Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Não fosse o candidato que disputará a reeleição, em 2022, conhecido por sua ignorância, pela compulsão à mentira, pelo desprezo ao diálogo construtivo e pela obsessão em desqualificar adversários, os debates entre os candidatos à presidência da República poderiam recolocar na ordem do dia alguns temas esquecidos, como, por exemplo, os relativos à capacidade organizadora, indutora e administrativa do Estado. Como esses temas são fundamentais para o futuro do País, sua discussão poderia ajudar a revigorar a democracia após a deterioração e a polarização do debate público que marcaram a vida política após o pleito de 2018.
Um dos temas mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.
Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.
Para reverter esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa hiper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele que for eleito em 2022.
Outro tema não menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal.
Nas duas ou três últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos meios e instrumentos públicos.
Por causa desse desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo, enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.
Esses governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são intrínsecas do poder público — e, portanto, não intransferíveis, das funções governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a perspectiva particular.
Associado aos demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação propiciaram as decisões em tempo real, tomadas online, e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos Estados.
A história recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da economia, a ponto de influenciar e — até de capturar — o braço monetário dos Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de rentabilidade e atratividade dos investimentos.
Por operar basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade, não sendo mais resultantes — ainda que indiretamente — de escolhas coletivas por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente comprometida.
Este é um dos dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia, propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de educação e saúde — condições necessárias, ainda que não suficientes, para propiciar inclusão socioeconômica.
Um último tema, entre outros não menos importantes, diz respeito à formulação de uma política externa em um mundo de incertezas globais — algo que foi desprezado por um governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais. Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia, vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em desenvolvimento, enquanto países tecnologicamente menos avançados e com baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.
A excessiva dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial. Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram sua vulnerabilidade quando a Covid chegou à China e o governo destinou sua produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações, apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses nacionais.
Ao lado de questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar, comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve, igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos, que podem abrir caminho para tensões internacionais.
Esses são alguns temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com seu círculo de assessores primatas civis e militares, esse debate poderá não ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente, correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da Alegria.
José Eduardo Faria
José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Não fosse o candidato que disputará a reeleição, em 2022, conhecido por sua ignorância, pela compulsão à mentira, pelo desprezo ao diálogo construtivo e pela obsessão em desqualificar adversários, os debates entre os candidatos à presidência da República poderiam recolocar na ordem do dia alguns temas esquecidos, como, por exemplo, os relativos à capacidade organizadora, indutora e administrativa do Estado. Como esses temas são fundamentais para o futuro do País, sua discussão poderia ajudar a revigorar a democracia após a deterioração e a polarização do debate público que marcaram a vida política após o pleito de 2018.
Jair Bolsonaro, que em 2018 se negou a participar dos debates
Um dos temas mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.
Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.
Para reverter esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa híper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele que for eleito em 2022.
Outro tema não menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal.
Planejamento é atividade essencial na esfera pública
Nas duas ou três últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos meios e instrumentos públicos.
Por causa desse desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo, enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.
Esses governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são intrínsecas do poder público – e, portanto, não intransferíveis, das funções governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a perspectiva particular.
Associado aos demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação propiciaram as decisões em tempo real, tomadas on-line, e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos Estados.
O domínio dos mercados financeiros é global
A história recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da economia, a ponto de influenciar e – até de capturar – o braço monetário dos Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de rentabilidade e atratividade dos investimentos.
Por operar basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade, não sendo mais resultantes – ainda que indiretamente – de escolhas coletivas por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente comprometida.
Este é um dos dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia, propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de educação e saúde – condições necessárias, ainda que não suficientes, para propiciar inclusão socioeconômica.
Um último tema, entre outros não menos importante, diz respeito à formulação de uma política externa em um mundo de incertezas globais – algo que foi desprezado por um governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais. Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia, vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em desenvolvimento, enquanto países tecnologicamente menos avançados e com baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.
A produção chinesa impacta o mundo
A excessiva dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial. Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram sua vulnerabilidade quando a Covid atingiu a China e o governo destinou sua produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações, apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses nacionais.
Ao lado de questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar, comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve, igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos, que podem abrir caminho para tensões internacionais.
Esses são alguns temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com seu círculo de assessores primatas, civis e militares, esse debate poderá não ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente, correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da Alegria.
