Carlos Pozzobon, em seu blog de
Leituras de livros e resenhas críticas, aborda os três volumes de Affonso Henriques:
Ascensão e Queda de Getúlio Vargas – Affonso Henriques – Record 1977, 3 volumes, edição de luxo.
Carlos Pozzobon, Última revisão: maio/2010
http://carlosupozzobon.blogspot.com.br/2011/12/ascensao-e-queda-de-vargas.html
Um trecho de Affonso Henriques:
“A não punição do Sr. Getúlio Vargas [em 1945] fez com que o mesmo viesse, mais tarde, flagelar o País por mais quatro anos, e, mesmo depois de sua morte, lançar a discórdia e a confusão, das quais até hoje o País ainda não se livrou integralmente” (vol. 2, pg. 351).
A mais completa obra sobre o período histórico que vai da revolução de
30 até o final dos anos 50, escrita por um brasileiro desiludido com a
política nacional que se auto-exilando nos EUA, reuniu extensa
documentação sobre a Era Vargas e nos presenteou com 3 volumes de 500
páginas cada.
Affonso Henriques, paulista, contador com escritório no RJ,
administrador de empresas e funcionário público da Administração do
Porto do Rio de Janeiro, foi tesoureiro da Aliança Nacional Libertadora,
e, juntamente com seus companheiros, foi preso durante 10 meses no
golpe de estado de 1937. Indicado pelo sindicato dos contabilistas para
um congresso trabalhista em Nova Iorque em 1941, resolveu desertar do
país para estudar na Universidade de Columbia. O envolvimento dos EUA na
2ª guerra lhe propiciou um emprego de tradutor na Secretaria de
Relações Exteriores em Washington. Ao visitar a Biblioteca do Congresso
Americano, descobriu uma coleção dos principais jornais brasileiros e
dezenas de livros sobre o Brasil. Revisando assuntos em que esteve
envolvido diretamente, pois como tantos intelectuais desiludidos havia
apoiado o movimento da Aliança Liberal em 1930 que levou Getúlio ao
poder, resolveu escrever a obra que lhe custou dez anos para compor e
que hoje é ainda a mais completa sobre o tema.
O contraste entre os EUA democráticos e o Brasil ditatorial lhe forneceu
o pano de fundo para sua análise da ditadura mais mafiosa e cruel que o
Brasil viveu sob a demagogia populista de Vargas e seu sistema político
de aliciamento por negociatas, subornos e intimidação.
Henriques fala da personalidade de Vargas citada por uma pesquisa feita
pelo jornal A Noite do Rio de Janeiro, ainda antes das eleições de 1930,
em que o jornal explicava por que não apoiaria Getúlio:
”[Getúlio] tem a triste sina de revelar-se ao país pelo avesso daquilo
que é ou que pretende ser. Ambiciona a suprema magistratura da Nação
quando, no fundo, é um homem que nasceu para ser governado, e que
governado vive pelos seus auxiliares de governo e pelas figuras
audaciosas de sua ‘entourage’. Toda a sua vida tem sido uma revelação de
clamorosa leviandade. Eleito deputado federal, oferecem-lhe um lugar na
Comissão de Finanças da Câmara. Recusa, afirmando não sentir
competência para o posto e, mais tarde, sendo-lhe oferecida a pasta da
Fazenda, aceita-a jubilosamente, sem se lembrar que já havia confessado
nada entender de assuntos financeiros.
No Ministério da Fazenda nada fez a não ser desastres. Deve-se a ele a
nomeação de Antonio Mostardeiro para o Banco do Brasil, que custou ao
país 159 mil contos de prejuízos em falências. Foi sua Excia que levou
Souza Varges para a Alfândega, o qual o governo demitiu a bem do serviço
público.
Eleito presidente do RS, por influência de Washington Luis, o seu
governo em nada se destacou. Durante o seu governo oficializaram-se os
‘trusts’ organizados pelos açambarcadores, entre os quais o da banha,
organizado pela firma Matarazzo.” (vol. 1, pg. 46)
“Eis aí, em síntese – comenta Henriques do artigo de A Noite – o traço
predominante do caráter de Getúlio Vargas. As hesitações de Vargas
durante o seu interminável governo tornaram-se famosas. Era um homem
paradoxal que queria permanecer eternamente no governo sem governar, ou
seja, desejava gozar de todas as vantagens e privilégios do governante
sem passar por nenhuma de suas vicissitudes e sem assumir nenhuma de
suas responsabilidades. A sua famigerada política de “deixar ficar como
está para ver como é que fica” patenteia, sem margem de dúvida, a
precisão dos conceitos do grande vespertino carioca: ‘homem mole, sem
energia, sem vontade’. Mas esse homem mole, sem energia, sem vontade, tornava-se de súbito um titã quando o ameaçavam destituir do poder.
Aí então se transfigurava integralmente. De dorminhoco, sonolento e
lerdo que era transformava-se, de súbito, num verdadeiro centauro
gaúcho. Não havia nada que o contivesse. Passava a madrugador, ativo,
valoroso, revelando uma energia surpreendente. Uma vez assegurada a sua
permanência no poder, voltava à sua modorrenta letargia. Indiferente a
tudo e a todos, protegendo aqueles que contribuíam para o continuísmo,
perseguindo implacavelmente aqueles que contrariavam a sua única,
verdadeira e obstinada ambição: continuar senhor absoluto do País..."
(vol. 1, pg. 47)
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?
“O descaso de Getúlio Vargas pelos negócios públicos e pelos interesses
superiores do povo chegava ao ponto de, em reuniões importantes, em que
se traçavam os destinos do Brasil, tirar sonecas escandalosas.” (vol. 1,
pg. 47)
“Outra característica curiosa de Vargas era a de atirar a culpa dos seus
erros sobre os seus auxiliares. O ditador nunca era responsável pelos
seus erros. Quando, todavia chegava a hora de colher as flores dos
elogios pela obra alheia era ele quem primeiro se apresentava. Se surgia
um desmando que não podia deixar de ser de sua imediata
responsabilidade, apresentava o álibi pouco edificante de sua
ignorância. Na sua campanha presidencial de 1950, num discurso
pronunciado em janeiro daquele ano em Belo Horizonte, declarou que não
sabia da maior parte das coisas que haviam acontecido durante a sua
ditadura...” (vol. 1, pg. 48)
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?
