Enigmas do 21 de abril: inconfidentes centralistas ou federalistas?
por Paulo Roberto de Almeida
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O dia 21 de abril é uma das grandes datas da nacionalidade, geralmente identificada na historiografia como sendo um dos pontos altos da construção do imaginário nacional em torno de algum símbolo unificador da nação. Ela passa antes do 15 de novembro, e talvez até mais enaltecida do que a própria data da “fundação” da República. Definitivamente, o 21 de abril parece bem mais imponente do que o dia vizinho, o do Descobrimento do Brasil, que nem é um feriado oficial, configurando apenas um tema eventual de preleções escolares no 1º. grau. Ela é uma das datas máximas da nacionalidade certamente no estado de Minas Gerais, que conservou o triângulo e o logo dos “inconfidentes” na bandeira estadual e a partir deles fez uma comenda honorífica.
Mas o fato é que o 21 de abril, simbólico a mais de um título, só existe por causa do golpe militar da República, o que é compreensível no plano de uma justificativa construída para reforçar a rejeição do anterior regime monárquico, que dispunha da simpatia do povo, ainda que não mais das elites oligárquicas. Com a revolução francesa, louvada e rejeitada ao longo da Restauração e do novo Império, aconteceu mais ou menos a mesma coisa.
Em vários lugares, em todas as épocas, os novos “donos do poder” (temporários ou “permanentes”, não importa agora), ao lado do trabalho mais prático de organizar o governo, precisam se legitimar socialmente, coletivamente, necessitam se munir de alguns símbolos mais ou menos impactantes ao nível do imaginário popular, daí a construção de versões da história passada que possam contemplar essa necessidade de um embasamento no tempo mais longo da História, de maneira a dar uma sensação de continuidade, de sustentação em certas tradições de maior duração. Daí, entre outros exemplos, a razão do Exército brasileiro proclamar que sua origem está na batalha de Guararapes contra os holandeses, no distante século XVII, quando isso é uma fabulação das mais fabulosas.
A escolha do 21 de abril — de 1792, sublinhe-se, quando o mais importante ocorreu em 1789 — como data relevante da história nacional só poderia mesmo ocorrer na República, uma vez que durante todo o Império não seria concebível homenagear uma insurreição contra o poder dos Braganças, nem uma revolta independentista como a de 1817 em Pernambuco, menos ainda uma outra revolta contra o próprio novo poder do Estado localizado no Rio de Janeiro, como a dos confederados do mesmo estado em 1824. No período monárquico, a construção de uma identidade nacional para o Estado independente tinha de se fazer pela celebração do 7 de setembro, pelos esforços de unificação do país, no imediato seguimento da declaração de autonomia política com relação à metrópole, na repressão às revoltas provinciais contra o arbítrio da capital, ou apenas contra os agravos locais, assim como pela mais complicada superação pela “república Farroupilha” ao sul.
O 21 de abril, nesse sentido, é um pouco artificial, mas havia essa necessidade se superar definitivamente os símbolos do período imperial, daí a busca de um “placebo” para unificar o sentido da pátria republicana. Esse novo “remédio” tinha de possuir o componente republicano que estivera descartado durante as sete décadas de regime monárquico e que podia ser simbolizado por um militar que tinha sido sacrificado por defender a adoção pelo Brasil do mesmo regime que já vigorava desde alguns anos na grande República do norte do Hemisfério, o alferes que, entre suas diversas ocupações, se encarregava de propagar a necessidade desse novo regime, e que para isso carregava sempre consigo um exemplar da Constituição da Filadélfia. O ano, em si, do seu sacrifício, 1792, é evidentemente menos importante do que o ano dos supostos malefícios que seriam acarretados à metrópole se por acaso a pequena revolta tramada pelos “inconfidentes” fosse levada a termo, 1789, quando se havia planejada uma nova “derrama”, que foi justamente suspensa em face da denúncia apresentada às autoridades por alguns dos integrantes da conspiração.