O dia 21 de abril é uma das grandes datas da nacionalidade, geralmente identificada na historiografia como sendo um dos pontos altos da construção do imaginário nacional em torno de algum símbolo unificador da nação. Ela passa antes do 15 de novembro, e talvez até mais enaltecida do que a própria data da “fundação” da República. Definitivamente, o 21 de abril parece bem mais imponente do que o dia vizinho, o do Descobrimento do Brasil, que nem é um feriado oficial, configurando apenas um tema eventual de preleções escolares no 1º. grau. Ela é uma das datas máximas da nacionalidade certamente no estado de Minas Gerais, que conservou o triângulo e o logo dos “inconfidentes” na bandeira estadual e a partir deles fez uma comenda honorífica.
Mas o fato é que o 21 de abril, simbólico a mais de um título, só existe por causa do golpe militar da República, o que é compreensível no plano de uma justificativa construída para reforçar a rejeição do anterior regime monárquico, que dispunha da simpatia do povo, ainda que não mais das elites oligárquicas. Com a revolução francesa, louvada e rejeitada ao longo da Restauração e do novo Império, aconteceu mais ou menos a mesma coisa.
Em vários lugares, em todas as épocas, os novos “donos do poder” (temporários ou “permanentes”, não importa agora), ao lado do trabalho mais prático de organizar o governo, precisam se legitimar socialmente, coletivamente, necessitam se munir de alguns símbolos mais ou menos impactantes ao nível do imaginário popular, daí a construção de versões da história passada que possam contemplar essa necessidade de um embasamento no tempo mais longo da História, de maneira a dar uma sensação de continuidade, de sustentação em certas tradições de maior duração. Daí, entre outros exemplos, a razão do Exército brasileiro proclamar que sua origem está na batalha de Guararapes contra os holandeses, no distante século XVII, quando isso é uma fabulação das mais fabulosas.
A escolha do 21 de abril — de 1792, sublinhe-se, quando o mais importante ocorreu em 1789 — como data relevante da história nacional só poderia mesmo ocorrer na República, uma vez que durante todo o Império não seria concebível homenagear uma insurreição contra o poder dos Braganças, nem uma revolta independentista como a de 1817 em Pernambuco, menos ainda uma outra revolta contra o próprio novo poder do Estado localizado no Rio de Janeiro, como a dos confederados do mesmo estado em 1824. No período monárquico, a construção de uma identidade nacional para o Estado independente tinha de se fazer pela celebração do 7 de setembro, pelos esforços de unificação do país, no imediato seguimento da declaração de autonomia política com relação à metrópole, na repressão às revoltas provinciais contra o arbítrio da capital, ou apenas contra os agravos locais, assim como pela mais complicada superação pela “república Farroupilha” ao sul.
O 21 de abril, nesse sentido, é um pouco artificial, mas havia essa necessidade se superar definitivamente os símbolos do período imperial, daí a busca de um “placebo” para unificar o sentido da pátria republicana. Esse novo “remédio” tinha de possuir o componente republicano que estivera descartado durante as sete décadas de regime monárquico e que podia ser simbolizado por um militar que tinha sido sacrificado por defender a adoção pelo Brasil do mesmo regime que já vigorava desde alguns anos na grande República do norte do Hemisfério, o alferes que, entre suas diversas ocupações, se encarregava de propagar a necessidade desse novo regime, e que para isso carregava sempre consigo um exemplar da Constituição da Filadélfia. O ano, em si, do seu sacrifício, 1792, é evidentemente menos importante do que o ano dos supostos malefícios que seriam acarretados à metrópole se por acaso a pequena revolta tramada pelos “inconfidentes” fosse levada a termo, 1789, quando se havia planejada uma nova “derrama”, que foi justamente suspensa em face da denúncia apresentada às autoridades por alguns dos integrantes da conspiração.
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O próprio nome que ficou consagrado na historiografia, “Inconfidência”, é totalmente injusto com o significado mais profundo de um movimento que fracassou, mas que deixou sua marca, naquele momento, e mais de um século depois. Essa designação, imprópria, reflete o triunfo da visão monárquica em torno daquela tentativa mal organizada e mal preparada de construir a autonomia da nação em face dos desmandos extratores das autoridades metropolitanos e dos seus representantes locais, entre eles o Visconde de Barbacena. Essa visão foi a dos historiadores oficiais, a de um legitimista como Varnhagen, seguido pelos demais cronistas do império e até pelos autores de manuais da República. Foi tão forte a impregnação que a designação de “Inconfidência Mineira” permaneceu em todos os manuais de História, mesmo naqueles declaradamente nacionalistas e independentistas.
