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domingo, 13 de novembro de 2016

Aumentaram os idiotas no mundo? - Paulo Roberto de Almeida

Um artigo de quase dez anos atrás, sendo que os idiotas aumentaram exponencialmente desde então. Não, eles não vão dominar o mundo, mas vão continuar atrapalhando.

Está aumentando o número de idiotas no mundo?

 Paulo Roberto de Almeida

Espaço Acadêmico, n. 72, maio de 2007

Com o perdão daqueles mais sensíveis à crueza da questão-título, respondo diretamente à pergunta. E a resposta é, ao mesmo tempo: sim e não! Explico um pouco melhor aqui abaixo.

Sim, infelizmente pode-se constatar empiricamente – mas isto poderia ser confirmado por alguma investigação “científica” – que está aumentando, para cifras nunca antes registradas nos meios de comunicação, o número de imbecis, idiotas ou simples energúmenos, cujas opiniões, elucubrações ou meras manifestações de “pensamento” conseguem ser captadas por esses meios de comunicação, encontrando assim um eco mais amplo nos veículos impressos e audiovisuais.

Por outro lado, nunca foi tão volumosa a produção científica ou a simples escolarização de massas antes excluídas do acesso à educação (de qualquer nível e qualidade). Com isso, a cultura científica se dissemina em meios antes entregues às mais variadas influências “culturais”, desde o curandeirismo shamânico até o fundamentalismo religioso pretendidamente “cientista”. Assim, a humanidade “progride”, ainda que isto possa ser descrito como sendo uma “fatalidade natural” do acúmulo do conhecimento científico e que esse saber esteja em muito poucas mãos (e cérebros). 

Com esses dois processos se desenvolvendo simultaneamente, a resposta à pergunta central é, portanto, dupla e contraditória: nunca foi tão grande o número de pessoas partilhando de um mesmo conjunto de explicações simplistas – e basicamente erradas, quando não idiotas – sobre as complexidades do mundo e da vida, ao mesmo tempo em que aumenta gradativamente o número daquelas capazes de galgar as escarpas ásperas da ciência e de adotar explicações racionais, a fortiori racionalistas, para esses mesmos problemas. Uma coisa não exclui a outra, portanto.

Como sabem todos aqueles que lidam com sistemas educativos, quando se amplia o acesso às instituições formais de ensino a uma clientela a mais extensa possível, parte da qual era antes excluída desses meios, é inevitável a queda de qualidade da educação formal, uma vez que se está lidando com os mais despreparados e carentes de toda e qualquer informação. Pessoas que antes eram “educadas” nas superstições e crendices “normais” dos meios populares, na baixa cultura dos estratos inferiores da sociedade, passam, de um momento a outro, a dispor de maior acesso aos canais da sociabilidade e aos meios de comunicação de massa, como revistas, jornais e internet. Alguns até conseguem sucesso nos meios profissionais e se tornam pessoas de renda elevada, detendo capacidade de influir na tomada de decisão de empresas e de governos, e de influenciar, portanto, uma maior número de indivíduos à sua volta. Se essas pessoas conseguiram adquirir, através da escola e dos livros, uma cultura superior, logicamente estruturada e cientificamente embasada, tanto melhor: elas poderão disseminar uma cultura superior àquela que tinham em seus meios de origem e contribuir assim para a elevação espiritual da humanidade. Se, ao contrário, elas passaram impunes pela educação formal e conservaram – até aumentaram, por hipótese pessimista – as mesmas superstições de origem, os mesmos preconceitos primários, as mesmas explicações ingênuas que compõem o lote comum da humanidade desde tempos imemoriais, então só podemos prever o pior: o aumento das opiniões não-fundamentadas, e das respostas equivocadas às questões mais complexas da vida e da sociedade. Pode-se até prever a consolidação da ignorância num verdadeiro “sindicato dos energúmenos”, cujos filiados crescem a olhos vistos.

Isto se aplica, por exemplo, aos obcecados pela astrologia e pelas explicações “mágicas” sobre o “sucesso” na vida (no amor, nas finanças, na longevidade) e, sobretudo, em relação ao crescimento do fundamentalismo religioso e de variantes do criacionismo, que só posso explicar como representando a imbecilização congenital de pessoas até medianamente bem dotadas de acesso à educação formal e a meios decentes de vida. De fato, estou cada vez mais surpreendido com o crescimento dessas interpretações literais sobre a origem do universo, da vida na Terra e da criação dos homens e dos demais seres vivos, “explicações” que afetam basicamente a história e a biologia (com todas as suas variantes na geologia, na antropologia ou na arqueologia). 

Sem querer ofender ninguém em particular – mas possivelmente ofendendo, mas não me desculpando por isso –, só posso atribuir ao triunfo da ignorância o fato de que mais e mais pessoas resolvem aderir a essas versões ingênuas, simplistas e profundamente equivocadas sobre a origem da vida e seu desenvolvimento na face da Terra. Essas mesmas pessoas, obviamente, recusam a teoria da evolução e suas conseqüências práticas, sendo portanto totalmente ineptas para qualquer tipo de carreira científica, pelo menos nas áreas de biologia, de geologia e de outras ciências naturais (para não falar da torturada e tortuosa história da humanidade). 

Sem pretender chamar ninguém em particular de idiota – mas possivelmente chamando, e não me desculpando por isso –, surpreende-me, sim, que tantas pessoas resolvam aderir a uma visão do mundo terrivelmente comprometedora de suas chances futuras de progresso numa cultura superior e em carreiras científicas que poderiam contribuir para o seu próprio bem-estar individual e para uma qualidade de vida melhor para toda a humanidade (eventualmente para si próprias, se elas por acaso se encontrassem em uma situação de emergência que requeresse o mínimo de conhecimento especializado, geralmente de tipo científico). 

