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sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Jornal Opinião: o baluarte da oposição durante a ditadura militar - livro

Cheguei a colaborar, uma ou duas vezes, com esse jornal de oposição durante o regime militar, uma vez com uma resenha da obra de Alexander Soljenitsyn, "Lénine à Zurich", que li em Antuérpia.
Um pequeno grande jornal, que aliás publicou a famosa "fábula" de Edmar Bacha sobre a "Belíndia", aquele país que tinha uma pequena Bélgica cercado de uma imensa Índia.
Mas teve muito mais, enquanto não foi estrangulado e encerrado.
Junto com o Pasquim, era uma de minhas leituras favoritas durante a ditadura, no Brasil e no exílio.
Paulo Roberto de Almeida

BOLETIM ALAMEDA #17

 

NOVIDADES DE OUTUBRO 

Querid@s leitor@s da Editora Alameda, o boletim dessa semana conta com as novidades do mês de outubro. Além dos novos títulos, participe da campanha do livro Resistência e Anistia, do jornalista Paulo Cannabrava. A sua obra é mais que oportuna para mostrar à sociedade a verdade contada pelos protagonistas da história e fundada em farta documentação pública.
Contribua para o projeto do livro do Cannabrava e receba prêmios exclusivos. 

 
Campanha do livro "Resistência e Anistia"

O jornal Opinião foi um dos mais importantes veículos da imprensa alternativa. Criado como parte da oposição ao regime militar, o semanário sofreu com intensa censura prévia, prisões, ameaças de morte e um atentado a bomba. Contra a forte repressão, Opinião respondia com textos de jornalistas e intelectuais de renome, que são referência até hoje. Assim se compôs uma diversificada Tribuna da Opinião, pioneira no pensamento progressista da esquerda.
Crítica de cinema e repressão traz uma genealogia da Nova Crítica de Cinema através de uma documentação extensa, que inclui a análise interna dos textos, a realização de entrevistas com os colaboradores e o paralelo com o contexto cultural.
Reconstruindo a metodologia dos críticos, o livro detalha como a equipe usava as ferramentas da estética e da política para exercer a crítica de cinema enquanto estratégia contra o regime militar.

 

Serviço: 

Lançamento do livro no dia 04 de outubro, na Livraria do Espaço Itaú Cinema (Rua Augusta, 1475 - Consolação, São Paulo)

domingo, 8 de julho de 2018

A oposição armada ao regime militar: testemunho de um observador engajado - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil na crise de 1964 e a oposição armada ao regime militar: um retrospecto histórico, por um observador engajado

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 30 março de 2014

Sumário: 
1. Antecedentes e contexto do golpe militar de 1964
2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
3. A passagem à luta armada: a insensatez em ação
4. A derrota da luta armada e suas consequências: uma história a ser escrita
5. O que foi a luta armada no Brasil: uma interpretação pessoal
6. Quando a luta armada se desenvolveu no Brasil? 
7. Onde a luta armada se desenvolveu no Brasil?
8. Como a luta armada se desenvolveu?
9. Por que houve luta armada no Brasil?
10. Uma avaliação pessoal da luta armada e suas consequências atuais

1. Antecedentes e contexto do golpe militar de 1964
O Brasil do início dos anos 1960 enfrentava uma típica crise de instabilidade do sistema político, não muito diferente de dezenas de outras, que surgem, se desenvolvem e desaparecem em quaisquer outros sistemas políticos, especialmente na América Latina. Desde meados dos anos 1950, a classe política, extremamente dividida quanto a soluções consensuais típicas de países em crescimento – inflação, gastos do governo, tributação, reformas estruturais e administrativas, etc. – não conseguia encontrar mecanismos democráticos para encaminhar as pressões do crescimento e das demandas por participação popular. Daí o velho recurso e o apelo dos políticos aos militares, como “pesos decisivos” na balança política, para “corrigir os problemas”. 
De fato, os militares tinham uma longa tradição de intervenção nos assuntos políticos, desde o próprio golpe de derrocada da monarquia e de proclamação da República, até as crises político-militares dos governos JK e Jânio Quadros, passando pelas revoltas tenentistas dos anos 1920, pela revolução que derrubou a Velha República, pelo golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, em 1937, e também pelo que determinou sua extinção, em outubro de 1945. Depois, eles foram ativos participantes dos diversos episódios de turbulência da República de 1946, em especial em meados dos anos 1950, até culminar na implantação do parlamentarismo, em 1961, no bojo de nova crise, e na derrubada dessa República, menos de três anos depois. 
Desde meados da década anterior, nos estertores do segundo governo Vargas, o Brasil vivia em permanente crise político-militar, agravando-se as turbulências no início dos anos 1960 em função do comportamento bizarro do presidente eleito Jânio Quadros e da momentosa posse do vice-presidente (eleito pela chapa concorrente) João Goulart. A situação, durante os seus três anos de mandato (primeiro em regime parlamentarista, depois no retorno ao presidencialismo), se caracterizava por constantes greves, inflação crescente, quebra de autoridade em diversas instâncias do poder estatal, inclusive no âmbito das Forças Armadas, e intensa radicalização política por parte dos movimentos que pretendiam para o Brasil opção semelhante à dos países comunistas, indo até, em certos meios, à preparação para a guerrilha rural, em moldes cubanos ou chineses.
O movimento civil-militar – não lhe cabe o nome de golpe, nem de revolução – que derrocou o regime da República de 1946 representou apenas o ponto culminante dessa fase de crise aguda, não sendo nem o resultado de uma conspiração organizada pela direita e pelas elites – como pretende a esquerda – nem o acabamento de algum desígnio imperial no contexto da Guerra Fria – como pretendem os paranoicos anti-imperialistas e antiamericanos das mesmas correntes. Ele ocorreu porque grande parte da sociedade, representada majoritariamente pela classe média, demandava uma solução aos descalabros administrativos, à corrosão do poder de compra, ao clima de desordem política, à percepção do aumento da corrupção que caracterizavam o governo Goulart.
Talvez os militares devessem ter aguardado as eleições do ano seguinte, e ter apostado numa solução democrática em face desse quadro turbulento, mas o fato é que o agravamento da situação induziu algumas lideranças civis e militares a atuarem de imediato contra o governo, sem que a necessária coordenação de todas as forças políticas se fizesse num sentido mais consentâneo com a legalidade constitucional. Existem momentos na história de um país nos quais a população decide assumir ela mesma as atribuições de um poder constituinte originário; foi o que parece ter ocorrido em março de 1964, quando a grande maioria da população brasileira secundou e se solidarizou com as Forças Armadas que assumiram o comando involuntário daquele movimento. A história poderia ter sido outra, mas ela é o que é: incontrolável.
A historiografia brasileira ainda se divide quanto à natureza do golpe, suas origens políticas, suas raízes sociais, suas justificativas econômicas ou geopolíticas, sobre o envolvimento dos Estados Unidos no evento, segundo se é contra ou a favor em relação a esse evento decisivo no Brasil moderno. A esquerda, obviamente, interpreta o golpe militar como o avanço das forças reacionárias, alinhadas ao imperialismo, contra a ascensão dos “movimentos populares”, em favor de reformas democráticas; ela nunca mudou de opinião a esse respeito, o que denota certa incapacidade a revisar suas próprias concepções e caminhar em direção de uma interpretação mais objetiva.
 Os que apoiaram e comandaram o golpe, o veem como uma reação às forças comunistas que ameaçavam tomar o poder para colocar o país na esfera do movimento comunista internacional, liderado pela URSS. No caso do Brasil, curiosamente, as forças de “direita” ganharam, mas a História foi escrita pela “esquerda”, no sentido em que todo o processo político que levou às crises político-militares dos anos 1954-1964 e ao próprio golpe e seus efeitos mediatos e imediatos foram e são interpretados segundo a ótica dos “perdedores”, que, aliás, ascenderiam ao poder em 2003. De fato, o Brasil constitui um caso único de construção de um discurso histórico – e de vários outros padrões culturais – no qual a linha condutora veio a ser quase inteiramente dominada e controlada pelas forças, basicamente socialistas, que não tiveram o apoio da sociedade, seja nos momentos de crise política aguda, ou como projeto de organização econômica e social suscetível de recolher o apoio eleitoral da grande massa da população.

2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
Seja qual for a interpretação que se decida adotar ainda hoje, o golpe militar de 1964 contra o regime de João Goulart – ou a “revolução”, segundo seus promotores – provavelmente não representou nada de muito diferente do que ocorreu na mesma época em diversos outros países latino-americanos. Talvez não tenha sido realmente nada de muito diferente, inclusive no que respeita às forças de esquerda que lutavam contra os regimes oligárquicos ou de burguesias alinhadas ao imperialismo americano durante a era da Guerra Fria. Estas forças se dividiram, logo em seguida, em dois grupos: depois de uma primeira preeminência dos partidos comunistas de orientação (e subserviência) soviética, ocorreram as primeiras cisões na esquerda latino-americana, basicamente representadas pela criação de partidos comunistas pró-chineses (tendentes a apoiar o conceito de guerra popular de base camponesa, conforme o modelo maoísta) e de movimentos identificados com a visão foquista-guerrilheira do processo de luta contra o Estado burguês, privilegiando os métodos fidelistas-guevaristas de tomada do poder. 
A esquerda brasileira também acompanhou essas divisões dos movimentos de esquerda no plano mundial e passou a se organizar em função dos modelos respectivos de lutas políticas e militares. As cisões da esquerda brasileira se deram sobretudo em detrimento do “Partidão” (o “velho” PCB); foram muitas as que ocorreram, a começar pelo grupo maoísta que acompanhou as críticas de Mao Tsé-tung ao “revisionismo soviético” então representado pela desestalinização conduzida por Nikita Kruschev: se constituiu então o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que pretendia retomar a tradição dos primeiros anos do poder bolchevique, mas que acabou seguindo a via chinesa da guerra “camponesa” (consubstanciada mais tarde na guerrilha do Araguaia). 
Vários outros grupos se organizaram, geralmente com o sentido de “passar à ação”, ante o reformismo do Partidão. Não havia muita elaboração teórica em torno das opções de luta, nem uma análise “científica” do que era a sociedade brasileira, ou sobre sua disposição de adotar a luta armada como uma forma de resistência a um regime que, nessa conjuntura (1965-1966), estava longe de ser uma ditadura feroz. Muitos desses grupos se organizaram atendendo ao apelo das conferências realizadas em Havana, a Tri-continental (reunindo militantes dos três continentes do Terceiro Mundo) e a dos movimentos guerrilheiros da América Latina, da qual resultou a criação da OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, uma mini-internacional que pretendia estimular o modelo cubano em todos os países do continente.
De fato, para a esquerda latino-americana, nenhum episódio da Guerra Fria foi tão marcante quanto a revolução cubana, e seu desfilar de “guerrilheiros heroicos” lutando contra um ditador submisso aos EUA. Ché Guevara simbolizava essa luta e foi com ele que se identificavam os jovens que também pensavam libertar o Brasil da hegemonia americana e instaurar um regime de “justiça social” e de “democracia popular”, embora divididos entre a adesão a um ou outro dos socialismos realmente existentes. Cuba era justamente o exemplo de que se podia derrocar um regime corrupto e criar o “homem novo”, base da transformação radical que se esperava fazer. As primeiras reações ensaiadas pelos militantes que recusavam a via reformista e pacifista do Partido Comunista Brasileiro, de linha soviética, partiam de pressupostos de inspiração cubana ou maoísta, no sentido de que só a luta armada poderia representar a verdadeira libertação do Brasil.
Todo o ambiente universitário era invariavelmente caracterizado por uma ideologia de esquerda, essencialmente marxista, nas diversas variantes da época, a que se somava a radicalização concomitante da chamada Igreja progressista. Os jovens dessa geração foram sendo levados quase naturalmente para a opção socialista, que na época se apresentava como uma solução “factível” e “possível”, tendo em vista os exemplos precedentes da revolução bolchevique, da guerra civil conduzida por Mao Tsé-tung na China e, sobretudo, porque bem mais perto do Brasil, da guerrilha cubana. Progressivamente, esses movimentos foram se preparando para a luta armada, de acordo com as diretrizes que emanavam de Havana, onde tinha sido organizada, em 1965, a Conferência Tri-continental, para prestar solidariedade ao Vietnã do Norte, em sua luta contra a república pró-americana do sul, e para estimular a luta armada na América Latina, como recomendava Fidel Castro, e como já tinha passado à ação Ché Guevara.
Guevara era – parece que continua sendo, a despeito de todas as evidências em contrário – o símbolo da rebeldia juvenil contra a opressão capitalista, e a metodologia então proposta para romper com o capitalismo e o imperialismo era dar início a um “foco guerrilheiro”, conforme teorizado pelo militante francês Regis Debray. No Brasil, entretanto, na ausência de massas camponesas sujeitas a algum tipo de dominação “feudal”, ou de uma “Sierra Maestra” próxima das cidades e dos latifúndios, nem a solução maoísta da guerra camponesa, nem o modelo cubano da coluna de guerrilha rural pareciam aplicáveis, razão pela qual os líderes comprometidos com a luta armada adotaram a via da guerrilha urbana, como depois seria enfatizado no “Mini-manual do guerrilheiro urbano”, do dissidente do Partido Comunista pró-soviético e líder da Ação de Libertação Nacional, Carlos Marighella.
Essas nuances das táticas de combate não se manifestavam, contudo, de forma muito clara no debate político desses grupos guerrilheiros, que decidiram passar à ação mesmo na completa confusão do que fazer, de quem doutrinar, que tipo de mensagem política preconizar, ou qual tipo de governo se pretendia implantar, exatamente, depois que se conquistasse o poder. O que é certo é que ninguém, nenhum desses grupos, em nenhum documento programático, se dizia que a intenção, ao lutar contra a ditadura militar, era a de colocar em seu lugar uma “democracia burguesa”, ou admitir alguma variante do regime capitalista-burguês. Sem que isso ficasse muito explícito, o que se cogitava, na verdade, era alguma variante dos regimes cubano ou chinês, uma vez que a União Soviética já era julgada, então, como muito burocrática e conservadora. Alguns grupos admitiam claramente que estavam lutando pela “ditadura do proletariado”.

3. A passagem à luta armada: a insensatez em ação 
Repercutia então – em torno de 1966 – a palavra de ordem de Ché Guevara que era a de “criar dois, três, muitos Vietnãs”, como forma de ajudar a guerrilha vietcong a vencer o imperialismo. Não se sabia, então, onde estava o comandante Ché Guevara, que se tinha despedido oficialmente de Cuba, e de seus cargos cubanos, desde 1965, para continuar, como diziam os líderes cubanos, sua obra de revolucionário em outros continentes. Dois anos depois ele terminaria a vida nas selvas da Bolívia, maltrapilho, faminto, entregue à sua própria sorte, já que o Partido Comunista boliviano ignorou-o.
Pouco depois, mesmo em face do completo fracasso da aventura guerrilheira de Ché Guevara na Bolívia, os grupos que se estavam se preparando para a luta armada no Brasil passaram à ação, com ataques a quarteis, atentados a bomba, assaltos a bancos (chamados de “expropriações”) e de municiamento em armas e munições, embora de forma desorganizada e improvisada, como logo se constatou. Em 1966, um dirigente do PCB, Carlos Marighella, que tinha participado das reuniões de Havana e rompido com o Partidão, criou, com alguns outros companheiros e muitos recrutas do movimento estudantil, a Ação de Libertação Nacional: esta passou imediatamente a emitir palavras de ordem no sentido de atacar os militares e outros representantes da ditadura. 
Numa primeira fase se tratava de ações simbólicas, e logísticas – ou seja, de levantamento de fundos – que seriam seguidas, esperava-se, de revoltas populares e de greves de trabalhadores, que todas contribuiriam para o “acirramento de contradições” e a passagem à fase ulterior da luta, com brigadas e unidades completas armadas, que seriam capazes de vencer o exército a serviço da burguesia e do imperialismo. Em qualquer hipótese, a passagem às ações armadas se deu muito tempo antes do AI-5, de dezembro de 1968. A partir daí, em vista do recrudescimento dos ataques de grupos armados de guerrilheiros urbanos, é que ocorreu o verdadeiro endurecimento do regime militar, desafiado por ataques diretos às suas instalações, com perda de vidas dentre os seus membros.
O ano de 1968 parecia ensejar, de fato, grandes progressos para os movimentos de resistência à ditadura. A despeito da morte de Ché Guevara, na Bolívia, em outubro do ano anterior, pipocavam por todas as partes, na região e no Brasil, ações armadas que pareciam prenunciar a ascensão dos grupos guerrilheiros que iriam se lançar na “guerra” contra o regime militar. Não se percebia muito bem que, por mais espetaculares que fossem as ações do punhado de militantes que tinham decidido pegar em armas – assaltos a bancos, roubos de armas, ataques a quartéis, “justiçamento” de um “espião americano” (como o capitão Charles Chandler) ou de algum “esbirro da ditadura” –, elas não iriam levar, por si só, à formação das colunas guerrilheiras (ao estilo cubano) ou do “exército popular” (como no exemplo chinês) que conduziria os grupos guerrilheiros à tomada do poder.
A população permanecia relativamente indiferente a esses apelos à “luta armada”, e os trabalhadores já tinham preocupação suficiente com a defesa de seus salários, num ambiente inflacionário que permanecia renitentemente inercial e sustentado. A relativa intensidade dos ataques a bancos e a outros alvos táticos dava a impressão que os movimentos de luta armada estavam crescendo, quando na verdade eles apenas procuravam sustentar-se a si próprios, independentemente de qualquer debate político mais estratégico ou de ações efetivas de organização da população. A situação se inverteu rapidamente: padres dominicanos – um dos quais continua ativo e com as mesmas ideias que tinha naquela época – que serviam de contato com um dos líderes mais famosos da guerrilha, Carlos Marighella, foram presos no segundo semestre de 1969. Poucos dias depois, mais exatamente em 4 de novembro de 1969, Marighella foi morto num “encontro” com a polícia política, encontro ao qual um dos dominicanos foi levado como “isca”. O choque foi brutal, e a partir daí o ambiente psicológico foi, na verdade, não mais de avanços na luta contra a ditadura, mas de simples busca de sobrevivência, quando os grupos existentes – bastante divididos entre si – e os seus “combatentes” procuravam, mais concretamente, encontrar meios e formas para continuar livres, e vivos, esperando alguma mudança positiva no futuro de médio ou longo prazo, ou seja, uma crise do sistema, greves operárias e levantes da população contra o regime. Nada disso ocorreu, obviamente.
A fase seguinte da guerrilha urbana foi marcada por diversos sequestros de diplomatas, apenas como forma de libertar os guerrilheiros ou opositores já presos, e submetidos a tortura, muitos deles. Se tratava de uma luta de sobrevivência, que se arrastou durante dois ou três anos mais, até a completa dispersão dos grupos de luta armada. No refluxo dos movimentos de guerrilha urbana anti-regime militar, cada um buscou as melhores soluções de sobrevivência num quadro de aumento da repressão ditatorial, de censura, de prisões arbitrárias. Essa fase coincidiu com a descoberta de núcleos rurais preparatórios a uma futura guerrilha na região do Araguaia, sob a responsabilidade do PCdoB: essa “frente” – na verdade, focos dispersos numa região de penetração muito difícil – foi desbaratada, depois de muito esforço por parte das forças do Exército, não sem novas exações e abusos por parte dos militares. 

4. A derrota da luta armada e suas consequências: uma história a ser escrita
A luta armada no Brasil, à diferença de outros experimentos guerrilheiros na América Latina, e de guerras civis na Ásia ou na África, foi relativamente breve, pouco cruenta e atingiu uma fração mínima da população, se é que se pode falar em população, no caso de umas poucas centenas de engajados ativos em seus diversos exercícios tentativos e alguns milhares de militares e policiais dedicados à sua repressão. Ela pode ter uma extensão maior, se considerarmos os primeiros ensaios, quase patéticos, dos brizolistas na imediata sequência da mudança de regime em 1964. 
No seu conceito mais restrito, porém, consistindo nas diversas iniciativas de inspiração cubana, de natureza mais urbana do que rural, ela durou, provavelmente, menos de seis anos, aos quais podem ser acrescentados os quatro ou cinco de guerrilha “maoísta” nas selvas do Araguaia, até meados da década seguinte. A maior parte desses experimentos foi bisonha, com muita improvisação, quase nenhuma inspiração, alguma transpiração, mas a repressão, no começo despreparada, foi brutal e eficaz: todos os focos, nas cidades e nos campos, foram eliminados a partir do planejamento e do engajamento dos militares nas tarefas da repressão direta, que contou mais com força bruta do que propriamente com inteligência: ela também foi feita mais de transpiração do que de inspiração.
A luta armada no Brasil obedeceu, com a exceção do episódio maoísta na região do Araguaia, a uma inspiração essencialmente cubana, ainda que métodos, situações políticas e, obviamente, elementos humanos tenham sido totalmente diversos no Brasil do que foi a guerra de guerrilhas em Cuba, que teria supostamente servido de modelo para os empreendimentos realizados no Brasil de meados dos anos 1960 ao início da década seguinte. A revolução cubana foi, de fato, um fenômeno eletrizante no contexto latino-americano, bem mais do que sua importância real na história política do século 20 ou do que sua capacidade de transformar significativamente a realidade nos países da região. Todos os experimentos realizados sob sua inspiração direta – e na maior parte dos casos com seu apoio material – fracassaram: ou foram fragorosamente derrotados militarmente, ou se extinguiram por ineficácia prática, ou, ainda, sobreviveram apenas como deformação grotesca do projeto original, como no caso dos grupos guerrilheiros narcotraficantes da Colômbia e do Peru, convertidos em meros criminosos, traficantes e sequestradores. Os dois países, e os Estados Unidos, não hesitam em chamá-los de terroristas, uma classificação nem sempre aceita por certos governos supostamente progressistas da região.
No Brasil, a importância da luta armada foi bastante reduzida, em termos práticos, ainda que a própria esquerda, e seus escribas gramscianos, e também os militares, tenham a ela atribuído uma relevância histórica que efetivamente ela não tem e nunca teve; uma perspectiva histórica de mais longo prazo se encarregará de minimizar sua importância na história contemporânea do Brasil. A luta armada foi um fenômeno marginal, e os poucos casos de terrorismo mais marginais ainda, mas uma história isenta, completa, não passional, de todos os seus aspectos ainda está para ser escrita. Ela não foi tão traumática quanto o foi na Argentina, no Chile, no Peru e na Colômbia, para ficar nos casos mais relevantes, nem todos similares em dimensão, características e impacto residual, ou permanente. Em vários desses países, o grau de repressão foi tão vasto, que mesmo as lideranças políticas mais moderadas tiveram de acenar com algum “julgamento da História”, quando não com julgamentos reais. A dimensão da luta armada no Brasil não justificaria, provavelmente, esse tipo de retomada das feridas, não fosse pelo fato de os derrotados terem chegado ao poder.

