Em 1991, a Secretaria de Estado expedia uma circular a todos os diplomatas solicitando participação no processo de recolhimento de sugestões para a reforma da carreira e da própria estrutura do Itamaraty. Como em outras ocasiões, as reformas foram mínimas, mas eu nunca fui muito ligado em questões administrativas, para verificar o que de fato foi feito posteriormente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de julho de 2018
Reforma do MRE e da Carreira Diplomática
Paulo Roberto de Almeida
Primeiro Secretário
Montevidéu, 20/12/1991
De: Primeiro Secretário Paulo Roberto de Almeida
Delegação Permanente junto à ALADI
Para: Secretaria de Modernização Administrativa, SEMOR
Grupo de Trabalho sobre Reforma do MRE
Objeto: Reforma de Estrutura, Fluxo de Promoções, Outras Questões.
Circular Telegráfica nº 18.715, de 27/11/91.
Ao apresentar minha contribuição, atendendo ao convite formulado na Circtel de referência, complemento e sistematizo elementos e comentários já expostos na resposta à Circtel 18.679, acrescentando outros pontos que não faziam objeto desta última circular, mas que tampouco parecem estar excluídos a priori do novo projeto de reforma (cujas características precisas continuam, aliás, a me ser totalmente desconhecidas).
2. As contribuições poderiam ser mais objetivas, pontuais e sistemáticas se a fase dedicada às consultas e a própria formulação de sugestões e alternativas pudessem ser conduzidos sobre a base de um texto de referência (sob a forma eventual de um “anteprojeto”), possibilidade que não deveria deixar de ser examinada em etapa ulterior deste processo. Cabe ressaltar, nesta experiência exemplar de consulta à Casa sob iniciativa do Senhor Ministro de Estado, a colaboração sobremaneira valiosa que pode e deve ser prestada pela Associação dos Diplomatas Brasileiros, ao atuar, sempre de maneira ponderada, como foro democrático e como canal de diálogo entre a Chefia e o corpo funcional, especialmente em se tratando de matérias que obviamente despertam sentimentos e emoções desencontradas.
3. Antes de mais nada, caberia definir alguns critérios que, supõe-se, devam primar na concepção, elaboração e condução de todo este processo de reforma da estrutura organizacional do MRE e da própria carreira diplomática. Esses critérios, a meu ver, deveriam ser os seguintes:
(a) absoluta imparcialidade da reforma em relação às posições profissionais ou situações funcionais, atuais ou futuras, de todo e qualquer colega de carreira, o que se traduz em
(b) neutralidade de princípio de eventuais modificações a serem introduzidas na carreira diplomática para uma ou outra categoria funcional, como forma de se garantir a
(c) objetividade e despersonalização das mudanças que, obviamente, poderão provocar, a curto ou médio prazo, benefícios para uns e eventuais prejuízos para outros;
(d) avaliação independente do atual processo de reforma, a ser garantida por nova consulta à Casa antes de iniciada a etapa “externa” de sua tramitação, isto é, submissão à Presidência da República e remessa ulterior ao Poder Legislativo.
4. Adiantando meu posicionamento (que será detalhado mais abaixo), sintetizaria minha contribuição em relação aos pontos principais da reforma agora proposta da seguinte forma:
(a) simpatia, com alguma reserva, à ideia de reinstitucionalização de uma única Secretaria-Geral, concordância em relação às secretarias temáticas, mas dúvidas quanto à conveniência de chamar de subsecretarias-gerais as unidades subordinadas; preocupação quanto à situação das atuais (e futuras?) Divisões;
(b) apoio irrestrito ao princípio de definição de quotas mínimas anuais para promoção;
(c) oposição à eliminação da expulsória, utilização desse princípio de forma combinada com a aposentadoria por idade e/ou tempo de carreira e possível introdução de algum tipo de “escape clause” ao impedimento atual de chefia permanente no exterior.
Estrutura do MRE:
5. Já se mencionou o fato de que a eliminação, nos primórdios da atual Administração, do sistema de Secretaria Geral única se deveu às distorções introduzidas por um estilo de trabalho excessivamente centralizador e concentrador de decisões, praticado na Administração anterior. A lógica do poder, em qualquer organização burocrática, é sempre a da utilização monopólica dos processos decisórios, razão pela qual os sistemas mais democráticos — mas concedo que nem sempre os mais eficientes — são aqueles caracterizados por uma relativa dispersão da autoridade e por sistemas de independência harmônica de poderes.
