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sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

O capitão aprendiz de feiticeiro na construção da ditadura - José Eduardo Faria

 Política 

Onde estavam os “espíritos poderosos”?

José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). É professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012, além de Prêmios Esso de Jornalismo (1974 e 1976).

Apogeu e demolição da política externa brasileira - novo livro de Paulo Roberto de Almeida

Repetindo a informação sobre o novo livro:  

Apogeu e demolição da política externa brasileira: reflexões de um diplomata não convencional - Paulo Roberto de Almeida

 Meu livro está pronto; só falta publicar: 


Apogeu e demolição da política externa brasileira: 

reflexões de um diplomata não convencional

 

 

Prefácio:

Uma história sincera do Itamaraty?

 

1. Um novo animal na paisagem: o globalismo e os seus descontentes

1.1. Dos antiglobalizadores aos antiglobalistas?

1.2. À la recherche du globalisme perdu

1.3. Os nacionalismos canhestros: genitores do antiglobalismo

 

2. As relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica

2.1. Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil

2.2. Etapas das relações internacionais do Brasil

       2.2.1. O Império: a construção da nação e as bases da diplomacia

       2.2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

       2.2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

       2.2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático

2.3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil

       2.3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

       2.3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

       2.3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

       2.3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

       2.3.5. A primeira era do Nunca Antes: a diplomacia personalista de Lula

       2.3.6. Uma transição pouco convencional: retornando a padrões anteriores

       2.3.7. Uma segunda era do Nunca Antes: a diplomacia bizarra de Bolsonaro

2.4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?

2.5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização

 

3. Processos decisórios na história da política externa brasileira

3.1. O que define um processo decisório: observações preliminares

3.2. A diplomacia brasileira como instituição

3.3. A estrutura orgânica da diplomacia brasileira

3.4. Os processos decisórios na diplomacia brasileira

3.5. Virtudes e defeitos do processo decisório na diplomacia lulopetista

3.6. A degradação da cadeia de decisão no governo Bolsonaro

3.7. Conclusões: como funciona, como talvez devesse funcionar...

 

4. A política da política externa: as várias diplomacias presidenciais

4.1. Participação dos presidentes em política externa: da omissão ao ativismo

4.2. O início da liderança presidencial em política externa: a era Vargas

4.3. JK e o desenvolvimentismo: a caminho da política externa independente

4.4. O regime militar: tudo pelo “Brasil Grande Potência”

4.5. Redemocratização: crise externa e integração regional

4.6. Os anos FHC: enfim, uma diplomacia presidencial

4.7. Os anos Lula: o ativismo como norma, o personalismo como finalidade

4.8. A tímida diplomacia presidencial de Michel Temer

4.9. A antidiplomacia de Bolsonaro e dos assessores aloprados: afundamento

4.9. Conclusões: caminhos erráticos da diplomacia presidencial brasileira

 

5. O outro lado da glória: o reverso da medalha da diplomacia brasileira

5.1. Tropeços na independência e durante o império

5.2. Os fracassos da primeira diplomacia republicana

5.3. A difícil construção de uma diplomacia autônoma, e consciente de sê-la

5.4. A diplomacia profissional, como base da diplomacia presidencial

5.5. A deformação da política externa sob a diplomacia bolsolavista

 

6. Relações com o Big Brother e os vizinhos regionais

Introdução: a importância da descontinuidade, em circunstâncias inéditas

6.1. A importância histórica das relações regionais e hemisféricas

6.2. Da aliança não escrita aos impasses políticos e econômicos

6.3. Bolsonaro e uma inédita relação de alinhamento sem barganha

6.4. A desintegração regional e o desalinhamento com os vizinhos 

6.5. Qual o futuro da integração, do Mercosul, da política externa brasileira?

 

