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segunda-feira, 14 de março de 2016

Diarios da presidencia: Getulio Vargas e FHC - Boris Fausto (FSP)

Diários podem ser sinceros, mas muito raramente. Quem faz um diário geralmente é narcisista, e procura dar uma versão a mais positiva possível de suas ações, decisões, pensamentos, omissões. Mas eles constituem uma fonte primária relevante para elucidar determinados momentos do processo decisório, uma vez que podem confirmar ou corrigir o que já figura na literatura secundária.
Os diários de Getúlio Vargas e de FHC (apenas os dois primeiros anos do primeiro mandato) são analisados pelo historiador Boris Fausto, que destaca pequenas passagens sobre relações internacionais e política externa do Brasil.
Paulo Roberto de Almeida


Historiador Boris Fausto compara os diários de Getúlio Vargas e FHC


RESUMO Historiador se debruça sobre os diários presidenciais de Getúlio Vargas (1882-1954), publicados em 1995, e os de Fernando Henrique Cardoso, cujo segundo tomo sai em maio. A comparação deixa ver não só diferenças e semelhanças entre eles mas quanto GV aparece como modelo, a seguir ou com o qual romper, para FHC.
*
Dois diários, contendo anotações de dois presidentes da República –Getúlio Vargas (GV) e Fernando Henrique Cardoso (FHC)–, são uma raridade nos registros históricos deste desmemoriado país.
A publicação do "Diário" de Getúlio, em 1995 (Siciliano/FGV), foi precedida de uma aura de mistério. Como narra Celina Vargas do Amaral Peixoto, neta de Getúlio e principal responsável pela publicação, a primeira referência que teve a respeito dos cadernos de seu avô apareceu no livro de sua mãe, Alzira, "Getúlio Vargas, Meu Pai", de 1960 (Globo).
Nesse texto, Alzira menciona uma conversa com Oswaldo Aranha, ministro de Getúlio e seu amigo íntimo, nos tempos do Estado Novo: "Teu pai anda escrevendo algumas coisas em um caderninho preto que ele esconde sempre. Hoje ele me deu algumas notas que me deixaram preocupado".
Alzira lê furtivamente os escritos do pai e, não encontrando nada que a alarmasse, esquece-os até 1945, quando Vargas é deposto.
A essa altura, encarregada de guardar a papelada do pai, Alzira lembra-se da história do caderninho preto, pergunta a Getúlio onde ele estaria, e este responde que o queimara antes de deixar o palácio. Por fim, ainda em vida de Alzira, reapareceu o "caderninho preto" que, na verdade, eram vários cadernos, dando origem a sua publicação por iniciativa de Celina, após a morte da mãe.
Essa microhistória de mistério aumentou a expectativa acerca das revelações do "Diário" quando, afinal, ele veio a ser publicado. Entretanto, a expectativa foi em grande parte frustrada. Eu mesmo escrevi um artigo para a Folha, sob o título de "Memórias escritas a lápis" (8.mar.1996), dizendo que "nada ou quase nada existe nele [no 'Diário'] que leve a uma revisão histórica, nem lá se encontram reflexões sobre os grandes temas da história brasileira, entre os anos 1930-42. [...] Ficamos sem saber como Getúlio Vargas encarava a implantação de uma legislação operária, o desenvolvimento industrial ou a criação do Estado Novo, ou ainda que tipo de forças teve de enfrentar na realização de um presumível projeto nacional de grandes proporções".

Ilustração Manuela Eichner

ESPÍRITO
A decepção é compreensível, mas, na verdade, os diários, tanto os de Getúlio Vargas quanto os de Fernando Henrique Cardoso, são fontes históricas importantes, quando mais não fosse, por revelarem estados de espírito, dúvidas, desabafos, reações diante dos fatos, que os autores não expressariam em público. Eles são, porém, bem mais do que isso, pois oferecem pistas para a reconstrução do exercício do poder, de dentro para fora, em momentos cruciais da história brasileira.
Aqui uma observação preliminar: o "Diário" de Vargas diz respeito a um período de quase 12 anos (1930-42), enquanto a parte publicada até agora dos *"Diários da Presidência 1995-1996" [Companhia das Letras, 936 págs., R$ 74,90; e-book, R$ 44,90]* de Fernando Henrique Cardoso limita-se a seus dois primeiros anos como presidente –o próximo volume será publicado em maio.
Há também uma diferença quantitativa. As anotações de Getúlio resultam em cerca de mil páginas de livro; os registros gravados por FHC abrangem, em extensão semelhante, apenas os mencionados dois anos de seus oito de mandato.
Os diários são escritos íntimos ou destinavam-se à publicação? Na introdução ao "Diário" de Getúlio, Celina Vargas do Amaral Peixoto lida com a questão, assinalando que o texto deixado pelo avô oscila entre as duas intenções.
Isso aparece logo no início, quando, ao explicar sua motivação, Getúlio afirma que "vai anotar os fatos de sua vida, como quem escreve para si próprio". Se a mirada na posteridade está implícita em quase todo o "Diário", a introspecção aparece também em muitas passagens: "Mas tudo isso é comigo e, se escrevo aqui, não falo a ninguém". Ou ainda: "Quanto mais só sinto-me mais tranquilo e dono de minha própria pessoa".
A mesma dupla intenção transparece nos "Diários da Presidência", com a diferença de que FHC prevê, no texto, a publicação dos escritos após sua morte, provavelmente para não ferir melindres. Para satisfação dos vivos, porém, ele superou essa limitação.
O personagem Getúlio Vargas integra a vida de Fernando Henrique desde a infância, como se infere de seu livro de recordações, com o título de "O Improvável Presidente do Brasil" (Civilização Brasileira, 2013).
Nele, FHC narra a tentativa de assalto ao Palácio Guanabara –residência de Getúlio e sua família–, por um grupo de integralistas, em maio de 1938. O ataque foi repelido por um contingente do Exército de que fazia parte seu pai, o futuro general Leônidas Cardoso, após intensa fuzilaria e várias mortes. Comentando o episódio, FHC descreve-o como uma revelação perturbadora: "Em minha cabeça de criança o governo do Brasil era absolutamente inseparável da minha família; eram a mesma coisa".
Depois de lembrar antepassados participantes da vida política do país, desde seu bisavô, relata que Augusto Ignácio do Espirito Santo Cardoso, seu tio-avô, fora ministro da Guerra de Getúlio, e que vários outros membros da família eram generais e oficiais intimamente ligados ao regime, embora nem toda a família tivesse essa mesma inclinação.
PONTO COMUM
Entre Getúlio e Fernando Henrique, há notórias diferenças de geração, de formação, de concepções políticas, de estilos de vida. Mas há um importante ponto comum entre ambos. Os dois comportam-se como governantes que miram o interesse nacional –qualquer que seja seu conteúdo para um e para outro– acima dos interesses privados e das infindáveis miudezas da política. FHC reconhece essa aproximação, em meio a críticas a Getúlio, quando diz: "Não obstante, a gente tem uma noção do Estado, uma noção do país, que é o que eu tenho e Getúlio tinha essa noção".
Fernando Henrique Cardoso refere-se pela primeira vez à leitura de fragmentos do "Diário" de GV, dizendo-se algo decepcionado porque esse homem distante, frio, não registra os principais acontecimentos, e sim coisas pessoais.
Entretanto, mais adiante, sempre a partir do "Diário" de Getúlio, FHC pondera: "Ele enfrentou muito mais dificuldades, meu deus, para organizar o Estado mais moderno que construiu, muito mais dificuldade. Fez também à base de muito mais ditadura, com atropelos de toda ordem. Era um inferno, e é gozado como a pequena política dominava. A impressão era de que os fatos iam conduzindo Getúlio, e não Getúlio os fatos, e na verdade não era bem assim".
O fim trágico de Getúlio Vargas aparece nos "Diários da Presidência" de Fernando Henrique Cardoso num momento em que ele revela certo desencanto com reações da sociedade e com hesitações no interior do próprio governo.
FHC lança aí uma reflexão que qualifica como um pouco amarga: "Há momentos em que a gente pensa: bom, já fiz tanta coisa, será que não dá para parar? É como se houvesse um começo de sentimento de morte, que nunca tive". Nessa altura, surge em contraste a figura de Vargas: "O Getúlio, entretanto, li no seu 'Diário', fala sempre em suicídio; sempre fui o oposto, não penso em nada disso, estou pensando no quanto a morte, no passado, era encarada por mim como uma coisa terrível e agora, pouco a pouco, vai me parecendo coisa natural".
Em outra passagem, FHC fala de grandes figuras políticas da segunda metade do século 20, dizendo que De Gaulle tinha uma ideia de morte, de quem quer entrar para a imortalidade, diferente da de Getúlio. A morte para GV era uma espécie de vingança pessoal: "Já que eu não posso ganhar, eu ganho morrendo. Se matou e ganhou. No caso de Getúlio, a visão é a de um homem autoritário: ou aceitam o que estou fazendo ou então eu ganho nem que seja me matando".
Essa observação não faz jus ao momento final da vida de Vargas –um episódio complexo que até hoje se abre a muitas controvérsias. Sem pretender enveredar pelo caminho da psico-história, convém levar a sério, como elemento explicativo, alguns traços da personalidade de Getúlio, entre eles a tendência ao pessimismo –vejam-se as observações melancólicas quando ele encerra o "Diário"– e a encarar o suicídio como alternativa à vida.
Essa alternativa aparece já no deflagrar da Revolução de 1930, associada a um código de honra que não admite derrotas. A tranquilidade demonstrada quando é apeado do poder em 1945 não chega a ser uma exceção, pois nesse episódio Getúlio surge mais como vencedor do que como vencido.