“O Comodismo e a preguiça mental do Sr. Getúlio Vargas tornaram-se tão
arraigados e tão conhecidos que chegaram a introduzir na vida pública
brasileira aquilo que nos EUA se chama ghost writer e na França les négres,
isto é, escritores que, embora competentes e inspirados, não conseguem
ganhar nome e fama e se veem por isso forçados a trabalhar para os
medalhões consagrados, recebendo o dinheiro e desprezando a glória que
de direito lhes pertence.
Getúlio Vargas começou a princípio por encomendar pequenos discursos
protocolares. Como a coisa foi saindo a seu gosto, esses discursos foram
se tornando cada vez mais extensos, mais massudos e prolongados.
Enquadrando-se isso perfeitamente dentro das exigências do seu
comodismo, nos últimos tempos do seu governo os funcionários do seu
gabinete incumbiam-se de tudo: declarações políticas, discursos
oficiais, conferências, mensagens etc..., culminando finalmente nos
quinze volumes da 'Nova Política do Brasil', obra da qual somente alguns
períodos foram realmente escritos por ele.” (vol. 1, pg. 50)
“O doutor Mauricio Joppert, falando na Câmara dos Deputados em 6 de
julho de 1954 sobre a personalidade sinuosa e dúbia de Vargas, preferiu
fazer uma análise de suas características sob o aspecto do desprezo que o
ex-ditador devotava aos seus próprios amigos da véspera, a facilidade
com que abandonava as dedicações e esquecia serviços, bem como a sua
constância em quebrar as regras da lealdade.” (vol. 1, pg. 59)
Vargas tinha a capacidade inata do caudilho para se associar a todos os
tipos de políticos que habitavam o panorama eleitoral da época, como
Adhemar de Barros, Hugo Borghi, Lindolfo Collor, Osvaldo Aranha, Flores
da Cunha, José Maria Whitaker e tantos mais, e depois abandoná-los sem a
menor cerimônia em busca de conveniências passageiras, injunções de
ocasião.
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?
O General Góis Monteiro, que ocupou todos os cargos protagonistas do
movimento de 30 até o ministério da Guerra de Getúlio, passando longos
anos no comando do Gabinete Militar, disse, pouco antes de morrer, em
entrevista a um jornalista, sobre a personalidade de Getúlio, quando
este já estava morto há 2 anos:
“Durante muito tempo cheguei a pensar que ele fosse um dos homens mais
afortunados que eu conhecera, pois pelo lado do utilitarismo e do
oportunismo, tudo conseguia com pouco esforço e num grau de ascensão que
lhe prodigalizava todos os benefícios. Tudo concorria para a realização
das suas intenções e objetivos e até para ultrapassar a medida de seus
desejos. Era um favorito da fortuna, que tudo ganhava e nada perdia.
Dava pouco e recebia muito. Mais tarde compreendi que ele vivia, no seu
interior, um drama terrível, era um homem infeliz, que procurava
derivativos e saídas para os seus desforços íntimos; introvertido,
fechado sobre si mesmo. Apesar da aparente uniformidade do seu
procedimento e de seus pensamentos, apresentava muitas contradições à
medida que se ia consolidando o seu governo, talvez pelas contingências
que sobrevinham, justificando que as circunstâncias é que determinavam
tudo. De envolta com essas contradições é que se podem assinalar o
protecionismo dispensado a certas figuras repelentes, os meios de
corrupção e desmoralização empregados contra os recalcitrantes, a
tolerância para com o parasitismo e o favoritismo, o afeto
injustificável para com indivíduos que só mereciam repulsa e, de outro
modo, sua tendência invencível para o isolamento, para a misantropia, à
medida que o seu poder se tornava maior.” (vol. 1, pgs. 62-63 )
A Revolução de 30
Quando se estuda a ascensão de Hitler ou Stalin, a primeira estupefação
do leitor é o quase inacreditável conjunto de circunstâncias que levaram
os ditadores ao poder. O leitor vai ficando cada vez mais perplexo com a
sequência de acontecimentos que historicamente vão favorecendo a subida
dos tiranos rumo ao poder absoluto. Quando as marcas da insensatez se
tornam inequívocas, aí já é tarde demais. Os mecanismos institucionais
são incapazes de deter a tragédia que se anuncia. A história está
repleta de gente que não consegue perceber como a avalanche de fatos vai
se afunilando para o controle total do déspota sobre o aparelho de
Estado e da Nação. Quando se dão conta não existe mais retorno, só resta
a submissão e o conformismo despistador, quando não a vergonha e a
humilhação.
Com Vargas não foi diferente. O país vinha atravessando um período de
revoltas e levantes reveladores do seu estado de inquietação e
inconformismo. A Revolta da Chibata de 1910 inicia uma era de levantes
militares cunhada com o nome de tenentismo, com desdobramentos na Guerra
do Contestado, durante o governo desastroso de Hermes da Fonseca,
depois a revolta do Forte de Copacabana de 1922, o levante de 1923 no
RS, a coluna Prestes em 1924, a crise financeira internacional de 1929
com o súbito declínio da exportação do café, o excesso de politização
dos tenentes no exército, tudo isso contribuiu para a deposição de
Washington Luis, que em fim de mandato vinha governando com austeridade e
realizações.
Na República Velha era lugar comum o governante escolher seu sucessor, e
este ir para o pleito e ser eleito nas votações abertas, facilmente
controláveis pelas oligarquias que comandavam a máquina pública.
Para coibir esses abusos, nasceu a Aliança Liberal, um movimento
eleitoral com propostas de voto secreto, criação da Justiça Eleitoral e
judiciário independente, anistia aos tenentes exilados, e diversas
aspirações de caráter reformista. Logo o movimento tomou conta do país:
jornais passaram a apoiar o movimento reformista e a proximidade das
eleições de 1930 catalisou a opinião política nacional em torno das
novas propostas.