7. Degradação democrática e demolição diplomática 

7.1. O destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira?

7.2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

7.3. O que fazer na ausência de um estadista circunstancial?

7.4. Uma inédita ruptura nos padrões tradicionais da política externa 

7.5. O alinhamento automático ao presidente Trump: um escândalo temporário

7.6. A hostilidade em relação à China como critério da identidade comum

7.7. O isolamento na esfera internacional e no contexto regional

7.8. O caso da tecnologia 5G: prejuízos reais em qualquer hipótese

7.9. O caso da Amazônia: uma extraordinária vocação para o erro

7.10. A postura no caso da pandemia da COVID: negacionismo em toda a linha

7.11. Uma nova Idade das Trevas?

 

8. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia 

Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira

8.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional

8.1.1. Etapas percorridas em 200 anos de história institucional

8.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais

8.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa 

8.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos

8.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas

8.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores

8.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado

8.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país

8.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos
8.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país

8.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa

8.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais

8.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades

8.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento

8.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil

8.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança

8.3.2. Responsabilização, abertura e transparência nas funções

8.3.3. Capital humano de alta qualidade: base de uma diplomacia eficaz

8.3.4. Planejamento estratégico como prática contínua da diplomacia 

 

Conclusões: 

Um governo dantesco e os desafios de uma diplomacia ideológica 

 

 

Bibliografia e referências

Nota sobre o autor

 


 

Para o Brasil, esta é a hora do domínio das trevas. O Brasil nos dói, faz sofrer nosso coração de brasileiros. Também em nosso caso, a primeira atitude terá de ser a vergonha das coisas presentes como condição para despertar o espírito da nação. Reformar e purificar as instituições políticas, reaprender a crescer para poder suprimir a miséria e reduzir a desigualdade e a injustiça, integrar os excluídos, humanizar a vida social. Ao longo de todo este livro, tentou-se jamais separar a narrativa da evolução da política externa da História com maiúscula, envolvente e global, política, social, econômica. A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo.

 

Rubens Ricupero:

A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016

(Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 738-9)

 



Prefácio

Uma história sincera do Itamaraty? 

 

Entre a última década do século XX e a primeira do século XXI — quando o mundo finalmente se libertou da velha Guerra Fria geopolítica, com a implosão do socialismo e o desaparecimento da União Soviética, e adentrava, talvez, numa nova Guerra Fria econômica, com a ascensão fulgurante da China —, a política externa brasileira conheceu um possível apogeu. Simultaneamente, e daí decorrente, a diplomacia profissional desfrutava de seu maior prestígio, bem merecido.

Nos dias que correm, nos dois anos finais da segunda década deste século, ambas, a política externa e a diplomacia, enfrentam o que foi chamado de demolição, tanto no plano substantivo — o do conteúdo da política externa — quanto no plano operacional ou institucional, ou seja, o da diplomacia. O contraste não poderia ser maior, o que talvez explique que, nos dezoito primeiros anos deste milênio, eu tenha publicado cinco livros, especificamente sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, e que desde o início de 2019, eu já tenha publicado quatro livros sobre os mesmos temas, sendo este o quinto.

Acompanhei, algumas vezes como ator ou protagonista, outras vezes mais como observador ou espectador engajado, os principais episódios e desenvolvimentos dessas duas décadas, sobre elas oferecendo minhas análises críticas, observações, comentários, meu testemunho e minhas reflexões numa dúzia de livros, incluindo obras sobre outros temas, que não apenas política externa e diplomacia brasileira, em edições de autor e em formato digital, grande parte disponíveis nas plataformas de interação acadêmica; Todos os demais temas — isto é, integração, globalização, política econômica brasileira, história econômica, economia mundial, resenhas de livros, artigos sobre a atualidade internacional – figuram numa infinidade de artigos, notas e postagens – notadamente em meus blogs e ferramentas de comunicação – que cobriram, mais especialmente, minhas “afinidades eletivas”, isto é, meus campos de estudos, pesquisas, aulas e trabalho, em relações econômicas internacionais: integração regional, comércio mundial, finanças internacionais, investimentos estrangeiros, propriedade intelectual, história diplomática e as relações exteriores do Brasil. 

