns “históricos”, outros que ascenderam na própria luta armada, sem qualquer formação política especial – foi o caso de Lamarca, por exemplo, ou de alguns outros chefes “guerrilheiros”, que “subiram” na hierarquia por via de sequestros e assaltos a bancos. Era uma clara aventura, levada muito a sério pelos militares, que sempre tendem a maximizar a dimensão dos perigos, por instinto natural e pelo claro desafio à sua autoridade.
Os militares “overreacted” aos pequenos bandos de guerrilheiros armados que os desafiaram? Possivelmente, sim, e teriam provavelmente obtido os mesmos resultados com um pouco mais de inteligência e menos força bruta. Eles tinham razão em chamar os cowboys travestidos de guerrilheiros de “terroristas”? Efetivamente não, embora alguns o fossem, mas a maioria não o era. A guerrilha estava condenada, desde o início, a ser o que sempre foi: ações isoladas de cowboys do asfalto, incapazes de assumir o comando de qualquer movimento relevante de oposição ao governo militar, com um registro de algumas ações espetaculares, mas incapazes, por si só, de mobilizar o apoio da população para suas causas bizarras. A “luta contra a ditadura” era uma realidade apenas para uma minoria extremamente reduzida de uma fração também muito reduzida da classe média instruída, ou seja, um punhado de “patriotas equivocados”, como a eles se referia o Partidão. Nunca passaram disso, e seu movimento teria se estiolado, como ocorreu em diversos países europeus na mesma época – que não extravasaram nos métodos repressivos como no Brasil – na absoluta indiferença, e provavelmente até no repúdio, da maioria da população.
Como essas ações marginais vieram a assumir a dimensão que tiveram, seja na historiografia, seja na política prática do Brasil atual, estas são questões que merecem argumentos mais extensos que me eximo de adiantar aqui. Elas podem ser explicadas, porém, pelo absoluto monopólio de que gozam os escribas gramscianos no ambiente acadêmico – eles foram derrotados, historicamente, mas se encarregaram de escrever a sua própria história, deformando-a – e também pelo fato de que as forças, tendências, ideologias e personalidades derrotadas durante o período militar finalmente chegaram ao poder e tratam, agora, de reconstruir seus equívocos apresentando-os como algo que não foram, ou seja, uma luta em favor da democracia. Trata-se, portanto, de uma imensa deformação da história, agora conduzida porque temos no poder justamente aqueles a quem designei de derrotados vingativos.
E por que tivemos luta armada no Brasil? Como já evidenciei anteriormente, ela jamais teria existido na sequência “normal” do processo político brasileiro, mesmo em situação de “golpe militar”, ou de “ditadura”? Como consagrado em outro tipo de literatura – em obras menos passionais, de brasilianistas, por exemplo – existia já uma tradição de intervenção militar na política doméstica, e não se pode dizer que o mores político brasileiro fosse naturalmente democrático e civilista. As tradições positivistas, castilhistas, comtianas, e até fascistas, ou pelo menos corporativas, existiam desde até antes da República e na maior parte desta não se conheceu, de verdade, um sistema de representação política, aberta, transparente, accountable, enfim, democrático. Tanto quanto os militares, os líderes de esquerda também eram autoritários, quando não totalitários, e em nome da democracia pretendiam, na verdade, implantar um regime de “ditadura do proletariado”, ou o que lhe fosse equivalente, segundo as possibilidades e arranjos da fase “pós-burguesa”, que de todo modo se pensava superar rapidamente. Creio que não existe nenhuma dúvida quanto a isso, e desafio qualquer saudosista dos movimentos armados a me provar que se pretendia implantar no Brasil um sistema liberal, de livre competição política com partidos “burgueses”: se tratava justamente do contrário, de assegurar o predomínio da causa proletária ou alguma variante disso.
O mais importante, porém, e isso é preciso ressaltar sempre, é que ela não teria existindo sem o impulso, o apoio, ou praticamente o apelo dos dirigentes cubanos, para que seus verdadeiros amigos do continente empreendessem, rapidamente, outros processos revolucionários, com vistas a romper o isolamento cubano. O mesmo fenômeno ocorreu no início da revolução bolchevique, quando líderes como Lênin e Trotsky trataram de impulsionar a revolução comunista na Alemanha e em outros países, para romper o “cerco imperialista” ao regime bolchevique; a Terceira Internacional foi constituída justamente para isso e por isso, e foi em função de suas diretivas, e ordens diretas, que Prestes empreendeu a sua patética (mas traumática) intentona no final de 1935. O PCB era, até 1961, o Partido Comunista do Brasil, como o Komintern tinha exigido que se chamassem as “seções nacionais” da III Internacional. A revolução cubana tendeu recriar essas estruturas através da OLAS e da OPANAL, mas eram iniciativas totalmente artificiais, no contexto dos países latino-americanos, como foram artificiais, e por isso derrotadas, as aventuras guerrilheiras de inspiração castrista e guevarista em diversos países da região.
Não importa quais fossem as especificidades nacionais, o fato é que a luta armada no Brasil foi um empreendimento nacional, mas basicamente impulsionado de fora, com dinheiro, treinamento e suporte logístico vindos de fora, essencialmente dos amigos cubanos (que podiam repassar alguns recursos soviéticos, que sempre quiseram estar no comando de várias frentes de combate). O apoio cubano extravasou, aliás, o simples financiamento da guerrilha, e se manifestou, durante muito tempo, em diversas outras “frentes de trabalho”, algumas não de todo reveladas, ainda – embora não desconhecidas – e que poderão vir a público se a inteligência cubana não tiver tempo de destruir os seus arquivos antes da derrocada final daquele regime moribundo. Esta é uma realidade que muitos dos companheiros atuais não gostam de admitir, mas que eles sabem ser verdade, como o sabem também os órgãos de inteligência do Brasil. O dia em que a história for escrita, em todos os seus matizes e com todas as suas fontes, esses aspectos poderão aparecer em toda a sua luminosidade obscura, se ouso o trocadilho.