6. A partição atualmente existente, na categoria “secretários gerais”, pode realmente afetar a eficácia e a coordenação do trabalho corrente na Secretaria de Estado, mas não se deve esquecer de mencionar que, dentre os órgãos de deliberação coletiva previstos no Decreto nº 99.578, de 10/10/90, figura a Comissão de Coordenação composta pelos Secretários Gerais e supostamente destinada, segundo o Artigo 22 do referido decreto, a “assegurar unidade às atividades da Secretaria de Estado e das Repartições no exterior”.
7. Como todos sabemos que, na prática, órgãos de deliberação coletiva raramente são convocados, caberia assim, pragmaticamente, apoiar a reinstitucionalização de uma única Secretaria Geral, suscetível de assegurar a unidade de comando necessária à condução da grande máquina em que se converteu o MRE.
8. A centralização de poderes aparece como inevitável nesse processo, mas ela será seguramente atenuada pelo restabelecimento das grandes áreas temáticas, com funções e atribuições algo similares às existentes no regime anterior. Nesse particular, creio mais adequado restringir-se a reforma de estrutura à volta das antigas Subsecretarias, com eventual redução do número de Departamentos ou (preferentemente) de Divisões, do que criar três níveis sucessivos quase homonímicos (com as possíveis confusões que uma tal “inflação” de “secretários” acarretaria no chamado “público externo”).
9. O mais importante, porém, em todo o processo de reforma da estrutura da Casa seria o empenho decidido em reforçar e prestigiar as unidades de base, seja lá que nome venham a assumir as instâncias onde seria feito o trabalho primário e de referência básica (memória institucional e correias burocráticas de transmissão da atividade diplomática): Divisões, Subsecretarias (se se optar por unidades mais largas e abrangentes), ou mesmo Departamentos. Em todo caso, a estrutura prevista no Projeto de Lei encaminhado com a Circtel 18.728, de 02/12/91, me parece confusa e pouco prática, na medida em que cria instâncias adicionais de chefia e não resolve o problema essencial das interligações funcionais e burocráticas entre as unidades de base das áreas político-geográficas, das temáticas (multilateral, econômico, etc.) e outras.
10. A criação de novas chefias e instâncias adicionais de tramitação da papelada burocrática sempre acarreta uma enorme diversão (e dispersão) de recursos e de pessoal, a menos é claro, que as subsecretarias e/ou departamentos passem a fazer o trabalho verdadeiramente substantivo de elaboração de posições, estudos e preparação de papers, manutenção dos arquivos, etc. Em minha opinião, é totalmente errado dar-se reforço exclusivo a chefes e chefetes e deixar de lado as instâncias de execução e implementação da política externa (que deveriam ser, primariamente, as Divisões). Pode-se, isso sim, enxugar o número de Divisões, mas não se pode, de maneira alguma, deixar de reforçar as unidades de base.
Promoções:
11. O sistema de quotas mínimas anuais para fins de ascensão funcional aparece como eminentemente justo, inclusive para prevenir o já antecipado fenômeno de redução no fluxo das promoções (embora previsto para 1999). Essas quotas devem continuar a ser preenchidas pelo critério etário, cujo limite está hoje definido como sendo de 65 anos.
12. Mas, também é justo o critério dos 15 anos para a “expulsória” no nível superior da carreira. Apesar de que ele tenha sido introduzido sem maior exame de seus efeitos práticos e visava paliar problemas urgentes de fluxo ascensional, ele serve justamente para atender aos princípios da equidade e da justiça, algo abalados com o estabelecimento, em sucessivas administrações anteriores, de regras casuísticas que beneficiaram determinadas categorias de funcionários em detrimento de outras. Este critério é, aliás, consentâneo com regras semelhantes existentes em carreiras comparáveis do ponto de vista hierárquico e funcional (de que é exemplo, na carreira militar, a expulsória, cumpridos 12 anos de generalato), concorrendo assim para o estabelecimento de uma certa isonomia nos regimes jurídicos do funcionalismo federal.