Posso dizer que fui feliz nessas duas vertentes de minha vida adulta e profissional, as atividades diplomáticas, por um lado, as lides acadêmicas, por outro, estas em meio a um intenso engajamento e dedicação na primeira vertente e, portanto, com algum sacrifício pessoal e familiar na segunda, mas este plenamente assumido, com tanto prazer e satisfação intelectual logrados, quanto na dimensão profissional. Na verdade, a atividade docente precede a inclusão na carreira diplomática, acompanhou sua trajetória em quase todas as etapas – no Brasil sempre, no exterior ocasionalmente – e explica essa feliz integração entre o desempenho profissional e o exercício docente, pois uma fecunda a outra e ambas estão igualmente presentes na produção intelectual.

 

No início daquela última década do século XX, eu estava concluindo meu terceiro posto na carreira, em Genebra, o primeiro multilateral (depois de dois primeiros bilaterais, o segundo coincidindo com um doutorado), sob a chefia do embaixador Rubens Ricupero, o que representou um grande aprendizado profissional, mas também um enorme desfrute intelectual. No primeiro ano da década de 90, eu já estava indo para o quarto posto, o segundo multilateral, na delegação junto à Aladi, em Montevidéu, a convite do embaixador Rubens Barbosa, com quem havia trabalhado logo ao início da carreira, na Divisão de Europa Oriental, ou seja, o mundo do socialismo real, ainda durante a ditadura militar brasileira, cuja doutrina oficial era o anticomunismo (nessa época eu conservava meu caráter de marxista “não religioso”). Foi outra grande oportunidade de aprendizado profissional, sob uma das maiores e mais competentes chefias executivas do Itamaraty, e também mais uma chance de enriquecimento intelectual: foi do trabalho em Montevidéu que retirei a matéria prima para o meu primeiro livro, sobre o Mercosul no contexto regional e internacional; a partir de então, não parei mais de preparar cada novo expediente profissional, cada novo paper acadêmico, cada palestra dada, como partes substantivas de um novo livro.

Talvez aquelas duas décadas de “apogeu diplomático” – um conceito objetivo, que significa tanto fastígio, quanto excelência – possam ser concentradas num único decênio, a segunda metade dos anos noventa e o primeiro lustro do novo milênio: antes disso vivíamos a voragem inflacionária dos anos Collor e Itamar; depois de 2005, atravessamos certa húbris lulopetista, quando o excesso de autoconfiança do presidente e do seu chanceler diplomático desembocaram em certos exageros terceiro-mundistas, provavelmente motivados pela ambição megalomaníaca do presidente na eventual conquista de um Prêmio Nobel da Paz. Mesmo praticando uma diplomacia que não era, em sua essência, muito diferente da anterior, os lulopetistas insistiam em se demarcar da política externa da fase socialdemocrata, classificando todo o período precedente sob o signo “neoliberal”. Não importa muito agora, pois essas duas décadas corresponderam, de fato, ao período de maior expressão e atuação da diplomacia profissional, em toda a extensão de suas qualidades técnicas e intelectuais, com alguns aportes “externos” aqui e ali, como nos casos de chanceleres de fora da carreira: Francisco Rezek, Celso Lafer e Fernando Henrique, por exemplo; havia ainda o apparatchik do PT, também chamado de “chanceler para a América Latina”, que atuava como conselheiro presidencial, mas que respeitava a expertise dos diplomatas profissionais. Depois de uma longa sucessão de chanceleres de carreira na fase lulopetista, dois políticos, senadores do PSDB, ocuparam a chancelaria na transição entre o lulopetismo e essa coisa que foi apelidada de bolsonarismo. No período final do lulopetismo, se registrou um relativo declínio da qualidade da política externa e uma perda de prestígio de sua diplomacia, durante um mandato e meio sob o comando da sucessora de Lula.