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O próprio nome que ficou consagrado na historiografia, “Inconfidência”, é totalmente injusto com o significado mais profundo de um movimento que fracassou, mas que deixou sua marca, naquele momento, e mais de um século depois. Essa designação, imprópria, reflete o triunfo da visão monárquica em torno daquela tentativa mal organizada e mal preparada de construir a autonomia da nação em face dos desmandos extratores das autoridades metropolitanos e dos seus representantes locais, entre eles o Visconde de Barbacena. Essa visão foi a dos historiadores oficiais, a de um legitimista como Varnhagen, seguido pelos demais cronistas do império e até pelos autores de manuais da República. Foi tão forte a impregnação que a designação de “Inconfidência Mineira” permaneceu em todos os manuais de História, mesmo naqueles declaradamente nacionalistas e independentistas.
Hélio Vianna, porém, que não pode ser acusado de ser m historiador progressista, muito menos simpático às causas libertárias, consignou sua estranheza na obra em três volumes que dedicou à História do Brasil, ao registrar que a “Conjuração Mineira de 1789, impropriamente chamada de ‘inconfidência’”, não poderia ser assim chamada, já que o termo, na época, era reservado aos “acusados de traição ao rei, de falta de fidelidade ao soberano, criminosos de lesa-majestade” (4ª edição; São Paulo: Melhoramentos, 1966, vol. II, tomo II, p. 133). A importância da conjuração, segundo ele, “reside no fato de ter refletido uma corrente de ideias, de que foram propagadores vários intelectuais, sacerdotes, dois militares e outros moradores da Capitania das Minas Gerais” (idem). Varnhagen, por sua vez, em sua História Geral do Brasil, ressalta que a ideia da independência do Brasil surgiu em Coimbra, onde “doze estudantes brasileiros, combinando entre si a possibilidade de se declarar o Brasil independente, comprometeram-se a levar avante a ideia, quando isso fosse possível” (4ª edição; São Paulo: Melhoramentos, 1952, p. 311).
Esta é a mesma opinião de Nelson Nogueira Saldanha, em sua magnífica História das Ideias Políticas no Brasil, para quem, a despeito de designar o movimento como sendo a “Inconfidência Mineira”, situa-o “num feixe de condições mais expressivas: insatisfação econômica, fumos intelectuais, trama insurrecional”, que emergiram a partir do “ciclo do ouro, ensejando o advento de cidades novas”. Como ele relata, a despeito do marasmo intelectual, a situação econômica torna-se menos miserável:
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Aos poucos foi possível a certas famílias mandarem filhos estudar na Europa, onde aprenderam novas coisas, e um certo grupo — um grupo literário — existiu em Minas como expressão cultural formalmente lusa mas capaz de capturar ocasionalmente os problemas brasileiros.
Juntando-se o fato da tensão causada pelo aperto do fisco, e o da presença de um círculo de escritores que pessoalmente compensavam e superavam a ignorância geral, tem-se do ponto de vista histórico-social o dado de uma convergência de situações, em que a consciência literária, ainda presa a moldes europeus, se ligou ocasionalmente a uma necessidade social local. Daí falar-se ‘intelectuais da Inconfidência’, expressão discutível, mas útil; discutível não quanto ao fato de ter uma inconfidência raízes doutrinárias, mas quanto ao fato de serem eles inconfidentes enquanto intelectuais e vice-versa. (Brasília: Senado Federal, 2001, p. 73; 1ª edição, 1966)
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Oliveira Lima, por sua vez, o grande historiador da dominação portuguesa no Brasil e do movimento da independência, também considera que o movimento que ele chama de Conjuração Mineira, era “uma conspiração de homens de letras”, ou ainda, “um movimento de ideólogos” (Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira; Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, p. 121 e 127). De fato, vários dos “inconfidentes” tinham sólida formação escolástica, sendo que o Cônego Luís Vieira da Silva possuía uma imponente biblioteca com centenas de obras, dentre elas várias dos filósofos e enciclopedistas franceses, como relatou Eduardo Frieiro em seu interessante ensaio O Diabo na Livraria do Cônego (1945; Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-USP, 1981). Como acrescentou Nelson Saldanha, com esses autores na cabeça, “punham-se os inconfidentes… a comparar os sucessos europeus e latino-americanos com as potencialidades locais. Não elaboraram uma teoria propriamente, nem mesmo uma doutrina como programa para a ação; apenas queriam libertar-se, e formulavam essa vontade com peças do jogo ideológico francês, em que a ideia de soberania atuava eficaz e aproveitavelmente” (História das Ideias Políticas no Brasil, op. cit., p. 74).