(Continua... e termina.) 


A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7)
Paulo Roberto de Almeida
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Vamos tentar proceder de maneira sistemática para tornar o debate mais racional. Podemos, por exemplo, abordar a questão por meio das perguntas clássicas dos jornalistas, que também servem, com o acréscimo final da análise interpretativa, de guia para o historiador de um fato ou processo objetivo qualquer: o que, quando, onde, como e por que?
O que foi a luta armada no Brasil? Ela foi um empreendimento essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à “ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada “natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência” incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”).
Em outros termos, a luta armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” – como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica, como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria existido no Brasil.
Quando ela se desenvolveu? Praticamente desde o início – por despeito de líderes que se pretendiam maiores do que efetivamente eram, como Brizola, por exemplo – e bem antes, em 1965 para ser mais exato, quando o regime estava longe de ser aquele monstro repressivo apontado numa historiografia enviesada, totalmente equivocada e, de fato, intelectualmente desonesta em relação à verdade. A repressão do regime militar se desenvolveu depois, não antes, que a guerrilha urbana começasse suas ações, e esteve em atraso durante praticamente dois anos, até que sua organização tardia passasse a demonstrar alguma efetividade prática. Ou seja, não foi a repressão política do regime que provocou a guerrilha supostamente de resistência contra um “governo opressivo”, e sim o deslanche de operações armadas, quando o governo tentava uma espécie de “reconstitucionalização” do regime – por meio da nova Carta aprovada em 1967 – que incitou, na verdade obrigou, o governo a reagir contra os grupos armados. Essa cronologia, absolutamente objetiva e aderente aos fatos, precisa ser lembrada, para que os derrotados vingativos não aleguem que não lhes restava outra opção (de luta política) que a luta armada contra um regime ditatorial.
Os militares brasileiros nunca foram os golpistas tirânicos ou despóticos que essa historiografia maldosa insiste em proclamar. Desde o início de seu envolvimento nos processos de governança – praticamente com o golpe militar que derrocou a monarquia, aliás sem o desejar, e inaugurou a República – as forças armadas, por vias institucionais, ou por revoltas de oficiais subalternos, sempre buscaram atender aos reclamos de uma classe média desejosa de mais liberdade, mais transparência política, mais honestidade eleitoral e, sobretudo, de preservação da ordem e dos fundamentos mínimos da normalidade política e econômica. Foi assim nas revoltas dos anos 1920, na sua posição “atentista” em relação à revolução da Aliança Liberal em 1930, na defesa da unidade nacional em 1932, na intentona comandada do exterior em 1935, na derrocada do ditador em 1945, e em algumas ações de estabilização nos anos 1950, antes da decisão (aliás não unânime) de marchar contra o governo em 1964; foi bem menos no golpe estado-novista de 1937 e em algumas revoltas episódicas dos anos 1950, mas sem que o espirito legalista das FFAA deixasse de se manifestar, sempre em defesa da ordem e da unidade nacional. Mesmo durante o regime “militar” de 1964 a 1985, o registro é de uma predominância civil nos gabinetes e um cuidado legalista bastante pronunciado, com a emissão de atos institucionais em conjunturas precisas, sem o arbítrio (e até a selvageria) a que se assistiu em diversos outros episódios de triste memória na história de nossos vizinhos latino-americanos. De forma geral, não há comparação possível entre a chamada “ditabranda” brasileira – apenas episodicamente mais dura – e as ferozes ditaduras militares em alguns desses países, como tampouco há qualquer similitude, absoluta ou relativa, entre o número de “vítimas” que se pode honestamente computar num e noutros casos.