Ilustração Manuela Eichner

Os dois presidentes relatam as dificuldades para harmonizar ministros e assessores mais próximos. Várias vezes, seus juízos são irônicos ou implacáveis. Por exemplo, o amigo íntimo Oswaldo Aranha ganha uma referência irônica em abril de 1932, quando era ministro da Fazenda: "Há uma novidade: a zanga do Oswaldo Aranha, ameaçando deixar o ministério, porque não foi promovido a cônsul de terceira classe o auxiliar de consulado Sousa Dantas... Escrevi-lhe uma carta acomodando".
Quanto aos militares, veja-se uma referência cheia de restrições ao ministro da Guerra, o general Eurico Gaspar Dutra, em março de 1939: "Despacho nas pastas militares. Notei o ministro da Guerra apreensivo, pensando que não passaremos este ano sem subversão da ordem. Ele é um espírito impressionável e muito suscetível a acreditar em boatos e intrigas".
No que diz respeito a FHC, é surpreendente a franqueza das adjetivações com relação a seu "entourage". Ele se refere aos atritos entre Malan e Serra; às atitudes intempestivas de Sérgio Motta; aos intermináveis pedidos de Mário Covas –e por aí vai.
Entre os políticos, ganha a palma o senador José Sarney, que recebe uma memorável, embora silenciosa, paulada, quando afirma que "setores do governo são favoráveis a uma coisa mais autoritária, querem desmoralizar o Congresso e que a luta pela democracia contra o autoritarismo é uma luta cotidiana": "Ora", diz FHC, "esta é boa!". "Fiquei pensando com os meus botões: ele serviu a todos os governos militares, nunca lutou nada, não me esqueço até hoje do discurso violento que fez de resposta ao Ulysses, que queria as diretas já. Ele, presidente do PDS, fez um discurso exaltado no Senado, contra. Aderiu ao Partido da Frente Liberal no finzinho, apenas, porque não tinha mais saída com a questão do Maluf e do Figueiredo, e agora vir posar de democrata já é um escárnio! Uma vergonha." Elogios ao senador, como político e homem versado na literatura, não chegam a apagar a contundência dessa crítica.
AMARGURA
Os dois diários retratam uma carregada atividade cotidiana. Aqui e ali, FHC revela um certo desânimo, uma certa amargura, por ver-se cercado de incompreensões de toda ordem. Getúlio vai muito além e várias vezes se refere não só a incompreensões mas a ameaças, a conspirações reais ou fantasiosas.
Em maio de 1939, em pleno Estado Novo, quando enfeixa poderes ditatoriais, GV faz uma anotação surpreendente sobre suas relações com o Exército: "A campanha de boletins infamantes contra mim é muito grande. Confesso que estou apreensivo com estas conspirações e a falta de coesão entre os elementos que apoiam o governo. Estou a mercê do Exército, sem força que o controle, e sem uma autoridade pessoal e efetiva sobre ele. Estou só e calado para não demonstrar apreensão".
Entre as muitas coisas que separam Getúlio Vargas de Fernando Henrique Cardoso, uma das mais evidentes é o encanto por regimes autoritários, no caso de GV, e a convicção democrática de FHC, resultantes em grande medida da formação pessoal de cada um e das épocas contrastantes em que exerceram a Presidência da República.
No "Diário", Vargas manifesta seguidamente sua afinidade com os regimes ditatoriais e faz referências aos obstáculos ao exercício do poder impostos pela ideologia liberal e pela democracia. Fico com um único, mas expressivo exemplo: suas reações ao processo de democratização do país em 1933-34, que conduziu à aprovação da Constituição de 16 de julho de 1934.
Instalado no comando unipessoal do governo provisório, GV prevê dificuldades, ainda no curso dos trabalhos da Assembleia Constituinte: "Não tenho dúvidas sobre as dificuldades que vou enfrentar, e talvez seja mesmo preferível que tome outro rumo, pois já começo a acreditar que, com tal instrumento de governo, será perdido o esforço".
Depois, na data da promulgação da Constituição, Vargas registra secamente: "Entre festas e demonstração de regozijo, foi promulgada a nova Constituição. Parece-me que ela será mais um entrave do que uma fórmula de ação". Escusado dizer que o entrave seria removido pouco mais de três anos depois, pela instauração da ditadura do Estado Novo.
JORNAIS
A opinião pública raramente é um tópico relevante no "Diário" de Getúlio. Em contraste, Fernando Henrique preocupa-se com a formação da opinião pública, e frequentemente se irrita com as críticas de jornais e revistas. A Folha, que não lhe dá trégua, é o alvo principal; mas mesmo "O Estado de S. Paulo", tido como o jornal que mais simpatiza com o governo, não sai ileso.
Durante um longo despacho com o ministro das Minas e Energia, Raimundo Mendes de Brito, FHC lhe pede que preste bastante atenção à nova lei de regulamentação das atividades petrolíferas "porque as críticas que vêm, vêm sempre do chamado pensamento liberal, do Roberto Campos ou de 'O Estado de S. Paulo', que no dia de hoje [2 de janeiro de 1996] tem um editorial preventivo contra mim, dizendo que eu na verdade não teria aderido propriamente aos ideais liberais como se isso fosse necessário para fazer a modernização do Brasil. É só a visão ideológica. Na verdade eles têm medo de que a regulamentação dê mais força às estatais".
Em outros momentos, o indignado presidente dá lugar ao sociólogo. É o caso de um encontro com o pessoal da Redação de "Veja" para uma longa conversa em que FHC trata de lhes explicar sua visão de Brasil em torno de um plano estratégico, "para ver se eles entendem que há um programa, um rumo para o país".
LAZER
A circulação e o lazer dos dois presidentes são condicionados por um entorno muito diverso. Se FHC vive nos palácios de Brasília, GV instala-se no centro do Rio de Janeiro, entre o Palácio do Catete e o Palácio Guanabara. Durante vários anos, pôde dar-se ao luxo de caminhar até a Cinelândia, no centro da cidade, para ir a um cinema, acompanhado apenas de um ajudante de ordens.
Só depois do ataque dos integralistas ao Palácio Guanabara Getúlio aceitou a formação de uma guarda pessoal chefiada por Gregório Fortunato, mas não parece ter ficado à vontade com a segurança. Premonitoriamente, ele anotou no "Diário", em abril de 1941: "Esta guarda pessoal, embora composta de homens dedicados e fiéis que tenho pena de mandar embora, é para mim um motivo de constrangimento. Não gosto de andar cercado de capangas".
As referências à família e ao lazer como espaços de tempo subtraídos ao exercício do poder fazem parte de ambos os diários. Alegria com as reuniões familiares, preocupações com enfermidades e acidentes.
O aristocrático golfe tem no "Diário" de GV um lugar privilegiado, em passagens que lembram poemas minimalistas dos primeiros tempos do modernismo: "'Golf', chuva, gripe, cinema"; ou em outra ordem: "Trabalho, passeio, 'golf'".
Vargas se encanta também com encontros que lembram o ambiente dos pampas. São os churrascos em companhia de amigos, os exercícios de equitação de cavaleiros do Exército e, como ponto mais alto, a presença ao Jockey Club Brasileiro, nas ocasiões em que se disputava o Grande Prêmio Brasil –um evento social relevante em tempos passados.
POLÍTICA EXTERNA
A certa altura de seus "Diários da Presidência", referindo-se a Vargas, Fernando Henrique Cardoso diz que pensou que "ele não tivesse uma noção da política externa e, na verdade, tinha".
De fato, GV era obrigado a levar a sério o campo das relações internacionais, marcado pela ascensão do nazismo na Alemanha e a eclosão da Segunda Guerra, mas essa não era área de sua preferência. Seu universo limitava-se aos países vizinhos da América do Sul –um universo conhecido para um gaúcho nascido em São Borja, na fronteira com a Argentina. Dois amigos próximos eram o general Justo, presidente da Argentina, e o presidente do Uruguai, Gabriel Terra.
Getúlio não tinha afinidades com dirigentes de países europeus e detestava particularmente os ingleses. Demonstrou, porém, franca simpatia pelo presidente Roosevelt. Por ocasião de uma viagem-relâmpago deste ao Brasil, em novembro de 1936, GV anotou no "Diário": "O homem [...] é de uma simpatia irradiante, de um idealismo pacifista sincero, e o próprio defeito físico [resultante de poliomelite] que o torna enfermo do corpo aperfeiçoa-lhe as qualidades morais e aumenta o interesse pela sua pessoa. É um orador claro, simples e cheio de imaginação, mas despido das hipérboles 'criollas'".
Ele encontrou-se uma segunda vez com o presidente americano em Natal, no curso da Segunda Guerra Mundial, mas nunca aceitou os convites para ir aos EUA, apesar da insistência de Roosevelt.
Já para FHC a política externa é não só uma fonte de interesse constante mas uma atividade atraente. Vejam-se as linhas dos "Diários" em que as viagens presidenciais, os encontros com Bill Clinton, Jacques Chirac, Felipe González e várias outras personalidades parecem um remanso, uma pausa nas vicissitudes do poder.
Um contraste significativo salta aos olhos de quem se familiariza com os dois diários.
Como se sabe, Vargas passou para a história como o primeiro presidente a preocupar-se com os trabalhadores urbanos e com os setores mais desfavorecidos da sociedade –os "humildes" como ele gostava de dizer. A legislação trabalhista que concedeu direitos básicos à classe trabalhadora; a organização dos sindicatos atrelados ao Estado; a construção de uma imagem carismática que vem perdurando depois de sua morte representam um legado histórico incontornável.
Apesar disso, esse aspecto significativo de seu longo exercício do poder quase não aparece nas anotações do "Diário". Aqui e ali, uma referência à assinatura de um decreto instituindo o salário mínimo, à criação da Justiça do Trabalho, ou rápidas alusões às comemorações festivas de Primeiro de Maio.
Por outro lado, uma oposição eficaz no plano da comunicação conseguiu convencer amplos setores da sociedade de que FHC foi um presidente preocupado apenas com a estabilidade financeira e desinteressado do avanço social.
Seus "Diários da Presidência" mostram o contrário. A questão da reforma agrária, que tinha em 1995-96 muito maior impacto do que hoje, é um tópico importante de suas preocupações.
Cito apenas uma, entre dezenas de referências sobre o tema, um diálogo travado no curso de uma reunião ministerial: "Serra fez um apelo contra a reforma agrária, nesta reunião, dizendo que é perda de dinheiro, que não tem efeito. Ainda que ele tivesse razão, não dá para dizer isso em público, nem ele está pedindo que se diga, mas acho que não tem razão. É preciso haver um esforço correto do governo também nessa matéria de assentamentos rurais".
A necessidade da demarcação das terras indígenas aparece também em vários tópicos, combinada com a preservação do ambiente. Indo do rural ao urbano, as relações com os sindicatos e especificamente com a CUT ocupam várias passagens dos "Diários". Embora as opiniões divirjam, o clima das reuniões retratado no texto está longe de ser o de uma guerra opondo inimigos, como iria acontecer em anos seguintes.
Ao falar da série de reformas necessárias para integrar o país em um mundo em transformação, Fernando Henrique diz ter por objetivo desmontar a Era Vargas.
De fato, ele propôs-se a alinhar o país com as novas realidades de um mundo globalizado, ao promover, exemplificando, a abertura do Brasil ao comércio internacional; ao realizar privatizações de grandes empresas estatais, sujeitas a um estatuto regulatório; ao aprovar normas que garantiram a estabilidade fiscal.
Fernando Henrique Cardoso teve êxitos e derrotas na busca desses objetivos, porém, mais para mal do que para bem, não podemos afirmar que o Brasil virou a página da Era Vargas.