Hélio Vianna, porém, que não pode ser acusado de ser m historiador progressista, muito menos simpático às causas libertárias, consignou sua estranheza na obra em três volumes que dedicou à História do Brasil, ao registrar que a “Conjuração Mineira de 1789, impropriamente chamada de ‘inconfidência’”, não poderia ser assim chamada, já que o termo, na época, era reservado aos “acusados de traição ao rei, de falta de fidelidade ao soberano, criminosos de lesa-majestade” (4ª edição; São Paulo: Melhoramentos, 1966, vol. II, tomo II, p. 133). A importância da conjuração, segundo ele, “reside no fato de ter refletido uma corrente de ideias, de que foram propagadores vários intelectuais, sacerdotes, dois militares e outros moradores da Capitania das Minas Gerais” (idem). Varnhagen, por sua vez, em sua História Geral do Brasil, ressalta que a ideia da independência do Brasil surgiu em Coimbra, onde “doze estudantes brasileiros, combinando entre si a possibilidade de se declarar o Brasil independente, comprometeram-se a levar avante a ideia, quando isso fosse possível” (4ª edição; São Paulo: Melhoramentos, 1952, p. 311).
Esta é a mesma opinião de Nelson Nogueira Saldanha, em sua magnífica História das Ideias Políticas no Brasil, para quem, a despeito de designar o movimento como sendo a “Inconfidência Mineira”, situa-o “num feixe de condições mais expressivas: insatisfação econômica, fumos intelectuais, trama insurrecional”, que emergiram a partir do “ciclo do ouro, ensejando o advento de cidades novas”. Como ele relata, a despeito do marasmo intelectual, a situação econômica torna-se menos miserável:
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Aos poucos foi possível a certas famílias mandarem filhos estudar na Europa, onde aprenderam novas coisas, e um certo grupo — um grupo literário — existiu em Minas como expressão cultural formalmente lusa mas capaz de capturar ocasionalmente os problemas brasileiros.
Juntando-se o fato da tensão causada pelo aperto do fisco, e o da presença de um círculo de escritores que pessoalmente compensavam e superavam a ignorância geral, tem-se do ponto de vista histórico-social o dado de uma convergência de situações, em que a consciência literária, ainda presa a moldes europeus, se ligou ocasionalmente a uma necessidade social local. Daí falar-se ‘intelectuais da Inconfidência’, expressão discutível, mas útil; discutível não quanto ao fato de ter uma inconfidência raízes doutrinárias, mas quanto ao fato de serem eles inconfidentes enquanto intelectuais e vice-versa. (Brasília: Senado Federal, 2001, p. 73; 1ª edição, 1966)
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Oliveira Lima, por sua vez, o grande historiador da dominação portuguesa no Brasil e do movimento da independência, também considera que o movimento que ele chama de Conjuração Mineira, era “uma conspiração de homens de letras”, ou ainda, “um movimento de ideólogos” (Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira; Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, p. 121 e 127). De fato, vários dos “inconfidentes” tinham sólida formação escolástica, sendo que o Cônego Luís Vieira da Silva possuía uma imponente biblioteca com centenas de obras, dentre elas várias dos filósofos e enciclopedistas franceses, como relatou Eduardo Frieiro em seu interessante ensaio O Diabo na Livraria do Cônego (1945; Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-USP, 1981). Como acrescentou Nelson Saldanha, com esses autores na cabeça, “punham-se os inconfidentes… a comparar os sucessos europeus e latino-americanos com as potencialidades locais. Não elaboraram uma teoria propriamente, nem mesmo uma doutrina como programa para a ação; apenas queriam libertar-se, e formulavam essa vontade com peças do jogo ideológico francês, em que a ideia de soberania atuava eficaz e aproveitavelmente” (História das Ideias Políticas no Brasil, op. cit., p. 74).