 

Mas já a partir do segundo mandato de Lula (2007-2010), tinha ocorrido certa exacerbação do ativismo diplomático do chefe petista, bem mais em função da sua megalomania do que a iniciativas do próprio corpo profissional. Este, em vários casos, nem tomava conhecimento de certos lances da diplomacia “paralela” (e clandestina) do assessor presidencial partidário ou do próprio chanceler: relações com os comunistas cubanos, com os aliados bolivarianos ou “paz na Palestina” e programa nuclear iraniano. Foi a partir do terceiro governo petista, com a inoperância total em diplomacia da presidente escolhida por Lula para ser uma simples boneca de ventríloquo do chefe, que as coisas começaram a se deteriorar do lado da política externa. Por alguma razão desconhecida, Dilma Rousseff tinha desprezo pelos diplomatas, e se enfastiava com a agenda diplomática, a ponto de deixar embaixadores designados aguardando numa longa fila para entregar suas credenciais. 

Depois que, nas eleições de 2014, os diplomatas apostaram na sua derrota, eles e a política externa se viram livres da incômoda presidente com o impeachment de 2016, produto secundário da maior recessão de nossa história, mas também por infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal e a disposições orçamentárias. A partir daí, dois chanceleres políticos operaram um retorno da diplomacia e da política externa a padrões tradicionais e mais conformes aos métodos de trabalho do Itamaraty. Foi quando, depois de muito tempo sem qualquer cargo na Secretaria de Estado, voltei a emprestar minha força de trabalho à diplomacia brasileira, passando a chefiar, na duração do governo Temer, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, o think tank do Itamaraty.

Tão pronto ficaram claras as tendências eleitorais no início do segundo semestre de 2018, eu tinha certeza de que seria exonerado no primeiro dia do novo governo, em função das posturas adiantadas durante a campanha eleitoral e no período de transição. No final desse ano, um grupo de amadores em diplomacia se reuniu secretamente à margem da Casa para operar uma reforma completa na estrutura orgânica, nas unidades setoriais da Secretaria de Estado e nas próprias orientações fundamentais da política externa, sem que qualquer consulta ou informação fossem efetuadas junto à diplomacia profissional. Essa foi a primeira das violências perpetradas contra o Itamaraty. Muitas outras seriam exercidas de modo sistemático e contínuo, nos dois anos decorridos desde então, contra valores e princípios tradicionais da diplomacia, a começar por um bizarro, inaceitável e ridículo antimultilateralismo, uma cópia grotesca do “antiglobalismo” que era praticado pela diplomacia americana sob Trump, e que também se inspirava nas teorias conspiratórias da nova direita americana.

 

O conceito de apogeu, empregado para caracterizar a política externa e a diplomacia nas décadas anteriores ao presente governo – resultado da lenta acumulação de aperfeiçoamentos na substância e na forma das relações exteriores do Brasil –, pode ser considerado como pertencente ao terreno de uma avaliação objetiva, como se a condução dos processos e uma avaliação positiva das realizações alcançadas surgissem a partir de um julgamento factual. Já o conceito de demolição é um conceito ativo, digamos na primeira pessoa – inclusive dada a extrema personalização de todas as políticas públicas sob Bolsonaro –, uma vez que foi o próprio presidente e seu chanceler que declararam o muito que havia a ser “destruído” no Brasil, para adequá-lo e torná-lo conforme ao primeiro governo assumidamente de direita ou de extrema direita no país. 

A parte do “apogeu” da política externa e da diplomacia está descrita e analisada nos capítulos iniciais, que se referem ao itinerário histórico das relações internacionais, o processo decisório na diplomacia brasileira e o exercício da liderança presidencial nessa política. A “demolição”, por sua vez, ainda está em curso, como todos podem constatar, e dela trato dentro das possibilidades do momento, quando vários insucessos e frustrações já se acumularam, em decorrência de uma direção inepta (ou de uma falta completa de visão do país e do mundo), em face das incertezas que ainda podem vir pela frente. 