Governava Minas Gerais Antonio Carlos de Andrada, e o RS era comandado
por Getúlio Vargas. Washington Luis escolhe para seu sucessor o
governador de São Paulo (naquela época, chamado presidente da província)
Júlio Prestes. Ocorre que Antonio Carlos de Andrada queria para si a
indicação do sucessor do presidente da República segundo a alternância
informal chamada de política do café com leite. Para dar um golpe
político e arregimentar forças, Andrada manda um emissário ao RS falar
com Vargas, expondo sua vontade de concorrer à presidência da república e
pedindo o apoio deste. Vargas recusa. Neste meio tempo, Andrada já
tinha enviado carta a Washington Luis pedindo sua indicação para a
sucessão presidencial. Washington Luis responde que já estava
comprometido com o nome de Júlio Prestes. Por pura pirraça manda então
outra carta a Vargas dizendo apoiar seu nome para candidato. Vargas
vacila como de hábito e manda outra carta a Washington Luis cheio de
dedos com a sua indicação. A sequência de cartas é apresentada e
comentada por Henriques mostrando como evoluiu a situação política até a
indicação de Vargas como candidato da Aliança Liberal.
A Aliança Liberal escolhe João Pessoa como vice de Getúlio, um político
ferrabrás que governava a Paraíba, cuja capital nessa época se chamava
Princesa. Feitas as eleições em março de 1930, Vargas obteve cerca 800
mil votos contra 1,3 milhão de Júlio Prestes, uma derrota esmagadora. Aí
surge a denúncia de fraude eleitoral, uma prática corriqueira na
política local da República Velha, com o voto a descoberto. Mas os
analistas insistem que se houve fraude, esta deveria ter ocorrido pelo
lado de Getúlio, pois no RS seus votos ultrapassaram 90% do eleitorado,
obviamente um escrutínio que era completamente irreal para qualquer tipo
de eleição. Portanto Vargas acusa seu adversário daquilo que ele mesmo
praticara. A situação é de intranqüilidade e de tentativa de levante.
Mas a agitação morre na praia. Todavia quando tudo voltava à
normalidade, em 29 de julho de 1930 é assassinado em Recife o vice João
Pessoa. Seu assassino era João Dantas, um político paraibano rival a
quem fora ofendido por Pessoa no episódio de um levante popular na
Paraíba contra o governo deste e que na repressão a polícia paraibana,
ao invadir o escritório de Dantas, revela as cartas que este mantinha
com sua amante, a poetisa e feminista Anaide Beiriz.
Dantas é recolhido à penitenciária. A revanche política explode, pois os
políticos ligados a Vargas, incluindo este, passam a acusar o
presidente Washington Luis (em fim de mandato) como o mandante do crime.
A agitação toma um vulto incontrolável. A ocasião era para uma
intervenção enérgica de Washington Luis que, entretanto, se mantém
sereno e completamente estupefato com os disparates dos adversários
derrotados. Enquanto isso, Júlio Prestes passeava pelos Estados Unidos
se apresentando como presidente eleito. Em declaração à imprensa
americana dizia que, ao contrário dos países hispânicos, o Brasil era um
país que jamais admitiria uma ditadura.
Affonso Henriques mostra com detalhes as circunstâncias da exploração
política do cadáver de João Pessoa, que enviado para o Rio de Janeiro de
navio por políticos da Aliança Liberal, com parada em Salvador, para
fins de render homenagem ao morto, nada mais fizeram do que provocar as
manifestações populares e os levantes contra Washington Luis – o suposto
mandante do crime. Um absurdo total: por que iria Washington Luis, um
homem pacífico, mandar matar um candidato a vice-presidente derrotado no
pleito? Eis aí uma questão que mostra o espírito da época, o
descontentamento que avassalava as massas populares.
Com o misterioso assassinato de Dantas na cadeia em 3 de outubro de
1930, estoura a revolução no dia 30 e Washington Luis é deposto e
exilado, juntamente com seus colaboradores mais próximos.
Como em toda a revolução, não faltaram os bons propósitos, os discursos
de candura, a enganação enlevada das massas populares vitimadas pela
maior crise no mercado internacional, onde a exportação de café havia
caído em 50% e o desemprego campeava solto em São Paulo e demais cidades
do país.
Exilados os inimigos da revolução com mandatos cassados por 10 anos, vem
o conspirador do RS, o inefável Osvaldo Aranha, ministro empossado de
Getúlio, afirmar que o povo brasileiro não estava preparado para a
democracia, frase que se ouviria 50 anos mais tarde pela boca do general
João Batista Figueiredo.
A fragilidade do povo em sua educação e cultura frente à voracidade
política e ao estatismo dominante desde a formação da república
inclinava a sociedade brasileira para a concepção fascista, então em
voga, de organização de legiões educadas para as tarefas cívicas e
políticas. Ao mesmo tempo, a nação clamava por uma constituinte que
pudesse reunificar as leis do país e legitimar as novas forças no Poder.
Mas o espírito liberal brasileiro radicado em figuras de grande
liderança, como Borges de Medeiros e Raul Pilla no RS, começaram a dar
as primeiras manifestações de contrariedade à confissão fascista de
Osvaldo Aranha e Francisco Campos.
Logo a personalidade de Vargas começou a provocar inquietações por todo o
Brasil. A ela se refere Affonso Henriques:
“À proporção que iam surgindo os problemas políticos, econômicos e
sociais, mais se acentuava a incapacidade de Vargas para enfrentá-los e
mais se evidenciava o seu horror a assumir responsabilidades. O seu amor
ao governo e ao mando fazia com que temesse cometer erros que
acarretassem a sua ruína política. Não tinha absolutamente confiança em
si próprio, em sua capacidade administrativa. Reconhecia-se impotente
ante a magnitude do cargo que assumira. Tomar qualquer decisão era para
ele um verdadeiro suplício e daí procurava adiar, procrastinar,
tergiversar e até mesmo desconversar quando qualquer problema grave lhe
era apresentado. Essa sua característica o acompanhou até a sua morte.