É evidente que, em todas as épocas históricas e em todas as sociedades, a cultura científica sempre foi algo extremamente restrito e profundamente elitista, tocando em poucos membros da comunidade. Com a ampliação e a extensão das instituições escolares, essa cultura se estende progressivamente a um maior número de pessoas, mas seu estabelecimento e desenvolvimento dependem, em última instância, do próprio esforço individual e do empenho pessoal na absorção e compreensão de complexos problemas técnicos que passam então a se disseminar em escala ampliada. Essa cultura científica sempre estará em competição com a cultura ingênua, com as explicações simplistas e desrrazoadas ou até com a ignorância mais completa – que, aliás, não se peja de aparecer –, travestida em “conhecimento popular”, ou em senso comum. 

A razão disso é simples: independentemente do seu meio social de nascimento, do nível de renda e do backgroundfamiliar, as pessoas nascem igualmente dotadas, ou seja, com algumas habilidades inatas e uma mesma ignorância cultural fundamental. A cultura e a educação serão nelas “instaladas” à medida de sua exposição a fontes superiores de cultura e de educação, ou então elas conservarão as mesas “ferramentas” de saber dos seus meios de origem ou daqueles meios a que foram expostos no curso da vida. É muito duro adquirir uma cultura científica e uma explicação “superior” sobre a vida, uma vez que isto requer estudo constante, leituras aplicadas, raciocínio não-elementar e alguma “transpiração” na busca de instrumentos explicativos de realidades complexas, em todo caso não-óbvias. 

Em outros termos, conformando-se às tendências inatas à preguiça e à acomodação, na ausência de perigos ou de estímulos externos à criatividade e à inovação, a maior parte da humanidade adapta-se ao puro senso comum e às explicações elementares, que são obviamente rudimentares, quando não preconceituosas ou francamente equivocadas. Apenas uma pequena parte da humanidade é levada – ou é obrigada – a responder a desafios externos ou à sua própria curiosidade intelectual (que também é inata, mas requer algo mais do que simples ações reativas a estímulos ambientais). Resulta disso a divisão tradicional entre a cultura científica e a cultura popular, já examinada na obra de epistemologistas e de historiadores da ciência, não cabendo aqui qualquer relativismo cultural ou manifestação de “correção política” quanto às virtudes pretensamente igualitárias ou dotadas de alguma “genialidade natural” da segunda em relação à primeira. 

Este me parece ser o “molde sociológico” através do qual seria possível analisar a “emergência” e a “disseminação” de explicações equivocadas, francamente deletérias e (por que não dizer?) totalmente idiotas sobre o mundo real, que resultam dessas crenças “criacionistas” ou anti-evolucionistas que, a exemplo dos EUA, também tendem a se propagar no Brasil a um ritmo impressionante. Para onde quer que se olhe, a constatação parece ser a mesma: mais e mais pessoas, incapazes de se alçar a uma cultura superior – que chamamos de científica –, se deleitam, quando não se comprazem com explicações religiosas simplistas ou com meras superstições. O que é pior: dotadas de acesso aos meios de comunicação – hoje em dia, qualquer um tem acesso à internet, e muito cachorro de madame possui webpage –, essas pessoas passam a expor sem maiores restrições sua profunda ignorância, seus preconceitos tradicionais, seus equívocos de senso comum transmitidos desde o berço a um número incontável – e propriamente incontrolável – de outras pessoas.

Como a exploração da credulidade alheia tornou-se, igualmente, uma prática comum em nossos tempos mercantilistas, sobretudo em algumas vertentes da “indústria religiosa” – que baseia sua ação na “teologia da prosperidade”, antes de mais nada, a prosperidade individual dos próprios “ministros” da nova religião –, é evidente que a imbecilidade humana, como explicitado no título deste ensaio, tenha tendência a aumentar. Torna-se inevitável o triunfo de alguns imbecis – nem por isso menos aptos a extrair renda de pessoas ignorantes e ingênuas – que não sofrem nenhum constrangimento em estender o mais possível sua ignorância enciclopédica em todas as longitudes e latitudes abertas ao seu pouco engenho e baixa arte. Trata-se de um aumento relativo e também absoluto, ou seja: mais e mais pessoas, dotadas de “cultura ingênua”, são mobilizadas pelos espertalhões de plantão, nem todos imbecis ou idiotas; longe disso, pois alguns fazem disso uma profissão altamente lucrativa. 

Por outro lado, é normal que grande parte da humanidade, agora provista de meios de subsistência relativamente satisfatórios, sobreviva e prospere fisicamente (obviamente graças aos progressos da ciência, que alguns tão alegremente ignoram). Agora são indivíduos arrancados de um estado de letargia intelectual para uma situação de exercício ativo de banalidades de senso comum, quando não de imbecilidades coletivas facilmente disseminadas pelo acesso irrestrito aos meios modernos de comunicação. É o triunfo das nulidades, como queria um sábio brasileiro, é a vitória da ignorância de modo amplo, uma vez que os meios técnicos não distinguem entre a boa e a má “cultura”, entre a verdade e a falsidade, entre a racionalidade e o ilogismo mais absoluto.