Minha intenção, inicialmente, seria a de oferecer uma espécie de história sincera do Itamaraty, um projeto que tenho em mente já há algum tempo. Temo, contudo, que ele talvez só possa ser conduzido depois que corações e mentes, ou sobretudo o falar, sejam liberados do ambiente de intimidação que paira atualmente sobre a diplomacia profissional, na Secretaria de Estado e em praticamente todos os postos no exterior. É conhecido, por exemplo, que a partir do marco cronológico das eleições de 2018, e sobretudo a partir de 2019, muitos colegas preferiram ser removidos para consulados, do que ter de cumprir as instruções mais estapafúrdias jamais recebidas por chefes de postos em embaixadas ou delegações junto a órgãos multilaterais (estas especialmente visadas pelos fanáticos do antiglobalismo).

Como descrevi no primeiro livro dedicado aos responsáveis pela “nova política externa para o povo”, estamos em face de uma “miséria da diplomacia”, feita a partir da “destruição da inteligência no Itamaraty”: as antigas posturas fundamentadas em bases técnicas, centradas exclusivamente nos interesses nacionais, foram substituídas por uma série de irracionalidades ideológicas, identificadas com os preconceitos da nova direita, alinhadas, não aos interesses brasileiros, mas aos do governo Trump. Depois disso, o Itamaraty entra num “labirinto de sombras” — título de meu segundo livro — para o qual o adjetivo “sincera” não mais poderia ser aplicado, uma vez que interlocutores da ativa passaram a enfrentar enormes dificuldades para se expressar com toda clareza e transparência sobre uma das fases mais obscuras e vergonhosas da política externa e da diplomacia. O Serviço Exterior passou a ser constrangido, e a viver encabulado, por mais deformações e mentiras do que, comparativamente, no período da ditadura militar, quando agentes consulares eram impedidos de sequer expedir certidões, passaportes e outros documentos para os adversários exilados do regime ou a seus familiares. 

Finalmente, meu mais recente livro dedicado ao trabalho de “demolição” revelou uma “certa ideia do Itamaraty”, no qual eu também tratei dos possíveis caminhos para a “reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia”. Não é uma tarefa fácil, tantas são as incongruências, o desprestígio, o isolamento regional e internacional aos quais o Brasil e sua diplomacia foram relegados em dois anos de desmantelamento promovido pelo próprio governo, contra uma de suas instituições mais renomadas. Vários ex-chanceleres estão ativos nessa reconstrução, ao divulgar, em 8 de maio de 2020, um “manifesto” – anexo a esse livro – apontando diversas inconstitucionalidades presentes na atual antidiplomacia e apresentando os fundamentos conceituais e os elementos práticos desse trabalho de restauração de uma política externa nacional.

O objetivo do presente livro, retomando alguns dos temas e escritos das obras anteriores, é o de relatar, na maior extensão possível, o “surrealismo exótico” sob o qual o Itamaraty e a própria diplomacia governamental passaram a viver desde 2019, quando os titulares da área se aferraram às fantasmagorias demenciais de um guru expatriado. Elementos centrais nesse coquetel destrambelhado de “teses” conspiratórias partem de uma suposta ameaça do “globalismo”, mancomunado ao “comunismo”, junto a outras coisas bizarras como o “climatismo”, o “comercialismo” e outros “ismos”, como sendo os maiores perigos para a sobrevivência da “alma conservadora” do povo brasileiro, além de outras loucuras diplomáticas, só capazes de frequentar mentes muito doentias e desequilibradas. Infelizmente, é o que se registrou até aqui, numa esquizofrenia inédita em quase duzentos anos de história diplomática.

O lado sincero desta obra aparece na auto designação de “diplomata não convencional”, quando poderia ser, ainda mais sinceramente, a de “anarco-diplomata” – do grego an arkhé, sem comando –, que consiste em minha disposição de falar abertamente sobre como o oportunismo rastaquera de certos vira-casacas é capaz de se colocar servilmente a serviço dos agentes mais aloprados de um suposto “movimento conservador”, que, na verdade, pertence bem mais à tribo obscurantista e reacionária dos novos bárbaros. Esse trabalho de denúncia, de crítica, mas também de contribuição preparatória ao esforço de reconstrução substantiva e formal da política externa e da diplomacia profissional terá continuidade, enquanto estivermos submetidos ao arbítrio dos lunáticos do poder, e a despeito do pântano circundante ao Itamaraty. 