5. O que foi a luta armada no Brasil: uma interpretação pessoal
Ela foi um empreendimento essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à “ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada “natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência” incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”). 
Em outros termos, a luta armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” – como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica, como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria existido no Brasil.

6. Quando a luta armada se desenvolveu no Brasil?
Praticamente desde o início – por despeito de líderes que se pretendiam maiores do que efetivamente eram, como Brizola, por exemplo – e bem antes, em 1965 para ser mais exato, quando o regime estava longe de ser aquele monstro repressivo apontado numa historiografia enviesada, totalmente equivocada e, de fato, intelectualmente desonesta em relação à verdade. A repressão do regime militar se desenvolveu depois, não antes, que a guerrilha urbana começasse suas ações, e esteve em atraso durante praticamente dois anos, até que sua organização tardia passasse a demonstrar alguma efetividade prática. Ou seja, não foi a repressão política do regime que provocou a guerrilha supostamente de resistência contra um “governo opressivo”, e sim o deslanche de operações armadas, quando o governo tentava uma espécie de “reconstitucionalização” do regime – por meio da nova Carta aprovada em 1967 – que incitou, na verdade obrigou, o governo a reagir contra os grupos armados. Essa cronologia, absolutamente objetiva e aderente aos fatos, precisa ser lembrada, para que os derrotados vingativos não aleguem que não lhes restava outra opção (de luta política) que a luta armada contra um regime ditatorial. 
Os militares brasileiros nunca foram os golpistas tirânicos ou despóticos que essa historiografia maldosa insiste em proclamar. Desde o início de seu envolvimento nos processos de governança – praticamente com o golpe militar que derrocou a monarquia, aliás sem o desejar, e inaugurou a República – as forças armadas, por vias institucionais, ou por revoltas de oficiais subalternos, sempre buscaram atender aos reclamos de uma classe média desejosa de mais liberdade, mais transparência política, mais honestidade eleitoral e, sobretudo, de preservação da ordem e dos fundamentos mínimos da normalidade política e econômica. Foi assim nas revoltas dos anos 1920, na sua posição “atentista” em relação à revolução da Aliança Liberal em 1930, na defesa da unidade nacional em 1932, na intentona comandada do exterior em 1935, na derrocada do ditador em 1945, e em algumas ações de estabilização nos anos 1950, antes da decisão (aliás não unânime) de marchar contra o governo em 1964; foi bem menos no golpe estado-novista de 1937 e em algumas revoltas episódicas dos anos 1950, mas sem que o espirito legalista das FFAA deixasse de se manifestar, sempre em defesa da ordem e da unidade nacional. Mesmo durante o regime “militar” de 1964 a 1985, o registro é de uma predominância civil nos gabinetes e um cuidado legalista bastante pronunciado, com a emissão de atos institucionais em conjunturas precisas, sem o arbítrio (e até a selvageria) a que se assistiu em diversos outros episódios de triste memória na história de nossos vizinhos latino-americanos. De forma geral, não há comparação possível entre a chamada “ditabranda” brasileira – apenas episodicamente mais dura – e as ferozes ditaduras militares em alguns desses países, como tampouco há qualquer similitude, absoluta ou relativa, entre o número de “vítimas” que se pode honestamente computar num e noutros casos.

7. Onde a luta armada se desenvolveu no Brasil?
A “geografia humana” da luta armada é feita, basicamente, de idealistas de classe média guiados por uma adesão equivocada a certas causas – basicamente as da revolução cubana, mais até do que a do socialismo de inspiração soviética – e de alguns egressos do comunismo histórico, seduzidos pelo chamamento e o apoio cubano a um grande empreendimento que se pretendia de libertação do continente do latifundismo, do imperialismo e, em última instância, da burguesia capitalista. Ela raramente envolveu legítimos trabalhadores – senão alguns poucos “líderes” sindicais já adquiridos à ação militante, de natureza política, não exatamente sindical – e menos ainda camponeses típicos, senão alguns poucos agitadores políticos que já tinham base em zonas rurais. Ela foi basicamente urbana.
Foi um fenômeno essencialmente de, e restrito à classe média, em algumas metrópoles brasileiras, recrutando adeptos no mesmo universo de universitários conquistados às teses leninistas ou gramscianas, e emocionalmente estimulados pela epopeia vitoriosa – em grande medida romantizada e idealizada – dos revolucionários cubanos. Creio poder dizer que sou um típico representante dessas camadas de estudantes “revoltados” que viam na luta armada não apenas – ou talvez não exclusivamente – o meio de “libertar o Brasil dos generais gorilas”, mas basicamente uma via romântica de atuação política-prática, seguindo o exemplo daquele pequeno grupo de bravos guerrilheiros que conduziram uma luta exemplar até a vitória. Essa perspectiva da “tomada do poder” por colunas guerrilheiras, secundadas, no momento decisivo, por uma greve geral da população contra a ditadura opressiva, fazia parte do universo mental de todo candidato a guerrilheiro urbano, que forneceu, de modo geral, 90% do contingente humano para a luta armada (o experimento do PCdoB nas selvas do Araguaia jamais assumiu proporções significativas, em termos humanos e materiais, e nunca teria tido qualquer influência no debate político contemporâneo, se esse partido não fosse constituído de fundamentalistas devotados às suas causas esquizofrênicas).

8. Como a luta armada se desenvolveu? 
Jamais de forma coordenada, unificada ou organizada, de forma a representar um risco real para o governo, ou o próprio regime. Foram impulsos isolados, dispersos, desorganizados, improvisados, ao sabor das decisões dos líderes que se sucediam, alguns “históricos”, outros que ascenderam na própria luta armada, sem qualquer formação política especial – foi o caso de Lamarca, por exemplo, ou de alguns outros chefes “guerrilheiros”, que “subiram” na hierarquia por via de sequestros e assaltos a bancos. Era uma clara aventura, levada muito a sério pelos militares, que sempre tendem a maximizar a dimensão dos perigos, por instinto natural e pelo claro desafio à sua autoridade.
Os militares reagiram exageradamente aos pequenos bandos de guerrilheiros armados que os desafiaram? Possivelmente, sim, e teriam provavelmente obtido os mesmos resultados com um pouco mais de inteligência e com menos força bruta. Eles tinham razão em chamar os cowboys travestidos de guerrilheiros de “terroristas”? Efetivamente não, embora alguns o fossem, mas a maioria não o era. A guerrilha estava condenada, desde o início, a ser o que sempre foi: ações isoladas de cowboys do asfalto, incapazes de assumir o comando de qualquer movimento relevante de oposição ao governo militar, com um registro de algumas ações espetaculares, mas incapazes, por si só, de mobilizar o apoio da população para suas causas bizarras. 
A “luta contra a ditadura” era uma realidade apenas para uma minoria extremamente reduzida de uma fração também muito reduzida da classe média instruída, ou seja, um punhado de “patriotas equivocados”, como a eles se referia o Partidão. Nunca passaram disso, e seu movimento teria se estiolado, como ocorreu em diversos países europeus na mesma época – que não extravasaram nos métodos repressivos como no Brasil – na absoluta indiferença, e provavelmente até no repúdio, da maioria da população. 
Como essas ações marginais vieram a assumir a dimensão que tiveram, seja na historiografia, seja na política prática do Brasil atual, estas são questões que merecem argumentos mais extensos que me eximo de adiantar aqui. Elas podem ser explicadas, porém, pelo absoluto monopólio de que gozam os escribas gramscianos no ambiente acadêmico – eles foram derrotados, historicamente, mas se encarregaram de escrever a sua própria história, deformando-a – e também pelo fato de que as forças, tendências, ideologias e personalidades derrotadas durante o período militar finalmente chegaram ao poder e tratam, agora, de reconstruir seus equívocos apresentando-os como algo que não foram, ou seja, uma luta em favor da democracia. Trata-se, portanto, de uma imensa deformação da história, agora conduzida porque temos no poder justamente muitos daqueles que foram derrotados nesses episódios.

9. Por que houve luta armada no Brasil? 
Provavelmente por causa de indução externa, já que ela jamais teria existido na sequência “normal” do processo político brasileiro, mesmo em situação de “golpe militar”, ou de “ditadura”. Como consagrado em outro tipo de literatura – em obras menos passionais, de brasilianistas, por exemplo – existia já uma tradição estabelecida de intervenção militar na política doméstica, e não se pode dizer que o morespolítico brasileiro fosse naturalmente democrático e civilista. As tradições positivistas, castilhistas, comtianas, e até fascistas, ou pelo menos corporativas, existiam desde até antes da República e na maior parte desta não se conheceu, de verdade, um sistema de representação política, aberta, transparente, accountable, enfim, democrático. 
Tanto quanto os militares, os líderes de esquerda também eram autoritários, quando não totalitários, e em nome da democracia pretendiam, na verdade, implantar um regime de “ditadura do proletariado”, ou o que lhe fosse equivalente, segundo as possibilidades e arranjos da fase “pós-burguesa”, que de todo modo se pensava superar rapidamente. Creio que não existe nenhuma dúvida quanto a isso, e desafio qualquer saudosista dos movimentos armados a me provar que se pretendia implantar no Brasil um sistema liberal, de livre competição política com partidos “burgueses”: se tratava justamente do contrário, de assegurar o predomínio da causa proletária ou alguma variante disso, se não a mais extrema, a via chinesa do comunismo agrário integral. 
O mais importante, porém, e isso é preciso ressaltar sempre, é que ela não teria existindo sem o impulso, o apoio, ou praticamente o apelo dos dirigentes cubanos, para que seus verdadeiros amigos do continente empreendessem, rapidamente, outros processos revolucionários, com vistas a romper o isolamento cubano. O mesmo fenômeno ocorreu no início da revolução bolchevique, quando líderes como Lênin e Trotsky trataram de impulsionar a revolução comunista na Alemanha e em outros países, para romper o “cerco imperialista” ao regime bolchevique; a Terceira Internacional foi constituída justamente para isso e por isso, e foi em função de suas diretivas, e ordens diretas, que Prestes empreendeu a sua patética (mas traumática) intentona no final de 1935. O PCB era, até 1961, o Partido Comunista do Brasil, como o Komintern tinha exigido que se chamassem as “seções nacionais” da III Internacional. A revolução cubana tendeu recriar essas estruturas através da OLAS e da OPANAL, mas eram iniciativas totalmente artificiais, no contexto dos países latino-americanos, como foram artificiais, e por isso derrotadas, as aventuras guerrilheiras de inspiração castrista e guevarista em diversos países da região. 
Não importa quais fossem as especificidades nacionais, o fato é que a luta armada no Brasil foi um empreendimento nacional, mas basicamente impulsionado de fora, com dinheiro, treinamento e suporte logístico vindos de fora, essencialmente dos amigos cubanos (que podiam repassar alguns recursos soviéticos, que sempre quiseram estar no comando de várias frentes de combate). O apoio cubano extravasou, aliás, o simples financiamento da guerrilha, e se manifestou, durante muito tempo, em diversas outras “frentes de trabalho”, algumas não de todo reveladas, ainda – embora não desconhecidas – e que poderão vir a público se a inteligência cubana não tiver tempo de destruir os seus arquivos antes da derrocada final daquele regime moribundo. Esta é uma realidade que muitos dos companheiros atuais não gostam de admitir, mas que eles sabem ser verdade, como o sabem também os órgãos de inteligência do Brasil. O dia em que a história for escrita, em todos os seus matizes e com todas as suas fontes, esses aspectos poderão aparecer em toda a sua luminosidade obscura, se vale o trocadilho.

10. Uma avaliação pessoal da luta armada e suas consequências atuais
Infelizmente, a questão da luta armada no Brasil ainda não faz parte da História passada, ou pelo menos seus antigos representantes resistem a recolhê-la à sua dimensão histórica objetiva, sendo ainda objeto de embates políticos e de tentativas de reescrita dessa história. A razão é a mesma já apontada anteriormente: os derrotados chegaram ao poder e pretendem se vingar de seus supostos algozes, se preciso for deformando a história e manipulando os acordos políticos já realizados durante a transição quase consensual da democratização. 
De certa forma, esses grupos já detém o monopólio da historiografia, como pode ser constatado por inúmeros exemplos da literatura didática e mesmo de livros que passam por sérios, tratando do período. Os escribas universitários, não apenas os declaradamente de esquerda ou simplesmente progressistas, já internalizaram uma versão da história política brasileira, dos anos 1960 em diante, que transforma o período em uma oposição de preto e branco, uma interpretação maniqueísta que transforma os militares em servos da burguesia e do imperialismo, e os “resistentes” como bravos e impolutos defensores da democracia e lutadores desprendidos em prol das liberdades. A contrafação da história real é evidente, mas ela vem sendo servida durante muito tempo, inclusive no curso do próprio período militar, para não se impor como verdade para grande parte do povo brasileiro, jovens que nunca viveram aquele período que tendem naturalmente a acreditar nessa versão da luta dos bons contra os maus. 
A “Comissão da Verdade” não constitui senão mais uma tentativa de impor essa versão à sociedade atual, pelos remanescentes dos derrotados de outrora. Faz parte, como outras iniciativas – como a “indústria” das indenizações –, das farsas montadas para alterar a história e obter ganhos políticos, quando não materiais, aos que ainda tentam fazer do Brasil outra coisa que não uma grande democracia de mercado. A chamada “relação de forças” pode dar aos derrotados vingativos algumas compensações temporárias, e é por isso que o trabalho didático de esclarecimento se revela importante pelo simples dever de respeitar a verdade dos fatos e defender a integridade intelectual dos que estão efetivamente comprometidos com a causa da democracia e das liberdades no Brasil. Como protagonista menor, e totalmente sem importância, da voragem de insanidade temporária que se abateu sobre o Brasil, entre meados dos anos 1960 e meados da década seguinte, meu dever era o de testemunhar. É o que fiz agora.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 30 março de 2014

domingo, 1 de outubro de 2017

Vargas, o maquiavelico mediocre - Affonso Henriques, resenhado por Carlos Pozzobon

Carlos Pozzobon, em seu blog de Leituras de livros e resenhas críticas, aborda os três volumes de Affonso Henriques:

Ascensão e Queda de Getúlio Vargas – Affonso Henriques – Record 1977, 3 volumes, edição de luxo. 

 Carlos Pozzobon, Última revisão: maio/2010

http://carlosupozzobon.blogspot.com.br/2011/12/ascensao-e-queda-de-vargas.html

Um trecho de Affonso Henriques:
“A não punição do Sr. Getúlio Vargas [em 1945] fez com que o mesmo viesse, mais tarde, flagelar o País por mais quatro anos, e, mesmo depois de sua morte, lançar a discórdia e a confusão, das quais até hoje o País ainda não se livrou integralmente” (vol. 2, pg. 351).


A mais completa obra sobre o período histórico que vai da revolução de 30 até o final dos anos 50, escrita por um brasileiro desiludido com a política nacional que se auto-exilando nos EUA, reuniu extensa documentação sobre a Era Vargas e nos presenteou com 3 volumes de 500 páginas cada.
Affonso Henriques, paulista, contador com escritório no RJ, administrador de empresas e funcionário público da Administração do Porto do Rio de Janeiro, foi tesoureiro da Aliança Nacional Libertadora, e, juntamente com seus companheiros, foi preso durante 10 meses no golpe de estado de 1937. Indicado pelo sindicato dos contabilistas para um congresso trabalhista em Nova Iorque em 1941, resolveu desertar do país para estudar na Universidade de Columbia. O envolvimento dos EUA na 2ª guerra lhe propiciou um emprego de tradutor na Secretaria de Relações Exteriores em Washington. Ao visitar a Biblioteca do Congresso Americano, descobriu uma coleção dos principais jornais brasileiros e dezenas de livros sobre o Brasil. Revisando assuntos em que esteve envolvido diretamente, pois como tantos intelectuais desiludidos havia apoiado o movimento da Aliança Liberal em 1930 que levou Getúlio ao poder, resolveu escrever a obra que lhe custou dez anos para compor e que hoje é ainda a mais completa sobre o tema.
O contraste entre os EUA democráticos e o Brasil ditatorial lhe forneceu o pano de fundo para sua análise da ditadura mais mafiosa e cruel que o Brasil viveu sob a demagogia populista de Vargas e seu sistema político de aliciamento por negociatas, subornos e intimidação.
Henriques fala da personalidade de Vargas citada por uma pesquisa feita pelo jornal A Noite do Rio de Janeiro, ainda antes das eleições de 1930, em que o jornal explicava por que não apoiaria Getúlio:

”[Getúlio] tem a triste sina de revelar-se ao país pelo avesso daquilo que é ou que pretende ser. Ambiciona a suprema magistratura da Nação quando, no fundo, é um homem que nasceu para ser governado, e que governado vive pelos seus auxiliares de governo e pelas figuras audaciosas de sua ‘entourage’. Toda a sua vida tem sido uma revelação de clamorosa leviandade. Eleito deputado federal, oferecem-lhe um lugar na Comissão de Finanças da Câmara. Recusa, afirmando não sentir competência para o posto e, mais tarde, sendo-lhe oferecida a pasta da Fazenda, aceita-a jubilosamente, sem se lembrar que já havia confessado nada entender de assuntos financeiros.
No Ministério da Fazenda nada fez a não ser desastres. Deve-se a ele a nomeação de Antonio Mostardeiro para o Banco do Brasil, que custou ao país 159 mil contos de prejuízos em falências. Foi sua Excia que levou Souza Varges para a Alfândega, o qual o governo demitiu a bem do serviço público.
Eleito presidente do RS, por influência de Washington Luis, o seu governo em nada se destacou. Durante o seu governo oficializaram-se os ‘trusts’ organizados pelos açambarcadores, entre os quais o da banha, organizado pela firma Matarazzo.” (vol. 1, pg. 46)
“Eis aí, em síntese – comenta Henriques do artigo de A Noite – o traço predominante do caráter de Getúlio Vargas. As hesitações de Vargas durante o seu interminável governo tornaram-se famosas. Era um homem paradoxal que queria permanecer eternamente no governo sem governar, ou seja, desejava gozar de todas as vantagens e privilégios do governante sem passar por nenhuma de suas vicissitudes e sem assumir nenhuma de suas responsabilidades. A sua famigerada política de “deixar ficar como está para ver como é que fica” patenteia, sem margem de dúvida, a precisão dos conceitos do grande vespertino carioca: ‘homem mole, sem energia, sem vontade’. Mas esse homem mole, sem energia, sem vontade, tornava-se de súbito um titã quando o ameaçavam destituir do poder. Aí então se transfigurava integralmente. De dorminhoco, sonolento e lerdo que era transformava-se, de súbito, num verdadeiro centauro gaúcho. Não havia nada que o contivesse. Passava a madrugador, ativo, valoroso, revelando uma energia surpreendente. Uma vez assegurada a sua permanência no poder, voltava à sua modorrenta letargia. Indiferente a tudo e a todos, protegendo aqueles que contribuíam para o continuísmo, perseguindo implacavelmente aqueles que contrariavam a sua única, verdadeira e obstinada ambição: continuar senhor absoluto do País..." (vol. 1, pg. 47)
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?
“O descaso de Getúlio Vargas pelos negócios públicos e pelos interesses superiores do povo chegava ao ponto de, em reuniões importantes, em que se traçavam os destinos do Brasil, tirar sonecas escandalosas.” (vol. 1, pg. 47)
“Outra característica curiosa de Vargas era a de atirar a culpa dos seus erros sobre os seus auxiliares. O ditador nunca era responsável pelos seus erros. Quando, todavia chegava a hora de colher as flores dos elogios pela obra alheia era ele quem primeiro se apresentava. Se surgia um desmando que não podia deixar de ser de sua imediata responsabilidade, apresentava o álibi pouco edificante de sua ignorância. Na sua campanha presidencial de 1950, num discurso pronunciado em janeiro daquele ano em Belo Horizonte, declarou que não sabia da maior parte das coisas que haviam acontecido durante a sua ditadura...” (vol. 1, pg. 48)
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?