A dimensão das novas ideias provenientes da Europa, acrescida da convicção que a colônia era de fato muito mais rica do que metrópole, mas que era por ela explorada, também é ressaltada pelo maior brasilianista de todos, o historiador Thomas Skidmore, em sua síntese sobre a história do Brasil:
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Enlightenment ideas and material motivations fed the already existing sense among elite Brazilians that they were now economically stronger than Portugal and should be recognized as such. They grew increasingly resentful of the arrogance exhibited by the so-called metropolitans. Open expressions of hostility toward the crown were, of course, dangerous. They could lead to denunciation, arrest, imprisonment, torture, and, in extreme cases, execution. So this resentment simmered beneath the surface, appearing occasionally in satirical verse, such as the Cartas Chilenas (circa 1787-1788), by Tomás Antônio Gonzaga, a thinly disguised attack on the governor’s rule. (Brazil: Five Centuries of Change; Nova York: Oxford University Press, 1999, p. 32)
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Os conspiradores eram, de fato, com poucas exceções, homens de posses, sem intenção aparente de revolucionar a ordem social, recrutando homens pobres ou escravos para a sua causa, ainda que tivessem a intenção de libertar os escravos nascidos no Brasil. Kenneth Maxwell, por sua vez, afirma claramente que se tratava de um movimento feito por oligarcas no interesse dos oligarcas, no qual o nome do povo seria evocado meramente como evocação (Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal, 1750-1808; Cambridge: Cambridge University Press, 1973; publicada no Brasil como: A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808; São Paulo: Paz e Terra, 1978)
Um dos maiores historiadores brasileiros, José Honório Rodrigues, concorda em que se tratava de uma conjuração “preparada por intelectuais”, e que ela “não deixou nenhuma memória da época, a não ser a própria devassa, que não é senão um documento histórico” (História da História do Brasil, 1ª Parte: Historiografia Colonial; São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979, p. 351). Mas José Honório toma o cuidado de transcrever a “única narrativa contemporânea… a do Frei Raimundo Penaforte”, “uma narrativa autêntica e fidedigna” sobre os conspiradores, tal como registrada no documento “Últimos momentos dos Inconfidentes de 1789 pelo frade que os assistiu de confissão” (transcrito na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; 1881, XLIV, parte 1, p. 161-186). Em sua seleção do testemunho do Frei, o grande historiador nacionalista deu atenção aos trechos do relato do Frei em que este sublinha a postura digna de Tiradentes, um dos poucos do grupo de conjurados que não pertencia à classe dos “ideólogos”, que são sempre das “classes dominantes”, como diriam deterministicamente os marxistas. Vejamos o que ele selecionou a esse respeito, pois o 21 de abril de 1792 tem a ver exclusivamente com o alferes conspirador, o único, finalmente, a receber a pena de execução:
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Ele mesmo [ou seja, o Frei Penaforte] diz que ‘chamavam a esse conluio ajuntamento de poetas, querendo significar com isto ser fabulosa a projetada revolução, assim como fabulosos eram os mistérios da poesia’, e em nota acrescenta que ‘quase todos os cabeças eram poetas, que tinham assento no Parnaso português, ou aprendizes’. Trata com simpatia os réus e diz sempre bem de Tiradentes: ‘este homem foi daqueles indivíduos da espécie humana que põem em espanto a mesma natureza’ e logo adiante, na hora extrema da paixão de Tiradentes, conta que ‘ao serem comutadas as penas de morte aos conjurados com a única exceção de Tiradentes, esse revelou sua grandeza, pois sempre pedira’ que fizessem dele só a vítima da lei, e que ‘causava admiração a constância do réu’, ‘o valor, a intrepidez e a pressa com que caminhava’. (História da História do Brasil, op. cit., p. 352)
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José Honório ainda sublinha que existem poucas narrativas contemporâneas sobre a conjuração de Minas, além da devassa, ou sobre a conspiração de 1798, a Revolução dos Alfaiates, que devem “ter abalado a minoria dirigente e a ilustrada do Rio de Janeiro, com repercussão nas regiões mais desenvolvidas, demonstrando assim o pouco interesse pela memória do acontecimento ou o temor de escrever sobre coisas perigosas” (p. 353). As tentativas de conquistar a autonomia dos “brasilienses” sobre os reinóis e seus dirigentes se manifestariam de modo mais afirmado pouco adiante, como o historiador ainda escreve:
