Revendo a Política Comercial Brasileira
MARCOS S. JANK
O ESTADO DE S. PAULO, Quarta-feira, 18 de outubro de 2006.
Espaço Aberto, pág. A-2.
A política comercial trata das discriminações impostas e recebidas pelos países, por meio de tarifas, cotas, barreiras não-tarifárias, subsídios, etc. As negociações internacionais servem para reduzir essas discriminações de forma balanceada, gerando aumento do comércio, dos investimentos e dos empregos.
Costuma-se fazer muita confusão entre política externa, política comercial e comércio. Um dos erros mais freqüentes é medir o resultado da política comercial pela variação do comércio de um ano para outro. Exportações podem crescer porque a moeda esteve desvalorizada ou porque o país cresce menos que a economia mundial. Ambos os resultados nada têm que ver com política comercial e podem ser rapidamente revertidos se a moeda se valorizar ou se a economia doméstica crescer mais rapidamente. A política comercial deve, sim, ser medida pelos ganhos concretos de comércio e investimentos, que resultam da redução de tarifas, barreiras sanitárias, subsídios distorcivos, etc. Seu resultado aparece apenas no momento em que um acordo comercial (multilateral, regional, bilateral, sanitário, etc.) é implementado e se traduz em menores custos de transação para fazer negócios. O resto é conversa mole!
No Brasil, a política comercial tem-se submetido às idiossincrasias da política externa, como se a primeira fosse uma filha menor da segunda. Já países como os EUA optam, claramente, por uma política comercial mais voltada para o interesse das empresas, ou seja, para o crescimento do comércio e investimentos. Os últimos resultados concretos de política comercial brasileira datam da primeira metade dos anos 90, quando fizemos a abertura comercial e implementamos a Rodada Uruguai do Gatt e a primeira fase do Mercosul. Desde então, estamos vivendo na base de promessas e impasses.
Apesar do papel protagônico do Brasil na liderança do G-20, a Rodada de Doha ainda é apenas uma vaga promessa. Sem dúvida, o G-20 representa um esforço louvável para reduzir a absurda distância que separa a agricultura dos demais setores econômicos. O lado forte do G-20 é sua capacidade técnica, seu pragmatismo e sua rápida resposta política na construção de consensos. O lado fraco foi acreditar que ele poderia representar uma aliança política de países emergentes além da negociação agrícola, que poderia mudar a geografia comercial do mundo ou que elegeria um brasileiro como diretor-geral da OMC.
O atual governo apostou todas as suas fichas na Rodada de Doha e no G-20. Enquanto isso, a evolução das negociações regionais e bilaterais deixou a desejar. Uma análise mais detalhada da pauta de comércio mostra que a nossa melhor opção de política comercial seria uma maior integração no continente americano. Nossas exportações para a América Latina e os EUA mostram um surpreendente dinamismo nos últimos dez anos (ver meu artigo de 5/7), principalmente nos produtos de maior tecnologia. Só que, infelizmente, a integração americana é hoje uma miragem no deserto. A Alca foi morta pelo desinteresse de praticamente todos os países do Hemisfério, a começar pelos co-presidentes do processo, EUA e Brasil. O Mercosul vive uma grave crise regulatória e de identidade. A Argentina luta para introduzir mecanismos de substituição de importações dentro de um bloco que se autodenomina ironicamente “mercado comum”. Uruguai e Paraguai estão a um passo de iniciar negociações com os EUA, seguindo o caminho de México, Chile, Colômbia, Peru e países centro-americanos. A UE vive a “síndrome do reboque”, assinando acordos expressos com todos os países que concluem negociações com os EUA. Hugo Chávez participa das reuniões do Mercosul sempre com um enorme megafone à mão, porém, na prática, a Venezuela ainda é um sócio virtual do bloco, que está longe de concluir sua negociação de acesso e de internalizar as legislações pertinentes. A presença da Venezuela no Mercosul dificulta enormemente qualquer negociação não só com os EUA, mas também com a UE. Por sua vez, Evo Morales alia-se à Venezuela no discurso, nas sobras do petróleo e no aparelhamento militar, espalhando dores de cabeça para o Brasil com a nacionalização do gás e a perseguição aos sojicultores brasileiros de Santa Cruz. Enquanto isso, dezenas de novos acordos bilaterais explodem no Leste da Ásia e já se começam a delinear os primeiros acordos bilaterais entre as grandes economias emergentes e os países desenvolvidos. Os EUA iniciaram negociações com a Coréia do Sul e a UE anunciou, dia 4 de outubro, que vai negociar com os emergentes asiáticos.
O governo Lula quis mudar a geografia comercial do mundo ao priorizar acordos com países em desenvolvimento. Se fosse factível, essa opção faria todo o sentido, principalmente para a mineração e o agronegócio, que são os únicos setores realmente “global traders”. Ocorre, porém, que há enormes obstáculos nessa trajetória. Primeiro, os países mais pobres dependem umbilicalmente e preferem lutar pelo acesso preferencial aos mercados ricos. Segundo, as grandes economias emergentes priorizam negociações com seus principais clientes, os países ricos. Terceiro, boa parte da indústria brasileira não quer nem ouvir falar de uma integração com a China e outros emergentes. Os setores de têxteis e calçados, por exemplo, ainda sonham com uma Alca que lhes garantiria acesso preferencial, porém temem qualquer abertura adicional na OMC.
Em suma, tirando a Rodada de Doha, que deve avançar lentamente, nossa política comercial parece estar hoje num beco sem saída. Em vez de mudar a nova geografia comercial deste início de milênio, o próximo governo deveria entendê-la e aceitá-la, promovendo reformas internas e negociações externas que ampliem nossa inserção internacional. A política comercial brasileira precisa avançar mais rapidamente, com foco nos mercados que criam comércio e promovendo maior coordenação com o setor privado. Ou seja, a política comercial deveria ser menos “política” e mais “comercial”.
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