“O Comodismo e a preguiça mental do Sr. Getúlio Vargas tornaram-se tão arraigados e tão conhecidos que chegaram a introduzir na vida pública brasileira aquilo que nos EUA se chama ghost writer e na França les négres, isto é, escritores que, embora competentes e inspirados, não conseguem ganhar nome e fama e se veem por isso forçados a trabalhar para os medalhões consagrados, recebendo o dinheiro e desprezando a glória que de direito lhes pertence.
Getúlio Vargas começou a princípio por encomendar pequenos discursos protocolares. Como a coisa foi saindo a seu gosto, esses discursos foram se tornando cada vez mais extensos, mais massudos e prolongados. Enquadrando-se isso perfeitamente dentro das exigências do seu comodismo, nos últimos tempos do seu governo os funcionários do seu gabinete incumbiam-se de tudo: declarações políticas, discursos oficiais, conferências, mensagens etc..., culminando finalmente nos quinze volumes da 'Nova Política do Brasil', obra da qual somente alguns períodos foram realmente escritos por ele.” (vol. 1, pg. 50)
“O doutor Mauricio Joppert, falando na Câmara dos Deputados em 6 de julho de 1954 sobre a personalidade sinuosa e dúbia de Vargas, preferiu fazer uma análise de suas características sob o aspecto do desprezo que o ex-ditador devotava aos seus próprios amigos da véspera, a facilidade com que abandonava as dedicações e esquecia serviços, bem como a sua constância em quebrar as regras da lealdade.” (vol. 1, pg. 59)
Vargas tinha a capacidade inata do caudilho para se associar a todos os tipos de políticos que habitavam o panorama eleitoral da época, como Adhemar de Barros, Hugo Borghi, Lindolfo Collor, Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, José Maria Whitaker e tantos mais, e depois abandoná-los sem a menor cerimônia em busca de conveniências passageiras, injunções de ocasião.
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?
O General Góis Monteiro, que ocupou todos os cargos protagonistas do movimento de 30 até o ministério da Guerra de Getúlio, passando longos anos no comando do Gabinete Militar, disse, pouco antes de morrer, em entrevista a um jornalista, sobre a personalidade de Getúlio, quando este já estava morto há 2 anos:
“Durante muito tempo cheguei a pensar que ele fosse um dos homens mais afortunados que eu conhecera, pois pelo lado do utilitarismo e do oportunismo, tudo conseguia com pouco esforço e num grau de ascensão que lhe prodigalizava todos os benefícios. Tudo concorria para a realização das suas intenções e objetivos e até para ultrapassar a medida de seus desejos. Era um favorito da fortuna, que tudo ganhava e nada perdia. Dava pouco e recebia muito. Mais tarde compreendi que ele vivia, no seu interior, um drama terrível, era um homem infeliz, que procurava derivativos e saídas para os seus desforços íntimos; introvertido, fechado sobre si mesmo. Apesar da aparente uniformidade do seu procedimento e de seus pensamentos, apresentava muitas contradições à medida que se ia consolidando o seu governo, talvez pelas contingências que sobrevinham, justificando que as circunstâncias é que determinavam tudo. De envolta com essas contradições é que se podem assinalar o protecionismo dispensado a certas figuras repelentes, os meios de corrupção e desmoralização empregados contra os recalcitrantes, a tolerância para com o parasitismo e o favoritismo, o afeto injustificável para com indivíduos que só mereciam repulsa e, de outro modo, sua tendência invencível para o isolamento, para a misantropia, à medida que o seu poder se tornava maior.” (vol. 1, pgs. 62-63 )

A Revolução de 30

Quando se estuda a ascensão de Hitler ou Stalin, a primeira estupefação do leitor é o quase inacreditável conjunto de circunstâncias que levaram os ditadores ao poder. O leitor vai ficando cada vez mais perplexo com a sequência de acontecimentos que historicamente vão favorecendo a subida dos tiranos rumo ao poder absoluto. Quando as marcas da insensatez se tornam inequívocas, aí já é tarde demais. Os mecanismos institucionais são incapazes de deter a tragédia que se anuncia. A história está repleta de gente que não consegue perceber como a avalanche de fatos vai se afunilando para o controle total do déspota sobre o aparelho de Estado e da Nação. Quando se dão conta não existe mais retorno, só resta a submissão e o conformismo despistador, quando não a vergonha e a humilhação.
Com Vargas não foi diferente. O país vinha atravessando um período de revoltas e levantes reveladores do seu estado de inquietação e inconformismo. A Revolta da Chibata de 1910 inicia uma era de levantes militares cunhada com o nome de tenentismo, com desdobramentos na Guerra do Contestado, durante o governo desastroso de Hermes da Fonseca, depois a revolta do Forte de Copacabana de 1922, o levante de 1923 no RS, a coluna Prestes em 1924, a crise financeira internacional de 1929 com o súbito declínio da exportação do café, o excesso de politização dos tenentes no exército, tudo isso contribuiu para a deposição de Washington Luis, que em fim de mandato vinha governando com austeridade e realizações.
Na República Velha era lugar comum o governante escolher seu sucessor, e este ir para o pleito e ser eleito nas votações abertas, facilmente controláveis pelas oligarquias que comandavam a máquina pública.
Para coibir esses abusos, nasceu a Aliança Liberal, um movimento eleitoral com propostas de voto secreto, criação da Justiça Eleitoral e judiciário independente, anistia aos tenentes exilados, e diversas aspirações de caráter reformista. Logo o movimento tomou conta do país: jornais passaram a apoiar o movimento reformista e a proximidade das eleições de 1930 catalisou a opinião política nacional em torno das novas propostas.
Governava Minas Gerais Antonio Carlos de Andrada, e o RS era comandado por Getúlio Vargas. Washington Luis escolhe para seu sucessor o governador de São Paulo (naquela época, chamado presidente da província) Júlio Prestes. Ocorre que Antonio Carlos de Andrada queria para si a indicação do sucessor do presidente da República segundo a alternância informal chamada de política do café com leite. Para dar um golpe político e arregimentar forças, Andrada manda um emissário ao RS falar com Vargas, expondo sua vontade de concorrer à presidência da república e pedindo o apoio deste. Vargas recusa. Neste meio tempo, Andrada já tinha enviado carta a Washington Luis pedindo sua indicação para a sucessão presidencial. Washington Luis responde que já estava comprometido com o nome de Júlio Prestes. Por pura pirraça manda então outra carta a Vargas dizendo apoiar seu nome para candidato. Vargas vacila como de hábito e manda outra carta a Washington Luis cheio de dedos com a sua indicação. A sequência de cartas é apresentada e comentada por Henriques mostrando como evoluiu a situação política até a indicação de Vargas como candidato da Aliança Liberal.
A Aliança Liberal escolhe João Pessoa como vice de Getúlio, um político ferrabrás que governava a Paraíba, cuja capital nessa época se chamava Princesa. Feitas as eleições em março de 1930, Vargas obteve cerca 800 mil votos contra 1,3 milhão de Júlio Prestes, uma derrota esmagadora. Aí surge a denúncia de fraude eleitoral, uma prática corriqueira na política local da República Velha, com o voto a descoberto. Mas os analistas insistem que se houve fraude, esta deveria ter ocorrido pelo lado de Getúlio, pois no RS seus votos ultrapassaram 90% do eleitorado, obviamente um escrutínio que era completamente irreal para qualquer tipo de eleição. Portanto Vargas acusa seu adversário daquilo que ele mesmo praticara. A situação é de intranqüilidade e de tentativa de levante. Mas a agitação morre na praia. Todavia quando tudo voltava à normalidade, em 29 de julho de 1930 é assassinado em Recife o vice João Pessoa. Seu assassino era João Dantas, um político paraibano rival a quem fora ofendido por Pessoa no episódio de um levante popular na Paraíba contra o governo deste e que na repressão a polícia paraibana, ao invadir o escritório de Dantas, revela as cartas que este mantinha com sua amante, a poetisa e feminista Anaide Beiriz.
Dantas é recolhido à penitenciária. A revanche política explode, pois os políticos ligados a Vargas, incluindo este, passam a acusar o presidente Washington Luis (em fim de mandato) como o mandante do crime. A agitação toma um vulto incontrolável. A ocasião era para uma intervenção enérgica de Washington Luis que, entretanto, se mantém sereno e completamente estupefato com os disparates dos adversários derrotados. Enquanto isso, Júlio Prestes passeava pelos Estados Unidos se apresentando como presidente eleito. Em declaração à imprensa americana dizia que, ao contrário dos países hispânicos, o Brasil era um país que jamais admitiria uma ditadura.
Affonso Henriques mostra com detalhes as circunstâncias da exploração política do cadáver de João Pessoa, que enviado para o Rio de Janeiro de navio por políticos da Aliança Liberal, com parada em Salvador, para fins de render homenagem ao morto, nada mais fizeram do que provocar as manifestações populares e os levantes contra Washington Luis – o suposto mandante do crime. Um absurdo total: por que iria Washington Luis, um homem pacífico, mandar matar um candidato a vice-presidente derrotado no pleito? Eis aí uma questão que mostra o espírito da época, o descontentamento que avassalava as massas populares.
Com o misterioso assassinato de Dantas na cadeia em 3 de outubro de 1930, estoura a revolução no dia 30 e Washington Luis é deposto e exilado, juntamente com seus colaboradores mais próximos.
Como em toda a revolução, não faltaram os bons propósitos, os discursos de candura, a enganação enlevada das massas populares vitimadas pela maior crise no mercado internacional, onde a exportação de café havia caído em 50% e o desemprego campeava solto em São Paulo e demais cidades do país.
Exilados os inimigos da revolução com mandatos cassados por 10 anos, vem o conspirador do RS, o inefável Osvaldo Aranha, ministro empossado de Getúlio, afirmar que o povo brasileiro não estava preparado para a democracia, frase que se ouviria 50 anos mais tarde pela boca do general João Batista Figueiredo.
A fragilidade do povo em sua educação e cultura frente à voracidade política e ao estatismo dominante desde a formação da república inclinava a sociedade brasileira para a concepção fascista, então em voga, de organização de legiões educadas para as tarefas cívicas e políticas. Ao mesmo tempo, a nação clamava por uma constituinte que pudesse reunificar as leis do país e legitimar as novas forças no Poder.
Mas o espírito liberal brasileiro radicado em figuras de grande liderança, como Borges de Medeiros e Raul Pilla no RS, começaram a dar as primeiras manifestações de contrariedade à confissão fascista de Osvaldo Aranha e Francisco Campos. Logo a personalidade de Vargas começou a provocar inquietações por todo o Brasil. A ela se refere Affonso Henriques:
“À proporção que iam surgindo os problemas políticos, econômicos e sociais, mais se acentuava a incapacidade de Vargas para enfrentá-los e mais se evidenciava o seu horror a assumir responsabilidades. O seu amor ao governo e ao mando fazia com que temesse cometer erros que acarretassem a sua ruína política. Não tinha absolutamente confiança em si próprio, em sua capacidade administrativa. Reconhecia-se impotente ante a magnitude do cargo que assumira. Tomar qualquer decisão era para ele um verdadeiro suplício e daí procurava adiar, procrastinar, tergiversar e até mesmo desconversar quando qualquer problema grave lhe era apresentado. Essa sua característica o acompanhou até a sua morte. Desejava a todo transe não descontentar a ninguém, para não perder o cargo. Como isso era impossível, adotou a tática simplista de adiar a solução dos problemas. Uma vez adiada a solução, o problema tornava-se mais complexo, mais grave e difícil de ser solucionado. Não obedecendo a nenhum princípio sadio, Vargas procurava de preferência a política oportunista de satisfazer aqueles que apresentavam maior grau de periculosidade e ambição. Quando era forçado a tomar uma decisão, revelava-se um imediatista, isto é, dava preferência às soluções que resolviam o caso no momento, superficialmente, sem se preocupar absolutamente com os seus efeitos futuros.” (vol. 1, pgs. 135-136) O que se via em Vargas era uma estratégia de manter-se no poder a qualquer custo, mesmo que para isso precisasse utilizar-se de subornos, empréstimos do Banco do Brasil a aventureiros e negocistas, promoções aos militares, sinecuras e empregos públicos a correligionários, e assim por diante. Tal qual o governo Lula com sua obsessão com relação ao governo FHC, Vargas já havia praticado antes:
“Para desviar a opinião pública da incapacidade do governo para a solução dos problemas mais urgentes que assoberbavam o País, iniciou-se em toda a Nação uma campanha de desmoralização do regime deposto, contra o qual se levantaram as maiores injustiças, o que se evidencia principalmente quando se compara o mesmo com os resultados desastrosos do regime que lhe sucedeu.” (vol. 1, pg. 137) Além disso, a política de despistamento foi colocada em ação. Consistia em dizer uma coisa e fazer outra. Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos? Ao discursar em um banquete oferecido aos militares, quando já se murmuravam inquietações nas forças armadas, Vargas foi exemplar:
“O programa da revolução reflete o movimento que a inspirou e traça o caminho para o ressurgimento do Brasil: institui o aumento da produção nacional, sangrada por impostos que a estiolam; estabelece a organização do trabalho, deixada ao desamparo pela inércia ou ignorância dos governantes; exige a moralidade administrativa, conspurcada pelo sibaritismo dos políticos gozadores; impõe a invulnerabilidade da justiça, maculada pela peita do favoritismo; modifica o regime representativo, com a aplicação de leis eleitorais previdentes, extirpando as oligarquias políticas e estabelecendo ainda a representação por classe, em vez do velho sistema de representação individual tão falho como expressão da vontade pública; restabelece finalmente o pleno gozo das liberdades públicas e privadas, sob a égide da lei e da justiça.” (vol. 1, pgs. 139-140)
Ou seja, aquilo que dizia era exatamente o oposto do que fazia. Sua única inovação foi a representação por classe, uma iniciativa criada pela revolução para preparar sua maioria na constituinte e garantir um novo mandato de mais quatro anos para ele. A representação por classe foi o germe do movimento sindical atrelado ao Ministério do Trabalho e uma de suas políticas de suborno mais abjetas da vida nacional.
O sistema funcionava assim: os trabalhadores de todas as cidades do país deveriam escolher representantes de suas respectivas categorias profissionais. Padeiros, marceneiros, pedreiros, serralheiros, profissionais liberais, etc. Esses representantes receberiam uma viagem paga até o Rio de Janeiro para ali escolherem os representantes junto à constituinte que totalizaria 40 delegados, de um total de 254.
Imagine um simples operário, dos rincões do Brasil, que sequer tinha dinheiro para conhecer a capital de seu estado, de repente ser convidado a passar alguns dias na cidade maravilhosa com tudo pago para eleger um candidato apontado pelo “homem”. Foi uma mobilização infernal. Para não perder o trenzinho da alegria, os candidatos faziam qualquer coisa em suas cidades para serem os indicados. O evento foi celebrado aos quatros ventos pela imprensa. Acomodados em locais especialmente preparados para recebê-los, e tendo uma guarda-negra especialmente confabulada para orientar os delegados, estes votavam em que lhes pediam, enquanto a farra e o turismo corriam soltos.

A Revolução Constitucionalista de 32

Entretanto, a constituinte de 34 tinha sido o resultado de um tremendo processo que vinha ocorrendo no país com o desvio do programa da Aliança Liberal para o governo ditatorial da patota de Getúlio Vargas, especialmente de seus lugares-tenentes mais próximos como o general Góis Monteiro, o repulsivo capitão João Alberto e o inefável Osvaldo Aranha. Este trio organizou um movimento chamado 2 de Outubro que se especializou em articular artimanhas para sufocar a oposição à ditadura. Uma delas foi a invasão e empastelamento do Diário Carioca, um dos jornais da capital que criticava abertamente as decisões do governo. Na noite de 25 de fevereiro de 1932 foi invadido por um grupo de tenentes e soldados, que vandalizaram todas as instalações quebrando tudo pela frente, batendo em funcionários, espancando jornalistas, redatores e tipógrafos.
Oito dias depois do atentado, quando já se sabia que a ordem tinha partido de círculos chegados a Vargas, apresentam as demissões o ministro da Justiça Maurício Cardoso, o Ministro do Trabalho Lindolfo Collor, o Chefe da Polícia Batista Luzardo, João Neves da Fontoura, Barros Cassal, Ariosto Pinto e Sérgio de Oliveira, todos antigos membros da Aliança Liberal.
Como eram gaúchos, resolveram partir para Porto Alegre, aonde lá chegando são recebidos com estrondosa manifestação de apoio por Borges de Medeiros. Parecia que uma onda de rebelião iria se iniciar contra Vargas. Em vez disso, os tenentes correm a dar apoio a Vargas, o mesmo sucedendo com o governador da Bahia Juracy Magalhães.
Estava claro que a desordem iria tomar conta do país. Para implementar a revolução, Vargas havia nomeado interventores em todos os Estados e municípios do país. Estes interventores foram o estopim da revolta constitucionalista. As designações eram diretas. Tenentes sem nenhuma experiência administrativa passaram a ser prefeitos. Políticos aliados passaram a governador. Com poderes extraordinários, demitiam quem quer que fosse, e até mesmo houve o caso de demissão de todo o tribunal de justiça de Manaus por seu interventor sob o argumento de que tal ato era uma aspiração popular. Em outros casos, os próprios interventores eram demitidos e substituídos por outros, ao sabor dos acontecimentos e das pressões.
Neste ponto, Henriques atribui toda a confusão ao próprio método de Vargas manter-se no poder. Ao nomear tenentes para cargos civis subornava-os com sinecuras para garantir apoio na área militar. Os militares descontentes, tratava de transferir para locais seguros, que poderia ser o interior do país, ou até a capital, para manter vigilância sobre eles. Em outros casos, os comandantes insatisfeitos eram simplesmente forçados a renunciar e passavam para a reserva, como aconteceu com o general Andrade Neves que comandava a 3ª região militar em Porto Alegre.
O movimento pela constitucionalização do país iniciara no RS com uma série de proclamações e cartas endereçadas a Getúlio e Osvaldo Aranha. O Partido Libertador, liderado pelo parlamentarista Raul Pilla, em congresso aprova por unanimidade de votos uma declaração exigindo do governo a convocação de uma Constituinte. Jornais, associações profissionais, OAB, todos clamavam pela constituinte. Enquanto isso Vargas se omitia, negaceava, vacilava, parecia não ter rumo a não ser referendar as decisões do nefando grupo 2 de Outubro. Este clube acusava em manifesto que a constituinte era apenas o desejo de vingança dos descontentes afastados pela revolução, dos políticos venais que a revolução de 30 havia prometido acabar. Os interventores militares seguiam a declaração do clube 2 de Outubro.
Em São Paulo, para dirigir os destinos do estado mais rico da federação, açoitado pela crise progressiva da redução das exportações do café, foi criado um governo provisório logo após a revolução de 30 composto por gente de conhecida reputação e qualidade intelectual, como José Maria Whitaker, Plínio Barreto, Vicente Rao, Cardoso de Melo e outros. Este gabinete era um governo sem chefe, à espera da definição do Presidente da República, que para espanto geral decide nomear o tenente João Alberto para a chefia do gabinete em novembro de 1930. João Alberto tinha sido membro da coluna Prestes, de quem se afastou, mas que ficou com sua reputação manchada por sua desmedida ambição de enriquecimento. Braço direito de Góis Monteiro, logo tratou de sabotar os atos do gabinete, forçando a renúncia deste 40 dias depois. João Alberto cria então a Legião Revolucionária, uma organização paramilitar nos moldes das falanges fascistas com a finalidade de substituir os partidos políticos.