Desejava a todo transe não descontentar a ninguém, para não perder o
cargo. Como isso era impossível, adotou a tática simplista de adiar a
solução dos problemas. Uma vez adiada a solução, o problema tornava-se
mais complexo, mais grave e difícil de ser solucionado. Não obedecendo a
nenhum princípio sadio, Vargas procurava de preferência a política
oportunista de satisfazer aqueles que apresentavam maior grau de
periculosidade e ambição. Quando era forçado a tomar uma decisão,
revelava-se um imediatista, isto é, dava preferência às soluções que
resolviam o caso no momento, superficialmente, sem se preocupar
absolutamente com os seus efeitos futuros.” (vol. 1, pgs. 135-136)
O que se via em Vargas era uma estratégia de manter-se no poder a
qualquer custo, mesmo que para isso precisasse utilizar-se de subornos,
empréstimos do Banco do Brasil a aventureiros e negocistas, promoções
aos militares, sinecuras e empregos públicos a correligionários, e assim
por diante. Tal qual o governo Lula com sua obsessão com relação ao
governo FHC, Vargas já havia praticado antes:
“Para desviar a opinião pública da incapacidade do governo para a
solução dos problemas mais urgentes que assoberbavam o País, iniciou-se
em toda a Nação uma campanha de desmoralização do regime deposto, contra
o qual se levantaram as maiores injustiças, o que se evidencia
principalmente quando se compara o mesmo com os resultados desastrosos
do regime que lhe sucedeu.” (vol. 1, pg. 137)
Além disso, a política de despistamento foi colocada em ação. Consistia em dizer uma coisa e fazer outra.
Alguma semelhança com outro presidente que conhecemos?
Ao discursar em um banquete oferecido aos militares, quando já se
murmuravam inquietações nas forças armadas, Vargas foi exemplar:
“O programa da revolução reflete o movimento que a inspirou e traça o
caminho para o ressurgimento do Brasil: institui o aumento da produção
nacional, sangrada por impostos que a estiolam; estabelece a organização
do trabalho, deixada ao desamparo pela inércia ou ignorância dos
governantes; exige a moralidade administrativa, conspurcada pelo
sibaritismo dos políticos gozadores; impõe a invulnerabilidade da
justiça, maculada pela peita do favoritismo; modifica o regime
representativo, com a aplicação de leis eleitorais previdentes,
extirpando as oligarquias políticas e estabelecendo ainda a
representação por classe, em vez do velho sistema de representação
individual tão falho como expressão da vontade pública; restabelece
finalmente o pleno gozo das liberdades públicas e privadas, sob a égide
da lei e da justiça.” (vol. 1, pgs. 139-140)
Ou seja, aquilo que dizia era exatamente o oposto do que fazia. Sua
única inovação foi a representação por classe, uma iniciativa criada
pela revolução para preparar sua maioria na constituinte e garantir um
novo mandato de mais quatro anos para ele. A representação por classe
foi o germe do movimento sindical atrelado ao Ministério do Trabalho e
uma de suas políticas de suborno mais abjetas da vida nacional.
O sistema funcionava assim: os trabalhadores de todas as cidades do país
deveriam escolher representantes de suas respectivas categorias
profissionais. Padeiros, marceneiros, pedreiros, serralheiros,
profissionais liberais, etc. Esses representantes receberiam uma viagem
paga até o Rio de Janeiro para ali escolherem os representantes junto à
constituinte que totalizaria 40 delegados, de um total de 254.
Imagine um simples operário, dos rincões do Brasil, que sequer tinha
dinheiro para conhecer a capital de seu estado, de repente ser convidado
a passar alguns dias na cidade maravilhosa com tudo pago para eleger um
candidato apontado pelo “homem”. Foi uma mobilização infernal. Para não
perder o trenzinho da alegria, os candidatos faziam qualquer coisa em
suas cidades para serem os indicados. O evento foi celebrado aos quatros
ventos pela imprensa. Acomodados em locais especialmente preparados
para recebê-los, e tendo uma guarda-negra especialmente confabulada para
orientar os delegados, estes votavam em que lhes pediam, enquanto a
farra e o turismo corriam soltos.
A Revolução Constitucionalista de 32
Entretanto, a constituinte de 34 tinha sido o resultado de um tremendo
processo que vinha ocorrendo no país com o desvio do programa da Aliança
Liberal para o governo ditatorial da patota de Getúlio Vargas,
especialmente de seus lugares-tenentes mais próximos como o general Góis
Monteiro, o repulsivo capitão João Alberto e o inefável Osvaldo Aranha.
Este trio organizou um movimento chamado 2 de Outubro que se
especializou em articular artimanhas para sufocar a oposição à ditadura.
Uma delas foi a invasão e empastelamento do Diário Carioca, um dos
jornais da capital que criticava abertamente as decisões do governo. Na
noite de 25 de fevereiro de 1932 foi invadido por um grupo de tenentes e
soldados, que vandalizaram todas as instalações quebrando tudo pela
frente, batendo em funcionários, espancando jornalistas, redatores e
tipógrafos.
Oito dias depois do atentado, quando já se sabia que a ordem tinha
partido de círculos chegados a Vargas, apresentam as demissões o
ministro da Justiça Maurício Cardoso, o Ministro do Trabalho Lindolfo
Collor, o Chefe da Polícia Batista Luzardo, João Neves da Fontoura,
Barros Cassal, Ariosto Pinto e Sérgio de Oliveira, todos antigos membros
da Aliança Liberal.
Como eram gaúchos, resolveram partir para Porto Alegre, aonde lá
chegando são recebidos com estrondosa manifestação de apoio por Borges
de Medeiros. Parecia que uma onda de rebelião iria se iniciar contra
Vargas. Em vez disso, os tenentes correm a dar apoio a Vargas, o mesmo
sucedendo com o governador da Bahia Juracy Magalhães.