(Continua...) 

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (6) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (6)
 Paulo Roberto de Almeida
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A luta armada e os derrotados vingativos: uma reflexão pessoal
A luta armada no Brasil, à diferença de outros experimentos guerrilheiros na América Latina, e de guerras civis na Ásia ou na África, foi relativamente breve, pouco cruenta e atingiu uma fração mínima da população, se é que se pode falar em população, no caso de umas poucas centenas de engajados ativos em seus diversos exercícios tentativos e alguns milhares de militares e policiais dedicados à sua repressão. Ela pode ter uma extensão maior, se considerarmos os primeiros ensaios, quase patéticos, dos brizolistas na imediata sequência da mudança de regime em 1964. No seu conceito mais restrito, porém, consistindo nas diversas iniciativas de inspiração cubana, de natureza mais urbana do que rural, ela durou, provavelmente, menos de seis anos, aos quais podem ser acrescentados os quatro ou cinco de guerrilha “maoísta” nas selvas do Araguaia, até meados da década seguinte. A maior parte desses experimentos foi bisonha, com muita improvisação, quase nenhuma inspiração, alguma transpiração, mas a repressão, no começo despreparada, foi brutal e eficaz: todos os focos, nas cidades e nos campos, foram eliminados a partir do planejamento e do engajamento dos militares nas tarefas da repressão direta, que contou mais com força bruta do que propriamente com inteligência: ela também foi feita mais de transpiração do que de inspiração.
Não tendo sido um protagonista direto, mas somente um espectador engajado num dos lados da contenda, e isso apenas tentativamente, sem jamais ter passado às vias de fato, ou seja, assumido responsabilidades de “combate”, talvez eu não seja a pessoa mais qualificada para oferecer meu testemunho sobre os chamados “anos de chumbo”, inclusive porque estava fora do país nos momentos mais repressivos do regime militar. Sou inclusive suspeito para me pronunciar, em razão da minha postura essencialmente crítica em relação ao que nós, da esquerda, fizemos, como provocação inútil, caótica, quixotesca, ao regime militar, que de outra forma não teria embarcado (disso tenho certeza) na voragem arbitrária de uma repressão que em alguns momentos assumiu características selvagens, quando os militares achavam que os pobres guerrilheiros, que éramos nós, representavam um perigo real para o regime e para a sociedade. Infelizmente, quase toda a historiografia em torno dessa fase menos dignificante da história brasileira é muito enviesada, para ser considerada seriamente numa avaliação isenta sobre o período e seu impacto para o presente. Mas tentarei oferecer uma reflexão isenta sobre a questão, como forma de testemunhar sobre um passado a que assisti, e que considero deva ser totalmente superado, para que o Brasil avance olhando para a frente, não para trás.