A dimensão das novas ideias provenientes da Europa, acrescida da convicção que a colônia era de fato muito mais rica do que metrópole, mas que era por ela explorada, também é ressaltada pelo maior brasilianista de todos, o historiador Thomas Skidmore, em sua síntese sobre a história do Brasil:
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Enlightenment ideas and material motivations fed the already existing sense among elite Brazilians that they were now economically stronger than Portugal and should be recognized as such. They grew increasingly resentful of the arrogance exhibited by the so-called metropolitans. Open expressions of hostility toward the crown were, of course, dangerous. They could lead to denunciation, arrest, imprisonment, torture, and, in extreme cases, execution. So this resentment simmered beneath the surface, appearing occasionally in satirical verse, such as the Cartas Chilenas (circa 1787-1788), by Tomás Antônio Gonzaga, a thinly disguised attack on the governor’s rule. (Brazil: Five Centuries of Change; Nova York: Oxford University Press, 1999, p. 32)
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Os conspiradores eram, de fato, com poucas exceções, homens de posses, sem intenção aparente de revolucionar a ordem social, recrutando homens pobres ou escravos para a sua causa, ainda que tivessem a intenção de libertar os escravos nascidos no Brasil. Kenneth Maxwell, por sua vez, afirma claramente que se tratava de um movimento feito por oligarcas no interesse dos oligarcas, no qual o nome do povo seria evocado meramente como evocação (Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal, 1750-1808; Cambridge: Cambridge University Press, 1973; publicada no Brasil como: A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808; São Paulo: Paz e Terra, 1978)
Um dos maiores historiadores brasileiros, José Honório Rodrigues, concorda em que se tratava de uma conjuração “preparada por intelectuais”, e que ela “não deixou nenhuma memória da época, a não ser a própria devassa, que não é senão um documento histórico” (História da História do Brasil, 1ª Parte: Historiografia Colonial; São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979, p. 351). Mas José Honório toma o cuidado de transcrever a “única narrativa contemporânea… a do Frei Raimundo Penaforte”, “uma narrativa autêntica e fidedigna” sobre os conspiradores, tal como registrada no documento “Últimos momentos dos Inconfidentes de 1789 pelo frade que os assistiu de confissão” (transcrito na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; 1881, XLIV, parte 1, p. 161-186). Em sua seleção do testemunho do Frei, o grande historiador nacionalista deu atenção aos trechos do relato do Frei em que este sublinha a postura digna de Tiradentes, um dos poucos do grupo de conjurados que não pertencia à classe dos “ideólogos”, que são sempre das “classes dominantes”, como diriam deterministicamente os marxistas. Vejamos o que ele selecionou a esse respeito, pois o 21 de abril de 1792 tem a ver exclusivamente com o alferes conspirador, o único, finalmente, a receber a pena de execução:
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Ele mesmo [ou seja, o Frei Penaforte] diz que ‘chamavam a esse conluio ajuntamento de poetas, querendo significar com isto ser fabulosa a projetada revolução, assim como fabulosos eram os mistérios da poesia’, e em nota acrescenta que ‘quase todos os cabeças eram poetas, que tinham assento no Parnaso português, ou aprendizes’. Trata com simpatia os réus e diz sempre bem de Tiradentes: ‘este homem foi daqueles indivíduos da espécie humana que põem em espanto a mesma natureza’ e logo adiante, na hora extrema da paixão de Tiradentes, conta que ‘ao serem comutadas as penas de morte aos conjurados com a única exceção de Tiradentes, esse revelou sua grandeza, pois sempre pedira’ que fizessem dele só a vítima da lei, e que ‘causava admiração a constância do réu’, ‘o valor, a intrepidez e a pressa com que caminhava’. (História da História do Brasil, op. cit., p. 352)
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José Honório ainda sublinha que existem poucas narrativas contemporâneas sobre a conjuração de Minas, além da devassa, ou sobre a conspiração de 1798, a Revolução dos Alfaiates, que devem “ter abalado a minoria dirigente e a ilustrada do Rio de Janeiro, com repercussão nas regiões mais desenvolvidas, demonstrando assim o pouco interesse pela memória do acontecimento ou o temor de escrever sobre coisas perigosas” (p. 353). As tentativas de conquistar a autonomia dos “brasilienses” sobre os reinóis e seus dirigentes se manifestariam de modo mais afirmado pouco adiante, como o historiador ainda escreve:
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A Revolução de 1817 em Pernambuco foi a única que chegou ao poder por força das armas e tentou, nos dois meses e dias que dominou, implantar reformas de fundo, e criou a primeira constituição republicana representativa brasileira. (José Honório Rodrigues, História da História do Brasil, op. cit., p. 354)
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Conquistada a independência, mas sob o controle dos mesmos Braganças que vinham explorando o Brasil desde a Restauração, não cessou o espírito rebelde dos pernambucanos, como ainda manifestado pela revolução de 1824, que causou a morte de Frei Caneca, mais um dos “ideólogos” libertários do Brasil. Tem razão Evaldo Cabral de Mello ao sublinhar o caráter absolutamente inédito dessa revolução, ao explorar justamente a possibilidade de que pudesse ocorrer uma divisão de fato entre as várias províncias do norte e do sul no processo de independência, o que poderia ter conformado um arquipélago de nações lusófonas na América do Sul, a exemplo da fragmentação hispano-americana na vertente andina (cf. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824; São Paulo: Editora 34, 2004).