Em 1 ano e meio de desmandos, arbitrariedades e desvio de recursos, o descontentamento foi crescendo com a demissão em massa de funcionários, prefeitos, policiais civis e elementos-chave da administração. O Partido Democrático lança um manifesto rompendo com o interventor em 24 de março de 1931. Como represália, João Alberto manda invadir a sede do partido, prender seu presidente (Vicente Rao) e sucessivamente invadir a sede do Diário da Noite para confiscar material subversivo.
Os paulistas se sentiam traídos por um militar que em plena crise, com as multidões de desempregados, aumentava as despesas do palácio de 358 mil contos (no tempo de Júlio Prestes) para 621 mil contos. Na reorganização da polícia civil, primeiro João Alberto suprimiu cargos que economizaram 368 mil contos, depois criou outros cujas despesas aumentaram para 1,385 milhão de contos de réis segundo o manifesto.
“A incompetência administrativa, o desmantelo dos serviços públicos, a manutenção da ‘Legião Revolucionária’, a entrega de quase todos os cargos, principalmente as prefeituras, a agentes militares da confiança do interventor, o esbanjamento do dinheiro do povo, a multiplicação dos departamentos caríssimos e desnecessários, a criação de repartições de censura à imprensa, a preterição sistemática dos filhos de SP e de outros grandes vultos da terra por elementos de fora, a expansão das ideias comunistas, a infiltração do pensamento soviético, o desamparo do comércio e indústria, o contraste entre a vida de fausto que levam os governantes e a miséria de que padecem os sem-trabalho, a iminente divisão do Estado em dez circunscrições que, confiadas a militares, farão sumir os últimos remanescentes da autonomia municipal, tudo isso nos adverte que o que o governo planeja é enraizar-se para sempre nestas paragens e destruir o belo patrimônio moral e econômico que os paulistas, a tanto custo e com tanta pertinácia, acumularam.” (vol. 1, pg. 216)
O manifesto prossegue e chega a citar o descalabro da administração em que técnicos notáveis foram substituídos por “gente bisonha vinda de fora” nas palavras de Affonso Henriques.
Ao mesmo tempo em que se monta essa máquina oligárquica, enchem-se as repartições de gente adventícia. Até juízes tem-se ido buscar fora do estado, prossegue o manifesto.
Este manifesto teve repercussões em todo o Brasil: no RS diversas moções de solidariedade foram feitas em defesa do Partido Democrático paulista. Em consequência, Getúlio demite João Alberto, depois deste deixar o tesouro paulista em uma terra arrasada.
Entretanto, os tenentes comandados pelo gabinete-negro de Góis Monteiro e Osvaldo Aranha preparam uma resistência para sabotar o novo interventor a qualquer custo, para que João Alberto retorne à governança do estado.
O novo interventor nomeado foi Laudo de Camargo, ocupando o cargo contra a vontade, sabendo de antemão que não conseguiria governar com um estado aparelhado pelos seguidores de João Alberto. Para culminar com seu breve mandato, João Alberto manda um recado dizendo que não aceitava a indicação de Numa de Oliveira para a Secretaria da Fazenda, exigindo a imediata destituição deste: temia que uma devassa mostrasse a roubalheira desatinada que havia imposto aos cofres do estado. Quatro meses depois Laudo de Camargo manda uma carta a Getúlio renunciando. Getúlio não responde, como sempre se mantendo indeciso. Laudo de Camargo não espera mais e entrega o governo ao coronel Manuel Rabelo, comandante da Região Militar.
Manuel Rabelo mostrou-se íntegro e digno do cargo. Restabeleceu a liberdade de imprensa e de reunião, para escândalo do tenentismo que pedia a Vargas a destituição deste militar fora do eixo do movimento. O general permanece no cargo pela mesma indecisão com que Vargas assumia para as demais contradições do exercício do poder.
A situação entretanto não era nada confortável ao interventor. O Instituto do Café, órgão que havia sido criado para defender a lavoura, transforma-se em um aparelho de apoio à ditadura e de João Alberto. Este não se dá por vencido e parte em viagem pelo interior do estado em busca de apoio dos prefeitos que havia nomeado.
Em 25 de janeiro de 1932, no dia do aniversário de São Paulo, um comício monstro na Praça da Sé mobiliza 200 mil pessoas sob a chuva para clamar pela constitucionalização do país. Em quinze de fevereiro, outro comício monstro pedindo a constitucionalização. As coisas estavam tomando um rumo tal que Getúlio nomeia Pedro de Toledo para interventor. Como era paulista e conhecido magistrado e jurista, a medida viria acalmar os ânimos exaltados, não fosse o gabinete-negro e as falanges de João Alberto continuarem a trabalhar nos bastidores. A tática era a de fazer com que o interventor fosse apenas uma figura decorativa, sendo seus auxiliares designados pelos tenentistas ou revolucionários autênticos.
A confusão não poderia ser maior: ninguém se entendia, todos brigavam e disputavam entre si. O general Miguel Costa, comandante da força pública de São Paulo, rompe com Góis Monteiro e pede demissão do cargo.
Os comícios se intensificam, seguidos por passeatas. A Liga Paulista Pró-Constituinte, uma organização suprapartidária, lança manifesto concitando o povo a reunir-se na Praça do Patriarca. Osvaldo Aranha vem do Rio de Janeiro para tentar acalmar os ânimos. Nada consegue e é obrigado a pernoitar no quartel da Força Pública para não ser esfolado nas ruas. O movimento saía das instituições para as ruas. Fazer discurso contra a ditadura tornou-se prática cotidiana. Neste meio tempo, Pedro de Toledo forma seu secretariado à revelia das imposições do governo central. É ovacionado e aplaudido por toda a sociedade.
Então ocorreu a famosa noite de São Bartolomeu paulista. O povo, depois de saquear lojas de armamentos, resolve invadir a sede do Partido Popular Paulista (PPP) na rua Barão do Itapetininga. Este partido, fundado por Miguel Costa, tinha seus adeptos fortemente armados com fuzis subtraídos da força pública. No tiroteio que se seguiu morreram os estudantes que depois formariam a sigla MMDC (Miragaia, Miranda, Dráusio e Camargo) que serviu como símbolo da revolução que rebentaria em 9 de julho de 1932.
A revolução era comandada pela Frente Única Paulista que convocou os paulistas às armas. A princípio ocorreram as rebeliões na força pública e no exército, que aderiram ao movimento contra a ditadura. Sob o comando do general Bertoldo Klinger — que havia rompido com o governo com a indicação do Ministro da Guerra, o que tinha lhe custado a destituição do comando da região militar do Mato Grosso —, a revolução mostrou-se impotente para se organizar militarmente. Houve todo o tipo de fracasso: apreensão do iate “Ruth” que trazia uma encomenda de armas no litoral de Santos, pela Marinha, contendo milhares de fuzis e cartuchos. Apreensão de 50 canhões antiaéreos, também pela Marinha, transportados pelo navio Jaboatão. E, por fim, a falta com a promessa de incorporar 5 mil homens e munições de sua guarnição no Mato Grosso.
Na opinião de Affonso Henriques, o fracasso da revolução constitucionalista deve-se a Bertoldo Klinger, que aconselhado a não enviar nota de repúdio à nomeação do Ministro da Guerra, não só contrariou seus colegas, como a irradiou aos quatro ventos, provocando sua demissão e antecipando a conflagração antes que os preparativos estivessem prontos. Isto é, investido no comando militar da revolução, Klinger recebe a demissão, nomeia seu sucessor interino, promete suas tropas e as tais tropas não chegam.
No Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros e Raul Pilla tentam a todo custo convencer o interventor Flores da Cunha a apoiar os paulistas. Não conseguindo, rebelam-se e são vencidos e presos. Em Minas Gerais, cujo interventor era o ex-presidente Arthur Bernardes, ocorre a mesma coisa. Sua rebelião fracassa, é preso e remetido ao Rio de Janeiro.
Sozinhos e com pouca munição e logística, os paulistas acabam se rendendo 3 meses depois. A revolução derrotada no campo militar foi entretanto vitoriosa no campo político. Getúlio sabia que precisava reconquistar seu apoio principalmente do Partido Democrático de São Paulo, que o havia apoiado nas eleições de 30, e que participou ativamente na revolução constitucionalista. Para isso, convoca a constituinte, estabelecendo o esdrúxulo critério da representação classista. Nas eleições de 1933, pela primeira vez as mulheres participaram como eleitoras.
Como era esperado, a Constituinte reelege Getúlio para mais um mandato. Ele manobrava para ficar para sempre, enquanto pudesse ser sustentado pelos militares. Mas agora, era presidente constitucional e não golpista.
Na opinião reiterada de Affonso Henriques, ao longo dos 3 volumes de sua obra, Vargas incitava o máximo de revoltas e insubordinações para culpar a democracia. Quando os desmandos, desgovernos, impunidades, denúncias, venalidades, etc, chegassem a um ponto de crise institucional, Vargas fecharia o Congresso para acabar com os desordeiros, agitadores e perigos externos.
Segundo este raciocínio, a Intentona Comunista de 1935 foi um presente do céu. Henriques mantém sua posição de que o levante era controlado pela polícia, que tinha informantes dentro do Comitê Central do partido, o que é hoje em dia contestado. Em todo o caso, a rapidez com que a revolta foi contida (na mesma noite em que estourou), não deixa dúvida de que Prestes, preso mais tarde, tinha sido o responsável pelo fracasso ao tomar uma decisão completamente precipitada. Além disso, como demonstra o livro de William Waack (Camaradas), a organização do movimento era completamente estabanada, com erros elementares de segurança, uma situação que não poderia se esperar de Prestes com a experiência militar e política que acumulara até então.
Com a experiência das revoluções que sacudiram o século XX, alguns intelectuais distinguem a personalidade de seus participantes entre revolucionários e revoltosos. O revolucionário é uma pessoa cuja atitude racional se sobrepõe ao emocional, enquanto que o revoltado é aquele tipo que pensa através da emoção. Para o revolucionário, o que conta são os objetivos finais, as estratégias e a logística do empreendimento, enquanto para o revoltado, o importante são as conquistas imediatas, os efeitos morais, os discursos, os slogans, a comoção causada pelas ações. É bem possível que Prestes fosse muito mais um revoltado do que um revolucionário, embora tivesse comandado uma cavalaria pelos sertões do Brasil, não significa que tivesse grande capacidade de organização. Um comissário consegue aglutinar muita gente, mas não consegue colocar essas pessoas em uma relação de convergência e conjunção. O fracasso da Intentona serviu para que o espantalho do comunismo se propagasse por todo o país. Ora, os comunistas eram um agrupamento muito pequeno, muito menor que os Integralistas de Plínio Salgado, mas Vargas soube tirar proveito, mesmo depois de todos os seus líderes estarem presos.
Segundo Henriques, Vargas manobrava para convencer a opinião pública que o Congresso não o deixava governar. Toda a agitação, protestos, invasões, depredações que ocorria no país era culpa do Congresso.
“O chefe do governo dizia-se impotente, com as mãos e pés amarrados, incapacitado para governar. O regime de liquidação (apelido da democracia na época) não o deixava desenvolver as potencialidades do país”. (vol. 1, pg. 269) Naturalmente, estas afirmações não eram feitas pelo próprio Vargas: eram repetidas por seus acólitos em todo o país. Preparava-se a solução que permitisse o continuísmo de Vargas no poder, já que seu mandato acabaria em 1938.
Cumpre salientar que no período que vai de 1933 a 1937, Vargas criou os sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho, exilou Lindolfo Collor se apropriando de suas idéias relativamente à primeira Legislação Trabalhista e propôs a introdução do salário mínimo no país, um assunto que teve candente repercussão no Congresso, como não poderia deixar de ser. Como mestre na arte do despistamento, Vargas, ao assumir o poder em 1934, assim se manifestou:
“nunca me seduziram as regalias do Poder. Aceitando a indicação do meu nome pela Assembléia constituinte, curvei-me ante o dever de completar o programa esboçado nestes últimos três anos, pois outros propósitos não podia ter quem sabe das agruras e inquietudes peculiares à vida pública” (vol. 1, pg. 273).

O golpe de 37

O Brasil vivia a pior crise financeira desde a proclamação da república. Em 1935, Vargas decreta moratória da dívida externa. O desemprego campeava alto. Para subornar os militares, Vargas propõe aumento de salário. Sabendo que isso seria jogar militares contra civis, os próprios militares protestaram. Esses protestos foram amplificados para motins e rebeliões que eram logo desmentidos. Não havia outra forma de sair da crise a não ser a emissão de moeda. Esta por sua vez começou a turbinar a inflação. A inflação provoca o descontentamento não só dos funcionários públicos como de toda a população assalariada. Considerando que o Brasil importava de tudo, desde gasolina até carvão, fármacos, aço, produtos químicos, a desvalorização de 600% da libra esterlina (o padrão monetário nos anos 30) no primeiro quatriênio do governo Vargas significa enorme pressão inflacionária.
Em função desse quadro de crise surge a Aliança Nacional Libertadora, não mais a Aliança Liberal dos anos 20, mas agora uma organização nos moldes de uma frente ampla com vistas a lutar contra a ditadura, o integralismo e o nazi-fascismo em franca ascensão. Henriques jura de pés juntos que a inspiração da ALN nasceu nos subterrâneos do Palácio do Catete. Ele foi tesoureiro da ALN e responsável pelo fichário dos novos membros que aderiam espontaneamente. Ora, a ALN foi inaugurada em cerimônia no Teatro João Caetano no começo de 1935, com uma enorme concentração de líderes trabalhistas vindos de todos os recantos do país. Esta inauguração termina em violento confronto com a polícia, com um saldo de diversos mortos e feridos devido a uma tentativa de passeata à meia-noite depois dos discursos inflamados de trabalhistas e comunistas.
Henriques conta que tinha que trabalhar até altas horas da noite para organizar as fichas dos aderentes, em média 3 mil novas assinaturas por dia só de membros inscritos e pagantes. Isto significava um imenso eleitorado em potencial para 1938, se naturalmente não houvesse 1937. Os inimigos declarados da ALN eram os integralistas, e os confrontos se tornaram inevitáveis. Em Petrópolis, Henriques participou de um comício em 9 de junho, onde em passeata, em vez de se dirigir pela avenida principal, o estandarte da manifestação envereda por uma rua secundária, justamente em frente à sede do movimento integralista, onde agentes provocadores tentam invadir o prédio. Os integralistas, escondidos às escuras dentro do prédio, revidam com tiros e granadas e o escarcéu se generaliza. Tempos depois, analisando as consequências do ato, Henriques conclui que havia uma relação secreta entre os comunistas da ALN — capitaneando a manifestação — e os membros da guarda-negra do Catete, pois foram estes que obedecendo às ordens da polícia getulista provocaram o confronto, completamente alheios às decisões da diretoria da ALN, as quais Henriques tinha acesso devido ao seu expediente diário.
Fechada a ALN por ordem de Vargas, com base na Lei de Segurança Nacional em 15 de julho de 1935, o debate se estendeu nos dias seguintes baseado no argumento de que se preparava a subversão no país a partir de uma revolução comunista orquestrada em Moscou. Para os aliancistas liberais, como Henriques, isso parecia uma piada de mau gosto com a finalidade de sufocar o movimento democrático (vol. 1 pg. 365). Mas, na verdade, por uma incrível coincidência, Prestes entrara ilegalmente no país no mesmo mês de 1935, vindo de Moscou, para preparar o levante que só ocorreu em 26 de novembro no RJ, precipitado pelas rebeliões antecipadas em Natal e depois em Recife.
Derrotada a Intentona e presos seus organizadores em poucos dias, a Câmara aprova uma emenda à constituição que dava poderes ao presidente para declarar o estado de guerra, ficando o país sob o comando do executivo; além disso, ficava o presidente com todo o poder sobre o exército, com poderes de cassar as patentes de quaisquer militares da ativa ou reserva; por último, o poder de demitir qualquer funcionário público civil. O pretexto era a criação de poderes especiais para combater o comunismo, mas ao final de 37 usou desses poderes para fechar o Congresso, fazer intervenções em todo o país, censurar a imprensa e promover a repressão mais generalizada e abrangente havida até então.
A repressão já vinha ocorrendo de forma indiscriminada a partir da captura de Prestes. Prendia-se quem bem o regime queria. Por exemplo, em março de 1936 “foram sumariamente presos o Senador Abel Chermont, os deputados Otávio da Silveira, Domingos Velasco, Abguar Bastos e João Mangabeira” (vol. 1, pg. 408). A minoria do Congresso reage com um protesto contra a prisão e contra o pedido de licença para o processo. A maioria da Câmara, controlada por Vargas, concede a licença. Dos quatro deputados, 3 são condenados no famigerado Tribunal de Segurança Nacional: João Mangabeira a 3 anos e 4 meses, Otávio da Silveira a 3 anos e 10 meses e Abguar Bastos a 6 meses.
E o que aconteceu com Abel Chermont, um senador da república? Em suas próprias palavras “fui esbordoado: resisti. Subjugaram-me e maltrataram-me a cano de borracha. Depois me deixaram 3 dias e 3 noites sem uma xícara de café!...“ (vol. 1, pg. 410). Quer dizer: se um senador da república era tratado a cano de borracha, imagine-se o resto do populacho....
Ora, o Tribunal de Segurança Nacional tinha sido uma criação do próprio Vargas, depois de um pedido à Câmara, para que fosse aprovado como um projeto. Naquela época a constituição da república dizia no artigo 25 que “não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção”. Era pois uma flagrante ilegalidade. Logo as vozes se levantaram clamando pela inconstitucionalidade do pedido. Pois mesmo assim, com a maioria assegurada, o tribunal é aprovado. Era como se o Congresso agisse contra si no torvelinho da repressão que aumentava.
Chega 1937. Nas eleições previstas para o ano seguinte, se apresentam Armando Sales de Oliveira, Plínio Salgado e José Américo. Se partisse para uma reeleição Getúlio certamente seria derrotado, devido a crise econômica e aos desmandos de sua polícia. Mas manhoso fazia de conta que seu governo chegava ao fim. No discurso de 7 de setembro, despediu-se comovidamente do povo brasileiro, pois que iria dentro em breve entregar o governo ao seu legítimo sucessor.
Então aparece em 30 de setembro de 1937 o famigerado Plano Cohen. O Ministro da Guerra distribui para a imprensa um material apreendido pela polícia falando de um plano comunista com o objetivo de provocar massacres, incêndios em propriedades, igrejas e empresas, roubos, confiscos sumários de propriedades, desrespeito aos lares e às famílias. Eram textos alarmantes, alguns deles extraídos da literatura marxista e anarquista vigente, alguns com uma adaptação ao Brasil, pois era um documento que ocupou 4 colunas dos jornais com capítulos como “Técnica de Greve Moderna”, “Ação dos Incêndios”, etc.
Ora, a autoria do plano foi atribuída aos integralistas. Mas Henriques então discute exaustivamente as circunstâncias do aparecimento e posterior divulgação do plano e atribui a sua criação exclusivamente ao gabinete negro chefiado por Góis Monteiro, tendo Filinto Müller como participante.
Em consequência da agitação criada em torno do plano comunista, Getúlio decide decretar o estado de guerra previsto na constituição reformada. O pedido enviado ao Congresso foi aprovado por 138 votos contra 52.
Em 8 de novembro Armando de Sales Oliveira envia um manifesto aos chefes militares advertindo para os perigos que passa o país:
...”Se alguma força poderosa não intervir a tempo de impedir que se cumpram os maus pressentimentos que hoje anuviam a alma brasileira, um golpe terrível sacudirá de repente a Nação, abalando seus fundamentos até as últimas camadas e mutilando cruelmente as suas feições..... Só não vê claro quem não quer. Está em marcha a execução de um plano longamente preparado, que um pequeno grupo de homens, tão pequeno que se os podem contar com os dedos de uma só mão, ideou para escravizar o Brasil. Não são homens que aparecem nas cristas das vagas populares, e que, por estas, são levados ao poder com ímpeto irresistível para que construam uma nova ordem política. Em lugar de ir de baixo para cima, como o mundo de nossos dias oferecem tantos exemplos, a subversão das instituições brasileiras está sendo realizada do alto, com todas as armas que dispõe o poder. Há, de fato, quem esteja em desespero de causa: — o Brasil.”
E termina seu manifesto dizendo: “a nação está voltada para os seus chefes militares — suspensa, espera o gesto que mata ou a palavra que salva.” (vol. 1, pg. 465)
O gabinete negro de Góis Monteiro recebeu o manifesto com um misto de estupefação e confusão. Estava denunciado o que se preparava na surdina. Com o golpe marcado para o dia 15, anteciparam para 10 de novembro.
Getúlio fecha o Congresso e passa a governar com poderes especiais. Prisões em massa se sucedem. Vargas trata de eliminar todos os que se sobressaíam na política. Persegue, prende e exila Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal e altamente popular. Depois força Flores da Cunha a renunciar ao governo do estado do RS de forma humilhante. No RS, onde estava concentrada a maior divisão do exército em equipamentos e soldados, e onde a Brigada Militar era uma força considerável, Vargas manda requisitar a Brigada Militar para se subordinar ao exército a quem havia mudado de comando meses antes na fase preparatória, deixando Flores da Cunha completamente sem resistência.
Decretando intervenção no RS, Flores da Cunha foge para Uruguaiana e se exila na Argentina. O mesmo ocorre em São Paulo. A força pública é incorporada ao exército, ocorrendo o mesmo com a polícia do Espírito Santo, Pernambuco e outros estados.
Sabendo que os integralistas de Plínio Salgado eram um concorrente para si, Vargas infiltra diversos agentes em uma parada organizada pelo movimento para provocar quebra-quebra e incompatibilizar a opinião pública com os Verdes. Henriques foi testemunha ocular desses episódios, pois conhecia pessoalmente os agentes varguistas infiltrados nas passeatas.
Se você acha que o Congresso Nacional hoje prima pela subserviência, fique sabendo que no fechamento decretado por Vargas em 10 de novembro de 1937, 80 parlamentares foram saudá-lo pela medida que os havia liquidado. Por aí se vê como é a cara do nosso sistema político.
Na nova constituição (chamada ‘a polaca’) Vargas decretou o fechamento do Senado, do Congresso e das Câmaras municipais: não haveria portanto legislativo. A esse novo regime Vargas chamou de Estado Novo.
Os fatos mais importantes relativos ao Estado Novo, período que vai de 37 a 45, diz respeito ao:
  • Exílio e perseguição de líderes políticos e intelectuais;
  • Início do nepotismo na administração pública;
  • Crise econômica sem precedentes, com o Brasil perdendo oportunidades sucessivas de se enriquecer com a guerra.
  • Corrupção e roubalheira generalizadas em todos os escalões da República. Falência administrativa do governo federal e rapinagem extensiva em alguns estados, como São Paulo, com o governo do nefando Adhemar de Barros.
  • Fraude e contrabando nas fronteiras de pneus, farinhas, tecidos, cimento.
  • Abandono da infra-estrutura do país, com a paralisação de estradas de rodagem e sucateamento da malha ferroviária.
  • Aparecimento no país — pela primeira vez — de filas para abastecimento de gêneros de primeira necessidade, como pão, leite, carne, açúcar, etc., que a ditadura atribuía à guerra, mas que se sabia serem causadas pelo descalabro promovido por negocistas infiltrados em todos os órgãos do governo com a finalidade de se apropriarem de todos os bens relativos a sua pasta. É desta época a cultura da água no leite e do milho no café.
  • Estabelecimento do mercado negro de bens e alimentos, do câmbio negro e de uma monumental carestia de vida. Escândalo do abastecimento d’água, no IBGE e muitos outros.
Um dos pontos mais trágicos da ditadura Vargas, e que hoje ainda perdura, foi o imposto sindical. Esta excrescência foi criada para financiar correntes operárias favoráveis ao regime de exceção à custa do salário de um dia de trabalho dos operários. A este respeito, assim se manifesta Affonso Henriques:
“O imposto sindical não era taxa nem imposto. Era uma extorsão ilegal arrancada dos trabalhadores, que produzia um rendimento elevadíssimo, cujo total exato seria impossível apurar, dada a sua clandestinidade. Sabia-se apenas que todo o dinheiro, que correspondia a um dia de salário de cada trabalhador e uma contribuição fixa de 30 a 5 mil cruzeiros (conforme o capital) por parte dos empregadores, era recolhido ao Banco do Brasil, que se tornou assim um organismo arrecadador, a usurpar as funções das coletorias e recebedorias federais, para que mais facilmente se praticasse o desvio do numerário arrecadado...
E a fiscalização da aplicação do dinheiro extorquido aos trabalhadores e aos patrões, a título de imposto? Por incrível que possa parecer, ou ainda que isso estarreça, a verdade é que a única fiscalização existente se resumia na remessa pelo Banco do Brasil à Comissão do Imposto Sindical e ao Departamento Nacional do Trabalho de um extrato da conta-corrente do respectivo sindicato, do qual mais nada constavam, como é óbvio, senão o quantum das retiradas e das entradas de numerário.
Daí a série de falcatruas que os jornais frequentemente noticiavam, e dos escândalos que constantemente arrebentavam, provocando inquéritos rumorosos, que atiraram alguns líderes trabalhistas na cadeia, quando em desgraça, pois os demais continuavam impunes. É que essa gente tinha as mãos livres e podia fazer do dinheiro o uso que entendessem.
Mas isso ainda não era nada. Vinte por cento do imposto sindical devia ser encaminhado às federações e confederações sindicais, para sua manutenção. O dinheiro desaparecia repentinamente, porque persistia a falta de fiscalização do seu emprego. Ficava no Rio de Janeiro, no Ministério do Trabalho, subtraído, guardado ou aplicado, não se sabe como. Havia uma Comissão do Imposto Sindical, que era presidida pelo próprio titular da pasta e constituída de membros que ele mesmo selecionava a dedo e nomeava. Dessa Comissão, não fazia parte nenhum representante do Ministério da Fazenda. Seus atos não escapavam ao reexame do Tribunal de Contas. Em suma: essa Comissão, que, em última análise, se resume à pessoa do Ministro do Trabalho, não fazia apenas a política demagógica do governo através do “peleguismo”, senão muito mais: fazia a própria política do Partido Trabalhista Brasileiro e contribuía para a prosperidade pessoal de muitos de seus membros.
Eis aí a situação em que havia caído o País.... Dos sindicados se exigia apenas que o dinheiro fosse retirado mediante cheques assinados pelo tesoureiro e visados pelos presidentes dos sindicatos. E eram quantias vultosas, milhões de cruzeiros que tomavam destinos que nunca eram os da conveniência dos pobres trabalhadores dos quais haviam sido ilegalmente extorquidos.... Era, pois, daí que vinha o dinheiro para as campanhas “queremistas”, para o suborno dos “pelegos”, para o pagamento de grossas propinas aos celerados da “guarda - pessoal”, para as “paradas trabalhistas” e, sobretudo, para as farras sem conta dos favoritos do Catete, bem como para manter a Rádio Mauá, o DIP e tantas outras organizações desse tipo.” (vol. 2, pgs 200-201)
Quando se compara com o veto do presidente Lula à fiscalização do Tribunal de Contas sobre o imposto sindical, podemos ver com quem esse governo se parece, e como é difícil, no campo da venalidade, criar algo de novo no Brasil.