A luta armada, como disse, obedeceu, com a exceção do episódio maoísta no interior do Brasil, a uma inspiração essencialmente cubana, ainda que métodos, situações políticas e, obviamente, elementos humanos tenham sido totalmente diversos no Brasil do que foi a guerra de guerrilhas em Cuba, que teria supostamente servido de modelo para os empreendimentos realizados no Brasil de meados dos anos 1960 ao início da década seguinte. A revolução cubana foi, de fato, um fenômeno eletrizante no contexto latino-americano, bem mais do que sua importância real na história política do século 20 ou sua capacidade de transformar significativamente a realidade nos países da região. Todos os experimentos realizados sob sua inspiração direta – e na maior parte dos casos com seu apoio material – fracassaram: ou foram fragorosamente derrotados militarmente, ou se extinguiram por ineficácia prática, ou, ainda, sobreviveram apenas como deformação grotesca do projeto original, como no caso dos narco-guerrilheiros da Colômbia e do Peru, convertidos em meros criminosos, traficantes e sequestradores.
No Brasil, sua importância foi bastante reduzida, em termos práticos, ainda que a própria esquerda, e seus escribas gramscianos, e também os militares, tenham a ela atribuído uma relevância histórica que efetivamente não tem. A luta armada foi um fenômeno marginal, e os poucos casos de terrorismo mais marginais ainda, mas uma história isenta, completa, não passional, de todos os seus aspectos ainda esteja para ser escrita. Ela não foi tão traumática quanto o foi na Argentina, no Chile, no Peru e na Colômbia, para ficar nos casos mais relevantes, nem todos similares em dimensão, características e impacto residual, ou permanente. Em vários desses países, o grau de repressão foi tão vasto, que mesmo as lideranças políticas mais moderadas tiveram de acenar com algum “julgamento da História”, quando não com julgamentos reais. Este talvez seja um dos falsos “problemas” vinculados a uma avaliação isenta da luta armada no Brasil: mesmo não tendo a importância histórica, e um impacto efetivo num largo número de indivíduos, como nos casos acima mencionados – e estando muito longe de assumir a dimensão social de um fenômeno como o do Apartheid, na África do Sul – não parece haver justificativa razoável para a instalação de uma “comissão da verdade” ou sequer de julgamentos a posteriori, como reclamam os derrotados vingativos.
No Brasil, isso não se justificaria, e as tentativas atuais de se retomar os erros do passado – de um só lado, diga-se de passagem – estão condenadas ao repúdio da maior parte da cidadania, ainda que possam provocar algum alarido jornalístico e talvez algum desconforto momentâneo do lado das antigas “forças repressoras”. Meu julgamento pessoal é o de que o governo atual – composto exatamente por grande número de personagens vinculados à esquerda armada do passado – está criando um problema para si mesmo, e para o que lhe suceder, na tentativa de contemplar as demandas daqueles a quem chamo de “derrotados vingativos”, por não terem aceito o julgamento da história e por pretenderem, de maneira reacionária, fazer girar para trás a roda da História. Mas vejamos quais seriam os argumentos que sustentam a minha tese.

(Continua...) 

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (5) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (5)
 Paulo Roberto de Almeida