De fato, estamos tão habituados à versão tradicional da independência do Brasil, de cunho unitário e quase que “naturalmente monarquista” (que é a de Varnhagen, o “patrono da historiografia nacional”), que negligenciamos outros modos possíveis de desenvolvimento da nação ou de formação do Estado. Esses movimentos de 1817 e de 1824 em Pernambuco, junto com outros do Sul, ficaram agrupados sob o amálgama enganador de “separatismo”, ao passo que os construtores do Império, a partir do Rio de Janeiro, passaram para a história com o beau rôle de unitários e de nacionalistas. Essa é, porém, segundo Evaldo Cabral de Mello, uma perspectiva equivocada, uma vez que, no momento da independência, o Brasil era tudo menos Brasil, e sim um ajuntamento de províncias que se relacionavam mais com a metrópole (ou com a África, por exemplo) do que entre si.
O historiador Luiz Felipe de Alencastro já tinha alertado, aliás, para esse arquipélago de sistemas desvinculados entre si, sem unidade econômica real: um navio do Norte tinha mais facilidade para ir à Europa do que descer a costa atlântica para chegar ao Rio de Janeiro ou ao Sul. Um outro brasilianista, Stuart Schwartz também chamou a atenção para essa fragmentação do Brasil:
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O Brasil não era, em realidade, apenas um, mas era constituído por uma série de colônias. Os ingleses tinham razão quando falavam. Nos séculos XVII e XVIII, dos ‘Brasis’, pois havia de fato mais de uma colônia. (“‘Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o Brasil: a construção de um povo”, in: Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. São Paulo: Senac-SP, 2000; p. 103-125; cf. p. 112)
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Mas o livro de Cabral de Mello sobre a “outra independência” conta a história desse “destino não manifesto” do Brasil, traduzido no desejo de algumas elites regionais, no caso as do Nordeste, de recuperar o poder local, perdido quando da vinda da família real e a centralização operada em favor do Rio de Janeiro. O federalismo, segundo Evaldo, era uma possibilidade real, se alguns destes processos não tivessem ocorrido: a manutenção da dinastia bragantina no Rio, um tratamento mais conforme às aspirações das elites regionais pelas Cortes de Lisboa e a determinação da “administração” da Corte no Rio em preservar sua posição hegemônica. Mas foi uma luta bárbara, na qual a força foi mais importante do que a persuasão. A historiografia ulterior alimentou o “rio-centrismo”, descurando ou desvalorizando os “separatismos” regionais, uniformemente agrupados na rubrica contrária à unidade nacional, quando o que eles pretendiam, na verdade, era uma forma diferente de organização do Estado (e do equilíbrio entre as províncias), provavelmente mais conforme ao modelo proposto nos Estados Unidos poucas décadas antes (como talvez pretendessem os “inconfidentes” das Minas Gerais.
A Bahia, como se sabe, ficou sob ocupação portuguesa no episódio da separação, razão pela qual coube eminentemente a Pernambuco a liderança federalista, quando na verdade ambas as províncias tinham condições econômicas de sustentar um modelo diferente, singularmente autonomista, de construir um Estado não centralizado, ainda que passavelmente unitário, sob a égide da monarquia (mesmo se muitos liberais fossem declaradamente republicanos). Longe de obedecerem a impulsos regionais anárquicos e antipatrióticos, como a propaganda fluminense quis fazer acreditar (dando os exemplos caóticos dos estados hispano-americanos), os patriotas do Nordeste queriam a verdadeira liberdade e a igualdade, num regime de poderes compartilhados.