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A Revolução de 1817 em Pernambuco foi a única que chegou ao poder por força das armas e tentou, nos dois meses e dias que dominou, implantar reformas de fundo, e criou a primeira constituição republicana representativa brasileira. (José Honório Rodrigues, História da História do Brasil, op. cit., p. 354)
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Conquistada a independência, mas sob o controle dos mesmos Braganças que vinham explorando o Brasil desde a Restauração, não cessou o espírito rebelde dos pernambucanos, como ainda manifestado pela revolução de 1824, que causou a morte de Frei Caneca, mais um dos “ideólogos” libertários do Brasil. Tem razão Evaldo Cabral de Mello ao sublinhar o caráter absolutamente inédito dessa revolução, ao explorar justamente a possibilidade de que pudesse ocorrer uma divisão de fato entre as várias províncias do norte e do sul no processo de independência, o que poderia ter conformado um arquipélago de nações lusófonas na América do Sul, a exemplo da fragmentação hispano-americana na vertente andina (cf. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824; São Paulo: Editora 34, 2004).
De fato, estamos tão habituados à versão tradicional da independência do Brasil, de cunho unitário e quase que “naturalmente monarquista” (que é a de Varnhagen, o “patrono da historiografia nacional”), que negligenciamos outros modos possíveis de desenvolvimento da nação ou de formação do Estado. Esses movimentos de 1817 e de 1824 em Pernambuco, junto com outros do Sul, ficaram agrupados sob o amálgama enganador de “separatismo”, ao passo que os construtores do Império, a partir do Rio de Janeiro, passaram para a história com o beau rôle de unitários e de nacionalistas. Essa é, porém, segundo Evaldo Cabral de Mello, uma perspectiva equivocada, uma vez que, no momento da independência, o Brasil era tudo menos Brasil, e sim um ajuntamento de províncias que se relacionavam mais com a metrópole (ou com a África, por exemplo) do que entre si.
O historiador Luiz Felipe de Alencastro já tinha alertado, aliás, para esse arquipélago de sistemas desvinculados entre si, sem unidade econômica real: um navio do Norte tinha mais facilidade para ir à Europa do que descer a costa atlântica para chegar ao Rio de Janeiro ou ao Sul. Um outro brasilianista, Stuart Schwartz também chamou a atenção para essa fragmentação do Brasil:
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O Brasil não era, em realidade, apenas um, mas era constituído por uma série de colônias. Os ingleses tinham razão quando falavam. Nos séculos XVII e XVIII, dos ‘Brasis’, pois havia de fato mais de uma colônia. (“‘Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o Brasil: a construção de um povo”, in: Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. São Paulo: Senac-SP, 2000; p. 103-125; cf. p. 112)
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Mas o livro de Cabral de Mello sobre a “outra independência” conta a história desse “destino não manifesto” do Brasil, traduzido no desejo de algumas elites regionais, no caso as do Nordeste, de recuperar o poder local, perdido quando da vinda da família real e a centralização operada em favor do Rio de Janeiro. O federalismo, segundo Evaldo, era uma possibilidade real, se alguns destes processos não tivessem ocorrido: a manutenção da dinastia bragantina no Rio, um tratamento mais conforme às aspirações das elites regionais pelas Cortes de Lisboa e a determinação da “administração” da Corte no Rio em preservar sua posição hegemônica. Mas foi uma luta bárbara, na qual a força foi mais importante do que a persuasão. A historiografia ulterior alimentou o “rio-centrismo”, descurando ou desvalorizando os “separatismos” regionais, uniformemente agrupados na rubrica contrária à unidade nacional, quando o que eles pretendiam, na verdade, era uma forma diferente de organização do Estado (e do equilíbrio entre as províncias), provavelmente mais conforme ao modelo proposto nos Estados Unidos poucas décadas antes (como talvez pretendessem os “inconfidentes” das Minas Gerais.