Na outra ponta, nunca foi tão grande o conhecimento acumulado pela espécie humana sobre sua própria existência e o meio que a cerca. Como a ciência e o conhecimento são cumulativos e, em princípio, não “extinguíveis” – salvo catástrofes humanas e naturais muito amplas –, a única previsão possível nesse terreno é a expansão e aperfeiçoamento do saber científico, em benefício do conjunto da humanidade, mesmo os mais imbecis. Ou seja, mesmo aqueles fundamentalmente estúpidos a ponto de recusar uma explicação científica para a origem de seus males eventuais, podem ter suas vidas salvas pelos progressos da medicina e assim, num exercício de “darwinismo involuntário”, continuar a disseminar impunemente a sua ignorância e seus preconceitos à sua volta ou a uma geração de idiotas mais à frente. Um exemplo: aqueles que recusam a transfusão de sangue podem ser salvos por injunção legal ou pela mudança temporária de religião – alguns não idiotas a esse ponto –, a tempo de permitir a operação médica e sobrevivência. (Alguns darwinistas radicais talvez não estejam de acordo com essa sobrevivência dos ineptos, mas a perspectiva humanitária comanda que façamos todo o possível para salvar nossos semelhantes.).

Em resumo: a ciência e a racionalidade progridem a olhos vistos, e elas tornam a vida de todos melhor e mais longa. Elas sempre serão restritas a um número relativamente pequeno de seres humanos, em todo caso até que a educação de qualidade e o espírito de pesquisa se tornem mais amplamente disponíveis nas sociedades. A ignorância e o preconceito recuam no conjunto, mas eles continuarão a ser muito comuns, na medida em que também constituem características tradicionais – eu não diria inatas por respeito ao gênero humano – das sociedades. 

Concluindo: a imbecilidade humana tem, sim, aumentado, pela força dos números, mas ela comanda cada vez menos os destinos da raça humana, graças aos progressos da ciência. Ou estarei errado?

sábado, 12 de novembro de 2016

Augusto de Franco: democracia boçal, americana (mas não só ela)

Boçal

Uma análise da vitória de Trump no colégio eleitoral 
Augusto de Franco

Dagobah, n. 31, 12/11/2016


A eleição de Trump é mais uma consequência da dilapidação progressiva do capital social americano, já diagnosticada por pensadores como Robert Putnam (1995) em Bowling Alone: America's Declining Social Capital e Jane Jacobs (2004) em Dark Age Ahead. A progressiva dominância do governo central, a feição quase monárquica do presidencialismo americano, a ascensão do chamado "complexo industrial-militar" (sobretudo a partir do final do governo de Dwight Eisenhower) foram pontos de inflexão importantes nessa trajetória de centralização que, de certo modo, deturpou aquele surpreendente processo de constituição de um governo civilpercebido por Alexis de Tocqueville em 1835, quando escreveu o primeiro volume de A Democracia na América. Só muito tempo depois de Tocqueville, Jane Jacobs usinaria o conceito de capital social. Mas não importa, pois era disso que Tocqueville falava em meados do século 19. 

Sim, a democracia deve muito à experiência americana. E, por ironia, o enfreamento do processo de democratização nos Estados Unidos também é paradigmático. Para os democratas, a história americana revela o que fazer e o que não fazer. Assim como a formação da network da Filadélfia, que escreveu de forma distribuída (a várias mãos) a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (ratificada em 4 de julho de 1776) inaugurando uma nova realidade social capaz de suportar sua inédita reinvenção política, a eleição de Donald Trump parece indicar o ponto mais baixo dessa curva histórica de depressão da democracia americana. 

O agente é circunstancial. Mas, no caso, é significativo que a consequência tenha vindo por meio de um ator boçal: o milionário midiático Donald Trump. 

É claro que Trump não conseguirá fazer boa parte do que anunciou. Não vai fabricar nos USA o que é fabricado na China e em outros países asiáticos, trazendo as empresas americanas de volta para o solo pátrio. Não vai construir um muro total, separando os USA do México, nem tratar os mexicanos como potenciais delinquentes e estupradores. Não vai deportar em massa os cerca de 11 milhões de imigrantes ilegais. Não vai legalizar procedimentos de tortura (como o afogamento) como método de interrogatório (ainda que isso vá continuar acontecendo clandestinamente). Não vai conseguir tornar hegemônica a narrativa maligna de que o mundo seria melhor se ditadores corruptos e assassinos como Sadan Hussein e Muamar Gadafi estivessem no poder. Não vai fazer a maioria das pessoas achar aceitável abandonar o povo sírio nas mãos da dupla genocida Assad-Putin. E não vai bipolarizar o mundo novamente (num jogo de cartas marcadas com o ditador Putin, a despeito dos elogios mútuos trocados pela dupla sinistra durante a campanha), reeditando a política de blocos e a guerra-fria dos anos 1945-1991 (ainda que muitos autocratas nativos, como Olavo de Carvalho, avaliem que isso seria desejável como prevenção contra uma guerra-quente). 

E também é claro que o bufão será domesticado pelo establishment, que não se resume ao sistema partidário, mas envolve profundos interesses de um "complexo pós-industrial-militar", das elites políticas e econômicas enraizadas em estados (que já funcionam mais como sócios de uma grande corporação privada do que verdadeiros estados unidos pelo ideal da democracia e em prol da liberdade), da monstruosa comunidade de informação, segurança e defesa (que tem mais autonomia do que seria prudente - e aceitável por Estados de direito - em relação aos representantes eleitos), da mídia broadcasting (mais comprometida do que se pensa com a "corporação" público-privada) e até da suprema corte (idem). Isso tudo e mais um pouco compõe o chamado "sistema". 