BORIS FAUSTO, 85, historiador, é autor de, entre outros, "História do Brasil" (Edusp) e "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (Companhia das Letras).

MANUELA EICHNER, 31, é artista e viajante. Suas colagens podem ser encontradas pelas ruas de São Paulo, Berlim, Nova York.

sábado, 12 de março de 2016

1942: o Brasil declara guerra ao Eixo e confisca bens de seus cidadaos

A declaração de guerra era esperada e inevitável, depois do ataque alemão a navios brasileiros, na costa e longe dela. O confisco de bens dos cidadãos alemães, italianos e japoneses no Brasil já foi um ato mais controverso, uma vez que a maior parte deles eram ou imigrantes recentes, ou investidores desses países. Os negócios que poderiam servir ao esforço de guerra nazi-fascista ou que prejudicavam efetivamente o próprio esforço de guerra brasileira deveriam, sim, ser expropriados, nacionalizados, ou simplesmente colocados sob intervenção (caso de investimentos mais antigos que já estavam plenamente integrados à economia nacional), depois de investigação a respeito.
Um decreto geral e genérico, expropriando todos os ativos de todos os cidadãos ou súditos dos países declarados inimigos pode ser inconstitucional ou ilegal, pois viola direitos consagrados na Constituição: à propriedade, por exemplo.
O Brasil provavelmente tomou essa decisão a partir de medidas similares tomadas nos EUA, e que redundaram inclusive no internamento forçado de milhares de súditos japoneses, alguns até cidadãos americanos desde algum tempo, numa das grandes injustiças da Segunda Guerra. Mas, era compreensível uma medida dessas, depois do ataque traiçoeiro deslanchado pelo Japão contra os EUA (em Pearl Harbor, em 7/12/1941). Não era o caso do Brasil, a despeito dos ataques de submarinos alemães contra navios brasileiros, teoricamente neutros (mas carregando carga para o esforço de guerra americano ou britânico, alguns simplesmente de passageiros, navegando pelas costas do Brasil).
Mais relevante foi a decisão de sair da neutralidade, afirmada desde o início da guerra, e mantida durante sua fase inicial, decisão defendida por Oswaldo Aranha, que se apoiou em discurso de Rui Barbosa feito em Buenos Aires, em 14 de julho de 1916, sobre os "deveres dos neutros", no qual ele dizia que não se pode ser neutro em face da injustiça e do crime (ele se referia à invasão da Bélgica neutra pelo Reich alemão, situação que se repetiria na Segunda Guerra).
Grandes temas de relações internacionais.
Paulo Roberto de Almeida