Legislação Trabalhista e Previdência social

Em todos os compêndios de história, em todos os cantos do Brasil, se atribui a Getúlio Vargas a legislação trabalhista. A este assunto, assim se refere Affonso Henriques:
“Muito antes do Sr. Getúlio Vargas ter se apossado do poder, já se havia iniciado no país a legislação social trabalhista. A primeira dessas leis teve lugar em 1919, sobre acidentes de trabalho, que ficou intitulada “Lei Andrade Bezerra”. O seguro social teve início em 1923, com a “Lei Eloi Chaves”. Nesse mesmo ano foi criado o Conselho Nacional do Trabalho. Em 1926 e 1927 promulgou-se a lei de férias para os comerciários e industriários. Em matéria sindical, havia a lei de 1903 e a de 1907.
Poder-se-ia objetar, com justificadas razões, que a maioria da legislação social do Brasil veio depois de 1930. É verdade. A maioria dessa legislação veio depois de 1930, mas não por iniciativa do Sr. Vargas, antes pelo contrário, surgiu exatamente durante o curto período democrático que vigorou de 1934 a 1937, ou mais precisamente, a partir da Constituição de 1934, regime e Constituição que foram ferozmente combatidos pelo ditador, que não descansou enquanto não liquidou com ambos, com o golpe de estado de 1937.
Pois foi justamente com a Constituição de 1934 que o trabalhador brasileiro conseguiu a maioria de suas reivindicações, tais como o horário de 8 horas, seguro social obrigatório, sindicalização, regulamentação do trabalho de menores, de mulheres, etc. A lei de mais vasta aplicação em matéria social foi baixada em 1935 e recebeu o nr. 62, depois incorporada à Consolidação das Leis do Trabalho. Essa lei, que regula a despedida injusta e estabelece a indenização, nada teve a ver com o Sr. Getúlio Vargas. Foi votada pela Câmara dos Deputados e nem sequer foi sancionada por Vargas, mas pelo Sr. Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, que se achava interinamente na Presidência da República....
...No entanto, a própria criação do Ministério do Trabalho, que foi a única coisa que realmente se deve à Revolução de 30, foi obra exclusivamente de um homem: Lindolfo Collor, e esse homem morreu abandonado, no exílio, esconjurando Vargas. E como o Sr. Lindolfo Collor veio para o governo do Sr. Getúlio Vargas? Teria sido um elemento de livre escolha do Sr. Getúlio Vargas e, nesse caso, não mereceria o Sr. Vargas o crédito da escolha desse grande idealista? Nada disso. O Sr. Lindolfo Collor entrou para o gabinete do Sr. Getúlio Vargas a instâncias do Sr. Borges de Medeiros. Na realidade, o Sr. Collor havia sido um grande admirador e correligionário político do Presidente Washington Luis e nunca se aproximara muito do caudilho dos Pampas, do qual tinha profundas desconfianças e ressentimentos. Jornalista emérito, colunista do “Jornal do Comércio”, diretor de “A Pátria”, restaurador de “A Tribuna”, diretor de “A Federação”, redator-chefe de “O País”, ex-deputado pelo RS e líder da bancada do seu Estado, o Sr. Lindolfo Collor tinha razões de sobra para conhecer o Sr. Getúlio Vargas. Sabe-se que durante todo o tempo que o Sr. Collor esteve organizando o Ministério do Trabalho, nenhuma ajuda, nenhum estímulo recebeu do Sr. Vargas, que o julgava um utopista incorrigível. A curta permanência do Sr. Lindolfo Collor no Ministério do Trabalho se deve exclusivamente ao imenso prestígio que ainda gozava, naquela época, a figura veneranda do Sr. Borges de Medeiros.” (vol. 2, pgs. 207-209)
“Homem de princípios, depois do nefando assalto e empastelamento do “Diário Carioca”, verificado em 1932, o Sr. Lindolfo Collor abandonou definitivamente o cargo que exercia e regressou à sua terra, o Rio Grande do Sul, onde foi recebido debaixo de estrondosas manifestações de apreço de seus conterrâneos, conjuntamente com os Srs. João Neves da Fontoura e Maurício Cardoso, que haviam tomado atitude idêntica. Dessa data em diante, o Sr. Collor abandonou a política, passando vários anos no exílio, perdendo assim o Brasil um dos seus grandes líderes.
Na verdade, a previdência social no Brasil, por ação dos poderes públicos, teve início em 1923, quando pela Lei nr. 4.682 foram criadas as Caixas de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários. Em 1926 foi o âmbito da previdência social ampliado a todas as estradas de ferro do país e estendido às entidades portuárias e à navegação marítima. Note-se que essas Caixas estavam perfeitamente organizadas, com sua contabilidade escriturada de forma a fornecer, com rapidez, os dados sobre os contribuintes e facilitar assim a concessão dos benefícios. Não havia negociatas e ninguém, no governo, se lembrara de transformar aquelas instituições sagradas dos trabalhadores em ninhos de favoritos e afilhados, nem em focos de escândalos e roubalheiras. Tudo se fazia no silêncio que deve caracterizar os governos verdadeiramente democráticos, onde não pode prevalecer o culto de individualidades.” (vol. 2, pg. 210)
Para Henriques, a Previdência Social foi uma jogada esperta para Vargas criar empregos e sinecuras rendosas; estabelecer uma máquina burocrática gigantesca para fins políticos; conseguir vastos capitais para grandes negociatas, compra de terrenos, construção de apartamentos de luxo, jogatina, depósitos em bancos duvidosos, etc. Tanto assim, que a lei previa a contribuição tripartite em partes iguais para empregados, empregadores e Estado. Só que do Estado não saiu nada, ao contrário, foi o Estado que se apossou da Previdência para a farra dos financiamentos aos amigos. Considerando que os juízes só vieram a ter desconto da Previdência na reforma implantada por FHC, pode-se ter uma idéia de como os privilégios perduram neste país.
“As nomeações feitas por Getúlio para os Institutos foram, com raras exceções, erros palmares... Aristides Casado, um cavalheiro que nunca tinha ouvido falar de administração, nem mesmo de uma mera quitandinha.... quase arruinou completamente a organização de um dos institutos. A sua ignorância em matéria administrativa escandalizou de tal forma o país quando veio a público que, desconfiando de todo mundo, quis ele próprio lançar as contribuições e as despesas num pequeno livro ”Caixa”, à moda das estâncias do Rio Grande, de onde viera. A onda de protestos que então se levantou, forçou o ditador a substituí-lo. Os seus substitutos foram todos mais ou menos da mesma espécie. Houve até um caso, no Instituto dos Comerciários, da nomeação de estancieiro do Rio Grande que mal sabia assinar o nome e por isso os documentos tinham que ser postos sob sua mão e o lugar da assinatura devidamente indicado, por um auxiliar solícito.... Para se dar uma idéia do descaso do Sr. Getúlio Vargas pelas instituições máximas dos trabalhadores, basta citar a nomeação por ele feita do chofer de seu filho Lutero Vargas, Sr. José Cecílio Marques, para o alto posto de presidente do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes de Cargas (IAPETEC). A única credencial desse homem, além de ser chofer de seu filho, era a de ser um eficiente cabo eleitoral. Esse pobre homem, como era natural, nada entendendo do complexo mecanismo da instituição, meteu os pés pelas mãos e acabou sendo um joguete nas mãos dos espertos e velhacos que pululavam em torno do Instituto. A sua permanência no cargo foi, como é de ver, bem curta. Não tardou que caísse em desgraça com os Vargas. Pouco mais de um ano depois, recebeu recado do Sr. João Goulart, então Ministro do Trabalho, para que pedisse demissão. Esses recados se repetiram e o homem, tal como o ex-ditador (isto foi em 1952), não queria nem por nada largar o cargo. As veleidades da posição tinham-no cegado. Ao último desses recados impertinentes do Sr. Goulart ele respondeu: ‘A mão que me nomeou foi a mesma que nomeou você. E ela pode me demitir. Mas eu não peço demissão...’ “ (vol. 2, pg. 214) Esse foi o homem que os trabalhistas veneram como o “pai dos pobres”. E Affonso Henriques conclui com seu tino de contador para o ano de 1956: “enquanto no Brasil, para pouco mais de 4 milhões de contribuintes existiam 42.500 empregados nas tarefas da previdência, nos EUA, para 10 milhões de segurados existiam 21.594 empregados.... esse formidável exército burocrático está consumindo parte considerável das reservas que sustentam a solidez financeira da instituição em seus futuros compromissos aos contribuintes”.... (vol. 2, pg. 216)
E compara a cobrança de 2% do salário do trabalhador nos EUA contra 8% no Brasil. E de 2% dos empregadores nos EUA, totalizando 4% contra 18% a 24% no Brasil daquela época. E aqui o dinheiro da previdência foi utilizado para a compra de terrenos na periferia do Rio de Janeiro, criando uma especulação imobiliária danosa para a cidade e para as construtoras de então. Centenas de milhares de metros quadrados eram adquiridos numa competição que fazia subir, dia a dia, o preço dos terrenos, sem que, na realidade, houvesse valorização, pois as áreas, uma vez adquiridas, eram abandonadas à expansão dos capinzais.... Se uma instituição adquiria uma área ao preço de 2 cruzeiros o metro quadrado, outra logo era convidada a fazer negócio com o vizinho, por preço superior, pois os terrenos estavam escasseando. Com essa política anti-social de competição entre os Institutos e as Caixas, os terrenos no sertão da cidade maravilhosa passaram de cruzeiro e meio a dez e mais cruzeiros o metro quadrado, sem que, na maioria deles, se houvesse construído uma choupana sequer!” (Depoimento de Cupertino Gusmão, vol. 2, pg. 219)
Havia uma multiplicidade de institutos, chamados ora de Institutos (5) ora de Caixas (40). Eles criavam um aumento exorbitante das despesas administrativas, dificuldades e confusão na classificação dos contribuintes e até na terminologia das contas. Havia 45 presidentes, 45 vice-presidentes, 45 seções de contabilidade, veículos, móveis, utensílios, máquinas e por aí afora, cada qual operando por conta própria. Este exército de funcionários naturalmente servia de ponte entre a popularidade do tirano e o novo Brasil dos serviços públicos, das Marias Candelárias, dos carrapatos orçamentívoros e dos políticos calhordas que nunca mais largaram o osso chamado Brasil. Com a multiplicação dos cargos públicos,
“...muita gente acreditava nas promessas do Sr. Getúlio Vargas de que daria emprego a todo o mundo, reduziria o custo de vida, etc, o palácio do Catete vivia assaltado por uma multidão de pedintes de emprego, sem as necessárias credenciais de áulicos influentes. Decidiu-se então criar o regime moralizador do concurso, sem que se prejudicassem de maneira alguma os protegidos. A coisa funcionava de maneira muito simples: nomeava-se o protegido interinamente para qualquer função. Abria-se mais tarde um concurso para preencher a respectiva vaga. O protegido depois de passar meses, e às vezes anos, dentro da repartição, tinha tempo de sobra para aprender o mecanismo interno e preparar-se para o concurso, competindo assim em evidentes condições de superioridade com os que vinham de fora.... Se eram reprovados, depois de lavradas as respectivas demissões e nomeados os candidatos aprovados, a maioria dessa gente era novamente nomeada, não obstante terem dado prova flagrante de sua completa incapacidade para as funções. Voltavam pois à interinidade e recomeçava-se o círculo vicioso, isto é, abertura de novo concurso, inscrição automática, reprovação e renomeação. Se, depois de uma série de fracassos conseguiam esses felizardos ser aprovados, eles teriam o direito de contar, para o feito de antiguidade, todos os períodos de interinidade acumulados...” (vol. 2, pgs. 252-253)
Portanto, a atribuição a Vargas de “grande gesto”, de “grande sensibilidade”, de “grande sabedoria” por ter criado a Previdência Social demonstra o quanto de obscurantismo e ignorância são propalados por nossos historiadores, articulistas e políticos. Ora, o tirano nada mais fez do que por em prática uma política de criar enormes recursos monetários para a distribuição clientelística. Já nos primórdios da previdência, todos os homens em condições intelectuais de avaliar a questão securitária avisavam que ela iria quebrar se o seu custeio fosse indiscriminado. E de lá para cá o que vimos foi exatamente isso: golpes sobre golpes nos aposentados do setor privado para compensar ora o descalabro, ora o déficit crônico, a tal ponto que hoje em dia (2010) o contribuinte (particular, pois sim) não sabe mais como calcular o valor de sua aposentadoria, ficando a matemática a critério exclusivo dos burocratas da previdência.
A tragédia do serviço público brasileiro merece um pouco de paciência do leitor. Essas coisas não são comentadas em campanhas eleitorais e raramente aparecem na imprensa – quase sempre comprometida com as “verbas públicas”. Só mesmo quem viveu o serviço público pode saber por que o Brasil é um país atrasado. E não apenas isso, mas como o atraso se propaga indefinidamente. Veja por exemplo o que fala Affonso Henriques sobre o serviço público na época da ditadura Vargas:
“Além dos interinos, havia outra porta larga para a admissão de protegidos, dos ‘empistolados’. Trata-se dos ‘contratados’, admitidos como os interinos, sem prestação de provas. Como é lógico, só técnicos ou especialistas poderiam ser contratados. Surgiram então técnicos de todos os tipos e em todos os ramos de atividade humana. O “Diário de Notícias” de 20/4/44, portanto em pleno regime de terror do Estado Novo, publicou cautelosamente uma nota sarcástica sobre o assunto, de que transcrevemos os seguintes trechos:
“Temos à mão, por acaso, uma relação de contratos publicada em recente número do ‘Diário Oficial’. E é curioso observar que, por exemplo, uma professora de Desportos Aquáticos vai ter vencimentos iguais aos de um médico leprologista (Cr$2.600); que um técnico de encadernação vai ganhar o mesmo que um químico analista (Cr$1.800). A relação revela também a existência de um ‘Técnico Especializado em Medicina Administrativa e Seguros Sociais’. Salvante a redundância pelo menos aparente, da expressão “técnico especializado”, pois parece que o que distingue o técnico é exatamente a sua especialização, não seria desinteressante saber em que consiste essa ’Medicina Administrativa’, que não consta dos programas dos nossos cursos médicos. Aliás, também há ‘técnicos especializados em ... livrarias e edições’... (vol. 2, pg. 254)
O empistolamento se traduz no modus operandi do regime de contratação de funcionários. Praticado pelos piores governos da República, representa um enorme poder de aliciamento eleitoral enquanto uma reforma política não proibir funcionários contratados de exercer o voto – coisa que nem sequer se cogita nos meios pensantes brasileiros –, como única forma possível de acabar com a praga do empreguismo. O empistolamento divide a sociedade entre “afilhados” e “desafilhados” políticos. Aos afilhados tudo, aos sem um padrinho, a exclusão social. Eis o que conclui Henriques:
“A técnica para a sabotagem dos concursos e de seus candidatos era verdadeiramente diabólica. Submetiam-se os candidatos a uma guerra de nervos, pela demora e incerteza em chamá-los às provas, eliminando-os pelo cansaço, pela exaustão, pela descrença. Convocavam-se milhares de candidatos, obrigando-os a despesas, a perda de tempo, a alterações de vida e de saúde, na esperança de melhoria social ou econômica, e, depois, lhe arrebatavam as vagas existentes para as dar a quem não despendeu esforço, nem demonstrou preparo; sabotavam-se concursos para beneficiar os interinos apadrinhados e incompetentes, temerosos de perderem a sinecura conseguida. Criavam-se, ademais, cursos de aperfeiçoamento não para ilustrar servidores, mas para dar empregos e títulos a professores que nunca ensinaram e conheciam menos da matéria de que certos ouvintes de suas aulas. Mandavam-se para o exterior, por conta do Estado, para aperfeiçoarem conhecimentos inexistentes ou desnecessários, a alguns felizardos que viajavam como turistas e nada traziam de útil aos serviços públicos.” (vol. 2 , pg. 254)
Alguma semelhança com um governo que conhecemos?