O sistema - pelas razões que serão expostas mais adiante - tornou-se inadequado para apascentar os insatisfeitos, que lhe mandaram então um recado nestas eleições de novembro. Como observou, no caso corretamente, o delinquente político Michael Moore

"to stick to all of them, all who wrecked their American Dream! And now The Outsider, Donald Trump, has arrived to clean house! You don't have to agree with him! You don't even have to like him! He is your personal Molotov cocktail to throw right into the center of the bastards who did this to you! Send a message! Trump is your messenger!" 

Sim, é óbvio que esse sistema se tornou inadequado para operar a domesticação das pessoas que quer controlar, mas não impotente em relação aos seus próprios operadores. Uma coisa é um candidato servir de mensageiro para um voto contra o sistema. Outra coisa é o sistema aceitar um presidente contra o sistema. Não vai acontecer. 

Dito isto, voltemos às razões da vitória trumpista no colégio eleitoral. A primeira pergunta é: quem mandou o recado? 

A eleição de Trump é uma resposta à crise dos chamados "perdedores" da globalização, que gostariam que o mundo permanecesse arrumado segundo a velha ordem ou ao imaginário estabelecido sobre uma memória falsificada: ah! antes era melhor: cada país no seu lugar, com o nosso país na frente, cada qual cuidando do seu próprio interesse, desde que o nosso esteja garantido (sem mexicanos tomando nossas vagas)... 

Não, não é apenas Trump que é boçal. Boçal mesmo é o modo-de-vida subordinado de boa parte dos seus eleitores. Entenda-se bem: os eleitores não são boçais (no sentido de que não saberiam votar para escolher o melhor), boçal é o modo-de-vida a que foram submetidos e que reproduzem, não vendo perspectivas a não ser a volta ao passado. É claro que o populismo nacionalista da "America First" de Trump se ajustou como uma luva à tal situação, como resposta à desesperança dos que não podem mais recuperar o status que tinham (ou que hoje imaginam que tiveram) na sociedade industrial do século 20. 

É um imaginário de escravos. Não foi um reclame típico de empreendedores e inovadores da Califórnia, de Vermont, de Massachusetts, de Maryland ou de Nova York e sim o de empregados de Ohio, Iowa, Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, de pessoas que se conformam em vender sua força de trabalho para realizar o sonho de alguém, seja qual for e seja de quem for, desde que tenham recursos para comprar e pagar suas contas de sorte a poder continuar a comer e beber, se abrigar, se divertir no pouco tempo livre que sobra aos escravos, acasalar, se reproduzir e morrer. Mutatis mutandis, foram as mesmas pessoas (no sentido de que foram os mesmos mundos sociais onde vivem - e são - essas pessoas) que aprovaram o "brexit", nas regiões industriais deprimidas de Midlands na Inglaterra: a desilusão dos novos escravos com o Partido Trabalhista inglês foi uma espécie de prévia do desencanto americano com Obama, sua candidata Hillary e, até, com Bernie Sanders. 

A segunda pergunta é: por que isso aconteceu? Não sendo possível paralisar a globalização, por que a democracia americana não conseguiu se aggiornar para acompanhar as mudanças? A vitória de Trump - tendo ele dito o que disse durante a campanha - revela que a política não conseguiu refazer suas congruências com um mundo que está longe de ser o mesmo da época dos founding fathers, de Wilson, de Truman, de Roosevelt, de Eisenhower e de Kennedy. 

Os males da globalização se resolvem com mais globalização, não com a fuga para trás, refugiando-se no velho localismo conservador (não-cosmopolita) do meio-oeste americano. O espírito comunitário que produziu uma quantidade espantosa de capital social nos USA só pode permanecer como glocalismo, posto que ocorre em uma era em que há a possibilidade de conexão local-global ou na qual o local conectado é o mundo tudo. Qualquer outro tipo de localismo - e o "America First" é um localismo - leva ao enfreamento do processo democrático e à recusa à sociedade-em-rede. Essa, aliás, foi a origem da Al Qaeda nas caciquias tradicionais da Arábia Saudita. Foi, como o trumpismo, um movimento anti-globi

As elites pós-industriais, sintonizadas com a globalização, não conseguiram estabelecer uma ligação com a retaguarda atrasada, composta pelos setores que não acompanharam a mudança. A fratura entre centro e periferia que se vê em todo lugar, em geral abordada em termos econômicos, também se reflete na esfera da política dentro de cada lugar, de cada país. O mundo mudou mais rápido do que o sistema político. O chamado "cinturão da ferrugem" (na Inglaterra, assim como nos USA e em várias partes do mundo) não se vê representado por esse velho sistema e votou contra ele. 

Aqui o mais importante para decifrar o que ocorreu. O mundo é novo, mas o sistema é velho. Ao votarem contra o velho sistema, desgraçadamente, os excluídos da globalização votaram contra o mundo novo e por isso seu movimento é regressivo. A culpa (se é que há alguma) não é de quem votou e sim de quem não conseguiu refratar politicamente uma nova realidade social. Assim, as elites políticas quer perderam a eleição, revelaram-se tão boçais quanto o trumpismo e tão boçais quanto o modo-de-vida anacrônico dos que aderiram ao trumpismo. 