13. A aplicação combinada de ambos os sistemas permitiria, por outro lado, dispensar o recurso à automaticidade da promoção, em 4 anos, de terceiros secretários, inovação prevista no anterior projeto de reforma. Tal regra está em total contradição com a aplicação de critérios uniformes de fluxo ascensional e parece ter sido sugerida apenas para paliar os problemas que a longa permanência de alguns funcionários na classe final viria inevitavelmente suscitar. A promoção “automática”, aliás, me parece tão pouco justa quanto o atual sistema de ascensão exclusivamente linear para o segundo escalão, que descarta ipso facto qualquer apreciação por méritos (ou deméritos) nessa fase inicial da carreira.
14. Em resumo, o preenchimento das quotas deveria ser assegurado tanto pela regra da expulsória como pelo critério etário. Ambos os sistemas são de natureza essencialmente objetiva e sua aplicação combinada e coerente atenderia plenamente aos princípios da equidade e da justiça.
15. Resta saber como se faria essa “aplicação combinada”. Definido o número mínimo de vagas anuais, estas seriam preenchidas como no atual sistema de QE: pelo critério dos 65 anos e pelo da “expulsória”. Não se atingindo a quota, se poderia pensar numa “guilhotina” que atingiria, alternativamente, o mais idoso e o de mais tempo de carreira global. As modalidades de aplicação num e noutro caso poderiam ser fixadas com base num estudo atuarial que combinasse “estrutura demográfica” dos funcionários diplomáticos e “evolução prevista” dos fluxos ascensionais. Em qualquer hipótese, porém, algumas deformações tenderiam a ser preservadas durante algum tempo, como resultado das regras casuísticas aplicadas anteriormente.
16. Entretanto, admitindo-se igualmente que há quadros excepcionalmente bem dotados no serviço diplomático brasileiro e que conviria explorar ao máximo essas qualidades para o benefício da Nação, pode-se considerar a introdução de uma espécie de “escape clause” à guilhotina inexorável da aposentadoria por idade ou por tempo de serviço: seria a faculdade de se aproveitar no serviço ativo, mesmo em missões de caráter permanente no exterior, membros da carreira de reconhecidos méritos e qualidades.
17. Tal aproveitamento deveria ser aferido de forma independente e ser submetido, por exemplo, aos mesmos requisitos legais e constitucionais hoje exigidos de qualquer brasileiro, não pertencente aos quadros do MRE, que se pensa designar para o exercício de funções de alto nível diplomático: reconhecido mérito e relevantes serviços ao País, mediante eventual aprovação senatorial. A lei pode ser modificada de molde a cessar o impedimento atualmente existente, inclusive para aqueles em faixas etárias mais avançadas e que reconhecidamente disponham, tanto quanto os mais “jovens”, de faculdades e condições para continuar bem servindo o País.
Comentários finais:
18. Qualquer que seja o destino a ser dado às contribuições oferecidas pelos diplomatas com vista à reforma da estrutura do MRE e a da própria carreira, é minha percepção de que existe um desejo muito grande, na maioria dos diplomatas, de que sejam corrigidas algumas imperfeições atuais no funcionamento da Casa ou na administração da carreira. Uma maneira de não frustrar essas expectativas seria, provavelmente, proceder a uma ampla e cuidadosa revisão de todas as sugestões, eventualmente através de nova e rápida consulta aos colegas da Casa, corrigindo-se a posteriori, através de critérios de ponderação, qualquer “incidência estatística” de classes ou faixas mais representadas nas respostas.
19. A importância, mais do que a urgência, da matéria não deveria poder impedir que se recolha o assentimento — ou pelo menos a opinião — da maioria vis-à-vis um projeto de reforma que se pretende “legítimo e duradouro”, segundo os termos da Circular Telegráfica 18.679. Se poderia, assim, fazer circular de forma efetiva, para uma nova rodada de consultas, o projeto de lei contendo as reformas cogitadas.
20. A Administração poderia ter então a certeza de estar interpretando — ademais de representando, em face do Poder Legislativo — os legítimos anseios da maioria dos servidores diplomáticos. Mais ainda: a iniciativa seria aplaudida e altamente apreciada, dentro e fora da Casa, projetando uma imagem de maturidade democrática ainda inédita para os padrões do serviço público no Brasil.
(Paulo Roberto de Almeida)
Primeiro Secretário
[Montevidéu, 20/12/1991]
Relação de Trabalhos n. 222
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