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segunda-feira, 9 de julho de 2018

Golpes, revolucoes e movimentos armados no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo é uma primeira versão de um comentário geral sobre movimentos armados no Brasil, tanto de esquerda quanto de direita, seja sob a forma de revoluções, insurreições militares, guerras civis, golpes militares e guerrilhas. Numa versão diminuída e adaptada, ele serviu como posfácio a este livro de Hugo Studart: Borboletas e Lobisomens: vidas, sonhos e mortes dos guerrilheiros do Araguaia, que está sendo lançado no próximo dia 17, no restaurante Carpe Diem.
Meu texto é muito sociológico, para ser atraente, e eu o tinha elaborado apenas para ser usado sem caracterização de autoria pessoal, mas ainda assim, o autor e o editor quiseram colocá-lo no livro, como posfácio, o que só me deixa lisonjeado. Alerto, no entanto, que toda a parte histórica das duas primeiras páginas foi severamente reduzida, com cortes em parágrafos sucessivos.
Ainda não conferi a versão final, que já deve ter sido impressa.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 9/07/2018


Uma tragédia brasileira: 
a loucura insurrecional do PCdoB

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: comentários sobre uma aventura irresponsável; finalidade: colaboração a livro de Hugo Studart, sobre a guerrilha do Araguaia]

Grandes revoluções sociais são fenômenos extremamente raros na história das nações. Ainda bem: elas provocam destruições enormes, uma grande mortandade de civis inocentes, perdas materiais significativas e muito raramente transformam para melhor as sociedades nas quais ocorrem. Geralmente necessitam processos adicionais de ajustes, eventualmente também dolorosos, para produzir efeitos sistêmicos de alguma forma “benéficos” (se algum) no itinerário social, político ou econômico das nações onde ocorrem. Elas geralmente “devoram” os seus “filhos”, consumindo, literalmente, lideranças inteiras de “revolucionários” improvisados, e muitos de seus líderes desaparecem na voragem de seus combates de campo, insurreições urbanas, golpes de palácio e o que mais houver.
Se percorrermos rapidamente a história da humanidade, veremos que tais revoluções sociais, as que merecem verdadeiramente essa designação, são poucas, muito poucas: a partir da era moderna, quando o mundo conheceu a primeira onda de globalização, nos descobrimentos, podemos identificar um número extremamente reduzido de revoluções sociais que entram realmente nessa categoria: (1) as guerras de religião do século XVI, que redundaram na paz de Westfália e no estabelecimento do princípio da soberania nacional, base do Estados-nação, e até hoje vigente nas relações internacionais; (2) a revolução inglesa do século XVII, que decapitou um rei e que transformou brevemente a monarquia numa república parlamentar, mas abriu o caminho para uma segunda revolução, a “Gloriosa”, desta vez pacífica, que “importou” uma nova dinastia para a Inglaterra (aliás até hoje no poder) e, mais importante, introduziu o princípio do “rei reina mas não governa”, depois que a Magna Carta (1215) tinha inaugurado dois outros princípios extremamente relevantes para as modernas democracias, o de que “ninguém está acima da lei, nem mesmo o rei” e o de que este necessita do prévio consentimento dos governados, súditos ou cidadãos, para impor novos tributos ou aumentar os existentes (no taxation without representation), o que constitui a mais nobre função dos parlamentos; (3) a revolução americana da independência, no século XVIII, que apoiou-se nesses dois princípios e no Bill of Rights da Revolução Gloriosa, para fazer renascer um regime republicano, depois de séculos de “esquecimento” (após que um Cesar decidiu inaugurar um império sobre uma República senatorial já em crise na antiga Roma), e que se constituiu na mais pujante e estável democracia dos tempos modernos; (4) a revolução francesa, que lhe segue poucos anos depois, reproduzindo o espírito da Declaração de 1776 na sua Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas que logo decaiu num regime de Terror, até que um “primeiro cônsul” resolvesse reinaugurar um novo império, e que ao lado dos atrasos involuntários para o desenvolvimento do capitalismo na França, trouxe alguns códigos úteis para os Estados modernos; (5) a insurreição Taiping, no Império Qing, entre 1851 e 1864, uma das mais sangrentas da história, com dezenas de milhões de mortos; (6) a revolução russa de fevereiro de 1917, que abateu uma monarquia absoluta sob o peso das revoltas dos soldados e da fome dos camponeses, e que prometia instaurar um regime parlamentar moderno, antes que o putsch bolchevista de outubro (ou novembro) do mesmo ano fechasse a Constituinte, decretasse a extinção de todos os partidos e começasse uma das mais longas ditaduras contemporâneas, e que também conheceu sua fase de Terror, aliás mais de uma, sob Lênin, sob Trotsky e, sobretudo, sob Stalin; (7) a revolução camponesa na China republicana, combinada a uma guerra de resistência contra a invasão japonesa e uma outra guerra civil tendo de um lado o Exército Vermelho de Mao Tsé-tung, prometendo terras para os camponeses pobres, mas que redundou numa das maiores mortandades de toda a história humana, quando o delírio maoísta deu início a um desastroso “grande salto para a frente”, que produziu 30 a 40 milhões de mortos, antes que a sua revolução “cultural” abatesse mais alguns poucos milhões; e finalmente, (8) a revolução iraniana de 1979, que fez renascer um regime teocrático radical, onde antes só existia uma monarquia corrupta e repressiva, mas modernizadora, que não conseguiu corresponder aos anseios de uma vasta maioria de súditos tomados pela mensagem religiosa de um dos últimos líderes carismáticos da era contemporânea.