O ex-chanceler Azeredo da Silveira costumava dizer que a melhor qualidade do Itamaraty é saber renovar-se. Temo que a tarefa, da próxima vez, será muito mais complicada do que uma simples renovação. O trabalho consistirá em reconstruir os fundamentos conceituais da política externa e as bases operacionais de sua diplomacia, bastante abalados pelos golpes de borduna dos novos bárbaros. Nada que o corpo profissional não consiga fazer, desde que disponha de liberdade para mudar a maior parte, senão tudo, do que foi feito nos infelizes dois primeiros anos da bolsodiplomacia. Os ex-chanceleres já prepararam o “menu” dessa obra de reconstrução, mas será a nova geração que terá de arregaçar as mangas, limpar os escombros e restaurar as linhas suaves do Palácio dos Arcos, o nome do edifício onde está, em Brasília, o Itamaraty.

 

Brasília, 12 de dezembro de 2020

 


Um Mundo Restaurado... e novamente Destruído - Paulo Roberto de Almeida

 Um Mundo Restaurado... e novamente Destruído

Paulo Roberto de Almeida

Para quem viveu, como eu, na oposição ao lulopetismo diplomático durante o período 2003-16, e agora enfrenta a demolição completa do pouco que havia sido restaurado entre 2016 e 2018, os desafios atuais são infinitamente maiores e mais terríveis, no sentido em que se tenta, agora, não exatamente evitar deformações partidárias da política externa, como anteriormente, mas justamente contrapor-se à sanha destruidora dos novos bárbaros contra os próprios fundamentos da política externa e contra valores e princípios que julgávamos assentados na diplomacia brasileira. 

Em quase 200 anos de itinerário de trabalho com vistas ao constante aumento da projeção do Brasil no cenário internacional, nunca tínhamos enfrentado, os diplomatas profissionais, um impulso destruidor tão devastador quanto o que agora se exerce contra um serviço exterior outrora julgado excelente e de altíssima qualidade intelectual: estamos entregues, literalmente atados, a uma malta de ineptos, incompetentes e desvairados mentais, que tudo fazem para rebaixar mais e mais o conceito do Brasil no contexto mundial.

Entre um presidente completamente ignorante em assuntos internacionais, e um chanceler acidental totalmente submisso a amadores incompetentes, o Brasil se isola da região e do mundo, levado pelas mãos (e pés) de um chanceler que se compraz em confimar o país na condição de “pária internacional” (e aparentemente contente de sê-lo).

Formulei reflexões em torno da triste conjuntura atual de nossa diplomacia em meu livro (de próxima edição): “Apogeu e demolição da política externa: reflexões de um diplomata não convencional”, cujo sumário e prefácio já foram apresentados neste mesmo espaço.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 8/01/2021

Apogeu e demolição da política externa brasileira: reflexões de um diplomata não convencional (Brasília: Diplomatizzando, 2020, 245 p.). Capa, sumário, epígrafe e prefácio apresentados no blog Diplomatizzando e nas plataformas Academia.edu e Research Gate

Existe futuro para o Partido Republicano? - Adam Garfinkle

 What now for the GOP?

In the wreckage left by Trump, the path ahead for Republicans will be determined by, among other things, the Democrats' behaviour in office.

Adam Garfinkle

The Straits Times, Jan. 8, 2021


A 1952 short story called Der Tunnel by Friedrich Durrenmatt tells of a student-filled train plying the mountainous Swiss countryside only to suddenly start tumbling over itself ever faster into the void of space. The story seems an apt metaphor for the weird accelerated experience of the Republican Party over the past several weeks.

Let's briefly review what has happened since Nov 3, when an already curiouser and curiouser state of affairs in the affairs of state really began to accelerate into surreality.