José Bonifácio foi, neste caso, menos sábio do que o habitualmente afirmado, pois que, partindo da ideia de uma “peça majestosa e inteiriça desde o Prata até o Amazonas”, denegriu o projeto federalista, assimilando-o ao republicanismo e acusando seus líderes de pretenderem um “governo monstruoso”, para serem nas províncias “chefes absolutos, corcundas despóticos”. Os “bispos sem papa”, no dizer de Bonifácio, foram esmagados e assim o Brasil continua a ser até hoje, a despeito da ironia de carregar no nome o adjetivo federalista, a mais unitária das repúblicas americanas.
Se a ideia federalista tivesse vencido no terreno teórico e no plano concreto da organização do Estado imperial, talvez Frei Caneca tivesse se convertido num grande herói nacional, no lugar ou ao lado de Tiradentes, quando da consolidação da República, no início do século XX. Paradoxalmente, ele encarnava mais a ideia federalista do que os próprios conjurados de Minas, que foi o grande princípio unificador das oligarquias republicanas contra o unitarismo do Império. Mas esse federalismo nunca foi verdadeiro, a despeito de a primeira constituição republicana ter proclamado os Estados Unidos do Brasil, numa cópia imperfeita do modelo americano. Nos vários episódios políticos posteriores, sobretudo a partir de 1930, no Estado Novo e na ditadura militar — quiçá até hoje — a federação ainda é a grande ilusão da organização política (sobretudo tributária) do Brasil. Mas é verdade que não se pode implantar uma ideia a partir da superestrutura da organização política, apenas a partir da infraestrutura da organização da própria sociedade, como evidenciado no caso americano.
Tiradentes andava passeando com um exemplar da Constituição da Filadélfia, mas a despeito de ser provavelmente um republicano sincero, é duvidoso que fosse um federalista como a maioria dos founding fathers da nascente república da América do Norte. Uma grande diferença separava os nossos “ideólogos” dos agricultores e comerciantes dos treze estados rebeldes de 1776: eles partiam de uma democracia de base, mais de um mores social — cujas raízes estavam fundadas nas aldeias inglesas da era Tudor, como sublinhou Samuel Huntington em Political Order in Changing Societies — do que de uma construção política à laMontesquieu, baseada na tripartição ideal de poderes, sempre dominados pelas oligarquias. O federalismo no hemisfério Norte não era um tratado de ciência política, e sim a expressão das “tribos” medievais que elegiam os seus xerifes e seus juízes, jamais enviados por um poder central como guardiões da lei ou “juízes de fora”. Nosso federalismo sempre foi uma contrafação do modelo americano, tanto é assim que se abandonou, depois, os “Estados Unidos”, mas se adotou, em seu lugar, o manifestamente contrário à realidade de “República Federativa do Brasil”. Talvez seja uma contradição nos termos ou uma ironia involuntária.
É uma grande diferença com o grande irmão do Norte, e não apenas no plano constitucional, mas isso não diminui em nada o mérito do alferes republicano que carregava a constituição americana no bolso e que acabou virando o grande herói da pátria.
Que continue…
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Paulo R. de Almeida
Paulo R. de Almeida é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
Há muito anos, em uma passagem caricatural de minha formação, estava por contingências da época passeando por um shopping center em São Paulo. Era, então, um estudante de História que, no auge de minhas duas décadas de vida, estava convencido de que visitar um lugar tão ‘capitalista’ era uma grave traição às minhas profundas convicções de que o ‘capitalismo’ era a fonte de nossos maiores problemas, assim como à minha crença de que estávamos, eu e meia dúzia de colegas da faculdade, muito próximos da revolução que acabaria com nosso sofrimento. Entendi, ou tentei me convencer, de que minha visita ao templo do consumo me serviria como aprendizado sobre o inimigo. E assim me mantive, com a presunçosa expressão de quem conhece a História e prevê o futuro, posando de rebelde ante as vitrines cujo objetivo era, para mim, sugar o meu sangue.