O DIP

O Departamento de Imprensa e Propaganda foi uma das maiores invenções criadas pela ditadura para o culto da personalidade, o controle da imprensa e a desinformação. No tocante ao culto da personalidade, qualquer escritor de segunda, qualquer “cabeça de aluguel” que fizesse uma obra laudatória a Getúlio e enviasse ao DIP a teria publicada. Depois era só esperar a nomeação para uma sinecura no governo. Com isso, dezenas de livros, artigos e teses eram escritos e publicados. Outra especialidade do DIP era fazer de Vargas o autor das obras prontas. Estradas construídas em outras administrações – como a Rio-Petrópolis – passaram ao acervo das obras do ditador: “fotografias eram constantemente publicadas em livros de propaganda, principalmente os destinados ao estrangeiro, de maneira a dar a impressão de que havia sido construída pela ditadura.” (vol. 2 pg. 264). No combate à seca do Nordeste, se dizia que “durante toda a vida política do Brasil não se havia construído um só açude no Nordeste para o combate à seca e que Getúlio Vargas havia construído mais de 200...”
Alguma semelhança com um presidente que conhecemos?
Não obstante o controle da imprensa, a censura direta de notícias, editoriais e até notas nos jornais, a ditadura inventou a Hora do Brasil e encarregou o DIP da redação. Um amontoado de elogios e hosanas ao governo diariamente irradiados em cadeia nacional que perdura até hoje, comprovando que o Brasil só se reforma aos pedaços, aos poucos, e assim mesmo em alguns administrações acanhadas como os 2 períodos de governo de FHC.
A sabujice ao ditador chegou ao cúmulo de elegê-lo para a Academia Brasileira de Letras, em um espetáculo tão humilhante que alguns poucos “imortais” se recusaram a participar das sessões enquanto o ditador estivesse entre seus pares. Ora, sabidamente Vargas não tinha dotes literários, era intelectualmente obtuso, um fracasso em matemática e finanças, e um ignorante completo em matéria de administração. Mas para os brasileiros engajados nas benesses do seu governo, isto não era importante, como hoje em dia não é relevante que um apedeuta ocupe a presidência da república para aqueles educados na pedagogia do “oprimido”. As anedotas em torno dos dotes literários de Vargas eram generalizadas. Um jornalista assim se referia: “a veleidade do presidente parecia doença. Sabe lá o que é não possuir certa aptidão e ser apaixonado por ela? Eu, por exemplo, sou louco varrido por saxofone. Considero-o um instrumento divino, grave e melodioso, mas nunca pude tocar duas notas certas”.
O diabo é que para ser membro da Academia é preciso que alguém morra. E Vargas queria a veleidade da cadeira muito antes que alguém morresse. O tempo corria e nada de mortes. Até que um belo dia, por um descuido indesculpável, um imortal passa para o outro mundo. Para que as coisas não ficassem chatas e se evitasse a qualquer custo a competição pela excelsa vaga, os amigos literatos do tirano promovem uma reforma nos estatutos da Academia para que o indicado pudesse ser admitido por aclamação em vez de eleição. E lá vai Vargas vestir o fardão dos imortais e receber os aplausos.

A Queda de Vargas

Finda a Segunda Guerra em 1945, o Brasil desperta para a vitória da democracia e do liberalismo e começa a levantar-se. Os mais célebres exilados de Vargas (Armando de Sales, Octávio Mangabeira e Paulo de Nogueira Filho) começam a ganhar habeas corpus do Supremo Tribunal, coisa que lhes foi negada nos anos de chumbo. Professores antes demitidos, são anistiados, a UNE convoca uma campanha pela anistia promovendo comícios por toda a parte. A opinião pública força Vargas a fazer concessões. Os presos políticos são libertados e, para espanto geral, eis que Prestes sai da prisão apoiando seu carrasco.
Foi um dos maiores choques na opinião pública e um acontecimento histórico que denegriu a tal ponto o movimento comunista brasileiro que nunca mais o tornaria respeitado, ao menos enquanto estivesse comandado por Luis Carlos Prestes.
A coisa se passou da seguinte forma: estando preso e com imposição de silêncio, Prestes recebe a visita de João Alberto (seu velho companheiro dissidente da coluna, a quem ele dizia peremptório que as pessoas tomassem cuidado com João Alberto por causa de sua desonestidade), agora chefe de polícia do Distrito Federal. Ninguém soube nada da conversa. Como Getúlio, Prestes passou 9 anos na prisão e nunca foi capaz de escrever uma linha sobre seu testemunho pessoal e experiências políticas. Nada transpirou dessa conversa, exceto que Prestes foi imediatamente liberado e “logo que saiu [26/4/45], prestou declarações à imprensa favoráveis ao ditador, declarando que Vargas deve continuar à testa do governo, estarrecendo todo o mundo” (vol. 2, pg. 321).
“Como se justifica que esse homem, o ‘cavaleiro da esperança’, o ídolo das massas, o comandante da ‘Coluna Prestes’, o homem, que, em 1930, recusou o cargo de Ministro da Guerra da ditadura; que, naquela época, num vibrante manifesto ao povo, não só denunciara Getúlio Vargas como traidor do povo, como também a vários próceres daquela revolução; que em 1935, no famoso manifesto de 5 de julho, concitava as massas e os militares a se levantarem contra o ditador; que, depois de preso, recusou-se altivamente a ser julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional ...; que teve a esposa presa e, não obstante o adiantado estado de gravidez, deportada para a Alemanha, onde Vargas sabia perfeitamente que ela seria assassinada nos campos de concentração (como o foi); como se justifica que um homem, depois de tudo isso, venha a público e se declare favorável ao ditador? “(vol. 2, pg. 321) Eis aí a personalidade de Prestes. Essa atitude provocou mais baixas em seu partido do que se poderia imaginar. O pessoal de esquerda, que tinha se sacrificado na luta contra a ditadura, com não poucas sequelas do prolongado regime de Vargas, de repente tem que engolir o apoio de Prestes ao ditador conchavado com seu chefe de polícia em um encontro na cela do presídio?!
Estava claro que Vargas tinha colocado em marcha mais um plano continuísta, agora com apoio dos comunistas, já que o fascismo tinha sido derrotado. “Vargas repetia-se a si mesmo com pasmosa insistência e até monotonia. O Plano a ser posto em ação seria o mesmo levado a efeito em 1933 e 1934 quando, premido pelo movimento constitucionalista de São Paulo, viu-se obrigado a aceitar a volta do regime democrático no País. Isto é, a eleição de uma assembléia constituinte com a maioria dos respectivos membros escolhidos a dedo pelos interventores, que não mais eram do que títeres e depois eleger-se, não pelo voto direto do povo, mas por essa assembléia constituinte.” (vol. 2, pg. 324)
Considerando que Hitler se suicidara em 30 de abril, vale à pena acompanhar os acontecimentos cronologicamente. Em 7 de abril, quando o destino da Alemanha estava selado, Prestes envia um telegrama a Vargas (que estava em Petrópolis) dizendo congratular-se com ele pelo restabelecimento de “relações com o heróico povo soviético. São gestos desta altura e fatos assim concretos e de tão evidente cunho democrático que os patriotas reclamam de V. Excia., na sua qualidade de Chefe da Nação e comandante supremo de suas Forças Armadas, .... Urge agora para que se restabeleça a confiança popular nas inclinações democráticas de V. Excia, a decretação imediata da anistia, com exclusão do meu caso pessoal, se necessário, e que seja assegurada, sem maior demora, a livre organização de partidos políticos para que estes, por seus representantes autorizados, possam intervir na redação de uma lei eleitoral capaz de assegurar as eleições livres e honestas que reclama a nação....”(vol. 2, pg. 325)
Este telegrama de Prestes vinha no bojo das manifestações que estavam ocorrendo no país. Em fevereiro, José Américo (candidato em 1938) faz um violento discurso contra a ditadura. O jornal “Correio da Manhã” publica integralmente desobedecendo a censura. Em março, Getúlio no seu estilo gaudério resolve convidar Dutra para ser seu sucessor sabendo que ele iria declinar. Para espanto de Getúlio, Dutra aceita em 13 de março. Nesse meio tempo, a oposição se reúne em uma coalizão que denomina de União Democrática Nacional (UDN). A situação se estrutura fundando o Partido Social Democrático (PSD), enquanto os trabalhistas fundam o PTB.
Em 14 de abril João Alberto visita Prestes na prisão; em 17 de abril o Brigadeiro Eduardo Gomes dá uma entrevista dizendo-se candidato à sucessão presidencial pela UDN; em 18 de abril, Vargas decreta a anistia-geral; em 26 de abril Prestes dá a entrevista apoiando Vargas para espanto geral.
Em 1º de maio (já com a notícia da morte de Hitler circulando pelo mundo) Getúlio faz o discurso do dia do trabalho ainda no velho estilo fascista. Em 11 de maio regressa do exílio Otávio Mangabeira.
O quadro parece ameaçador. Milhares de apaniguados nos sindicatos, nas Caixas de previdência, no funcionalismo inchado de partidários, todos querem preservar os cargos. Surge o movimento queremista, uma denominação dos primeiros brados gritados em coro em um comício no dia 20 de agosto de 1945 que diziam: “Queremos Getúlio”, “Queremos Getúlio”, gritavam nos degraus da escada do Palácio Guanabara, enquanto Getúlio aparecia para provocar com sua incrível técnica de despistamento: “ –‘já fazem 15 anos que estou no poder. Vocês não acham que tenho direito de descansar?” ‘- Não, não! V. Excia não pode nos abandonar!’, estertoram os pelegos” (vol. 3, pg. 329). Os queremistas deixam o palácio e em manifestação partem para o Largo do Machado onde fazem outro comício, depois pela Rua do Catete apedrejam a Faculdade de Direito, depois chegam no centro da cidade sempre em passeata, fazendo algazarra em frente às redações dos principais jornais sem que nenhum policial interviesse.
Esta situação contaminou todo o país. Manifestações pelas eleições começaram a ocorrer nas capitais, com comícios de ambos os lados. No campo institucional, criou-se uma confusão legal para convocar eleições. Pelo decreto nr. 7.586 de 28 de maio de 1945, ficou disposto que as eleições para presidente da república se realizariam no diz 2 de dezembro e as de governadores e representantes das assembléias legislativas estaduais, no dia 6 de maio de 1946 (cinco meses depois). Ocorre que com o desenrolar dos acontecimentos Vargas percebe que o novo presidente da República poderia tomar posse e destituir todos os interventores antes das eleições de maio de 46, provocando uma reviravolta eleitoral. Tinha cometido um erro que precisava se corrigido. Para isso, baixa o decreto-lei 8.063 antecipando as eleições para governadores e representantes das assembléias estaduais para a mesma data da eleição presidencial. Ele ainda procurava uma brecha para se recandidatar sob o calor das massas queremistas.
A onda de protestos que se seguiu foi a gota d’água para a deposição de Vargas. O decreto de Vargas dava poder aos interventores de elaborar as constituições estaduais por decreto. Com isso ficava claro que eles preparariam as eleições ao seu modo, que era o que Vargas queria. Era mais do que evidente que todos os interventores tinham a faca e o queijo na mão para serem reeleitos. A temperatura política começou a subir violentamente.
Além disso, Vargas havia editado outro decreto-lei de nr. 7666 em que “instituía poderes absolutos para intervir em todas as empresas comerciais, industriais, agrícolas e similares, inclusive editoriais, jornalísticas e de radiodifusão, bem como expropriar qualquer empresa, fixando-lhe o valor de seus bens e pagando-lhe a importância da avaliação em títulos do Tesouro Nacional amortizáveis em 40 anos. O mesmo decreto privava de toda a ação legal as empresas eventualmente afetadas e estabelecia que não poderiam recorrer à Justiça e não teriam direito a nenhum amparo judicial ou mandado de segurança”. (vol. 2, pg. 336)
Esta lei foi chamada “Lei Malaia” e procurava manter Vargas a todo custo no comando do Estado. Logo os candidatos concluíram que não poderiam participar das eleições com Vargas no Poder. Em uma reunião dos generais, em que participaram Góis Monteiro, Dutra (candidato) e Eduardo Gomes (candidato), juntamente com todo o alto comando, decidiram que só haveria uma solução para a crise institucional: a deposição de Vargas. Com isso Góis Monteiro passa ao comando supremo do Exército, a Marinha e Aeronáutica lhe hipotecam apoio e a notícia é levada a Vargas, que propõe várias fórmulas conciliatórias, todas rejeitadas. Na noite de 29 de outubro de 1945, numa conferência com o general Cordeiro de Farias, o ditador decide renunciar.
Como combinado, no dia seguinte assume o governo provisório o Presidente do Supremo Tribunal José Linhares em uma pequena cerimônia. A ditadura chegava ao fim.

O governo Dutra

O que acontece com uma ditadura de 8 anos em que o governo havia sido aparelhado por todos os escalões com os apaniguados de Vargas, a ponto de confundir o Estado com o próprio getulismo? Como ficariam as instituições assoberbadas de corruptos, negocistas, aproveitadores, chefetes inescrupulosos, auxiliares venais, funcionários privilegiados, pelegos piqueteiros, banqueiros enriquecidos com o dinheiro público, industriais cevados nas mamatas das reservas de mercado, fornecedores locupletados com negociatas milionárias com departamentos e órgãos do governo?
Essa gente arregalou os olhos e tratou de por panos quentes na situação. Enquanto a opinião pública esclarecida, se não sofredora direta, ao menos humilhada pelos desmandos do tirano clamava para que os crimes praticados durante a ditadura fossem esclarecidos e seus autores punidos, começando pelo presidente, a reação não se fez por esperar.
Embora Góis Monteiro em suas memórias jure de pés juntos que a cúpula militar queria punição para Vargas, esta não aconteceu. Com apoio dos comunistas, que lutavam pela constituinte e não pela sua punição, transformados então em força contra-revolucionária, Vargas deixara o poder sem que lhe faltassem aliados para manobrar para que tudo ficasse por isso mesmo.
“A não punição do Sr. Getúlio Vargas fez com que o mesmo viesse, mais tarde, flagelar o País por mais quatro anos, e, mesmo depois de sua morte, lançar a discórdia e a confusão, das quais até hoje o País ainda não se livrou integralmente” (vol. 2, pg. 351). Estas observações são de 1958. Em 2010, o ranço do getulismo está ainda lançando miasmas na organização sindical obrigatória, nas estruturas partidárias meramente oportunistas, no modo de agir burocrático e arrogante do funcionalismo, no descalabro da previdência, no apartheid social produzido por leis iníquas, no empreguismo que estoura orçamentos, no concessionismo que compra votos, no assistencialismo que não liberta da pobreza e todas as formas, métodos e procedimentos de estelionato eleitoral.
Vargas assina um manifesto de despedida e se manda para sua fazenda em São Borja. De lá, começa a receber visitas de correligionários e amigos que lhe mantém na mídia. Enquanto isso, o governo provisório de Linhares revogava o decreto 8.063. Por sua vez, o PTB, enriquecido com os vastos financiamentos do ditador, anunciava em página inteira diariamente em pelo menos seis jornais da capital da república, a propaganda partidária em favor de Vargas. As rádios igualmente divulgavam incessantemente de manhã à noite declarações, jingles e propaganda do regime deposto.
Vargas sabia que a escolha de Dutra para substituí-lo era a sua garantia de impunidade. Se Dutra abrisse processo contra Vargas, seria igualmente acusado de suas preferências pelo nazismo no vai-e-vem da guerra. Neste caso, seu papel exigia uma postura enérgica e de rompimento com o passado. Porém, sua personalidade retraída mantinha-o preso na vacilação e no imobilismo. Nessa situação, Vargas se candidata a uma vaga pelo senado, e como na época a eleição de senador não era federalizada, termina eleito com os votos de vários estados.
A eleição de Vargas senador foi um alerta geral para as forças progressistas e democráticas do país. A opinião de alguns periódicos era a de que o Tribunal Eleitoral deveria negar o registro da candidatura, não só de Getúlio, como de todos os antidemocratas do passado, como Prestes e Plínio Salgado.
Com o Congresso restabelecido, começam a aparecer as falcatruas da ditadura. Um dos escândalos mais notórios foi o do Banco Continental, comandado pelo sinistro Hugo Borghi. Este paulista, comerciante quebrado, emergiu para o mundo das finanças ao convidar um genro de Getúlio para um cargo na instituição e dali fazer negociatas com o governo no negócio do algodão. As negociatas funcionavam assim:
“Consoante contrato firmado entre o BB e o governo, o banco daria, por conta do Tesouro, o dinheiro a quem apresentasse recibos de depósito de algodão em armazéns gerais. O tomador do dinheiro ficava com o direito de vender o algodão ao preço que encontrasse. Se achasse preço maior do que o recebido do BB, ele venderia; caso contrário, se o algodão baixasse por qualquer circunstância, teria a faculdade de ‘largar a mercadoria’ como se dizia na gíria comercial, deixando o algodão com o banco, que o transferiria imediatamente para a conta do governo. Em suma, se prejuízo houvesse, nunca seria atribuído ao tomador do dinheiro, nem ao banco, mas sempre à União, isto é, ao eterno sacrificado: o povo.” (vol. 2, pg. 359) O dinheiro era levantado por simples ligações telefônicas do Ministro da Fazenda, o incompetente Souza Costa, cupincha de Getúlio e mancomunado com este nas negociatas com a finalidade de financiamento eleitoral da volta do ditador. Os recibos de depósito de algodão eram fornecidos pela Companhia Campineira de Armazéns Gerais, cujo proprietário era Hugo Borghi e a empresa responsável pela aquisição do algodão era a Companhia Nacional de Anilinas, da qual era diretor e proprietário, isto é, o mutuário e o depositário eram a mesma pessoa. Hugo Borghi comprava de si mesmo com os recursos do BB. Este escândalo estourou no Congresso quando se soube das transferências do BB de 10 milhões em 9/5/45, mais 10 milhões em 16/5/45, mais 10 milhões em 21/5/45, totalizando 30 milhões de cruzeiros em 3 semanas. O apetite, no entanto, redobrou, como é costume no Brasil, e no dia 29 de maio de 1945 houve uma transferência de 20 milhões e em 13/6/45 mais 15 milhões, totalizando portanto 65 milhões de cruzeiros.
A quadrilha montada por Hugo Borghi com o genro de Getúlio (Rui da Costa Gama) emergiu espetacularmente do nada para uma grande instituição financeira ao conseguir, mediante simples solicitação por carta, a preferência no recebimento dos depósitos dos fundos das contribuições do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários. Era o dinheiro da previdência social fluindo para os bancos dos aventureiros, uma prática que persiste até os dias atuais, se o leitor não estiver esquecido do recente caso do Banco Santos.
Na investigação levantada pelo inquérito aberto pelo Congresso constatou-se que a direção da campanha queremista era financeiramente comandada pelo genro de Getúlio e que o total de retiradas de Hugo Borghi do BB em 13 de novembro de 1945 chegou a 250 milhões de cruzeiros.
A comissão de inquérito designada pelo Sr. José Linhares, quando interinamente na Presidência da República, para apurar o caso, entregou em 4 de junho de 1946 ao presidente Dutra o relatório final dos trabalhos. A comissão concluiu pela culpabilidade não apenas de Hugo Borghi, como também de Souza Costa, ex-Ministro da Fazenda, e Souza Mello, diretor da Carteira de Crédito Agrícola do BB. Dutra tinha em mãos um processo capaz de levar Getúlio à cadeia. Em vez de assumir, passou para o Ministério da Justiça como se fosse uma batata quente, de onde esfriou para sempre.
Mas Hugo Borghi não era um pilantra somente na esfera federal. O assunto não tinha ainda morrido quando surge de São Paulo a notícia de diversas irregularidades nas empresas de Borghi e de débitos com o fisco estadual que ultrapassavam 300 milhões de cruzeiros, quantia superior às retiradas do BB. Como se vê, ele atuava em todas as esferas. Enquanto isso, Vargas continuava discursando, acusando as finanças internacionais pela sua derrubada, arrogando a si todas as obras públicas do País, especialmente as estradas de rodagem e de ferro, a salvação da classe operária da miséria com a criação do salário mínimo, das leis trabalhistas e da previdência social.
Para preparar o caminho de sua volta ao poder era necessário dar uma explicação para os fatos da governança passada. Assim, o golpe de 37 foi feito para salvar o Brasil do nazismo. Já não era o comunismo como tinha apregoado em 10 de novembro de 1937 com o famigerado Plano Cohen. Agora em aliança com os comunistas, a ameaça era mesmo o nazismo. As colônias estrangeiras através dos quintas-colunas eram uma tentativa de fragmentar o Brasil e por isso o golpe era justificado.
Os discursos no Senado eram pronunciados sem concessão de apartes, com retirada rápida antes que as réplicas dos outros senadores pudessem colocar em risco suas afirmações. De fato, como senador Vargas aparecia raramente. Preferia ficar articulando nos gabinetes sua volta ao poder. Não lhe faltavam recursos nem apoio. Era só uma questão de esperar tirando proveito das dificuldades em que tinha deixado o país.
Para isso, em maio de 47 lê um discurso criticando a situação econômica do país, sem contudo deixar de elogiar Dutra na velha tática de “morder e soprar”. De um lado criticava, de outro elogiava para não irritar o governo. Se irritasse o velho e soturno Dutra, este poderia lhe cassar os direitos políticos e entregá-lo a justiça. De outro, precisava preparar seu retorno e essa atitude significava agradar o eleitorado.
Ora, Vargas havia cassado e exilado diversos homens públicos. Por que o mesmo recurso não era aplicado contra ele? Por que Dutra se mostrava indulgente com a mais cruel ditadura da história brasileira? Temia os seus asseclas? Mas um general não tem o dever de enfrentar os inimigos da pátria? E não é natural esperar desordens de uma canalha nutrida com dinheiro público ou extorquido do povo? Foi o que de fato aconteceu sem que se chegasse ao justiçamento do ditador.
“Em 29, 30 e 31 de agosto de 1946 estalam gravíssimas desordens em virtude da crise de alimentos. O povo ignorante, iludido pela propaganda da ditadura, ataca em massa os estabelecimentos comerciais da cidade, saqueando-os, destruindo-os, durante 3 dias consecutivos, até que a cidade fosse ocupada militarmente pelo exército, sob o comando do general Zenóbio da Costa. Houve numerosos feridos entre civis e militares. A destruição de gêneros alimentícios, o saque, os incêndios, vieram agravar ainda mais a crise alimentar, cuja existência se devia quase que exclusivamente aos erros praticados por Vargas, ou seja, o mesmo homem que agora insuflava a baderna. À testa das massas alucinadas se viam, sistematicamente, os execrandos membros da ‘guarda-negra’ do ditador, atiçando, instigando, insuflando, como verdadeiros demônios, esse quebra-quebra infernal.” (vol. 2, pg. 386)
Em maio de 1947 ocorre um levante dos sargentos de um dos regimentos da Vila Militar. Esses sargentos pretendiam depor Dutra e recolocar Vargas no poder. Chegaram a organizar uma comissão para se encontrar com Vargas, sendo recebidos pelo nefando Gregório Fortunato. De ditador Vargas passara a conspirador. Mas no senado fazia discurso no tom de quem se opunha a toda e qualquer desordem e agitação, exatamente o contrário do que praticava nos bastidores.
Com a intentona da Vila Militar fracassada, Vargas tenta levantar o Rio Grande do Sul e também nada consegue. Não satisfeito iniciou uma campanha contra Dutra no parlamento, dizendo que Dutra era devedor de si do mandato, das promoções de tenente a general. Logo vem a eleição para governadores. Em São Paulo, Vargas apoia Borghi, porém Adhemar também se inscreve, além de Almeida Prado e Mario Tavares. Os resultados são alarmantes: Adhemar vence, seguido de perto por Borghi. Almeida Prado e Mario Tavares ficam em distantes terceiro e quarto lugares. Era sinal inequívoco de que a ditadura não tinha ensinado ao eleitorado paulista o caminho das virtudes políticas.