Vargas decreta o confisco de bens de imigrantes alemães, italianos e japoneses

Em 11 de março de 1942, Brasil declara guerra aos países do Eixo e confisca os bens de imigrantes italianos, japoneses e alemães

Vargas decreta o confisco de bens de imigrantes alemães, italianos e japoneses
Vargas e o presidente americano Franklin D. Roosevelt, em 1936 (Wikipédia)
O gaúcho Getúlio Vargas chegou à presidência da República em 1930. A chamada Era Vargas durou 15 anos e pode ser dividida em três fases: o governo provisório de 1930 a 1934, o governo constitucional de 1934 a 1937 e o Estado Novo de 1937 a 1945. A Segunda Guerra Mundial coincidiu com este último período, com a invasão da Polônia pelas tropas alemães de Hitler junto ao exército soviético de Josef Stalin em 1939.
O governo brasileiro tinha um perfil político autoritário, próximo do fascismo, mas mantinha uma aliança com os Estados Unidos, do qual tomava empréstimos generosos, de modo que o posicionamento do país na guerra se mostrava, a princípio, completamente indefinido.
O Brasil decidiu se juntar aos países democráticos — EUA, França, Inglaterra — contra os países do chamado Eixo — a aliança militar entre Alemanha, Itália e Japão — depois do afundamento de navios brasileiros nas costas marítimas do Brasil por submarinos nazistas.
A agressão dos fascistas gerou protestos de rua e convenceu o governo a declarar guerra à Alemanha. Todos os cidadãos alemães, japoneses e italianos no Brasil passaram a ser considerados inimigos de guerra e possíveis espiões. Em 11 de março de 1942, o governo brasileiro confiscou seus bens por meio de um decreto presidencial.

domingo, 24 de agosto de 2014

Getulio Vargas (3), o desenlace: resumo da biografia de Lira Neto

Terceiro e último volume da monumental biografia de Getúlio Vargas, por Lira Neto, sobre o atentado a Lacerda e o suicídio de Getúlio, um gesto calculado, destinado a, mesmo na derrota e no desenlace fatal, vencer seus inimigos, ganhando para si o povo, que ele manipulava como um mestre da política, mas que não gostava de fazer política, apenas de mandar.
Paulo Roberto de Almeida

Mil disfarces de Getúlio Vargas convergem num gesto de coerência
RESUMO O teatral suicídio de Getúlio, impelido pelas pressões políticas internas e externas sobre seu governo e ocorrido há 60 anos, fez com que o poder político do estadista perdurasse após sua morte. Últimos anos de sua vida são tema do terceiro e último tomo da biografia que lhe consagra Lira Neto, aqui resenhado.
OTAVIO FRIAS FILHO, 57, diretor de Redação da Folha

Os efeitos políticos do suicídio de Getúlio Vargas (1882-1954), que hoje completa 60 anos, já se dissiparam há muito tempo, mas o ato continua a reverberar pela singularidade.

Trágico, violento e irrecorrível, ele discrepa dos costumes conciliatórios vigentes desde pelo menos meados do século 19, quando se fixou o padrão das revoluções com pouco ou nenhum derramamento de sangue e das transições negociadas em que parte da velha ordem se transfere como por osmose à nova (1889, 1930, 1945, 1964, 1985). Discrepa também da personalidade do suicida, conciliador-mor que encarnou como ninguém o papel de sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas. Como todo gesto extremo, terá sido preparado por uma complexa malha de causas.

É sabido que Getúlio sentia atração pelo suicídio honroso, destinado a prevenir alguma condição intolerável na eventualidade de uma derrota definitiva. Pelo menos duas vezes ele mencionou a possibilidade por escrito, quando era arrastado, em outubro de 1930, após muita hesitação, à ofensiva rumo ao Rio, sem saber que resistência encontraria pelo caminho, e em julho de 1932, quando foi surpreendido pelo ímpeto da contrarrevolução constitucionalista que irrompeu em São Paulo. Um de seus filhos viria a suicidar-se em 1977, o que parece sugerir alguma propensão inata.

Para que essa atração se convertesse em ato, porém, foi preciso que todas as portas se fechassem. Com os mandantes da tentativa de assassinar Carlos Lacerda (da qual resultou a morte de um oficial da Aeronáutica) alojados em seu palácio, com o "mar de lama" que as investigações subsequentes revelaram, Getúlio enfrentava uma avassaladora campanha pela renúncia, que logo se traduziu em ultimato militar transmitido pelo próprio ministro da Guerra (Exército). Naquela madrugada de 24 de agosto de 1954, ele ainda negociou uma licença que o manteria afastado do cargo até a conclusão das diligências. Os militares, contudo, foram irredutíveis.

Relatos da época indicam um presidente amargurado, aos 72 anos, com os desmandos na família cometidos às suas costas e, ao mesmo tempo, receoso de que ela passasse a objeto de execração pública: um irmão e um filho talvez estivessem a par da preparação do atentado; outro filho vendera uma propriedade a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do palácio e mentor do crime, pago com empréstimo bancário avalizado por João Goulart, ministro do Trabalho até a véspera e afilhado político do presidente.

Num homem tão racional e metódico, mesmo os lances da paixão foram comedidos pelo cálculo. Psicologia à parte, o extraordinário nesse suicídio é seu alcance político -num derradeiro passe de mágica o velho prestidigitador inverte a maré, derrota os inimigos quando mal haviam aberto o champanhe (conforme o relato de Lacerda sobre o fatídico amanhecer) e se consagra na memória popular, comandando seu vasto eleitorado por algumas décadas desde o além-túmulo (há indícios de que ele tencionava apoiar Juscelino e seguramente gostaria de ter visto Jango ou Leonel Brizola como sucessores).

ATENTADO
Ao contrário do suicídio, o atentado é quase inexplicável. De sua execução desastrada, Lacerda emergiu como mártir vivo (fora ferido no pé) conclamando os militares a fazer justiça ao colega de farda assassinado. Mesmo que o crime fosse bem-sucedido, porém, naquele ambiente exasperado as consequências seriam devastadoras para o governo, sobre o qual recairiam as suspeitas pela eliminação do principal inimigo de Getúlio na imprensa. Por rústicos que fossem, é estranho que os autores da trama não se dessem conta disso.

Atentado e suicídio formam o clímax do terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto,"Getúlio - Da Volta pela Consagração Popular ao Suicídio (1945-1954)" [Companhia das Letras, R$ 49,50, 430 págs.], agora lançado, completando uma empreitada de 1.654 páginas. Ali, esse autor que gosta de explorar peripécias e lances pitorescos, mas trata seu material com exatidão escrupulosa, dá a versão dos condenados, apresentada anos depois do episódio.

As confissões teriam sido obtidas sob coação. Os dois acusados apenas seguiam Lacerda, em busca de algo que o comprometesse. Quando, na madrugada de 5 de agosto, o major Rubens Vaz estacionou na rua Tonelero e Lacerda desceu do carro para entrar no prédio onde morava, um dos réus teria se aproximado para anotar o número da placa, sendo interpelado pelo militar, que também saíra do carro. Seguiu-se uma luta entre ambos; Lacerda, que mal entrara no prédio, começou a atirar, atingindo por engano o major. Um segundo tiro, desferido pelo acusado com quem se atracava, matara o oficial. O inquérito teria sido uma fantástica farsa.

São mínimos os indícios em apoio dessa versão. Lira Neto os registra com gosto, contente por envolver acontecimento tão mítico nessas fumaças de mistério: a arma de Lacerda, que de fato disparou, não foi periciada; os boletins médicos do ferimento no pé desapareceram. Mas o biógrafo endossa a versão oficial, sustentada por todas as evidências disponíveis, entre elas o relato de três jornalistas do "Diário Carioca" que por acaso viram a cena a poucos metros de distância (um deles, o vizinho Armando Nogueira, foi o primeiro a reportá-la). É preciso uma sólida fé em teorias conspiratórias para acreditar que não houve atentado.