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Nessa altura do meu itinerário europeu, eu já havia deixado de ser um candidato a “revolucionário profissional” – se é que o fui – para me tornar apenas um socialista reformista, desses que podiam debater o ridículo que era a posição dos eurocomunistas – ainda defendendo o que restava de socialismo real – e proclamar, por outro lado, as virtudes do socialismo moderado, à la francesa (ou seja, ainda com muita estatização, vários controles sociais e todas as bobagens que os socialistas são capazes de cometer).
O importante, na verdade, não era tanto a crença do momento, mas o sentido da busca, constante, incessante, regular e intensa, nos livros, nas discussões acadêmicas de qualidade, a pesquisa sobre as melhores formas de organizar a economia e a sociedade, sem sacrificar a liberdade e a democracia. Mas, cabe registrar que estas mesmas palavras ainda revelam o viés indisfarçável do autoritarismo em semente, ou residual: “organizar a economia”, como se ela não pudesse existir sem as “correções estatais” aos “mercados anárquicos”, “melhorar a sociedade”, enfim, todo um resquício de engenharia social, típicas de todos os socialistas e estatizantes, concepções das quais eu só iria me libertar quando engajei uma pesquisa séria para o doutorado.
Dei início a um doutorado no final de 1976, depois de uma graduação e de um mestrado feitos sem muitos cuidados propriamente acadêmicos, mas com extremo autodidatismo e um grande sentido de responsabilidade, na elaboração do “Mémoire de Licence” (sobre a ideologia e a política do desenvolvimento brasileiro, de 1945 a 1964) e da dissertação de mestrado (sobre o comércio exterior brasileiro sob o impacto das políticas dos anos 1960 e do primeiro choque do petróleo, em 1973). O projeto de tese, centrado na noção de “revolução burguesa”, ainda era razoavelmente poulantziano e intensamente florestânico, já que a intenção era “provar”, com Florestan ou sem ele, que o capitalismo no Brasil tendia para o autoritarismo e para as desigualdades estruturais (ainda que eu não acreditasse muito nessa história de dependência, que sempre achei uma espécie de revisionismo mal feito do marxismo). Mas a tese de doutorado ficaria temporariamente interrompida, pois, depois de quase sete anos de exterior, planejei voltar ao Brasil, num momento em que as promessas de abertura feitas pelo general Geisel pareciam reais e sinceras.
Logo depois de minha volta, em fevereiro ou março de 1977, sobreveio o “golpe de abril”, com novo fechamento do Congresso, novas cassações e mais um curto ciclo repressivo – inclusive com a tentativa de golpe do general Frota – antes da gradual abertura preparada por Geisel e aplicada, erraticamente, por Figueiredo. Eu já estava no Brasil, e mesmo que pretendesse, ainda, “derrubar a ditadura”, já não se tratava mais de decretar a ditadura do proletariado e construir o socialismo, e sim administrar um reformismo avançado nos quadros de um capitalismo possível, ou seja, com todas as contradições que a economia de mercado possui num país altamente estatizado como era o Brasil. Sim, a despeito de ser ainda um socialista moderado, minhas inclinações anarquistas e libertárias me faziam ser contra um papel muito preeminente para o Estado, justamente por ter assistido às misérias do Estado todo poderoso nos tristes e lamentáveis experimentos da Europa oriental e da União Soviética (eu tinha poucas informações sobre a China, nessa época, pois ela se tinha fechado para a Revolução Cultural durante quase toda a década, mas conhecia os livros de Alain Peyrefitte e de Simon Leis, sobre as realidades detrás da “cortina de bambu”).
Não é o caso de refazer aqui, esta parte de meu itinerário acadêmico e profissional, dominado pelo ingresso na carreira diplomática e pela retomada do doutoramento, já num sentido completamente diferente daquele traçado no projeto original, inclusive porque isso seria um tanto enfadonho e nos desviaria do debate sobre o tema selecionado para este ensaio: uma reflexão sobre a luta armada e seu peso, ainda hoje, na política brasileira contemporânea. Interrompo, portanto, a descrição de minha jornada intelectual em direção a uma modesta racionalidade instrumental e retomo a discussão sobre um dos mais importantes elementos de anomia na atual situação política brasileira: a tentativa que fazem os derrotados de 1964, de 1968 e do início dos anos 1970 – entre os quais eu poderia facilmente me incluir, se não tivesse esse sentido de autocrítica que parece faltar a certos personagens da política atual – de retornar ao passado para se vingar de quem os impediu de perpetrar seus projetos de engenharia social (e de miséria moral, nos campos político e social).

Continua...