Apenas um exemplo, dentre muitos que poderiam ser fornecidos. As regras do sistema eleitoral americano envelheceram. Ah! Mas elas não foram escritas ontem - diriam os conservadores. Não? Então, mais um motivo. Quem quer coisas perenes, que permanecem eternamente como foram, é o autocrata prototípico Gilgamesh, não a democracia. Na saga mesopotâmica, Gilgamesh, como se sabe, tentou alcançar a imortalidade, o que não lhe foi concedido pelos deuses (ou por aqueles seres horríveis, não-humanos, desumanos, genocidas, intrigantes e corruptos, que os sumérios consideravam como seres superiores e que, milênios depois, os gregos foram chamar de deuses). Na sua volta à realidade, Gilgamesh resolveu erigir edificações monumentais, pirâmides monstruosas - como o são qualquer templo ou palácio -, para perenizar num mundo morto, construído, aquilo que não havia conseguido alcançar no mundo vivo (e com-vivo), tentando se vingar do fluxo transformador que o faria pó em pouco tempo. 

Alguém vencer no voto popular e perder no colégio eleitoral é uma possibilidade admitida por uma regra que fazia sentido quando foi inventada, mas numa sociedade altamente interativa, que se transforma ao sabor do vertiginoso fluxo interativo da convivência social muito mais rapidamente do que as instituições do Estado, insistir em mantê-la só aumentará a defasagem entre a planície e o planalto (para usar uma metáfora brasileira, mas talvez não só... predadores e senhores surgiram como representantes do altíssimo e costumam aparecer nas alturas) e contribuirá para aumentar a crise do sistema representativo. 

O presidencialismo americano foi uma espécie de sucedâneo democrático mal-arranjado da monarquia. A revolução americana tinha de dar uma resposta que equiparasse seu moderno sistema representativo aos padrões civilizatórios da velha Europa. Mas isso passou. A necessidade de perenidade esvaneceu. As regras numa democracia são sempre transitórias. E os lugares são sempre vazios. Manter as regras arcaicas para preencher os lugares é uma operação mágico-sacerdotal de caráter autocrático, não democrático. As regras da democracia, reduzida a um modo de administração política do Estado-nação, podem conspirar contra o processo de democratização. É o que estamos vendo. 

Mesmo que Trump não consiga realizar o que prometeu - e mesmo que, por um conjunto de circunstâncias, acabe fazendo um governo não de todo detestável ou até razoável -, sua eleição, em si, foi prejudicial à democracia. Todas as explicações - inclusive as que foram expostas neste artigo - não podem apagar essa realidade.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Ricardo Bergamini contra os mandarins da República...

...que estão inviabilizando a República.
Tem todo o meu apoio, a despeito de eu também ser um mandarim da República (mas em primeiro lugar, um cidadão consciente da nação e sabedor dos privilégios inaceitáveis do ponto de vista de todos os trabalhadores brasileiros, que financiam esses privilégios).
Paulo Roberto de Almeida 

Prezados Senhores

Em primeiro lugar desejo parabenizar a luta das instituições abaixo na defesa da democracia brasileira. 

Não podemos aceitar que um grupo refece de demônios, encastelados no Congresso Nacional, com uma ficha criminal extensa, com a falsa justificativa de ajuste fiscal, implante uma ditadura no Brasil. 

A origem do grave problema brasileiro está no abaixo colocado. O resto é papo de vigarista.  ´

- Na história do Brasil a nação sempre foi refém dos seus servidores públicos (trabalhadores de primeira classe), com os seus direitos adquiridos intocáveis, estabilidade de emprego e licença prêmio sem critério de mérito, longas greves remuneradas, acionamento judicial sem perda de emprego, regime próprio de aposentadoria (não usam o INSS), planos de saúde (não usam o SUS), dentre muitos outros privilégios impensáveis para os trabalhadores de segunda classe (empresas privadas). Com certeza nenhum desses trabalhadores de primeira classe concedem aos seus empregados os mesmos direitos imorais.

- O Congresso Nacional é constituído por 513 deputados federais e 81 senadores e para atenderem a esses 594 senhores, segundo o ministério do planejamento, em dezembro de 2015 existiam 24.896 servidores ativos que custaram R$ 5,4 bilhões. Considerando também os 10.360 servidores inativos que custaram R$ 3,5 bilhões o custo total com essa imoral e criminosa usina de gastos públicos foi de R$ 8,9 bilhões.

- Transferindo essa usina de gastos públicos para 26 estados, DF e 5.570 municípios chegarão à conclusão que somente os ingênuos acreditam em ajuste fiscal no poder público brasileiro.

- Um grupo de trabalhadores de primeira classe (servidores públicos) composto por 13,2 milhões de brasileiros (ativos, inativos, civis e militares) que representam apenas 6,39% da população brasileira, sendo 2,2 milhões federais, 4,5 milhões estaduais e 6,5 milhões de municipais gastaram em 2015 o correspondente a 14,98% do PIB. Esse percentual representou 46,18% da carga tributária que foi de 32,44% do PIB em 2015.

Nota Pública - Manifestação contrária à PEC 55/2016 (PEC 241)

09/11/2016

 

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A Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (FRENTAS) composta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Associação Nacional do Ministério Público Militar (ANMPM), Associação dos Magistrados do Distrito Federal e Territórios (Amagis-DF), Associação dos Membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (AMPDFT), em parceria com a Auditoria Cidadã da Dívida, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal no Brasil (ANFIP), a União dos Auditores Federais de Controle Externo (AUDITAR), a Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (FEBRAFITE), vêm a público manifestar-se contra a PEC 55/2016, atualmente em tramitação no Senado Federal.