A Bahia, como se sabe, ficou sob ocupação portuguesa no episódio da separação, razão pela qual coube eminentemente a Pernambuco a liderança federalista, quando na verdade ambas as províncias tinham condições econômicas de sustentar um modelo diferente, singularmente autonomista, de construir um Estado não centralizado, ainda que passavelmente unitário, sob a égide da monarquia (mesmo se muitos liberais fossem declaradamente republicanos). Longe de obedecerem a impulsos regionais anárquicos e antipatrióticos, como a propaganda fluminense quis fazer acreditar (dando os exemplos caóticos dos estados hispano-americanos), os patriotas do Nordeste queriam a verdadeira liberdade e a igualdade, num regime de poderes compartilhados.
José Bonifácio foi, neste caso, menos sábio do que o habitualmente afirmado, pois que, partindo da ideia de uma “peça majestosa e inteiriça desde o Prata até o Amazonas”, denegriu o projeto federalista, assimilando-o ao republicanismo e acusando seus líderes de pretenderem um “governo monstruoso”, para serem nas províncias “chefes absolutos, corcundas despóticos”. Os “bispos sem papa”, no dizer de Bonifácio, foram esmagados e assim o Brasil continua a ser até hoje, a despeito da ironia de carregar no nome o adjetivo federalista, a mais unitária das repúblicas americanas.
Se a ideia federalista tivesse vencido no terreno teórico e no plano concreto da organização do Estado imperial, talvez Frei Caneca tivesse se convertido num grande herói nacional, no lugar ou ao lado de Tiradentes, quando da consolidação da República, no início do século XX. Paradoxalmente, ele encarnava mais a ideia federalista do que os próprios conjurados de Minas, que foi o grande princípio unificador das oligarquias republicanas contra o unitarismo do Império. Mas esse federalismo nunca foi verdadeiro, a despeito de a primeira constituição republicana ter proclamado os Estados Unidos do Brasil, numa cópia imperfeita do modelo americano. Nos vários episódios políticos posteriores, sobretudo a partir de 1930, no Estado Novo e na ditadura militar — quiçá até hoje — a federação ainda é a grande ilusão da organização política (sobretudo tributária) do Brasil. Mas é verdade que não se pode implantar uma ideia a partir da superestrutura da organização política, apenas a partir da infraestrutura da organização da própria sociedade, como evidenciado no caso americano.
Tiradentes andava passeando com um exemplar da Constituição da Filadélfia, mas a despeito de ser provavelmente um republicano sincero, é duvidoso que fosse um federalista como a maioria dos founding fathers da nascente república da América do Norte. Uma grande diferença separava os nossos “ideólogos” dos agricultores e comerciantes dos treze estados rebeldes de 1776: eles partiam de uma democracia de base, mais de um mores social — cujas raízes estavam fundadas nas aldeias inglesas da era Tudor, como sublinhou Samuel Huntington em Political Order in Changing Societies — do que de uma construção política à laMontesquieu, baseada na tripartição ideal de poderes, sempre dominados pelas oligarquias. O federalismo no hemisfério Norte não era um tratado de ciência política, e sim a expressão das “tribos” medievais que elegiam os seus xerifes e seus juízes, jamais enviados por um poder central como guardiões da lei ou “juízes de fora”. Nosso federalismo sempre foi uma contrafação do modelo americano, tanto é assim que se abandonou, depois, os “Estados Unidos”, mas se adotou, em seu lugar, o manifestamente contrário à realidade de “República Federativa do Brasil”. Talvez seja uma contradição nos termos ou uma ironia involuntária.
É uma grande diferença com o grande irmão do Norte, e não apenas no plano constitucional, mas isso não diminui em nada o mérito do alferes republicano que carregava a constituição americana no bolso e que acabou virando o grande herói da pátria.
Que continue…
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Paulo R. de Almeida
Paulo R. de Almeida é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).