Como se percebe, são relativamente raras as verdadeiras revoluções sociais, e por um motivo muito simples: revoluções não são feitas, elas acontecem, sem que se possa prever antecipadamente a sua ocorrência e desenvolvimentos. Muito mais frequentes e numerosos são os golpes de Estado, as quarteladas militares, o assalto planejado ao poder, ao estilo do putsch leninista, as insurreições urbanas, geralmente caóticas, ou revoltas rurais esparsas em campos atrasados, e outros tantos exemplos de mudanças de governo e de ascensão de novas elites políticas, que geralmente ocorrem quando o antigo regime tenta justamente se reformar, como evidenciou genialmente Tocqueville no seu livro de 1848, O Antigo Regime e a Revolução. Essas tomadas de poder, pela via da violência, se tornaram tão frequentes num determinado momento – como nas experiências leninista de 1917 e mussoliniana de 1922 – que um escritor italiano, bom observador desses movimentos, Curzio Malaparte, escreveu um manual, Técnica do Golpe de Estado, dois anos antes do triste exemplo hitlerista de 1933, de inauguração de uma tirania absoluta pela via “legal” das eleições, bem antes que Hugo Chávez inaugurasse o seu ciclo de “consultas populares” para a construção de uma “ditadura plebiscitária”.
E o Brasil nisso tudo? Tivemos muitos golpes de Estado, é verdade, várias quarteladas, algumas guerras civis embrionárias – nas regências, como a revolução farroupilha no Sul, a revolta da Armada, ao início do regime republicano, e a “guerra paulista” quando do governo provisório de Vargas – mas nenhuma revolução social digna desse nome. Talvez a campanha abolicionista desejada por Nabuco – que deveria ter sido seguida de reforma agrária e de uma “revolução educacional”, mas que não o foi, nem por uma, nem por outra, depois da abolição da escravidão, em 1888 – merecesse o epíteto de grande movimento social mobilizador. Revoluções “liberais” – em Minas Gerais, em meados do século XIX – ou as diversas revoluções em Pernambuco – autonomista em 1817, republicana e federalista em 1824, nacionalista e “pré-socialista” em 1848 – não se qualificam como verdadeiras revoluções sociais, ao mesmo título que aqueles exemplos da história. Em geral, como a própria Inconfidência mineira antes da independência, foram movimentos conduzidos por elites esclarecidas, raramente processos emergindo de massas oprimidas, como algumas revoltas escravas ou de populações periféricas, todas extremamente marginais do ponto de vista social e político. Até praticamente o final do Império, o Brasil, rural e atrasado, não tinha grandes massas urbanas organizadas, como passou a ter com a imigração e a indústria.
O que mais tivemos foram intervenções das Forças Armadas por ocasiões de crises de governos republicanos, aliás na própria inauguração desse novo regime, para encerrar uma monarquia já decadente. Também tivemos pequenas ou grandes tragédias ao longo do primeiro século republicano: o milenarismo de Canudos, equivocadamente interpretado como uma revolta monárquica contra a República, como a revolta da Armada pouco antes, o Contestado nos limites do Paraná e Santa Catarina, e diversas revoltas de tenentes para “liquidar” a república “carcomida”. Nessa categoria entra a “Coluna Prestes”, supostamente um prelúdio à Grande Marcha do Exército Vermelho de Mao Tsé-tung, mas que serviu para criar um mito, o do “Cavaleiro da Esperança”, caoticamente aproveitado pela Internacional Comunista para teleguiar, de Moscou, um putsch, a “intentona” de novembro de 1935, que constitui, certamente, a primeira grande tragédia do comunismo no Brasil.