 

1 – A PEC 55 (PEC 241) COMPROMETE OS DIREITOS SOCIAIS previstos no art. 6º da Constituição ao congelar as despesas primárias, tendo como base o ano de 2016, já marcado por graves cortes orçamentários, atualizando apenas pelo IPCA. Isso prejudicará a prestação dos serviços públicos no país;2 - A PEC 55 (PEC 241) pretende inserir no texto constitucional um teto para as despesas primárias. Dessa forma, será gerada uma sobra de recursos, que se destinarão às despesas financeiras, cujo maior beneficiado é o setor financeiro. A PEC também viola o art. 167, III, pois limita exclusivamente “a despesa primária total”, destinando todo o restante dos recursos para a dívida pública, sem qualquer teto, limite ou restrição;

 

3 – A PEC 55 (PEC 241) NÃO CONTROLA OS GASTOS MAIS ABUSIVOS DO BRASIL, pois exclui do congelamento os gastos com a chamada dívida pública, que nunca foi auditada, como determina a Constituição (art. 26 ADCT), e sobre a qual recaem graves indícios de ilegalidade, ilegitimidade e até fraudes. Os gastos com a dívida pública já consomem, anualmente, quase metade do orçamento federal e sequer sabe-se quem são os sigilosos beneficiários desses gastos; 

 

4 - A PEC 55/2016 PRIVILEGIA OS BANQUEIROS, que lucram extraordinariamente no Brasil. Os juros abusivos, a remuneração da sobra de caixa dos bancos, as operações de swap cambial, os prejuízos do Banco Central e todos os demais privilégios que utilizam o Sistema da Dívida serão beneficiados, enquanto que os investimentos sociais ficarão congelados;

 

5 - A PEC 55 (PEC 241) COMPROMETE OS DIREITOS SOCIAIS previstos no art. 6º da Constituição ao congelar as despesas primárias, tendo como base o ano de 2016, já marcado por graves cortes orçamentários, atualizando apenas pelo IPCA. A PEC também viola o art. 167, III, pois limita exclusivamente “a despesa primária total”, destinando todo o restante dos recursos para a dívida pública, sem qualquer teto, limite ou restrição;6 - A PEC 55 (PEC 241) AFRONTA OS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA constantes do art. 3º da Constituição, inviabilizando o direito ao desenvolvimento socioeconômico do país, a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades flagrantes que colocam o Brasil na vergonhosa 75ª posição no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), medido pela ONU!;

 

7 – A PEC 55 (PEC 241) É INCONSTITUCIONAL, pois contraria o art. 2º da Constituição Federal (Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário), já que, ao impor um teto fixado unicamente aos interesses do Poder Executivo, viola a independência dos demais Poderes, que terão suas atividades prejudicadas;

 

8 – A PEC 55 (PEC 241) É INCONSTITUCIONAL, porque viola as cláusulas pétreas estabelecidas no art. 60, § 4º da CF de 88 (§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – (...); II – (...); III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. Não pode o Poder Constituinte Derivado suprimir direitos fundamentais consagrados pelo Constituinte Originário, havendo assim limites fixados no próprio texto constitucional;

 

9 -  A PEC 55 (PEC 241) É INCONSTITUCIONAL, porque pretende retirar do Poder Legislativo sua prerrogativa de legislar acerca do orçamento, o que deve ser realizado por meio de lei, não sendo a Emenda Constitucional a forma escolhida pelo Constituinte originário;

 

10 - A PEC 55 (PEC 241) É INCONSTITUCIONAL, porque pretende reduzir a capacidade do Poder Legislativo de legislar acerca do orçamento por cinco legislaturas (vinte anos);

11 – As entidades que assinam este documento contestam a forma escolhida pelo Governo para equilibrar as contas públicas, já que pretende amputar direitos, penalizando uma população numerosa e necessitada;

 

12 - A PEC 55 (PEC 241) é injusta e seletiva. Ela elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública;

 

13 - A PEC 55 (PEC 241) não enfrenta o cerne do problema econômico, instalado no modelo tributário injusto e regressivo, e baseia-se em falso diagnóstico, identificando uma suposta e inexistente gastança do setor público, em particular em relação às despesas com saúde, educação, previdência e assistência social, responsabilizando-as pelo aumento do déficit público, omitindo-se as efetivas razões, que são os gastos com juros da dívida pública (responsáveis por 80% do déficit nominal), as excessivas renúncias fiscais, o baixo nível de combate à sonegação fiscal, a frustração da receita e o elevado grau de corrupção;

 

14 – Por fim, deve o Estado Brasileiro cumprir o disposto no art. 3º da Constituição Federal de 1988: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Ricardo Bergamini

Membro do Grupo Pensar+ www.pontocritico.com

ricardobergamini@ricardobergamini.com.br

www.ricardobergamini.com.br

 

 

 

 

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Brazil in the World: um livro de Sean Burges: apresentacao no Itamaraty em 14/11, as 16hs


Sean Burges, professor titular de Relações Internacionais da Universidade Nacional da Austrália e Vice-coordenador do  Centro Nacional australiano para Estudos Latino-americanos encontra-se no Brasil, para participar de um encontro sobre cooperação ao desenvolvimento, envolvendo a Funag e Wilton Park.
Ele é autor de um livro precedente sobre o Brasil após a Guerra Fria: “Brazilian Foreign Policy After the Cold War” (Gainesville: University Press of Florida, 2009) e acaba de publicar  Brazil in the World: The International Relations of a South American Giant (Manchester: Manchester University Press, 2016), sobre a política externa brasileira nas últimas décadas, tanto no plano multilateral quanto bilateral (China, EUA, América do Sul, Sul-Global). 