A campanha presidencial de 1950

Com montanhas de dinheiro à disposição, Vargas inicia um plano sebastianista de retorno ao poder. Militantes do PTB, na qualidade de turistas políticos, percorriam o país pregando o advento do novo salvador, do pai dos pobres, do homem que haveria de varrer com a carestia e a fome. Em Carazinho, numa entrevista à imprensa, seu filho, Manuel Vargas disse “que o povo brasileiro era um rebanho de gado, o Sr. Getúlio Vargas o dono da estância, não passando o General Dutra de um simples capataz dessa fazenda de criação” (vol. 2, pg. 449). A declaração vazou para o país e provocou uma saraivada de manifestações. Foi a partir daí que apareceu a expressão “currais” eleitorais.
Nesse meio tempo Adhemar de Barros, investido na posse do governo paulista, prepara sua campanha ao Catete. Para isso compra rádios em Santa Catarina e Porto Alegre, tipografia em São Paulo, cria agências do Banespa em outros Estados, com gerentes políticos escolhidos a dedo. Ocorre que o vice-governador, eleito separadamente, era Novelli Junior, o candidato de Dutra. Se Adhemar deixasse o governo para desincompatibilizar-se 6 meses antes, Novelli Junior assumiria e acabaria com a máquina montada por Adhemar em poucos dias. Com isso, Adhemar retira sua candidatura ao pleito. Getúlio por sua vez, dá declarações em fins de maio de 1950 dizendo que demitira Adhemar da interventoria em São Paulo por causa da sua desonestidade. Não obstante, manda um bilhete a Adhemar pedindo seu apoio nos seguintes termos:
“Meu Prezado Amigo: Depois de um longo exame da situação do Brasil e da minha posição na política nacional, resolvi aceitar o lançamento da minha candidatura. Está o meu prezado amigo autorizado a lançar o meu nome onde e como julgar conveniente. Estou disposto à luta. Ela será árdua, mas espero que se desenvolva dentro de um campo de elevado patriotismo. Estamos unidos para a redenção do Brasil.” (vol. 2, pg. 451) Na outra ponta aparece o nome de Eduardo Gomes pela UDN para a presidência, e também de Cristiano Machado (PSD) e João Mangabeira.
O movimento estudantil inicia uma intensa mobilização contra Vargas em todo o país. O getulismo estava tão arraigado na administração pública que os estudantes que fixavam cartazes nos muros do Rio eram presos por ordem do prefeito. Os comunistas, apoiadores incondicionais de Getúlio, insultavam a mocidade acusando-a de vendida ao imperialismo norte-americano. Em 13 de outubro realizou-se um imenso comício na Praça Floriano, convocado pelos jornais. Sem dinheiro, mas com uma imensa disposição de lutar contra o getulismo, os estudantes assumiram a vanguarda da mobilização nacional criando o Movimento Nacional Popular.
Foi uma campanha desigual. De um lado, o Brasil espontâneo, com poucos recursos, de outro lado, Getúlio com seus milhões. Em seu aniversário de 19 de abril de 1950, Vargas oferece um churrasco em sua fazenda de São Borja de dimensões pantagruélicas, pois foram abatidos “100 bois, 60 carneiros e um número incalculável de animais menores” (vol. 2, pg. 456).
“Justamente no auge da campanha eleitoral de 1950, fizemos uma viagem ao Brasil procedente dos Estados Unidos, para melhor observarmos essa campanha. Em Belém do Pará, na praça principal, dependurado por um cabo entre 2 postes, um alto-falante repetia de 15 em 15 minutos slogans como os seguintes: ‘Trabalhadores do Brasil: Getúlio Vargas não é candidato de partidos; Getúlio Vargas é um candidato do povo!’; ‘É preciso que o Brasil acabe com os tubarões, antes que os tubarões acabem com o Brasil’; ‘No governo do Sr. Getúlio Vargas não haverá privilégios, os trabalhadores subirão com ele os degraus do Palácio do Catete’ etc. O objetivo em mira não era falar à razão, ao bom-senso do povo, mas à sua emotividade. Era, em suma, aproveitar-se ao máximo da cegueira mental das classes menos favorecidas da fortuna e explorá-la ao máximo, a velha tática de todos os demagogos.” (vol. 2, pg. 458) Em todo o Brasil os alto-falantes – ligados às emissoras queremistas – foram instalados nas praças de maior movimento tocando música intercaladas com slogans favoráveis a Getúlio. No famoso discurso no estádio do Vasco em 12 de agosto de 1950, a massa ululava a qualquer palavra do ditador, até mesmo quando este traiu dizendo-se inimigo da democracia e um ex-ditador. Depois do comício, os queremistas saíram em passeata pela Praia do Flamengo em sua maioria pobres operários e empregadas domésticas cantando “Getúlio, Getulinho” numa repetição interminável, enquanto “2 crioulos fortes, conduzindo enormes garrafões de cachaça, distribuíam gratuitamente o ‘precioso’ líquido a todo mundo que o pedisse” (vol. 2, pg. 460)
A tática de Vargas eram as promessas mirabolantes, como baixar o leite de 4 para 1 cruzeiro, os alugueis de 1000 para 600, um terno de roupa de 1500 passaria a 600 cruzeiros, e por aí afora. Como sua meta era desvalorizar a moeda para atender os compromissos com os exportadores, naturalmente que os preços iriam subir em vez de baixar. Nesse momento, se diria estar com as mãos amarradas, que o Congresso não lhe deixava trabalhar livremente, que os tubarões eram os verdadeiros culpados pelo aumento dos preços etc., até que criasse a atmosfera para o fechamento do parlamento e a reinstalação da ditadura.
“Os petebistas, a guarda-negra (já inteiramente restaurada e aumentada) e os pelegos iniciariam uma campanha de agitação tendo por palavra de ordem a frase – ‘Libertemos Getúlio’, isto é, ‘Libertemo-lo do Congresso e da imprensa livre...” (vol. 2, pg. 461) O resultado das eleições garantiu (arredondando) 3.850.000 votos a Vargas contra 2.342.000 a Eduardo Gomes e 1.700.000 a Cristiano Machado, tendo João Mangabeira irrisórios 10 mil votos. Foi um resultado que estarreceu a opinião pública porque a grande vitória de Vargas foi em São Paulo, justamente o estado que ele mais tinha prejudicado desde 1930. Vargas obteve em SP quase 1 milhão de votos contra 350 mil de Eduardo Gomes e 150 mil de Cristiano Machado. A razão para isso era o apoio de Adhemar de Barros e Hugo Borghi. Considerando que nessa época os analfabetos não votavam, Henriques atribui à vergonhosa derrota das forças progressistas em São Paulo ao semi-analfabetismo, ao eleitor que só sabe assinar o nome. A outra causa foi o papel de Dutra, completamente indiferente às maquinações de Vargas. Dutra tinha a obrigação de cassar os direitos políticos de Vargas com base nas revelações do inquérito realizado pelo Congresso a respeito das negociatas do algodão com o Sr. Hugo Borghi. Mas não o fez, temendo os amigos de Vargas que eram agora os amigos dele. Os postos-chave da administração e do congresso estavam ocupados por getulistas. Nesta situação, Dutra era a personalidade mais incapaz para ser o sucessor de Vargas. E de fato isto ficou comprovado com seu retorno triunfal ao Catete.
O Estado de São Paulo, em um editorial de 7/10/1950 denominado ‘A Grande Ilusão’ assim se referia à futura vitória do ex-ditador:
“O proletariado afaga a esperança de que Getúlio Vargas lhe dará riqueza e bem-estar, em chuvas de maná que cairá do céu ao toque mágico do demagogo.... Mas o certo é que [o governo Vargas] falhará e os mais negros dias estão reservados para o Brasil, com um governo de expedientes, um governo flácido, um governo inepto, que irá de desastre em desastre até a catástrofe final.” (vol. 2, pg. 465)

O Segundo Governo Vargas

A catástrofe anunciada pelo editorial do Estadão foi efetivamente realizada. O governo Vargas foi loteando os órgãos públicos com apaniguados, a corrupção se tornou uma praga, o oportunismo era a ordem do dia, as vantagens pessoais o objetivo corriqueiro, e o Brasil mergulhou em um processo inflacionário. Neste segundo governo aparecem as figuras que depois seriam as herdeiras do getulismo, como o ferrabrás Brizola, o malquisto batoteiro João Goulart, o sucessor Juscelino e o jovem iniciante Tancredo Neves.
Mas não se pense que Vargas agradava a todos: ao contrário, até mesmo ao PTB Vargas conseguia desagregar as iniciativas do partido no sentido de estabelecer uma doutrina trabalhista de cunho socializante, dada a situação comprometedora dele com os banqueiros internacionais.
“Na constituição de seu ministério, Vargas aplicou uma nova modalidade dessa tática [de atirar uns contra os outros]. Como não podia dar as pastas a todos que as desejavam (e eram muitos), adotou a atitude maquiavélica de declarar todos os seus ministros em caráter temporário, dando ao gabinete o título de ‘ministério da experiência’. O resultado dessa política foi, como era de esperar, desastroso para o interesse público. Os ministros, com a espada de Dâmocles sobre suas cabeças, pouco ou nada faziam. Sentiam-se sem autoridade, manietados, humilhados e inseguros. Mas Vargas rejubilava-se com a subserviência dos que pretendiam substituí-lo, e que vinham, escabujantes, se atirar a seus pés, cercando-o de engrossamentos, de adulações as mais abjetas e servis, na ânsia de obterem um desses ministérios.” (vol. 3, pg. 62)
“O Brasil, que durante todo o período do governo do General Dutra havia entrado num regime de calma, de ordem, de progresso, de estabilização do custo de vida e de relativa abundância, logo que o Sr. Getúlio Vargas assumiu o governo, transmudou-se integralmente. As desordens e a agitação se espalharam novamente pelo País inteiro. Boatos alarmantes lançavam o pavor nos lares e nas ruas. Greves deflagravam por toda a parte. A inflação a jato contínuo, forçando a alta do custo de vida, intensificava ao máximo a agitação no seio do proletariado, o qual, devidamente mistificado pelos pelegos e agitadores dos porões do Catete, atribuía essa situação às classes conservadoras. O próprio presidente da República, abertamente, claramente e sem rebuços, concitava o povo a lançar mão das armas e da violência e a fazer justiça pelas próprias mãos. O Brasil foi mergulhado num verdadeiro caos, num pandemônio, em que todos queriam mandar e ninguém obedecia.” (vol. 3, pg. 65)
Espelhando-se no governo de Perón na Argentina, Vargas mantinha fortes laços com os asseclas de Perón, pois conduzia o mesmo tipo de governo: populismo e demagogia ao máximo, combinados com concessões às massas com grande espalhafato, e uma desordem econômica motivada por uma política de privilégios a determinados grupos de banqueiros e industriais que se sucediam em escândalos e prejuízos ao tesouro, pretensamente escoimados por ataques genéricos aos tubarões. A técnica de culpar os tubarões pelo fracasso das políticas de governo – de resto seguidas sem nenhum planejamento consistente, mas única e exclusivamente ao léu do improviso – trazia o benefício de jogar os pobres contra os ricos, criar a agitação básica para a preparação de mais um golpe institucional para sua perpetuação no poder aos moldes de 1937.
Ocorre que o país ainda lambia as feridas do golpe de 37 e não dava créditos às agitações, perturbações da ordem e denúncias de conspirações comunistas que volta e meia medravam pela imprensa. Mesmo assim, Vargas insistia em seu propósito de implantar uma “república sindicalista” aos moldes de Perón. Para se perpetuar no Poder, Vargas promove uma reforma constitucional.
“Os primeiros arranjos e entendimentos foram no sentido de prorrogação dos mandatos somente dos deputados. Essa idéia diabólica se baseava no princípio de que, se os parlamentares cometessem a fraqueza de reformar a Constituição em seu próprio benefício, a fim de se manterem no poder, essa fraqueza os impossibilitaria moralmente de se oporem a que se empreendesse outra reforma prorrogando igualmente o mandato do Presidente da República, além de contribuir grandemente para a desmoralização do regime democrático. De uma assentada, dar-se-iam dois rudes golpes no regime.” (vol. 3 pg. 77) Mas a estratégia fracassou depois de 3 tentativas. Felizmente o Congresso tinha suficiente clareza do que se preparava e Vargas foi obrigado a adotar novas iniciativas. Em 1953 ocorreram episódios de greves operárias no Rio de Janeiro, conduzidas por pelegos e elementos do PTB, tendo por trás a guarda-negra do palácio. As greves dos operários contra a carestia e as perdas inflacionárias logo migraram para os portos com a paralisação de 80 mil marítimos. Ao mesmo tempo, numerosas firmas norte-americanas manifestaram ao Sr. Amaral Peixoto (genro de Getúlio) quando em viagem a Nova York, que em face das greves e desordens que ocorriam estavam suspendendo investimentos no Brasil. Nesse meio tempo, o Sr. Hugo Borghi, banqueiro sob auspício do ex-ditador e financiador da campanha queremista, vinha a público dizer que “o povo devia exigir a demissão de todos os ministros civis, que o povo devia ajudar o providencial Sr. Getúlio Vargas a realizar aquele governo socialista prometido na campanha eleitoral.” (vol. 3, pg. 82)
Era uma situação de aturdimento, pois logo aconteceu uma reforma ministerial. Com a nomeação de João Goulart para o Ministério do Trabalho em 15 de junho de 1953, o ‘Correio da Manhã’ lança um editorial chamado “Preparando o Golpe” denunciando as maquinações dos grupos intimamente ligados a Goulart para a paralisação das atividades do país. Com a extensão da greve dos marítimos comandada por gente ligada diretamente a Jango e a paralisação simultânea de 200 mil operários em São Paulo, organizados por esse mesmo pessoal, estava na cara que Getúlio era a figura mais interessada em violar a Constituição que havia – na posse – jurado defender.
Em 30 de julho de 1953 ‘O Estado de São Paulo’ publica um artigo intitulado “Conspiração em Marcha” onde denunciava uma conspiração para a implantação de uma ditadura de tipo peronista no Brasil. O Jornal era incisivo: “acha-se à frente dessa campanha o atual Ministro do Trabalho, Sr. João Goulart” (vol. 3 pg. 85). No comando grevista, comunistas e trabalhistas se uniram para paralisar o país. Por todos os lados começa a haver reação. A OAB lança manifesto ao Congresso advertindo para a gravidade da situação. A UDN igualmente se manifesta e até o New York Times publica matéria detalhando os planos peronistas de Vargas. Com isso as Forças Armadas se fecharam contra o ditador, inibindo qualquer mudança de comando. Além disso, seu principal oponente no pleito de 1950 era o Brigadeiro Eduardo Gomes, com grande liderança não só na Aeronáutica, como em todas as armas.
O suporte para as greves vinha da imprensa subsidiada, especialmente da ‘Última Hora’, o jornal de Samuel Wainer financiado diretamente por Vargas. O escândalo da ‘Última Hora’ começara em junho de 1951, logo após a posse de Vargas. Um obscuro repórter, nascido na Bessarábia, auto-declarado marxista, e empregado de Assis Chateaubriand, recebera a missão de cobrir a campanha de Getúlio. Já tinha sido preso pelo ditador, mas agora em franco namoro conseguiu que o caudilho lhe financiasse um jornal ao serviço da causa.
Wainer percebeu o mecanismo de propaganda getulista de alto-falantes, cartazes, galhardetes, flâmulas, de cadeias de emissoras de rádio, de aviões jogando volantes e de jornais comprados. Se o Partido Comunista apoiava Vargas, por que ele não iria tirar proveito da situação? Como seria esse jornal? Deixemos que Henriques conte:
“Nada mais nada menos do que um grande jornal, estipendiado pelo governo, com instalações luxuosas e salários de nababos. Para amaciar os escrúpulos dos jornalistas marxistas (Wainer se dizia marxista) colocaria no jornal os mais brilhantes deles, depois de convencê-los de que era muito mais fácil lutar contra as correntes fascistas e em prol do proletariado aderindo, colaborando e unindo-se aos ditadores, do que arriscando a vida e a liberdade em escaramuças de rua ou em combate a peito aberto contra os esbirros policiais, como se fazia antes de 1935, e como se faz no Mundo inteiro. O Sr. Wainer adotou então a política oportunista de que ‘os fins justificam os meios’. Foi positivamente uma idéia magistral: comunistas que viviam perseguidos ou na prisão, se adaptaram maravilhosamente à nova ideologia revolucionária de Wainer. Colocaram-se em posições rendosas, passaram a envergar casaca e cartola; a comer nos melhores restaurantes e a deslizar pelas ruas do Rio em carros de luxo. Deu-se então um fato curiosíssimo: a luta dos vermelhos brasileiros passou a ser renhida, enérgica, violentíssima, contra os que combatiam o fascismo e a favor do maior fascista do Brasil. Os marxistas, que outrora se identificavam pela cor macilenta da pele, oriunda dos sofrimentos nas prisões, tornaram-se nédios e sadios.”
“E assim foi que Samuel Wainer, vendendo sua alma ao diabo, aderiu ao ditador de corpo e alma. Em troca, o Sr. Getúlio Vargas abriu-lhe, de par em par, as arcas do Banco do Brasil para que fundasse a ‘Última Hora’, jornal que seria o baluarte dos planos peronistas do ex-ditador.” (vol. 3 pg. 251)
Getúlio que falava nos rádios com o refrão “pela primeira vez na história desse país” lembrando muito um presidente que conhecemos, subornava a todos com empregos, altos cargos na república, sinecuras em escritórios de representação comercial em Nova York, México, Londres, Paris e por aí afora.
Da mesma forma como o aval ao empréstimo do Banco Mundial para as obras do metrô de São Paulo (linha 5) é apregoado como investimento federal em São Paulo na corrente campanha presidencial de 2010, Vargas fazia o mesmo, arrogando a si as obras realizadas pelo governador mineiro Juscelino Kubitscheck do qual participara apenas na dotação orçamentária. As semelhanças estarrecem qualquer leitor de ‘Ascensão e Queda de Vargas’.
A CPI criada para apurar os desvios de dinheiro para financiamento de ‘Última Hora’ não ficou só nisso: descobriu, por exemplo, desvio de dinheiro no SESI, na época dirigido pelo milionário Euvaldo Lodi (segundo as más-línguas o homem que ficou mais rico com Getúlio, secundado por Ricardo Jafet e Hugo Borghi). O dinheiro destinado aos serviços sociais era simplesmente desviado para os bolsos dos amigos do presidente. Só do SESI descobriu-se um contrato de 9 milhões de cruzeiros com a ‘Última Hora’. Assim como na CPI da Petrobras, o sr. Euvaldo Lodi ao ser exigido que prestasse contas de sua entidade, “obstinou-se em não obedecer a esta atitude moralizadora, arrogando-se, assim, prerrogativas especiais, um verdadeiro privilégio de irresponsabilidade incompatível com o regime democrático” (vol. 3 pg. 257).
A CPI ouviu a todos os financiadores de Wainer, a começar por Matarazzo, Lutero Vargas (filho de Getúlio), Jafet e Lodi. Por fim, ante as evidências das negociatas, encaminhou a conclusão ao judiciário, para responsabilizá-los criminalmente. Mas a maioria getulista da Câmara negou autorização para processar Lutero e Lodi que possuíam mandato parlamentar, e a justiça concedeu habeas corpus a Ricardo Jafet, então presidente do Banco do Brasil nomeado por Vargas. Num gesto que causou perplexidade aos demais deputados, em 24 de julho de 1954, um mês antes do suicídio de Getúlio, o relator da CPI, deputado Frota Aguiar, sobe na tribuna com os depoimentos da CPI e rasga-os um a um discursando: “desejo apresentar minhas homenagens à Justiça sábia do meu País com este ato que agora vou praticar” (vol. 3 pg. 265).