Estava claro que a desordem iria tomar conta do país. Para implementar a
revolução, Vargas havia nomeado interventores em todos os Estados e
municípios do país. Estes interventores foram o estopim da revolta
constitucionalista. As designações eram diretas. Tenentes sem nenhuma
experiência administrativa passaram a ser prefeitos. Políticos aliados
passaram a governador. Com poderes extraordinários, demitiam quem quer
que fosse, e até mesmo houve o caso de demissão de todo o tribunal de
justiça de Manaus por seu interventor sob o argumento de que tal ato era
uma aspiração popular. Em outros casos, os próprios interventores eram
demitidos e substituídos por outros, ao sabor dos acontecimentos e das
pressões.
Neste ponto, Henriques atribui toda a confusão ao próprio método de
Vargas manter-se no poder. Ao nomear tenentes para cargos civis
subornava-os com sinecuras para garantir apoio na área militar. Os
militares descontentes, tratava de transferir para locais seguros, que
poderia ser o interior do país, ou até a capital, para manter vigilância
sobre eles. Em outros casos, os comandantes insatisfeitos eram
simplesmente forçados a renunciar e passavam para a reserva, como
aconteceu com o general Andrade Neves que comandava a 3ª região militar
em Porto Alegre.
O movimento pela constitucionalização do país iniciara no RS com uma
série de proclamações e cartas endereçadas a Getúlio e Osvaldo Aranha. O
Partido Libertador, liderado pelo parlamentarista Raul Pilla, em
congresso aprova por unanimidade de votos uma declaração exigindo do
governo a convocação de uma Constituinte. Jornais, associações
profissionais, OAB, todos clamavam pela constituinte. Enquanto isso
Vargas se omitia, negaceava, vacilava, parecia não ter rumo a não ser
referendar as decisões do nefando grupo 2 de Outubro. Este clube acusava
em manifesto que a constituinte era apenas o desejo de vingança dos
descontentes afastados pela revolução, dos políticos venais que a
revolução de 30 havia prometido acabar. Os interventores militares
seguiam a declaração do clube 2 de Outubro.
Em São Paulo, para dirigir os destinos do estado mais rico da federação,
açoitado pela crise progressiva da redução das exportações do café, foi
criado um governo provisório logo após a revolução de 30 composto por
gente de conhecida reputação e qualidade intelectual, como José Maria
Whitaker, Plínio Barreto, Vicente Rao, Cardoso de Melo e outros. Este
gabinete era um governo sem chefe, à espera da definição do Presidente
da República, que para espanto geral decide nomear o tenente João
Alberto para a chefia do gabinete em novembro de 1930. João Alberto
tinha sido membro da coluna Prestes, de quem se afastou, mas que ficou
com sua reputação manchada por sua desmedida ambição de enriquecimento.
Braço direito de Góis Monteiro, logo tratou de sabotar os atos do
gabinete, forçando a renúncia deste 40 dias depois.
João Alberto cria então a Legião Revolucionária, uma organização
paramilitar nos moldes das falanges fascistas com a finalidade de
substituir os partidos políticos.
Em 1 ano e meio de desmandos, arbitrariedades e desvio de recursos, o
descontentamento foi crescendo com a demissão em massa de funcionários,
prefeitos, policiais civis e elementos-chave da administração. O Partido
Democrático lança um manifesto rompendo com o interventor em 24 de
março de 1931. Como represália, João Alberto manda invadir a sede do
partido, prender seu presidente (Vicente Rao) e sucessivamente invadir a
sede do Diário da Noite para confiscar material subversivo.
Os paulistas se sentiam traídos por um militar que em plena crise, com
as multidões de desempregados, aumentava as despesas do palácio de 358
mil contos (no tempo de Júlio Prestes) para 621 mil contos. Na
reorganização da polícia civil, primeiro João Alberto suprimiu cargos
que economizaram 368 mil contos, depois criou outros cujas despesas
aumentaram para 1,385 milhão de contos de réis segundo o manifesto.
“A incompetência administrativa, o desmantelo dos serviços públicos, a
manutenção da ‘Legião Revolucionária’, a entrega de quase todos os
cargos, principalmente as prefeituras, a agentes militares da confiança
do interventor, o esbanjamento do dinheiro do povo, a multiplicação dos
departamentos caríssimos e desnecessários, a criação de repartições de
censura à imprensa, a preterição sistemática dos filhos de SP e de
outros grandes vultos da terra por elementos de fora, a expansão das
ideias comunistas, a infiltração do pensamento soviético, o desamparo do
comércio e indústria, o contraste entre a vida de fausto que levam os
governantes e a miséria de que padecem os sem-trabalho, a iminente
divisão do Estado em dez circunscrições que, confiadas a militares,
farão sumir os últimos remanescentes da autonomia municipal, tudo isso
nos adverte que o que o governo planeja é enraizar-se para sempre nestas
paragens e destruir o belo patrimônio moral e econômico que os
paulistas, a tanto custo e com tanta pertinácia, acumularam.” (vol. 1,
pg. 216)
O manifesto prossegue e chega a citar o descalabro da administração em
que técnicos notáveis foram substituídos por “gente bisonha vinda de
fora” nas palavras de Affonso Henriques.
Ao mesmo tempo em que se monta essa máquina oligárquica, enchem-se as
repartições de gente adventícia. Até juízes tem-se ido buscar fora do
estado, prossegue o manifesto.
Este manifesto teve repercussões em todo o Brasil: no RS diversas moções
de solidariedade foram feitas em defesa do Partido Democrático
paulista. Em consequência, Getúlio demite João Alberto, depois deste
deixar o tesouro paulista em uma terra arrasada.
Entretanto, os tenentes comandados pelo gabinete-negro de Góis Monteiro e
Osvaldo Aranha preparam uma resistência para sabotar o novo interventor
a qualquer custo, para que João Alberto retorne à governança do estado.