Contudo, em uma das paradas que fiz para melhor observar o inimigo em seu pleno funcionamento, dei-me conta de que uma das vitrines, certamente de algum estabelecimento com presença frequente na imaginação dos bem nascidos e nas revistas que determinam a ditadura da moda, tinha como tema de sua nova coleção nada mais, nada menos, do que Ernesto Che Guevara. E, assim, fiquei intrigado buscando entender como o símbolo maior de tudo o que representava meu ódio juvenil ao capitalismo havia se transformado numa camiseta, vendida por preço tão elevado em um local que tem como nome o verbo comprar no gerúndio. E fiquei embasbacado, primeiro com o que avaliei ser o cinismo do capital, mas logo depois com a ingenuidade minha e de meus seis colegas revolucionários da faculdade que acreditávamos carregar as soluções para o mundo. Também fiquei preocupado, pois se os ‘bem nascidos’ podiam ser tão rebeldes como eu comprando uma camiseta com a estampa do Che Guevara, não me sobraria nada, nenhuma marca distintiva, nenhum charme. E, no final, nenhuma razão.
Desde então, não mais deixei de pensar sobre esta aparente contradição. E sobre como muitos já haviam tentado me alertar a repeito dela. Desde artistas da musica pop até autores e autoras supostamente mais sofisticados, como aqueles ligados à “escola da Frankfurt”. Em ambos, com reações diferentes. Alguns afirmando que a ‘coisificação’ ou a transformação de Che Guevara — ou qualquer outro entre tantos e tantos exemplos possíveis — em mercadoria era a confirmação dos males causados pelo inimigo capitalista. Outros tantos que entenderam a ingenuidade daqueles que, como eu e meus colegas da faculdade, acreditavam ser mais inteligentes do que a economia de mercado. E, no pior dos casos, quando percebi que muitos dos que entenderam tamanha contradição a usaram de modo instrumental. Ou seja, transformaram sua falsa rebeldia contra o capitalismo em fonte de renda, de manutenção do status e da riqueza, e de acúmulo de capital. Algo tão deplorável quanto aqueles que usam as liberdades da democracia para atacá-la.
Depois de tanto tempo, leio a obra do historiador italiano e professor da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega, Francesco Boldizzoni; obra cujo título em sua edição norte-americana é Foretelling the End of Capitalism: Intellectual Misadventures since Karl Marx (Harvard University Press, 2020), e que ilumina — e, de certo modo, organiza — a inquietação que carrego desde a juventude. Nela, o jovem historiador, autor de outra obra fundamental (The Poverty of Clio. Resurrecting Economic History, Princeton University Press, 2011), reconstrói a trajetória das críticas ao capitalismo antes mesmo do sistema ser assim chamado. E neste caso, não poupa ninguém. De Smith a Marx, de Malthus a Stuart Mill, de Ricardo a Paul Sweezy, entre tantos outros.
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Pela abrangência, rapidamente notamos que Boldizzoni busca reconstruir não só uma crítica ao que veio a ser chamado de capitalismo depois que Louis Blanc e Pierre-Joseph Proudhon cunharam o termo em meados do século XIX. O que o historiador italiano propõe é quase um contrafactual sobre os motivos que fizeram com que todas as previsões sobre a derrocada do sistema capitalista se provassem equivocadas — e porque elas não só se mostraram equivocadas, como também misturavam a observação com os desejos daqueles que a formulavam. Neste sentido, as previsões sobre o fim do capitalismo estiveram mais relacionadas às projeções carregadas de certa arrogância daqueles que tem, quase que religiosamente, a convicção de que são capazes de prever o futuro. Mais do que a qualquer método em tese cientifico.
Não que as críticas aos resultados visíveis do capitalismo não tivessem fundamentos ou fossem frutos exclusivos de má vontade. Ao contrário, os esforços que combinavam a tentativa de formulação de princípios gerais que, ao mesmo tempo, contemplassem os elementos fundamentais do sistema, a observação empírica e a projeção de resultados verificáveis no tempo eram feitos de maneira séria. Os exemplos são muitos e formam a parte mais sedutora do livro de Boldizzoni. A identificação da contradição entre a necessidade de ampliação dos lucros e os limites da exploração do trabalho, da desigualdade persistente em meio à ampliação da riqueza, dos conflitos entre o aumento da competição e a concentração monopolista ou do ritmo diferente entre o avanço da tecnologia e o crescimento do emprego. Todas elas estavam amparadas em dados e em observações pertinentes sobre a realidade. Por isso serviram de sustentação às hipóteses e às propostas de intervenção que se mostraram parcialmente acertadas, desde a crítica marxista ancorada na fotografia que seus formuladores tiraram em 1848 até a percepção de Stuart Mill sobre os limites de uma sociedade utilitarista como defendida por Bentham (inclusive os limites ambientais, tema antecipado na Inglaterra Vitoriana). Não só: também a percepção de que os ganhos fortemente concentrados transbordaram de modo a contemplar os trabalhadores e, por isso, a opção revolucionária contra o capitalismo ganharia uma concorrente relevante, consubstanciada pela social-democracia e pela defesa de um capitalismo reformado e carregado de preocupações sociais.