GUARNIÇÃO
A guarda pessoal, que na época tinha 83 integrantes, havia surgido em 1938. Numa noite de maio daquele ano, seis meses depois do golpe em que Getúlio se fez ditador, um destacamento integralista (espécie de fascismo católico-tropical) invadiu o Palácio Guanabara com o objetivo de assassiná-lo e tomar o poder. O assalto foi rechaçado pela guarnição e por auxiliares do autocrata, mas a fuzilaria se prolongou enquanto o Exército e a Polícia Especial demoravam, de forma suspeita, a enviar reforços.

Benjamin Vargas, irmão mais novo de Getúlio, teve papel crucial na defesa do palácio naquela madrugada e parece ter sido responsável pelo fuzilamento sumário, nos próprios jardins do Guanabara, de uma dezena de golpistas presos quando o ataque foi debelado ao amanhecer.

Em 1932, esse mesmo irmão se pusera à frente de um batalhão de voluntários, recrutado entre capangas e apaniguados da família Vargas em São Borja para combater os paulistas. Nesse batalhão, que numa arruaça de fronteira chegou a invadir território argentino, figurava Gregório Fortunato, o futuro Anjo Negro, a quem foi confiada, depois do assalto integralista, a missão de chefiar o bando convertido em guarda permanente dedicada à proteção do ditador.

Lira Neto narra incidentes espantosos durante a ditadura do Estado Novo em que Bejo -como o irmão atrabiliário e alcoólatra era chamado em família- provoca desafetos em boates, dá tiros a esmo, chega a ferir terceiros e continua impávido. Certa vez mandou sequestrar e espancar um jornalista; o assecla encarregado da tarefa seria mais tarde um dos dois condenados pela execução do atentado contra Lacerda. Nesse submundo provinciano em que se cruzavam compadrio e delinquência, em que o hábito caudilhesco da violência se ampliara na impunidade garantida pela ditadura, formou-se o "mar de lama" que tragou o mandato democrático de Getúlio.

CARTA-TESTAMENTO
Mas, como no movimento entre tese/antítese/síntese, atentado e suicídio somente se resolvem no terceiro elemento mítico dessa narrativa, a carta-testamento, também ela objeto de controvérsia duradoura. Existem duas versões desse texto.

A primeira, manuscrita certamente pelo próprio Getúlio, é mais curta. Seu tom é apressado, algo prosaico, e certas passagens exalam ressentimento. O autor reclama da "fraqueza de amigos que não me defenderam" e da "felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei". O fecho é pedestre e anticlimático: "A resposta do povo virá mais tarde...".

A segunda versão, datilografada, logo distribuída e replicada à exaustão nas rádios e jornais, foi a que passou à história. É uma magnífica exortação política, escrita com simplicidade intensa e solene. Sua qualidade literária quase faz esquecer o quanto ressoa de demagogia nacionalista e de culto à personalidade em seu teor.

"Não me acusam, me insultam, não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa." Feitas as negativas desse introito, que valem por uma refutação, o texto relembra que, depois de "decênios de espoliação", o autor se fez chefe da Revolução de 1930, instaurou "um regime de liberdade social", foi deposto e retornou ao governo "nos braços do povo".

Passa a enfrentar a resistência de grupos "nacionais e internacionais" ao aumento do salário mínimo, à restrição nas remessas de lucros para o exterior, à criação da Eletrobras. Vinha lutando "mês a mês, dia a dia, hora a hora" -o tempo da narrativa só se acelera- até concluir: "Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue", o que confere uma ressonância cristã ao sacrifício feito em nome do povo e que sela sua aliança ("uma chama imortal") com o líder imolado.

Segue-se uma saraivada desconcertante de antíteses: "Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém". No último parágrafo, uma série de frases curtas, sincopadas, prepara o crescendo de suspense que se desata no majestoso traslado da sentença final: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".

Parece haver algum consenso entre os historiadores quanto à sequência de eventos. Getúlio faz anotações para uma carta que deixaria caso as circunstâncias o forçassem ao suicídio. Lira Neto conta que Alzira, sua filha e secretária, diz ter visto essas anotações uma semana antes entre os papéis do presidente que, interpelado por ela, desconversou, atribuindo-as a um momento de "desabafo". Essa versão já dizia que "velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor".

Em algum momento daqueles dias, Getúlio discute o assunto com o jornalista José Soares Maciel Filho, amigo e redator de seus principais discursos, a quem pede que redija uma segunda versão, como haviam feito em outras ocasiões. Maciel, que na juventude fora aluno do filósofo Benedetto Croce na Itália e depois criara um jornal no Rio para sustentar a Revolução de 30, era um ideólogo nacionalista que ocupou cargos altos na burocracia getuliana. Para tranquilizar o assessor, é plausível que o presidente tenha alegado reservar o texto para uma situação extrema que provavelmente nunca ocorreria.

CENÁRIO
Claro que todo esse cenário é apenas a condensação teatral de um drama muito maior. O raio de manobra do governo vinha se estreitando, conforme era tracionado por uma dinâmica de polarização entre forças econômicas e interesses sociais contraditórios, que Getúlio (como Jango 20 anos mais tarde) tentou conciliar enquanto conseguiu.

Como sempre, o cobertor era curto. O país precisava de recursos externos para investimentos em infraestrutura, mas a prodigalidade que os americanos haviam mostrado na Segunda Guerra e no começo da Guerra Fria, quando era prioritário manter boas relações com o Brasil, cedera lugar, a partir de 1952, a uma atitude mais dura e à exigência de que os empréstimos tramitassem menos via governos e mais via instituições privadas, o que reclamava um "ambiente de negócios", como se diria hoje, mais amigável.

O foco das tensões era o regime de câmbio, que sofreu idas e vindas no período, conforme o governo cedia às pressões estrangeiras, aos exportadores de café ou aos importadores nacionais. Programas de estabilização financeira (encetados pelos sucessivos ministros da Fazenda, Horácio Lafer e Oswaldo Aranha) eram solapados pela necessidade política do governo de ceder às demandas crescentes. A economia crescia a uma taxa média anual próxima a 6%, mas a inflação, que estivera em 8% no quadriênio anterior, chegou a cerca de 20% anuais no mandato de Getúlio.

Pelo flanco sindical, o governo era acossado por greves e pela radicalização do semiclandestino Partido Comunista, que, em mais uma reviravolta determinada por Moscou, rompera com Getúlio e adotava uma política de agitação operária. Em maio de 1954, o presidente concedeu o controvertido reajuste de 100% no salário mínimo, elevando-o a valor real próximo ao de hoje, quando a renda per capita é quase cinco vezes maior que a da época.

O governo, entretanto, mantinha controle sobre o Parlamento, onde a Câmara dos Deputados votou, em junho de 1954, um pedido de impeachment do presidente, derrotado pelo placar de 136 votos contrários e apenas 35 a favor.

A oficialidade militar, impregnada pelas divisões que cindiam a opinião pública e alvoroçada pela perda de poder aquisitivo dos soldos, ainda abrigava um setor "progressista", simpático ao nacionalismo do presidente ou ao menos apegado ao regime constitucional de 1946. O assassinato do major Vaz gerou uma catarse corporativa que fez a balança de forças pender pelo afastamento, via renúncia ou deposição.

Getúlio fora um oportunista por excelência, adotando os disfarces ideológicos que mais lhe convinham a cada conjuntura, mas seria um equívoco ignorar a linha de continuidade a estruturar essa trajetória cujas aparências parecem tão mutáveis.