President Donald Trump tried everything he could imagine to steal the election. He lied about the potential for fraud before the election, and spread evidence-free Big Lie conspiracy theories after it.

He bullied election officials at will and tried to intimidate the Department of Justice into fabricating evidence that did not exist: Attorney-General William Barr jumped ship rather than sail under that bridge and maybe go to jail for it.

Then Mr Trump's cronies rushed the courts as planned to overturn the results, and they failed in state courts, federal appeals courts and the Supreme Court. Ultimately even Senate Majority Leader Mitch McConnell, having been safely re-elected, peeled off from the President's line.

Next, Mr Trump insisted that state legislatures nullify the popular vote and, talking like a mafia boss, asked state officials, most recently in Georgia, to "find" him votes that didn't exist. Meanwhile, of course, a cascade of "pay-me-later" presidential pardons spewed forth, which Republican Senator Ben Sasse - also safe, thanks to recent re-election - termed "rotten to the core".

Then Mr Trump invited his former national security adviser Michael Flynn, who was granted one of those pardons, to a White House meeting where he suggested that the President declare partial martial law and rerun the election in several states he lost under military supervision.

Mr Trump was reportedly all too open-minded about the idea. This shocked even close aides and resulted eventually, at former vice-president Dick Cheney's initiative, in a powerful public letter signed by all 10 living former defence secretaries proscribing US military interference of any kind in American political dispute.

Mr Trump then tried to get Republicans in Congress to refuse certification of the election on Jan 6. Meanwhile, he storm-tweeted for his supporters to come to Washington that day, never mentioning the messaging of various radical right-wing groups that they should arrive armed.

Thirteen Republican Senators, led by Mr Josh Hawley of Missouri and Mr Ted Cruz of Texas, proved willing to pass this latest loyalty test, which amounted to support for a pseudo-legal coup. But from this group, dubbed the Sedition Caucus in Washington, even Trump loyalist, Senator Tom Cotton - he who once mooted the idea of invoking the Insurrection Act against anti-Trump protesters - refused to associate.

As a parallel last-ditch effort, Mr Trump supported the imaginative but plainly unconstitutional notion put forth by Representative Louie Gohmert of having Vice-President Mike Pence, presiding by law over the Jan 6 ritual, throw out the election results on his own dime.

Then on the morning of Congress' big day came news of the Democratic Senate victories in Georgia, in essence flipping the Senate to the Democrats. That daunted any Republican senator hoping to have any influence after Jan 20, and so kept the number of coup supporters from rising.

At that point, even Mr Trump must have known how it would end, yet he continued searching for scapegoats, with Mr Pence the final designated chump. Ultimately, Mr Pence peeled off, too: The Constitution, mercifully, gave him no choice.

So we see the pattern: As Mr Trump's desperation led to ever more brazen and manifestly unconstitutional tactics, Republicans either with principles (Mr Mitt Romney and Mr Sasse) or some practical sense of their own interests (Mr Barr, Mr McConnell and Mr Cotton) put distance between themselves and the growing surreality of Mr Trump's implosion.


Motive and money

Why did Mr Trump do this? And how have Republicans varyingly reacted as the macabre parade of berserk elephants left increasingly malodorous droppings on the nation's constitutional order?

The first question is easy to answer: for the money. Mr Trump, very deep in debt, raised more than US$200 million (S$265 million) in a mere trice after Nov 3 to fund a mythical legal campaign.

Everyone knows where most of the dough will end up; the only question is whether Mr Trump will actually pay the lawyers who eagerly did his bidding in court, not caring whether they won or lost so long as they could bill the hours.

The second, more complicated question remains a fast-moving target hard to get a bead on.

Soon after Nov 3, we witnessed the expected hedging behaviours from within a party that, with few exceptions, either aided and abetted Mr Trump's "middle-finger" approach to American political norms, traditions and law, or else kept supinely quiet about it.