O novo interventor nomeado foi Laudo de Camargo, ocupando o cargo contra
a vontade, sabendo de antemão que não conseguiria governar com um
estado aparelhado pelos seguidores de João Alberto. Para culminar com
seu breve mandato, João Alberto manda um recado dizendo que não aceitava
a indicação de Numa de Oliveira para a Secretaria da Fazenda, exigindo a
imediata destituição deste: temia que uma devassa mostrasse a
roubalheira desatinada que havia imposto aos cofres do estado. Quatro
meses depois Laudo de Camargo manda uma carta a Getúlio renunciando.
Getúlio não responde, como sempre se mantendo indeciso. Laudo de Camargo
não espera mais e entrega o governo ao coronel Manuel Rabelo,
comandante da Região Militar.
Manuel Rabelo mostrou-se íntegro e digno do cargo. Restabeleceu a
liberdade de imprensa e de reunião, para escândalo do tenentismo que
pedia a Vargas a destituição deste militar fora do eixo do movimento. O
general permanece no cargo pela mesma indecisão com que Vargas assumia
para as demais contradições do exercício do poder.
A situação entretanto não era nada confortável ao interventor. O
Instituto do Café, órgão que havia sido criado para defender a lavoura,
transforma-se em um aparelho de apoio à ditadura e de João Alberto. Este
não se dá por vencido e parte em viagem pelo interior do estado em
busca de apoio dos prefeitos que havia nomeado.
Em 25 de janeiro de 1932, no dia do aniversário de São Paulo, um comício
monstro na Praça da Sé mobiliza 200 mil pessoas sob a chuva para clamar
pela constitucionalização do país. Em quinze de fevereiro, outro
comício monstro pedindo a constitucionalização. As coisas estavam
tomando um rumo tal que Getúlio nomeia Pedro de Toledo para interventor.
Como era paulista e conhecido magistrado e jurista, a medida viria
acalmar os ânimos exaltados, não fosse o gabinete-negro e as falanges de
João Alberto continuarem a trabalhar nos bastidores. A tática era a de
fazer com que o interventor fosse apenas uma figura decorativa, sendo
seus auxiliares designados pelos tenentistas ou revolucionários
autênticos.
A confusão não poderia ser maior: ninguém se entendia, todos brigavam e
disputavam entre si. O general Miguel Costa, comandante da força pública
de São Paulo, rompe com Góis Monteiro e pede demissão do cargo.
Os comícios se intensificam, seguidos por passeatas. A Liga Paulista
Pró-Constituinte, uma organização suprapartidária, lança manifesto
concitando o povo a reunir-se na Praça do Patriarca. Osvaldo Aranha vem
do Rio de Janeiro para tentar acalmar os ânimos. Nada consegue e é
obrigado a pernoitar no quartel da Força Pública para não ser esfolado
nas ruas. O movimento saía das instituições para as ruas. Fazer discurso
contra a ditadura tornou-se prática cotidiana. Neste meio tempo, Pedro
de Toledo forma seu secretariado à revelia das imposições do governo
central. É ovacionado e aplaudido por toda a sociedade.
Então ocorreu a famosa noite de São Bartolomeu paulista. O povo, depois
de saquear lojas de armamentos, resolve invadir a sede do Partido
Popular Paulista (PPP) na rua Barão do Itapetininga. Este partido,
fundado por Miguel Costa, tinha seus adeptos fortemente armados com
fuzis subtraídos da força pública. No tiroteio que se seguiu morreram os
estudantes que depois formariam a sigla MMDC (Miragaia, Miranda,
Dráusio e Camargo) que serviu como símbolo da revolução que rebentaria
em 9 de julho de 1932.
A revolução era comandada pela Frente Única Paulista que convocou os
paulistas às armas. A princípio ocorreram as rebeliões na força pública e
no exército, que aderiram ao movimento contra a ditadura. Sob o comando
do general Bertoldo Klinger — que havia rompido com o governo com a
indicação do Ministro da Guerra, o que tinha lhe custado a destituição
do comando da região militar do Mato Grosso —, a revolução mostrou-se
impotente para se organizar militarmente. Houve todo o tipo de fracasso:
apreensão do iate “Ruth” que trazia uma encomenda de armas no litoral
de Santos, pela Marinha, contendo milhares de fuzis e cartuchos.
Apreensão de 50 canhões antiaéreos, também pela Marinha, transportados
pelo navio Jaboatão. E, por fim, a falta com a promessa de incorporar 5
mil homens e munições de sua guarnição no Mato Grosso.
Na opinião de Affonso Henriques, o fracasso da revolução
constitucionalista deve-se a Bertoldo Klinger, que aconselhado a não
enviar nota de repúdio à nomeação do Ministro da Guerra, não só
contrariou seus colegas, como a irradiou aos quatro ventos, provocando
sua demissão e antecipando a conflagração antes que os preparativos
estivessem prontos. Isto é, investido no comando militar da revolução,
Klinger recebe a demissão, nomeia seu sucessor interino, promete suas
tropas e as tais tropas não chegam.
No Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros e Raul Pilla tentam a todo
custo convencer o interventor Flores da Cunha a apoiar os paulistas. Não
conseguindo, rebelam-se e são vencidos e presos. Em Minas Gerais, cujo
interventor era o ex-presidente Arthur Bernardes, ocorre a mesma coisa.
Sua rebelião fracassa, é preso e remetido ao Rio de Janeiro.
Sozinhos e com pouca munição e logística, os paulistas acabam se
rendendo 3 meses depois. A revolução derrotada no campo militar foi
entretanto vitoriosa no campo político. Getúlio sabia que precisava
reconquistar seu apoio principalmente do Partido Democrático de São
Paulo, que o havia apoiado nas eleições de 30, e que participou
ativamente na revolução constitucionalista. Para isso, convoca a
constituinte, estabelecendo o esdrúxulo critério da representação
classista. Nas eleições de 1933, pela primeira vez as mulheres
participaram como eleitoras.
Como era esperado, a Constituinte reelege Getúlio para mais um mandato.
Ele manobrava para ficar para sempre, enquanto pudesse ser sustentado
pelos militares. Mas agora, era presidente constitucional e não
golpista.