O mar de lama

O mar de lama em que estava mergulhado o governo respingava em todos os setores da sociedade. Ia do contrabando de carros de luxo ao jogo do bicho. Não havia setor do Estado que não estivesse comprometido com a corrupção desenfreada que avassaladoramente tomou conta do país com a aliança PSD, PTB e PCdoB. Havia escândalos até no exterior: um bacanal em Paris, com cenas orgíacas que envolveram até a esposa e a filha de Getúlio, veio à tona. Os jornais falavam em decomposição moral, desenfreada libertinagem envolvendo senadores, magnatas, tudo organizado pelo celerado Assis Chateaubriand. A festança ocorrera no castelo do costureiro Fath, a pretexto de propaganda dos tecidos brasileiros. As cenas eram chocantes para a época conforme documentou a ‘Tribuna da Imprensa’ que Henriques comenta:
“... com a presença da esposa e da filha do Presidente da República, estampa fotografias ilustrativas colhidas naquele ato [A Tribuna da Imprensa]. Numa se vê uma convidada vestindo apenas combinação, com as pernas todas à mostra, tendo ao lado, de joelhos, no chão, um cavalheiro que a olha no rosto. Outra apresenta o Sr. Fath, o dorso nu, dançando rumba e roçando um pano nos quadris. A dois passos, entrega-se à dança uma senhorita de São Paulo. E, finalmente, num terceiro flagrante, aparece o costureiro-anfitrião em posição de ballet, trazendo como único vestuário uma espécie de sunga ou tanga minúscula de plumas amarrada por um retalho estreito de ‘lamet’ em torno dos rins, e um convidado com os mesmos trajes sumaríssimos. A um canto se vê um colchão de praia estendido no jardim. Mas essas fotografias eram apenas as que se podiam publicar num periódico de certa compostura, as demais foram omitidas por motivos óbvios (...) O governo forneceu ao Sr. Assis Chateaubriand cambiais no valor de 15 milhões de francos para a farra do Castelo de Corbeville, ao câmbio livre. (...) Esta importância destinou-se a cobrir apenas as despesas do baile, correndo o resto – fretamento de dois aviões especiais, orquestras, cantantes, vestidos, estada em hotéis etc – em cruzeiros e dólares, por conta do câmbio negro.” (vol. 3 pg. 292)
Aliás, toda a ditadura tem o zelo de impulsionar a indústria do sexo. Na Argentina de Perón, se sabia do caso deste com estudante de um colégio secundarista que acabou sendo sua amante com 13 anos de idade. No livro ‘Memórias Sem Maquiagem’, Carlos Machado conta das amantes de João Goulart que recebiam telefones gratuitos em suas garçonières com números fornecidos pelo Instituto Brasileiro do Café. Para satisfazer os desejos dos poderosos, concorria uma enorme malta de cafetões e cafetinas em busca de todo o tipo de mulheres. Artistas e prostitutas se revezavam na lista de ofertas de programas e enchiam os prostíbulos mais ou menos velados que existiam nos bairros elegantes do Rio e de São Paulo.
“Certos cavalheiros fizeram disso uma verdadeira indústria. Um deles houve que casou duas vezes com mulheres de grande beleza, cujos atrativos físicos só eram excedidos pela sua esperteza e ambição desmedidas, com o objetivo previamente combinado de servirem de amantes aos maiorais da ‘República Nova’ e do ‘Estado Novo’. Este cavalheiro chegou a ocupar os mais altos cargos da República, onde chegou a desempenhar as funções de conselheiro de Estado, e ainda hoje continua brilhando com estrela de primeira grandeza no cenário da oligarquia getulista que ainda domina o País e continuará dominando se não se levar a efeito a reforma eleitoral que preconizamos no fim desta obra.”(vol. 3, pg. 294)

O atentado da Toneleiros

No dia 6 de agosto de 1954, quando chegava no edifício que residia na rua Toneleiros, no Rio de Janeiro, em companhia de seu filho e do major Rubens Florentino Vaz, Carlos Lacerda foi vítima de um atentado à bala disparado por 2 indivíduos armados que, descendo de um carro, atiraram contra o tribuno, acertando-o no pé esquerdo, mas matando o major Vaz. O caso logo teve tremenda repercussão em todo o país. Já se sabia que Carlos Lacerda era um crítico impiedoso de Vargas. Através de suas reportagens ficou-se sabendo do escândalo de ‘Última Hora’ e da CPI correspondente, além da miríade de denúncias de acontecimentos nos segundo e terceiro escalões do governo.
A irritação dos militares já era grande. O Congresso e o Senado responderam com indignação e repúdio à covardia do atentado. Enquanto a tensão aumentava, o zunzun das ruas dizia que o atentado tinha sido dirigido do palácio do governo. A Aeronáutica, por ter um de seus membros assassinados, abriu um inquérito Policial-Militar e passou a investigar à revelia da polícia, que, como se sabe, não deu a mínima importância ao caso. Com a firmeza da liderança do Brigadeiro Eduardo Gomes, o inquérito foi avançando.
“Após uma série de diligências espetaculares, toda a quadrilha envolvida caía nas mãos desses ativíssimos militares. E todos eles – os criminosos – estavam ligados ao Catete (...) Em 18 de abril de 1954, um grupo de oficiais da Aeronáutica tendo à frente o coronel Adil [que comandava o inquérito] realizou uma diligência no Palácio do Catete, dali retirando o arquivo particular de Gregório [Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas], uma pasta com várias cartas e documentos (...) Logo depois eram divulgados os primeiros documentos do arquivo de Gregório, revelando vultosas e ilícitas transações com departamentos e membros do governo. Confirmou-se que o chefe da guarda pessoal gozava de grande prestígio e ascendência junto a altas autoridades e personalidades do País. Constavam do arquivo pedidos de interferência e proteção assinados por políticos, industriais e comerciantes proeminentes. A fortuna pessoal de Gregório subia a muitos milhões de cruzeiros. [Gregório era um negro humilde que crescera nos campos de Getúlio e ascendeu a sua condição de guarda-costas pela força física e coragem pessoal, assumindo a chefia somente em 1950, depois da retirada do irmão mais novo de Getúlio, Benjamim Vargas, um arruaceiro e desequilibrado, bêbado e bandido]. Sua mulher [de Gregório] sócia de uma firma de gêneros alimentícios com o capital de 2 milhões de cruzeiros, dispunha de três carros oficiais da Presidência, de uma secretária particular, e ela própria recebia do Estado, como funcionária do Departamento dos Correios e Telégrafos, sem concurso e sem nunca ali ter posto os pés. Apurou-se posteriormente que Valente, o sub-chefe e, pelo menos, mais dois outros elementos da guarda, por ordem de Gregório, valiam-se de bicheiros para formar uma ‘caixinha’ para uso da guarda e do seu chefe. Descobriu-se que Gregório, recebendo salário de 15 mil cruzeiros mensais, havia adquirido de Manuel Vargas, filho de Getúlio, a fazenda São Manuel, em São Borja, por quase 4 milhões de cruzeiros, tendo parte do pagamento sido feita com um empréstimo de 3 milhões do Bando do Brasil.” (vol. 3, pgs. 333- 334)
Foi como se tivesse estourado um cano de esgoto dentro do Catete. Logo a conexão com Gregório, como o mandante do crime, ficou evidenciada. A oposição no Congresso começou a insistir para a renúncia de Vargas, por julgar inaceitável a desculpa de que o crime não tivera um mandante. O Clube da Aeronáutica se reúne contra a vontade do Ministro da Aeronáutica e divulga uma nota dizendo que “o crime deve ser apurado até o fim”. Havia 600 oficiais no evento, não só da Aeronáutica como do Exército e da Marinha.
Em 11 de agosto uma grande multidão se reúne em frente ao Palácio Monroe aos gritos de ‘Abaixo Getúlio’. Em 12 de agosto, os comícios e protestos se espraiam por toda a capital pedindo a renúncia de Getúlio. Numerosos carros foram incendiados, alguns deles do PTB com propaganda de Lutero Vargas. Houve uma tentativa de invadir a sede do PTB, que foi contida pela polícia com o uso de brucutus.
Nesse meio tempo, as Forças Armadas declaram que o país estava moralmente sem presidente. Vargas replica que não renunciaria para não entregar o poder ao vice Café Filho ou ao presidente do Congresso, Nereu Ramos. E propôs que o governo fosse ocupado por uma junta militar comandada pelo General Zenóbio Costa. O Alto Comando militar repudia a solução por ser inconstitucional.
No mesmo dia 12 de agosto, a pretexto de inaugurar as novas instalações da Companhia Mannesmann, e para desanuviar, Getúlio viajou para Belo Horizonte. Enquanto Getúlio era recebido por Juscelino, os estudantes faziam um enterro simbólico com um caixão levando seu nome pelo centro de Belo Horizonte. Logo outro caixão é queimado nas proximidades do Palácio da Liberdade. Um automóvel, carregado de estudantes e com uma faixa com o nome de Carlos Lacerda furou a comitiva presidencial e se meteu no meio do cortejo. Era um sinal inequívoco de que o governo estava perdendo autoridade.
Então estala um início de crise político-militar. Vargas nomeia para o Ministério da Aeronáutica o Brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos. Era uma provocação ao Brigadeiro Eduardo Gomes, pois aquele era um dos poucos oficiais que não se relacionavam com ele. A Aeronáutica esperava a nomeação do Brigadeiro Dayton Fontenele. Com isso, a ala militar aumenta a pressão pela renúncia, sendo obstada pela opinião do General Juarez Távora que pedia que primeiro se encerrasse o inquérito. Mas isso era quase impossível. O inquérito iria durar mais alguns meses e a situação política se deteriorava a cada dia. Em 20 de agosto a OAB propõe a renúncia de Vargas. Pedia a restauração da ordem legal com a posse do vice-presidente. O Instituto de Engenharia de São Paulo envia um apelo ao Congresso pedindo o impeachment do presidente. O Catete começou a receber um número tão elevado de telegramas pedindo a renúncia que teve de dar ordens aos Correios e Telégrafos para que não entregasse as correspondências.
Em 21 de agosto, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica entram de prontidão. O Congresso fervia de discursos contra Vargas. Prendem o Delegado Brandão Filho por suas ligações com Gregório na exploração do jogo do bicho. Corre o boato de que João Goulart estava tramando uma aliança com os comunistas para uma grande manifestação de massas em apoio a Getúlio para 2 de setembro. Militares exaltados fazem discursos violentos contra o governo. Era um rompimento da hierarquia, o que obrigava seus chefes a dar voz de prisão e ter que relaxar logo a seguir por tal atitude de crítica ao governo ter produzido a solidariedade do resto da oficialidade presente. Então que se prendam a todos os oficiais bradavam os exaltados.
Sabendo que Vargas não aceitaria Café Filho como substituto, este vai ao Congresso e num gesto comovente propõe que ambos renunciem, para que se convoquem eleições antecipadas. Vargas recua, pois seu único desejo, sua verdadeira vocação era o continuísmo.
Em 23 de agosto, 51 almirantes levaram ao Ministro da Marinha sua decisão unânime de apoio aos brigadeiros da aeronáutica. Na nota diziam que condenavam um governo que havia afundado na corrupção e no crime. João Goulart reage e envia uma ‘Proclamação ao Povo Brasileiro’ como matéria paga em todos os jornais falando de receio de golpes, de atentados à Constituição. Era claramente uma defensiva de Vargas, o reconhecido violador de constituições agarrando-se a ela. Para isso, tenta decretar o estado de sítio. Fechado o Congresso, tudo iria evoluir como em 1937. Os lideres da minoria na Câmara foram alertados em tempo e se pronunciaram imediatamente contra a tentativa de golpe. Vargas recua. O Clube da Aeronáutica se reune às 10 horas da manhã e a reunião avançou noite adentro. O fantasma do major Vaz insuflava a reunião. Finalmente vem a público a decisão final, redigida como um ultimatum:
“Os oficiais generais da Força Aérea Brasileira, abaixo-assinados, reafirmando seus propósitos de permanecerem dentro da ordem, da disciplina e dos preceitos constitucionais, acham que a presente crise nacional só poderá ser satisfatoriamente resolvida com a renúncia do Presidente da República.” (vol. 3, pg. 364)
“O general Mascarenhas de Moraes foi o portador da mensagem a Vargas. O ex-ditador respondeu que, tendo sido eleito pelo povo para governar cinco anos, não deixaria o governo.” (vol. 3, pg. 365)
Neste mesmo dia, começa a circular sigilosamente um Manifesto no Exército, nos mesmos termos, isto é, apoiando os oficiais da Aeronáutica. Estava na cara que os ministros militares já estavam perdendo o pé da situação e que para manter Vargas teriam que prender os insubordinados. Isto não seria possível sem um banho de sangue e com altíssimas possibilidades de derrota para o governo.
Na madrugada de 24 de agosto estão reunidos Osvaldo Aranha, Tancredo Neves, Epaminondas e Guillobel (ministro da Marinha). Chegam os generais Mascarenhas, Zenóbio e Denis e expõem aos ministros a situação militar: era um ultimatum para a renúncia já. Pouco depois, sobem para a sala de despacho do segundo andar e encontram Vargas. Repetem a mensagem dos quartéis. Zenóbio informa que apenas uma pequena parcela iria apoiar a permanência do Presidente, mas por obrigação do cargo estava disposto a lutar até o fim, mesmo sabendo que acarretaria derramamento de sangue com poucas possibilidades de êxito. Surge então a hipótese de um pedido de licença de Vargas até transmitir o mandato no próximo ano ao seu sucessor. Vargas recusa também esta fórmula e acaba a reunião dizendo que iria convocar o ministério imediatamente para que este deliberasse a respeito.
Reune-se o ministério às 3h30min da madrugada. Vargas continua inflexível. O general Zenóbio então levanta-se e diz que vai prender os generais que quebraram a disciplina. Era o anúncio indireto de uma guerra civil. Vargas, parecendo tranqüilo, encerrou a sessão dizendo:
“Já que os senhores não decidem, eu vou decidir. Minha determinação aos ministros militares é no sentido de que mantenham a ordem e respeitem a Constituição. Nestas condições estarei disposto a solicitar uma licença, até que se apurem as responsabilidades. Caso contrário, se os insubordinados quiserem impor a violência e chegarem até o Catete, levarão apenas o meu cadáver.” (vol. 3, pg. 367)
Uma nota ministerial foi redigida, aprovada pelo Presidente e transmitida às 4h45min para todas as emissoras. O General Zenóbio convocou todos os generais para uma reunião às 6h30min no Ministério da Guerra, a fim de informar a decisão do Presidente. “A licença do Presidente é definitiva, pois assim ouvi eu da conversa dos Srs. Ministros após a reunião e quando ali retornei a chamado do Sr. Osvaldo Aranha.” (vol. 3, pg. 368)
Logo após a reunião, chega fardado no catete do ex-chefe de Polícia, o General Morais Âncora, saído direto da reunião do Ministério da Guerra.
“Ao entrar é cercado pelos presentes, ansiosos para saber como transcorrera a reunião. O General Âncora disse que tudo correra bem, mas acrescentou que o Ministro da Guerra dissera ter ouvido que o Presidente não voltaria mais (...) Essa revelação do general Âncora feita talvez de boa-fé, constituiu a verdadeira razão do suicídio de Vargas.
Benjamim Vargas, estranhando tal revelação, pede pormenores. O General Âncora confirmou que na reunião Zenóbio, depois de lida a nota redigida pelo ministério, ‘acrescentava que, apesar dos seus termos, o afastamento de Vargas seria definitivo e que ele não mais voltaria ao governo’. E informa ainda que, depois dessas palavras, discursara o general Fiuza de Castro congratulando-se com o Exército pelo término da crise.
Alvoroçado Benjamim Vargas correu aos aposentos do irmão e despertou-o para transmitir-lhe essa informação (...) a Vargas, que até então se mostrara tão calmo, tranquilo e até aparentemente indiferente, sobressaltou-se e indagou profundamente surpreendido:
— ‘Então quer dizer que estou deposto?’
— ‘Não sei se está deposto’, respondeu Benjamim. ‘O que sei é que é o fim. Foi a maneira mais fácil de te tirarem do governo’.
— ‘Volte lá embaixo e vá esmiuçar isso’ — determinou Vargas.
— ‘Não vejo porque’ — contesta Benjamim. ‘Âncora é um homem sério e foi definitivo. Não seria capaz de inventar uma coisa assim. Em todo o caso vou apurar’.
— ‘Vá saber com detalhes e volte em seguida’ — insistiu Vargas, profundamente preocupado.
Como Benjamim Vargas, meia-hora depois, ainda não houvesse regressado, Vargas mandou procurá-lo. Alguns minutos depois ouviu-se um tiro. O Sr. Getúlio Vargas havia se suicidado com um tiro no coração.” (vol. 3, pg. 369)

Este episódio final está cercado de especulações. Não são poucas as obras escritas para descrever os últimos momentos de Vargas. Para Affonso Henriques, o fim de Vargas está inscrito em sua própria adoração pelo poder:
“Na realidade, Vargas foi coerente consigo mesmo. Desde 1930, todos os seus atos, todas as suas atitudes, todos os seus desmandos, todos os seus discursos, todos os seus despistamentos, todas as corrupções e negociatas, todas as conspirações, revoluções, agitações, greves, motins e desordens que tramava, tinha um objetivo único e imutável: manter-se no poder a qualquer custo. Perdidas todas as esperanças de continuar no poder, o Mundo para ele já não valia mais nada.” (vol. 3, pg. 369)
Mas existia o temor de que deposto a podridão começasse a vir à tona, com revelações de seus íntimos, a começar por Gregório Fortunato. Seria uma espiral tão violenta que ele iria certamente para trás das grades. O último episódio foi sua carta-testamento. Essa famosa carta que até hoje serve ao propósito político de incensar o mais funesto ditador e presidente que o país teve no século XX, está cercada de mistérios. Ela estava na mesa de cabeceira de Getúlio e de lá voou para as mãos do Sr. Amaral Peixoto, seu genro, e para as mãos de sua filha Alzira que se encarregou de divulgar o teor. O mistério que cerca a carta testamento é que o camareiro de Getúlio, chamado Barbosa, havia entrado e saído umas 3 vezes sem notar coisa alguma.
“Nem bem foi divulgada a carta-manifesto, começaram a surgir ressalvas e dúvidas sobre sua autenticidade. De fato, o estilo literário não se assemelha ao do ex-presidente: sua longa extensão parece inadequada à trágica ocasião, e por fim, há o caso de existirem dois documentos, quando um só seria o natural.” (vol. 3, pg. 375)
Henriques fala dos documentos achados no cofre e recolhidos por Alzira Vargas. O segundo documento (cópia) teria sido encontrado por João Goulart. A carta-testamento foi apresentada à imprensa na forma datilografada. Ocorre que Getúlio não escrevia à máquina. A pessoa que datilografou nunca apareceu. Depois de analisar todos os detalhes e contradições entre as declarações e os fatos, Henriques conclui que o que houve foi um bilhete manuscrito de Getúlio sobre a renúncia, habilmente modificado para servir de testamento. De fato, pelo tamanho do texto, Getúlio não poderia ter escrito no intervalo de meia-hora depois da partida de seu irmão Benjamin e sua morte. Então os herdeiros de Vargas trataram habilmente de produzir um documento que servisse aos propósitos políticos do continuísmo getulista sem seu criador. Embora os presidentes Juscelino Kubistchek e João Goulart tenham sido herdeiros diretos de Vargas, o getulismo persiste até hoje na política nacional. Ele é o cerne do sistema político que continua a destruir o Brasil através do empreguismo, do concessionismo, do apadrinhamento, do desperdício de recursos públicos, e de um modelo de Estado capaz de deter o desenvolvimento econômico brasileiro.
Henriques termina seu trabalho propondo uma reforma política capaz de evitar que demagogos como Getúlio Vargas se apoderem do país. O sistema eleitoral proposto por ele está discutido na seção DNA Brasil no título ‘O Modelo Político’. Podemos dizer que ‘Ascensão e Queda de Getúlio Vargas’, em seus 3 volumes, é um dos livros que se inscrevem na História do Brasil como uma das obras mais bem documentadas de uma Era. Deve ser lida por todos os brasileiros que se interessam pela pátria e que prestigiam o julgamento independente e a opinião desinteressada e desarvorada de preconceitos ideológicos e obscurantismos filosóficos. Juntamente com Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Emil Farhat e alguns outros, Affonso Henriques comprova que o Brasil é mais e melhor conhecido por seus intelectuais independentes e abnegados do que por seus domines acadêmicos. As pessoas que falam em crise da educação brasileira deveriam atentar para esse fato.

Fim