Thus Maryland Governor Larry Hogan, a vocal Trump critic in his own party (but usefully so in a "blue" state), went out of his way to endorse both Republican candidates in Georgia Senate run-offs. He was hedging towards the Trumpists to stay viable in a party in which his views remain unpopular.

Others like Arizona Governor Doug Ducey, a more party-line Retrumplican, danced the backpedal for fear that the tide might soon flow Mr Hogan's way after Arizona flipped to the Democrats.

For two months after Nov 3, Republican politicians had only one thing on their minds: Would Mr Trump's reign over the GOP continue after his loss? Could he still leverage populist anger to remain party kingmaker?


Game changer in Georgia

Before the year turned, most thought so. Many Republicans wished Mr Trump's spell over the party would end, but most in prominent positions were afraid to act. Wisconsin Republican Senator Ron Johnson claimed a few weeks ago that publicly contradicting the President's mad rants would be "political suicide" for him. Now, a fair number of Wisconsiners want to impeach him.

What changed? The Georgia run-off elections, which the GOP lost, thanks largely to Mr Trump's toxic touch, and the sheer Washington mayhem of Jan 6.

There is still no telling where the GOP train will end up, however. The question still remains: Will South Carolina Senator Lindsey Graham's May 3, 2016 prediction - "If we nominate Trump, we will get destroyed... and we will deserve it" - prove ultimately true or not?

The cauldron of populist resentment in the US has not burned its last, or more than 74 million Americans would not have voted to re-elect a man not fit for office in the first place.

But that same datum also proves something that the American political centre must acknowledge: Just having an idealist view of the human nature and the best of intentions does not exonerate all forms of baseless self-regard, self-dealing, and self-indulgence. If right-wing populism continues to grow and to buoy up the former president's power with it, it will not be for no reason.


Way ahead for democrats

Much related, the Republican Party will go where it thinks the votes are, but that's an ongoing calculation that Democratic behaviour in office will influence.

If the Democratic brain trust continues to prioritise fighting rarefied culture war battles over, say, "transgender issues" involving minuscule portions of the population while ordinary people struggle to put food on the table or pay for their medications, votes will flow to populists left and right.

If it continues to countenance use of the "D" word - "deplorables" - to stigmatise any dissent from "woke" views based in myths of "foundational racism", votes will cascade in furies away from the Democrats. As they should, because those views are wrong.

If soon-to-be President Joe Biden is wise, he will follow his instincts to challenge Republicans to triangulate, Bill Clinton-style, to solve pressing national problems.

If they baulk, they will be blamed for obstruction. If they buy in, Mr Biden will benefit but they will forge a way to bring their party back to its senses. Those chances will rise if Mr Biden can keep his party's left wing from provoking Republicans to arc politically towards their populist support off "woke" red-meat offerings.

As things stand, depending on diverse local political landscapes, some Republicans think the solution to their troubles is "more Trump", in other words, more populist pandering. Others, especially in blue or bluish states, hope to insinuate into being a post-election GOP identity they can live and get elected with that bears little relation to what the Republican Party actually is right now.

How will they explain their past obsequious and evasive behaviour? Easy: They will say it never happened. The Soviets used to airbrush photographs. Some Republicans in this time of reality cyber-warping will seek to airbrush away entire years, and in the current American "bread and circus" spectacle environment, they might get away with it.

So intra-Republican tensions might careen around for a long while, with Mr Trump himself extending the ordeal by haunting the House and Senate from Mar-a-Lago. And that's a problem, because the next would-be authoritarian demagogue to come along might actually be competent, and so politically irresistible.

It's just too easy to imagine a future scenario where, with the courts full of tenured Republican appointees and both Houses of Congress in Republican hands, the craziness of a Louie Gohmert suggesting that one of the two elected members of the Executive Branch could decide for himself whether he and the President could remain in office could actually win the day.

The American constitutional order is now shown plainly to be less than foolproof, and there are just too many fools out there for comfort.


Adam Garfinkle is the founding editor of  The American Interest and a distinguished fellow at the S. Rajaratnam School of International Studies at Nanyang Technological University.