Sua aversão à democracia parlamentar, sua concepção do Estado centralizado como indutor do desenvolvimento e do equilíbrio entre classes e regiões, até mesmo sua prudência em matéria fiscal e a inclinação por um regime plebiscitário que mantivesse o líder por tempo indefinido no poder - tais aspectos integram uma doutrina à qual permaneceu constante, emanada do pensamento positivista do francês Auguste Comte (1798-1857).

No final do século 19, essa doutrina, adaptada por discípulos brasileiros, desempenhou forte influência na mentalidade republicana, especialmente a gaúcha. Naquele Estado, facções positivistas e liberais chegaram a se enfrentar em duas guerras civis (1893-5 e 1923). Influência parecida aconteceu na mesma época em outros países latino-americanos, e diga-se de passagem que o recente "bolivarianismo" tem suas raízes nesse mesmo substrato.

Em linguagem marxista, as teorias de Comte refletiam na França uma parcela do pensamento burguês engajada na universalização de direitos que a Revolução de 1789 apregoou, mas intimidada pela ameaça à propriedade representada pelas insurreições operárias de 1848 e 1870. Era preciso patrocinar mudanças dentro de um curso dirigido, "racional" (a doutrina exercia peculiar fascinação sobre engenheiros e militares). Tais ideias vinham a calhar quando transplantadas ao contexto de uma elite hostil ao bacharelismo, dissidente e autoritária, reformista e conservadora, como aquela que produziu o estadista Getúlio Dornelles Vargas.

ENFOQUE
Panorama tão amplo escapa, como não poderia deixar de ser, aos propósitos do biógrafo; seu enfoque sempre minucioso está concentrado no círculo íntimo do presidente. Neste terceiro volume, o narrador utilizou os rascunhos que Alzira Vargas preparou para seu segundo livro de memórias, nunca publicado, assim como as numerosas cartas que trocou com o pai, entre 1945 e 1950, quando ele cumpria seu ostracismo como estancieiro na fazenda de São Borja e ela atuava, no Rio de Janeiro, como sua articuladora.

Além de filha devotada e secretária diligente que lhe providenciava roupas, remédios e charutos, Alzira parecia possuída, como o pai e ao contrário de certos parentes, pela paixão da política enquanto responsabilidade pública. Era também uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiavélico, o que torna a leitura da correspondência muito instrutiva.

Suas metáforas, extraídas do léxico feminino, são quase sempre tiradas divertidas nas quais ela informa o pai sobre o que se passa na corte do presidente Dutra - a famosa "copa e cozinha" - para então abrir o leque das opções a seu ver disponíveis e declarar-se à espera de ordens. Lira Neto revela que Samuel Wainer foi enviado para a famosa entrevista com Getúlio ("voltarei como líder de massas") ao que tudo indica numa manobra engendrada pela filha no Rio.

Anos mais tarde, na última reunião ministerial que Getúlio presidiu, às primeiras horas do 24 de agosto, seriam dela e de Tancredo Neves as vozes categóricas a favor de retomar pela força o mandato prestes a ser usurpado, prendendo imediatamente os generais insubordinados.

PROTAGONISTAS
Se há muito de cinematográfico no andamento dos livros de Lira Neto, não resta dúvida sobre quem são os protagonistas dessa história, que vai sendo ocupada do meio para o fim pela preciosa relação entre um pai declinante e sua filha dileta -até que o delicado fio que prende esse Lear a sua Cordélia se rompa na torrente final da tragédia.

No entanto, parece que foi faltando tempo ao autor (o trabalho inteiro consumiu cinco anos), de modo que o terceiro e o segundo volume, embora admiráveis, talvez não alcancem o nível primoroso do primeiro nem tenham sua originalidade, favorecida por tratar da fase inicial, menos divulgada, da vida do personagem.

Ele foi assunto de diversas abordagens biográficas, em geral oficiosas (a própria Alzira escreveu a sua, "Getúlio Vargas, Meu Pai", publicada em 1960). Em 1974, o criterioso historiador John W. Foster Dulles, biógrafo de Lacerda e filho do secretário de Estado norte-americano entre 1953 e 1959, publicou "Getúlio Vargas: Biografia Política". Mais recentemente, o historiador Boris Fausto lançou seu excelente e conciso "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (2006).

Apesar desses antecessores ilustres, é provável - devido às ambições narrativas, ao rigor documental da imensa pesquisa e ao desengajamento do ponto de vista - que a biografia de Lira Neto assuma a posição de obra definitiva sobre o personagem por longo tempo, moldando a visão das próximas gerações de estudiosos, leitores e espectadores.

PRESENTE
Quanto ao leitor atual, não será ele tentado a ver analogias inquietantes entre aquele passado nem tão remoto e o presente? O PT em vez do PTB, Lula em vez de Getúlio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB no lugar da UDN, o PMDB no do PSD - a demagogia, a corrupção, a direita golpista -; será que estamos presos ao mesmo círculo que se repete? Mas basta ressaltar as diferenças mais importantes para concluir que essa identidade é aparente.

Em 1954, o capitalismo estava enraizado no país de modo ainda mais precário do que hoje, quando uma proporção maior da sociedade e do território foi incorporada a sua dinâmica e absorveu parte de seus benefícios. Em última análise, o sentido histórico da ditadura militar (1964-85) foi exatamente forçar pela violência uma trégua nas lutas sociais, que permitisse a acumulação destinada a completar a tarefa iniciada desde os anos 1930, a modernização capitalista.

Lamentamos as metrópoles atulhadas e a depredação da natureza, mas foi esse processo vertiginoso que trouxe a mortalidade infantil de 128 óbitos por mil nascimentos (1955), por exemplo, aos atuais 14, e a expectativa de vida dos 45 anos (1950) aos atuais 75, ambos índices objetivos de melhora nas condições coletivas de vida.

Por motivos que extrapolam esta resenha, mas que decorrem em parte do amadurecimento institucional após tantas aventuras frustradas, o Exército deixou de ser o fio desencapado da política, que potencializava os impasses até conduzi-los a soluções de força. A estrutura constitucional passou a funcionar porque a trama de interesses na economia e na sociedade se tornou mais forte e complexa. Por falta de respaldo suficiente, direita e esquerda exaltadas tiveram de abandonar há 40 anos qualquer tentativa séria de golpismo.

As relações com os Estados Unidos também evoluíram, conforme nossa dependência daquela economia se tornou menor, de maneira que uma posição nacionalista se traduziria, hoje, mais em termos de competição por mercados e tecnologias do que nos moldes tradicionais de uma resistência anti-imperialista.

O maniqueísmo ideológico dos anos 1950 se dissolveu numa espécie de centrismo tecnocrático, administrativista, no qual as alternativas, por mais encarniçada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, não passam de versões um pouco mais à esquerda ou à direita - precisamente como PT e PSDB na atualidade, separados por divergências mais de grau e estilo do que de essência.

Getulio Vargas (2), o ditador: resumo da biografia de Lira Neto

O lado escuro de Getúlio Vargas
OTAVIO FRIAS FILHO, 18/08/2013

RESUMO Segunda parte da biografia de Getúlio Vargas aborda seu lado "ruim", concentrando-se nos anos que levaram à ditadura do Estado Novo. Apesar de certo tom oficialesco, livro se destaca pela narrativa da Revolução de 32 e da Intentona Comunista e ajuda a desfazer maniqueísmo ingênuo em torno da figura do líder.

Assim como o colesterol, pode-se dizer que existe um Getúlio Vargas "bom" e outro "ruim". O primeiro é o líder de uma revolução democrática, o campeão dos direitos sociais, o governante nacionalista. O segundo é o chefe da única ditadura pessoal que o Brasil conheceu e o político inescrupuloso aferrado ao exercício do poder.

Claro que esse maniqueísmo ingênuo se desfaz conforme conhecemos mais sobre personalidade tão ambígua e sua complexa inserção numa época conflagrada como os meados do século passado. Fomentar essa compreensão isenta é o maior mérito da biografia em três volumes empreendida pelo jornalista e pesquisador Lira Neto, da qual se publica agora a segunda parte, "Getúlio - Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo (1930-1945)" [Companhia das Letras, 632 págs., R$ 52,50].