Essa tentativa de assalto ao poder, comandada por um punhado de trapalhões, como amplamente demonstrado por William Waack em seu livro Camaradas, vacinou definitivamente as Forças Armadas contra uma das mais poderosas ideologias do século XX, junto com o fascismo, e fez do anticomunismo a doutrina oficial, praticamente permanente, do Estado brasileiro, condenando de antemão ao fracasso qualquer nova aventura nessa direção. Essa disposição ficou patente logo em seguida à intentona, materializada na Lei de Segurança Nacional, nos tribunais militares de repressão aos “maus elementos” nas hostes castrenses e, sobretudo, na dura repressão a todos os dissidentes da nova ditadura, o Estado Novo de novembro de 1937, pela polícia política comandada pelo Sr. Filinto Muller, um egresso das colunas tenentistas dos anos 1920.
Os revolucionários dos anos 1960 talvez tenham se esquecido desse precedente, que aliás não era objeto de tantas comemorações oficiais até que a inauguração de um novo, e longo, ciclo militar transformasse o mês de novembro, ao lado, obviamente, do 31 de março, num marco obrigatório dos pronunciamentos político-militares do novo regime. Aqueles que optaram, desde o início do período autoritário, pelo caminho da “resistência armada” ao “governo golpista”, à “ditadura militar”, ao “regime servil ao imperialismo” o fizeram por sua própria conta e risco, numa completa inconsciência sobre as condições reais do “movimento popular” e o suposto apoio que teriam das “massas trabalhadoras”, operárias e camponesas, às suas aventuras guerrilheiras. Eles “cutucaram onça com vara curta”, como se diz na linguagem popular, e aprenderam duramente que o Estado brasileiro não era um simples títere do imperialismo americano, ou um mero “tigre de papel”, como talvez repetissem os adeptos do “maoísmo” no movimento comunista brasileiro. 
Justamente, uma das maiores tragédias da história política recente brasileira, junto com os episódios de guerrilha urbana rapidamente desbaratados pelas forças da repressão, é constituída pela aventura maoísta nas selvas do Araguaia, a maior loucura militar do PCdoB, que deve ser continuamente desvendada, denunciada e relembrada, uma vez que ela levou muitos jovens idealistas a uma morte estúpida naquelas distantes matas amazônicas. Antes dela, e na impossibilidade de reprodução no Brasil de uma nova insurreição ao estilo castrista da Sierra Maestra, alguns dirigentes comunistas, seguidos por muitos jovens revolucionários improvisados das grandes metrópoles, se lançaram na aventura da guerrilha urbana, sem muita estratégia e quase nenhuma tática, a não ser os canhestros assaltos a bancos, ataques a quarteis, alguns sequestros de diplomatas e de aviões, e uns poucos deploráveis assassinatos de pessoas, rapidamente aproveitados pelo regime militar para apegar-lhes o rótulo de “terrorismo”, e com isso justificar o endurecimento prévio do regime, pela via do AI-5. A guerrilha urbana e alguns poucos focos esparsos foram expedita e duramente reprimidos pelas forças da repressão, tomadas de surpresa no início do processo, mas rapidamente organizadas sob comando militar e muitos apoios em setores das elites econômicas.
Bem mais complicado foi o episódio amazônico, a segunda vez na história das Forças Armadas, depois de Canudos, que elas tiveram de organizar expedições sucessivas de suas tropas para debelar focos reduzidos de “combatentes inimigos”, fracamente armados, mas que aparentavam representar um grande perigo para o regime republicano. Ambos episódios foram tragédias sociais, mas pode-se considerar aquele primeiro apenas o fruto de equívocos de interpretação de uma república “jacobina”, enfrentando o que seria a sua “Vendeia”, segundo as leituras francesas de um Euclides da Cunha. O segundo não: foi uma tragédia evitável, e cabe aqui responsabilizar direta e totalmente a direção irresponsável do PCdoB pelo imenso crime perpetrado contra um punhado de militantes idealistas, imaginando participar de um grande empreendimento de resgate social, e justiceiro, do pobre povo do interior, numa reprodução quixotesca do que teria sido a “guerra camponesa” de Mao Tsé-tung, então no auge do um prestígio inteiramente indevido, pela “revolução cultural” que ele tinha deslanchado para livrar-se de adversários no Partido Comunista Chinês. 