O problema, já antecipado pela genial Deirdre McCloskey, é o enrijecimento dos pressupostos sobre o funcionamento do capitalismo e, principalmente, de seus elementos passíveis de crítica. Por isso, ainda segundo McCloskey, as projeções sobre sua possível derrocada falham sistematicamente — ao que, parcialmente, Boldizzoni concorda, não obstante identificar importantes adaptações feitas pelos críticos. Principalmente após 1929, tido por muitos, à época, como o exemplo maior da validade da análise e projeção marxista — mas que, como sabemos, mostrou-se muito aquém do papel de aceleradora da crise final do capitalismo. O mesmo vale para a 1973 ou para 2008.
O que o historiador italiano acertadamente tenta fazer é achar o equívoco das projeções que determinavam o fim do capitalismo nos itens tidos como essenciais ao sistema. E, diferentemente de McCloskey, não apontar para a permanência de um arcabouço teórico que, fundamentalmente, usa de modo estático e duzentos anos depois a mesma fotografia tirada em 1848 para formular seu entendimento, sua projeção e, consequentemente, sua crítica ao capitalismo. Boldizzoni, ao contrário, aponta para as inúmeras adaptações feitas pelos críticos do capitalismo conforme a História mostrava resultados diferentes. O problema, segundo ele, é que os elementos apontados como fundamentais pelos críticos do capitalismo estão, no mínimo, incompletos.
Desta forma, diz que a combinação entre a manutenção de certa hierarquia herdada de uma Europa aristocrática e um individualismo forjado pelo humanismo renascentista e pelos seus herdeiros liberais e iluministas torna o capitalismo resistente às crises que enfrenta. Como se, entre a hierarquia e o individualismo, o capitalismo suportasse o peso de suas crises exatamente porque se movimenta de um lado a outro até que encontre um novo equilíbrio. Sem romper com suas fronteiras.
O que Boldizzoni não identifica é que estas fronteiras — a hierarquia e o individualismo —, mesmo que permaneçam as mesmas, também se movimentam, criando geometrias variáveis. Por um lado, os novos formatos resultantes da expansão e contração tanto da hierarquia quanto do individualismo revelam a não linearidade de funcionamento do sistema capitalista. Ou seja, produzem resultados novos cuja intensidade e qualidade não são lineares e são, portanto, desiguais. Contudo, por outro lado, são refeitos de modo tão veloz que sempre deixam brechas para que, por meio de elementos como o consumo, despertem a quase imediata adesão da população. E o consumo, ao contrário, não é a projeção do individualismo, e sim a possibilidade de encontro social. Não à toa e espertamente (para não dizer de forma hipócrita) o consumo foi usado como símbolo de ascensão social por governos recentes que se dizem de esquerda. Sem sequer gerar rubor.
Desta forma, o capitalismo é muito menos o sistema ancorado na exploração, na concentração, na rígida hierarquia e no individualismo do que no consumo presente e projetado. Por isso, muito mais flexível do que seus críticos previam no século XIX. A ponto de transformar seus adversários em mercadorias. Assim como eu descobri quando percebi que não existia muita diferença entre mim e qualquer pessoa que, mesmo não tendo a menor ideia de quem foi e o que representa Che Guevara, poderia ter duas camisetas com a estampa do revolucionário argentino à frente. Bastava comprá-las no shopping. O impacto positivo à reprodução do capitalismo era maior do que a contribuição que o companheiro de Fidel era capaz de dar à queda do mesmo capitalismo.
Por isso, ao ler a obra de Boldizzoni lembrei-me de meu passeio pelo shopping. Naquele dia descobri que o capitalismo é mais inteligente, ágil e flexível do que as projeções sobre sua queda e seus costumeiros críticos são capazes de ser. E isso me gerou um estranho sentimento de liberdade, meu companheiro desde então.