Nela se concentra o Getúlio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio às tormentas ideológicas da década de 1930, jogando uns contra outros, sempre aliado ao adversário da véspera - chefe do governo provisório (1930), presidente eleito pela Constituinte (1934) e enfim ditador a partir de 1937.

É natural que o protagonista comande o espetáculo numa biografia; mesmo no caso de figura decisiva como Vargas, porém, é fascinante o grau em que sua trajetória foi antes comandada pelas circunstâncias. Mestre da paciência e do silêncio, ele esperava que se consolidassem à medida que tratava de se amoldar a elas.

Não eram apenas circunstâncias locais, pois os anos 1930 ilustram com nítida evidência que não existe o "nacional", no sentido de que ele é sempre uma variante particular de fenômenos mais amplos, de dimensão internacional.

Impulsionada pela catástrofe da crise econômica de 1929, por toda parte a revolução social parecia iminente. Sua ponta de lança eram os partidos comunistas, organizados sob disciplina militar e obedientes à União Soviética.

O fascismo foi, como se sabe, uma defecção nacionalista e racista desse movimento revolucionário, logo apropriada pelos setores interessados em preservar a propriedade e a hierarquia ameaçadas. Desde os anos 1920, hordas de fanáticos das duas seitas -opostas nos propósitos, iguais em método e estética- se enfrentavam em arruaças nas principais cidades do mundo.

Quando duas forças políticas se empenham num confronto violento e prolongado sem que nenhuma submeta a outra, torna-se provável um desenlace cesarista (também chamado bonapartista). Incapaz de um compromisso estável, exaurida pelas lutas intermináveis, a sociedade vê um ditador enfeixar o poder absoluto para restabelecer a ordem periclitante, ainda que sob uma retórica revolucionária.

Nada muito diverso ocorreu no Brasil da época. Mas a comparação é instrutiva porque permite isolar, quase como num experimento químico, as peculiaridades que distinguem o cesarismo tupiniquim, getuliano, do padrão mais geral.



Divulgação/CPDOC/FGV
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Getúlio Vargas após assumir a presidência do Brasil, em 1930
A mais notável, talvez, é seu caráter camaleônico. Embora formado no positivismo autoritário e reformista que fez longa escola na política gaúcha, Getúlio nunca aderiu a qualquer doutrina ideológica. Conforme as conveniências, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, reivindicando para si o centro de gravidade da política, afastado de ambos os extremos.

Característica psicológica da personagem? Certamente. Mas também sintoma de uma sociedade onde ideologias têm função decorativa, na qual as ideias não são levadas ao pé da letra nem sequer a sério, em que programas e compromissos são "para inglês ver".

Esse traço cultural do país responde por mazelas (sucessivas constituições, leis e orçamentos que não se respeitam, partidos de araque, política inautêntica) e também por subprodutos benfazejos (ausência de racismo politicamente articulado, tolerância religiosa e sexual, descrença em relação a dogmas).

Tortura e assassinatos políticos faziam parte da rotina da repressão policial, sobretudo após o golpe do Estado Novo, em 1937. Não podem ser quantificados porque os registros foram destruídos a tempo, mas as revoltas armadas do período deixaram um saldo reduzido de baixas.

Foram 22 mortos na Intentona Comunista (1935); ainda menos na tentativa de golpe integralista (patética versão nativa do fascismo) em 1938. Mesmo a Revolução Constitucionalista de 1932, o maior conflito armado na história republicana depois das sangrentas campanhas de Canudos e do Contestado, deixou menos de mil mortos.

Esse cômputo integra um padrão reiterado na formação brasileira, uma sociedade mais violenta do que a maioria das demais, desde logo pela extensa deformação da escravatura, mas onde a violência encontra escassa expressão política.

Cada um é livre para especular sobre esse enigma nacional. Resultado da profunda desarticulação social que é própria do legado escravocrata? Hábito adquirido da conciliação, dos acertos "pelo alto", a fim de não despertar o vulcão adormecido da desigualdade? Anemia da sociedade civil, o que deixa as forças políticas quase sempre à mercê do bloco que controla o hipertrofiado poder central? Porosidade à ascensão individual, que impede a pressão coletiva de atingir um ponto crítico?

PROTESTOS
Na opinião deste resenhista, dois episódios se destacam na narrativa de Lira Neto. O primeiro é a Revolução de 1932, a começar pela extraordinária descrição do incidente -os protestos de 23 de maio nas ruas em São Paulo- que a prenunciou. Ainda que o livro nunca abandone a perspectiva da personagem incrustada no Palácio do Catete, seu relato transmite a sensação de que a revolta se desenrola diante de nossos olhos.

Fica patente o quanto havia de reacionário no movimento, que mobilizava um sentimentalismo nostálgico da supremacia política paulista. Ao mesmo tempo, deflagrada pela elite econômica e cultural, a insurreição teve substancial apoio popular e conduziu à breve democratização de 1934, que adiou a ditadura.

Esta seria inevitável em decorrência do outro episódio proeminente, o infausto levante militar organizado no ano seguinte pelo Partido Comunista. Por volta de julho de 1935, Josef Stálin, o ditador soviético, finalmente atinou que o nazifascismo era a ameaça prioritária. Os partidos comunistas, até então instruídos a incitar a revolução armada, passaram a adotar uma política defensiva de frente ampla com as demais forças antifascistas. No Brasil, o golpe em preparação não foi abortado, em parte por causa das estimativas delirantes sobre a chance de vitória que seu líder, Luís Carlos Prestes, repassava a Moscou.

Detonada em novembro no Recife e em Natal, e dias depois no Rio, a intentona foi facilmente estrangulada pelo governo. Concebida por uma potência estrangeira, converteu-se no fantasma a ser invocado como eterno pretexto pelas duas ditaduras do século, a de 1937 e a de 1964. Foi o maior dos muitos erros de Prestes, tido por militar capaz, mas politicamente obtuso.

Seu fracasso aproximou perigosamente o Brasil do Eixo, tendência revertida para um tardio realinhamento com os Estados Unidos que só seria consumado em 1942, quando aquele país compeliu o nosso a ceder bases aéreas no Nordeste como apoio logístico para a campanha no Atlântico. Na barganha, Getúlio obteve dos americanos financiamento para a primeira siderúrgica, Volta Redonda.

Premido por manifestações populares, provocadas pelo afundamento de navios brasileiros que violavam o bloqueio naval imposto pela Alemanha à Inglaterra, o governo enviou uma força expedicionária à guerra na Itália. O engajamento com as potências democráticas desencadeou a dinâmica que levaria os militares à primeira deposição de Getúlio Vargas (1945).

Como saldo, o Estado Novo deixava um aparelho federal modernizado, uma legislação trabalhista que renderia ao getulismo dividendos eleitorais por muitos anos e incipientes processos de industrialização e urbanização que se fariam avassaladores nas décadas seguintes.

Não faltam amenidades ao livro. Desde o apreço de Getúlio Vargas por pontualidade, churrasco, cavalos, charutos, golfe e pingue-pongue até detalhes de sua estreita relação com a filha Alzira, confidente e secretária particular que organizou os arquivos do pai, esta biografia não perde o fio do pitoresco, do íntimo e do prosaico. O antiquado romance com a mulher de um hierarca do regime -a "bem-amada" que aparece nos diários secretos do presidente- é contado em tom picante.

Duas ressalvas num livro de resto admirável. A pouca familiaridade do biógrafo com temas econômicos deixa lacunosa essa importante faceta na atuação do ditador.

E as principais fontes do livro - as recordações filtradas pela devoção de Alzira Vargas e os diários mantidos pelo pai (1930-42), que mesmo ali ostenta a compostura protocolar de quem calcula sua revelação póstera- às vezes conferem uma tonalidade oficialesca ao conjunto, que não deixa de refletir, entretanto, o pesado clima cartorial da época.

domingo, 10 de agosto de 2014

Getulio Vargas: terceiro e ultimo volume da biografia de Lira Neto


Crise política fecha trilogia sobre Getúlio Vargas
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
Folha.Ilustrada, 09/08/2014 


GETÚLIO (1945-1954)
AUTOR Lira Neto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,50 (448 págs.)