Para falar um pouco de seu último livro e de suas pesquisas sobre a diplomacia brasileira, o presidente da Funag, embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima, e eu, em minha qualidade de Diretor do IPRI, tomamos a iniciativa de organizar uma apresentação-debate na próxima segunda-feira, 14 de novembro, a ser feita na sala D do Itamaraty, às 16:00hs.
Creio que será uma excelente oportunidade para abordar com Sean Burges as grandes linhas da diplomacia e da política externa do Brasil nas últimas décadas.

 Sumário do livro:

1 Thinking about Brazil in the world 1
2 The domestic foreign policy context 25
3 O jeito brasileiro … the Brazilian way 48
4 Brazil’s multilateralist impulse 64
5 Trade policy 86
6 Brazil Inc. 110
7 Security policy 134
8 Brazil and Latin America 153
9 Brazil and the Global South 174
10 Brazil and the United States 197
11 Brazil and China 222
12 Conclusions and future possibilities 241

Description:


Drawing on over seventy interviews, fieldwork in five countries, and a comprehensive survey of government documents, media reports and scholarly literature, Burges examines a series of issue areas - multilateralism, trade, and security - as well as the pattern of bilateral relations in South America, the Global South and with China and the USA to trace how Brazil formulates its transformative foreign policy agenda and works to implement it regionally and globally.


                Specific focus is given to tracing how and why Brazil has moved onto the global stage, leveraging its regional predominance in South America into a global leadership role and bridge between the North and South in international affairs. The analysis highlights the extent to which foreign policy making in Brazil is changing as a field of public policy and the degree to which sustained political attention is necessary for a dynamic and innovative international engagement approach. Of interest to students, scholars and policy makers, this book casts light not only how an emerging power rises in the international system, but also isolates the blind spots that existing analytical approaches have when it comes to thinking about what power means for the increasingly vocal rising states of the global South.



                About the Author

                Sean W. Burges is Senior Lecturer in International Relations and Deputy Director of the Australian National Centre for Latin American Studies at the Australian National University and a Senior Research Fellow with the Washington, DC-based Council on Hemispheric Affairs.

Um American Brexit: convite para um debate com Thomas O'Keefe, no IPRI

Já me antecipando a um debate que ocorrerá nos próximos dias, e semanas, e meses, sobre o significado da vitória de Donald Trump para a presidência dos EUA (2017-2020) e suas implicações para o Brasil, tenho o prazer de convidar todos os interessados para a palestra, em português, sobre “O que pode o Brasil esperar de um governo Donald Trump nos EUA”, pelo professor Thomas Andrew O’Keefe, antigo chefe do Programa de Estudos da Área do Hemisfério Ocidental do Foreign Service Institute, Departamento de Estado dos EUA. 
Thomas O’Keefe é o presidente do Mercosur Consulting Group, uma firma de consultoria econômica e jurídica com sede em São Francisco, que assessora companhias americanas em seus negócios com a América do Sul, assim como firmas latino-americanas exportando para os Estados Unidos.  Atualmente ministra cursos no Programa de Relações Internacionais da Stanford University, Califórnia. 
Thomas, autor de muitas publicações, é binacional chileno-americano, bilíngue inglês-espanhol, fluente em português e francês, e possui diversas especializações pós-graduadas em várias universidades americanas e Oxford. A palestra será feita  na sala geminada A, no subsolo do Palácio Itamaraty, às 16:00hs da quarta-feira, 23 de novembro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Venezuela: o que vai se passar depois do fracasso do dialogo mediado pelo Vaticano? Ninguem sabe...

Existe algum futuro para o diálogo na Venezuela?