O PCdoB ainda não foi levado aos tribunais da história pelo crime cometido não apenas contra os pobres camponeses da região, mas sobretudo contra os seus próprios militantes enganados por uma direção dogmática, míope, absolutamente delirante em seus projetos de reproduzir a marcha de uma já mistificada “revolução camponesa” ao estilo chinês. Acresce que jamais fizeram um estudo aprofundado sobre uma região desprovida de condições mínimas de sobrevivência para os simples rurícolas, no estado normal de penúria que sempre foi a norma naquelas paragens, ainda mais para jovens urbanos de classe média, completamente desacostumados às durezas da agricultura de subsistência, extremamente primitiva, que caracterizava o imenso hinterland do Brasil. Não contente em enganar aqueles jovens, a direção do PCdoB ainda deixou-os entregues à própria sorte, totalmente desprovidos de meios para enfrentar as forças organizadas do Exército brasileiro, que ainda tatearam duas vezes, antes de se lançarem no trágico desfecho final, feito de violência excessiva e muitas ilegalidades, e mesmo crimes, perpetrados em nome do Estado. 
Sem dúvida que, como no caso do enfrentamento contra a guerrilha urbana, as forças de repressão cometeram crimes horríveis – torturas, assassinatos, eliminação de alvos escolhidos, desaparecimento de cadáveres –, o que se reproduziu em outra escala, e estilo, nas selvas do Araguaia. O crime maior, porém, de natureza política, de âmbito militar, e de dimensões históricas, foi cometido por aqueles dirigentes comunistas, de quase todos os movimentos de resistência armada, que resolveram travar uma “guerra” contra um inimigo que eles julgavam frágil, podendo ser abatido por alguns golpes “certeiros”, que apressariam a revolta das “massas trabalhadoras” e a derrocada de uma ditadura supostamente acuada pela crise econômica e pelas “contradições” de um regime capitalista periférico, submetido às “pressões imperialistas”. Quando se lê, hoje, os poucos manifestos, documentos programáticos e outros boletins “táticos” produzidos pelos dirigentes desses movimentos armados, impossível não ficar estupefato ante o imenso festival de equívocos políticos, de monumentais erros estratégicos, de total inconsciência social e de inconsistência intrínseca nessas peças de puro delírio sectário, que ainda assim ganhavam adeptos entre jovens revoltados contra a ditadura militar. 
Ao PCdoB, tanto quanto às Forças Armadas, e talvez até mais do que a essas, devem ser imputados a responsabilidade material e a condenação política da História, pela tragédia que foi a guerrilha do Araguaia, um delírio tão grande dos seus dirigentes, que nem mesmo os supostos aliados do PCC pretenderam sequer dar algum sinal de apoio concreto ao aventureirismo, a não ser algumas poucas emissões radiofônicas a partir da China e, logo depois, da Albânia. Esse julgamento ainda não foi feito, pelo menos não em toda a sua extensão, pois o PCdoB continua existindo como o legatário de uma aventura alucinante, pouco conhecida pela maioria da população, mas em relação à qual ele ainda pretende classificar como exemplo de “resistência popular” contra a “ditadura militar”, quando tudo não passou de uma tragédia dispensável e de um equívoco lamentável. 
O tribunal da História ainda aguarda o PCdoB: seu delírio político-militar não pode ficar impune, não pode continuar a ser mistificado ou permanecer desconhecido do grande público. Este livro, magnificamente construído segundo as melhores técnicas da história oral, e que adota o rigor metodológico dos grandes manuais da historiografia, focaliza cada etapa dessa tragédia brasileira, segue o itinerário individual de cada um dos embrenhados na selva, dialoga com seus familiares e amigos dos enviados a um desterro involuntário, além de, sobretudo, desvendar o comportamento indigno e a ação irresponsável dos dirigentes do PCdoB. Essa insanidade dos que montaram uma aventura de antemão condenada ao fracasso, mas que depois se escafederam nos desvãos desse drama patética, permanecia até hoje desprovida de uma avaliação independente, agora amplamente realizada por esta obra de pesquisa original. O PCdoB ainda não conheceu o seu tribunal da história: este livro, além de ser um relato intelectualmente honesto, tão objetivo quanto permitem os documentos remanescentes e os depoimentos disponíveis, sobre o delírio amazônico do (ainda hoje) único partido maoísta do Brasil, constitui, igualmente, uma vibrante peça de acusação, absolutamente necessária, para que esse processo possa ser feito. Vale ler, refleti sobre os seus dados, retirar as consequências e meditar sobre o futuro da política no Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24-25 de março de 2018
Revisto em 12 de maio de 2018.

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