Há 60 anos o Brasil vivia uma aguda crise política. Getúlio Vargas tinha aumentado em 100% o salário mínimo e provocara a ira de empresários e comandantes militares. Os Estados Unidos estavam incomodados com a limitação de remessas de lucros de companhias estrangeiras no país, o estabelecimento do monopólio estatal da exploração do petróleo e a recusa de envio de brasileiros para a guerra na Coréia.
No Congresso, barulhentos conservadores falavam em mar de lama no governo. Na madrugada de 5 de agosto, a notícia do atentado contra Carlos Lacerda, com a morte do major Rubens Vaz, acelerou a turbulência, que culminou com o suicídio de Getúlio, no dia 24. A comoção que tomou conta do país adiou os planos da oposição, que só conseguiu se rearticular na trama do golpe de 1964.
A narrativa desses tempos conturbados é o ápice do último livro da trilogia "Getúlio", do jornalista Lira Neto, que chega agora às livrarias, abarcando o período de 1945 a 1954. No conjunto, o autor trabalhou cinco anos na biografia do líder político. Os dois primeiros volumes venderam no total 79 mil exemplares; esse novo sai uma tiragem de 40 mil.
"Não acredito em biografias definitivas. Getúlio é ainda um território vasto a ser explorado. Ele é o personagem mais importante da história brasileira, para o bem e para o mal. Não sou louco de tentar defini-lo", diz Lira, 50, à Folha.
Para ele, Getúlio deixou um amplo legado, que extrapola a política. "Ele modernizou o Brasil, tirou o país de uma situação agrária e o conduziu para um projeto de desenvolvimento, com uma legislação trabalhista que era moderníssima para aquele momento. A pergunta que faço é quanto disso poderia ter sido conquistado com mais democracia", avalia.
Apesar de ter sido investigada em centenas de livros, a trajetória de Getúlio ainda contém aspectos nebulosos. "Há determinadas coisas que não permitem fazer uma narrativa pronta, única e acabada", diz Lira. Exemplo principal: o assassinato do major Vaz, que fazia a segurança de Lacerda, na rua Tonelero, em Copacabana.
"O que aconteceu de fato naquela noite nunca vamos saber. Lacerda contou a história de duas formas diferentes e nunca entregou a sua arma para perícia. Os interrogatórios da investigação do caso foram conduzidos, digamos, de forma pouco polida. Pessoas interrogadas [na chamada "República do Galeão] relataram, se não a tortura física, a psicológica. Sofreram ameaças. Todas as perguntas desse caso estão em aberto", afirma o autor.
Se hipoteticamente pudesse perguntar algo a Getúlio, o jornalista trataria do caso da venda da fazenda de Maneco Vargas, filho do presidente, a Gregório Fortunato, chefe da guarda e já envolvido no caso Vaz. Na visão de Lira esse escândalo foi crucial para o desfecho da crise.
"Foi o grande golpe naquele instante final de isolamento", diz. O jornalista lembra que "mesmo os antigetulistas mais ferrenhos não se arriscam a acusar Getúlio de ter se beneficiado financeiramente do poder. O homem mais poderoso da história do Brasil de todos os tempos tinha dificuldades para pagar contas. Em São Borja, seu patrimônio era quase ridículo. Por isso, naquele momento, aquela revelação o feriu".
Para além da crise final do governo, Lira trata, nesse terceiro volume, do exílio de Getúlio em São Borja, das suas articulações políticas para a volta à cena nacional, da campanha vitoriosa à presidência. Para isso, utiliza com fartura mais de 1600 páginas de cartas trocadas com a filha Alzira _"um tesouro virgem", diz o autor.
Também os originais nunca publicados de uma segunda obra de Alzira sobre o pai são importantes no texto. O período anterior a 1950 têm, relativamente, bastante espaço. Com isso, a narrativa sobre o governo propriamente dito não fica prejudicada? Lira discorda. Para ele, o livro discorre bem sobre a assessoria econômica paralela criada por Getúlio para gestar seus grandes projetos.
Chamados "boêmios cívicos", o grupo arquitetou o BNDE, a Petrobras, a Eletrobras, contornando as limitações de um ministério conservador, formado em razão de negociações políticas. "Todo esse projeto desenvolvimentista não poderia passar pelas vias tradicionais do congresso", avalia.
Lira enxerga paralelos entre as turbulências do governo de Getúlio e a situação atual. "Sessenta anos depois estamos discutindo as mesmas coisas de quando ele estava no poder: mais ou menos estado, o quanto é possível falar em mão invisível do mercado num país com tantas contradições. Isso é um sintoma até grave", analisa.
Para o biógrafo, hoje, como naquele tempo, o debate político acontece em torno de posições extremadas —"nem sempre com o mesmo brilhantismo dos polemistas daquela época". Ele próprio sentiu isso há alguns dias quando, numa rede social, apareceu uma foto sua entregando o novo livro ao ex-presidente Lula.
"Lula me convidou para um almoço. Eu não vou? É uma questão de cortesia, de educação. Mas pessoas, até amigos, disseram que eu estava mancomunado com mensaleiro, que tinha virado um 'petralha'. Uma incompreensão do ofício do jornalismo, uma reação muito raivosa".
Na semana que vem Lira pretende começar a definir seu próximo projeto. Não uma biografia, mas algo ligado à cultura do século 20.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

DIP: os companheiros adorariam ter um...


NESTA DATA
O Departamento de Imprensa e Propaganda é fechado por Getúlio Vargas
O fim do Departamento de Imprensa e Propaganda aconteceu em 25 de maio de 1945.
Opinião e Notícia, 25 de maio, 2014

O Departamento de ImpreNsa e Propaganda (DIP) fora criado mediante a preocupação de Getúlio com o desenvolvimento dos meios de comunicação no país. Com isso, ele via necessidade de controlar, manipular, regular e censurar todas as empresas comunicacionais que atuavam em solo brasileiro. Outro motivo para a criação desse órgão era o de que Vargas chegara ao poder sem nenhum suporte partidário e precisava fortalecer sua imagem perante a massa e disseminar os ideais do Estado Novo.
Com isso, o DIP começou a controlar todos os meios de comunicação existentes no país. Sobre o comando de Lourival Flores, os departamentos de divulgação, radiodifusão, teatro, cinema, turismo e imprensa do órgão tinham como tarefas ordenar, guiar e centralizar a publicidade local e exterior; censurar todos os tipos de empresas e promover eventos patrióticos e exposições. Para melhorar a imagem de Getúlio, foi criado o programa “Hora do Brasil”, o qual transmitia uma série de matéria exaltando as realizações feitas no governo. Além disso, foi incluído em todas as sessões de cinema, antes do filme começar, uma série de documentários em formato de curta-metragem, que ficou conhecido como “Cinejornal Brasileiro”.
O Departamento era visto como um ‘superministério’, por ser de extrema eficácia e de suma importância para Getúlio Vargas. E com tanta influência sobre os meios midiáticos, no dia do aniversário do presidente, 19 de abril, o departamento o intitulou como “Dia do Presidente”, fato que obrigava a imprensa fazer propaganda da ditadura.
A força e o medo que a censura do DIP causava era visto nas redações dos jornais na época. Os jornalistas sempre minimizavam as informações contra Getúlio ou o governo de qualquer forma possível. Caso os agentes do DIP encontrassem algo relativo sobre Vargas, eles tinham autonomia para suspender o fornecimento de papel e até fechar a empresa. As empresas que falavam bem do Getúlio tinham seu espaço publicitário comprado para a implantação da propaganda oficial. O fim do DIP aconteceu em 1945, após o fim da censura feita no jornal O Estado de São Paulo.