Na opinião reiterada de Affonso Henriques, ao longo dos 3 volumes de sua
obra, Vargas incitava o máximo de revoltas e insubordinações para
culpar a democracia. Quando os desmandos, desgovernos, impunidades,
denúncias, venalidades, etc, chegassem a um ponto de crise
institucional, Vargas fecharia o Congresso para acabar com os
desordeiros, agitadores e perigos externos.
Segundo este raciocínio, a Intentona Comunista de 1935 foi um presente
do céu. Henriques mantém sua posição de que o levante era controlado
pela polícia, que tinha informantes dentro do Comitê Central do partido,
o que é hoje em dia contestado. Em todo o caso, a rapidez com que a
revolta foi contida (na mesma noite em que estourou), não deixa dúvida
de que Prestes, preso mais tarde, tinha sido o responsável pelo fracasso
ao tomar uma decisão completamente precipitada. Além disso, como
demonstra o livro de William Waack (Camaradas), a organização do
movimento era completamente estabanada, com erros elementares de
segurança, uma situação que não poderia se esperar de Prestes com a
experiência militar e política que acumulara até então.
Com a experiência das revoluções que sacudiram o século XX, alguns
intelectuais distinguem a personalidade de seus participantes entre
revolucionários e revoltosos. O revolucionário é uma pessoa cuja atitude
racional se sobrepõe ao emocional, enquanto que o revoltado é aquele
tipo que pensa através da emoção. Para o revolucionário, o que conta são
os objetivos finais, as estratégias e a logística do empreendimento,
enquanto para o revoltado, o importante são as conquistas imediatas, os
efeitos morais, os discursos, os slogans, a comoção causada pelas ações.
É bem possível que Prestes fosse muito mais um revoltado do que um
revolucionário, embora tivesse comandado uma cavalaria pelos sertões do
Brasil, não significa que tivesse grande capacidade de organização. Um
comissário consegue aglutinar muita gente, mas não consegue colocar
essas pessoas em uma relação de convergência e conjunção. O fracasso da
Intentona serviu para que o espantalho do comunismo se propagasse por
todo o país. Ora, os comunistas eram um agrupamento muito pequeno, muito
menor que os Integralistas de Plínio Salgado, mas Vargas soube tirar
proveito, mesmo depois de todos os seus líderes estarem presos.
Segundo Henriques, Vargas manobrava para convencer a opinião pública que
o Congresso não o deixava governar. Toda a agitação, protestos,
invasões, depredações que ocorria no país era culpa do Congresso.
“O chefe do governo dizia-se impotente, com as mãos e pés amarrados,
incapacitado para governar. O regime de liquidação (apelido da
democracia na época) não o deixava desenvolver as potencialidades do
país”. (vol. 1, pg. 269)
Naturalmente, estas afirmações não eram feitas pelo próprio Vargas: eram
repetidas por seus acólitos em todo o país. Preparava-se a solução que
permitisse o continuísmo de Vargas no poder, já que seu mandato acabaria
em 1938.
Cumpre salientar que no período que vai de 1933 a 1937, Vargas criou os
sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho, exilou Lindolfo Collor
se apropriando de suas idéias relativamente à primeira Legislação
Trabalhista e propôs a introdução do salário mínimo no país, um assunto
que teve candente repercussão no Congresso, como não poderia deixar de
ser.
Como mestre na arte do despistamento, Vargas, ao assumir o poder em
1934, assim se manifestou:
“nunca me seduziram as regalias do Poder. Aceitando a
indicação do meu nome pela Assembléia constituinte, curvei-me ante o
dever de completar o programa esboçado nestes últimos três anos, pois
outros propósitos não podia ter quem sabe das agruras e inquietudes
peculiares à vida pública” (vol. 1, pg. 273).
O golpe de 37
O Brasil vivia a pior crise financeira desde a proclamação da república.
Em 1935, Vargas decreta moratória da dívida externa. O desemprego
campeava alto. Para subornar os militares, Vargas propõe aumento de
salário. Sabendo que isso seria jogar militares contra civis, os
próprios militares protestaram. Esses protestos foram amplificados para
motins e rebeliões que eram logo desmentidos. Não havia outra forma de
sair da crise a não ser a emissão de moeda. Esta por sua vez começou a
turbinar a inflação. A inflação provoca o descontentamento não só dos
funcionários públicos como de toda a população assalariada. Considerando
que o Brasil importava de tudo, desde gasolina até carvão, fármacos,
aço, produtos químicos, a desvalorização de 600% da libra esterlina (o
padrão monetário nos anos 30) no primeiro quatriênio do governo Vargas
significa enorme pressão inflacionária.
Em função desse quadro de crise surge a Aliança Nacional Libertadora,
não mais a Aliança Liberal dos anos 20, mas agora uma organização nos
moldes de uma frente ampla com vistas a lutar contra a ditadura, o
integralismo e o nazi-fascismo em franca ascensão. Henriques jura de pés
juntos que a inspiração da ALN nasceu nos subterrâneos do Palácio do
Catete. Ele foi tesoureiro da ALN e responsável pelo fichário dos novos
membros que aderiam espontaneamente. Ora, a ALN foi inaugurada em
cerimônia no Teatro João Caetano no começo de 1935, com uma enorme
concentração de líderes trabalhistas vindos de todos os recantos do
país. Esta inauguração termina em violento confronto com a polícia, com
um saldo de diversos mortos e feridos devido a uma tentativa de passeata
à meia-noite depois dos discursos inflamados de trabalhistas e
comunistas.
Henriques conta que tinha que trabalhar até altas horas da noite para
organizar as fichas dos aderentes, em média 3 mil novas assinaturas por
dia só de membros inscritos e pagantes. Isto significava um imenso
eleitorado em potencial para 1938, se naturalmente não houvesse 1937. Os
inimigos declarados da ALN eram os integralistas, e os confrontos se
tornaram inevitáveis. Em Petrópolis, Henriques participou de um comício
em 9 de junho, onde em passeata, em vez de se dirigir pela avenida
principal, o estandarte da manifestação envereda por uma rua secundária,
justamente em frente à sede do movimento integralista, onde agentes
provocadores tentam invadir o prédio. Os integralistas, escondidos às
escuras dentro do prédio, revidam com tiros e granadas e o escarcéu se
generaliza. Tempos depois, analisando as consequências do ato, Henriques
conclui que havia uma relação secreta entre os comunistas da ALN —
capitaneando a manifestação — e os membros da guarda-negra do Catete,
pois foram estes que obedecendo às ordens da polícia getulista
provocaram o confronto, completamente alheios às decisões da diretoria
da ALN, as quais Henriques tinha acesso devido ao seu expediente diário.