A situação da Venezuela, iniciado o acalentado diálogo entre o governo e as oposições, com mediação do Vaticano, aproxima-se claramente de um impasse, ainda que não se possa prever ainda um desfecho. O governo se empenha em bloquear todas as saídas políticas a um conflito que é o que se estabeleceu em torno da permanência ou não do presidente Nicolás Maduro em seu cargo, esperado pelas oposições numa derradeira saída constitucional, e sabotado pelo próprio governo, o presidente Maduro em primeiro lugar, o PSUV logo em seguida, as FFAA em terceiro lugar, com talvez algumas oscilações de conduta, caso a situação se aproxime de um enfrentamento de tipo violento. Em termos claros, ninguém consegue prever, nem mesmo os principais protagonistas, o que pode ocorrer na Venezuela nas próximas semanas. A situação da população, por sua vez, se agrava cada vez mais, em face do desabastecimento e da própria crise política, alimentada pelo governo diretamente.
O Brasil, país que sob os governos petistas anteriores, em especial o presidente Lula pessoalmente, apoiou aberta e enfaticamente o regime chavista em todas as suas etapas, carrega enorme responsabilidade sobre o impasse que se criou em função precisamente desse suporte político e material fornecido ao regime durante os quase quinze anos de convivência amigável, em grande medida secreta. Não é improvável que o apoio recebido por Chávez de Lula tenha outros elementos a serem considerados do que simples simpatias ideológicas, ou diretrizes emanadas dos comunistas cubanos, diretamente ou via Foro de São Paulo. Os cubanos dominam tão amplamente as duas pontas dessa relação, por motivos que superam o destino individual dos protagonistas, que caberia agregar esse fator em qualquer investigação que se faça sobre os aspectos públicos – negócios, projetos conjuntos, visitas diplomáticas – e sobretudo sobre os aspectos secretos dessa interação pouco documentada nos registros oficiais das duas partes. Agora que Chávez desapareceu – mas os cubanos permanecem – e que o ciclo petista nos quatro últimos governos brasileiros se encerrou, vários elementos dessa relação assumiram necessariamente formas ainda menos claras, ou abertas.
O novo governo do Brasil não tem, obviamente, simpatias pelo regime chavista da Venezuela, mas hesita fortemente quanto aos caminhos a serem adotados, por várias razões, nem todas podendo ser confessadas abertamente. Uma delas, justamente, é a existência de algum comércio residual entre os dois países, uma vez que a Venezuela já chegou a representar um dos mais importantes três ou quatro saldos excedentários das balanças comerciais bilaterais do Brasil. Um rompimento diplomático ou afastamento ainda mais nítido poderia colocar em dificuldade para a liquidação desses saldos, agora irrelevantes no plano macroeconômico, mas ainda importante no plano microeconômico para algumas empresas do norte ou mesmo do sudeste. Existem, por outro lado, vários financiamentos oficiais e negócios em curso, que o governo não quer ver prejudicados se houvesse um rompimento ainda maior do que a atual situação de retirada recíproca de embaixadores.
As hesitações mais importantes se explicam contudo pelo temor de que, ao cabo de uma pressão aberta e declarada do governo brasileiro, sobrevenha um rompimento explícito e formal, o que deixaria o Brasil sem qualquer condição de conduzir contatos, negociações, ou até tratar dos impactos decorrentes do agravamento da crise, sobretudo em seus aspectos humanitários na fronteira e além dela. Essas hesitações são reais, mas não explicam o pouco ativismo do Brasil nos organismos regionais e multilaterais do hemisfério. Por um lado o governo brasileiro não tem nenhuma simpatia pelo presidente da Unasul, não apenas em vista da simpatia sempre demonstrada por Samper em favor dos governos lulopetistas, como também porque essa entidade é considerada como pró-chavista e totalmente complacente com os governos bolivarianos. A OEA, por sua vez, é considerada muito próxima dos EUA para ser eficiente num mecanismo de pressões políticas e de negociações mediadas diretamente por ela (inclusive porque o seu secretário-geral já se inviabilizou como mediador ou patrocinador de um diálogo).
O Mercosul, por sua vez, que já cometeu inúmeras irregularidades nos processos de adesão e de incorporação da Venezuela ao bloco, encontra-se paralisado em função de diferenças de pontos de vista entre seus membros quanto às condições de aplicação da cláusula democrática – Protocolo de Ushuaia – ou qualquer outra medida mais forte. Os chanceleres dos quatro membros originais, à exclusão da própria Venezuela, que tem insistido estar na presidência pró-tempore do bloco, apresentaram uma espécie de ultimatum light à Venezuela, colocando a data de 1/12/2016 como o limite de tempo no qual a Venezuela deveria cumprir uma série de requisitos técnicos para confirmar sua incorporação plena às regras comerciais do Mercosul. Mas isso não representa nenhuma grande ameaça ao governo chavista em si, apenas um incômodo suplementar. Nem se sabe o que ocorrerá, efetivamente, após a data fixada pelos quatro membros do bloco.
A crise econômica se aprofunda, a crise política só pode se agravar com as manobras e tergiversações do governo chavista – ou de Maduro pessoalmente – e o Brasil e o Mercosul encontram-se totalmente indecisos quanto ao que fazer para poder influir no processo político venezuelano. De fato, uma atitude mais incisiva por parte do governo Temer do Brasil teria um efeito muito limitado sobre os atuais dirigentes da Venezuela, com os quais, de resto, não existe diálogo possível, em vista das ofensas já dirigidas pelo presidente Maduro e por sua chanceler contra o governo “golpista” que assumiu oficialmente pouco mais de dois meses atrás (mas o distanciamento já tinha se manifestado desde maio último, com o afastamento provisório da presidente).
Aparentemente, portanto, a crise venezuelana continuará se desenvolvendo com sua dinâmica própria, com um papel irrelevante, ou absolutamente marginal, dos países vizinhos e das organizações regionais num processo que pode atingir algum clímax nas próximas semanas, com o fracasso previsível do atual diálogo mediado pelo Vaticano.
O que fará o Brasil? Provavelmente muito pouca coisa, além de preparar as FFAA para atuar na fronteira de Roraima para acolher um eventual afluxo ainda maior de venezuelanos, fugindo por motivos econômicos, ou saindo no seguimento de uma crise ainda maior, com derramamento de sangue, divisão das forças militares e políticas (do PSUV), e precipitação de choques violentos entre protagonistas ainda não de todo definidos. Se a situação se agravar realmente, nenhum dos órgãos regionais está em condições de exercer qualquer papel protagonista, e talvez o assunto reverta ao próprio Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Não está claro que o Brasil esteja em condições de assumir qualquer liderança em qualquer cenário que se desenho, e isso é preocupante para um candidato a líder regional e alegadamente a uma cadeira permanente no CSNU. A única organização supostamente habilitada a atuar, politicamente, seria o Conselho de Defesa da Unasul, que é singularmente inoperante uma vez que a divisão entre bolivarianos e os demais países se fará clara desde o primeiro momento.
Ou seja, estamos numa situação de impasse real na Venezuela e de total indefinição da parte dos seus vizinhos e organismos regionais. O Brasil deveria, há muito tempo, ter proposto a criação de um “Grupo de Apoio ao povo venezuelano”: ele não o fez, não fará, e não tem condições diplomáticas ou políticas de fazê-lo. Pobre povo venezuelano, abandonado e sem solidariedade real na região ou fora dela.