Fechada a ALN por ordem de Vargas, com base na Lei de Segurança Nacional
em 15 de julho de 1935, o debate se estendeu nos dias seguintes baseado
no argumento de que se preparava a subversão no país a partir de uma
revolução comunista orquestrada em Moscou. Para os aliancistas liberais,
como Henriques, isso parecia uma piada de mau gosto com a finalidade de
sufocar o movimento democrático (vol. 1 pg. 365). Mas, na verdade, por
uma incrível coincidência, Prestes entrara ilegalmente no país no mesmo
mês de 1935, vindo de Moscou, para preparar o levante que só ocorreu em
26 de novembro no RJ, precipitado pelas rebeliões antecipadas em Natal e
depois em Recife.
Derrotada a Intentona e presos seus organizadores em poucos dias, a
Câmara aprova uma emenda à constituição que dava poderes ao presidente
para declarar o estado de guerra, ficando o país sob o comando do
executivo; além disso, ficava o presidente com todo o poder sobre o
exército, com poderes de cassar as patentes de quaisquer militares da
ativa ou reserva; por último, o poder de demitir qualquer funcionário
público civil. O pretexto era a criação de poderes especiais para
combater o comunismo, mas ao final de 37 usou desses poderes para fechar
o Congresso, fazer intervenções em todo o país, censurar a imprensa e
promover a repressão mais generalizada e abrangente havida até então.
A repressão já vinha ocorrendo de forma indiscriminada a partir da
captura de Prestes. Prendia-se quem bem o regime queria. Por exemplo, em
março de 1936 “foram sumariamente presos o Senador Abel Chermont, os
deputados Otávio da Silveira, Domingos Velasco, Abguar Bastos e João
Mangabeira” (vol. 1, pg. 408). A minoria do Congresso reage com um
protesto contra a prisão e contra o pedido de licença para o processo. A
maioria da Câmara, controlada por Vargas, concede a licença. Dos quatro
deputados, 3 são condenados no famigerado Tribunal de Segurança
Nacional: João Mangabeira a 3 anos e 4 meses, Otávio da Silveira a 3
anos e 10 meses e Abguar Bastos a 6 meses.
E o que aconteceu com Abel Chermont, um senador da república? Em suas
próprias palavras “fui esbordoado: resisti. Subjugaram-me e
maltrataram-me a cano de borracha. Depois me deixaram 3 dias e 3 noites
sem uma xícara de café!...“ (vol. 1, pg. 410). Quer dizer: se um senador
da república era tratado a cano de borracha, imagine-se o resto do
populacho....
Ora, o Tribunal de Segurança Nacional tinha sido uma criação do próprio
Vargas, depois de um pedido à Câmara, para que fosse aprovado como um
projeto. Naquela época a constituição da república dizia no artigo 25
que “não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção”. Era pois
uma flagrante ilegalidade. Logo as vozes se levantaram clamando pela
inconstitucionalidade do pedido. Pois mesmo assim, com a maioria
assegurada, o tribunal é aprovado. Era como se o Congresso agisse contra
si no torvelinho da repressão que aumentava.
Chega 1937. Nas eleições previstas para o ano seguinte, se apresentam
Armando Sales de Oliveira, Plínio Salgado e José Américo. Se partisse
para uma reeleição Getúlio certamente seria derrotado, devido a crise
econômica e aos desmandos de sua polícia. Mas manhoso fazia de conta que
seu governo chegava ao fim. No discurso de 7 de setembro, despediu-se
comovidamente do povo brasileiro, pois que iria dentro em breve entregar
o governo ao seu legítimo sucessor.
Então aparece em 30 de setembro de 1937 o famigerado Plano Cohen. O
Ministro da Guerra distribui para a imprensa um material apreendido pela
polícia falando de um plano comunista com o objetivo de provocar
massacres, incêndios em propriedades, igrejas e empresas, roubos,
confiscos sumários de propriedades, desrespeito aos lares e às famílias.
Eram textos alarmantes, alguns deles extraídos da literatura marxista e
anarquista vigente, alguns com uma adaptação ao Brasil, pois era um
documento que ocupou 4 colunas dos jornais com capítulos como “Técnica
de Greve Moderna”, “Ação dos Incêndios”, etc.
Ora, a autoria do plano foi atribuída aos integralistas. Mas Henriques
então discute exaustivamente as circunstâncias do aparecimento e
posterior divulgação do plano e atribui a sua criação exclusivamente ao
gabinete negro chefiado por Góis Monteiro, tendo Filinto Müller como
participante.
Em consequência da agitação criada em torno do plano comunista, Getúlio
decide decretar o estado de guerra previsto na constituição reformada. O
pedido enviado ao Congresso foi aprovado por 138 votos contra 52.
Em 8 de novembro Armando de Sales Oliveira envia um manifesto aos chefes militares advertindo para os perigos que passa o país:
...”Se alguma força poderosa não intervir a tempo de impedir que se
cumpram os maus pressentimentos que hoje anuviam a alma brasileira, um
golpe terrível sacudirá de repente a Nação, abalando seus fundamentos
até as últimas camadas e mutilando cruelmente as suas feições..... Só
não vê claro quem não quer. Está em marcha a execução de um plano
longamente preparado, que um pequeno grupo de homens, tão pequeno que se
os podem contar com os dedos de uma só mão, ideou para escravizar o
Brasil. Não são homens que aparecem nas cristas das vagas populares, e
que, por estas, são levados ao poder com ímpeto irresistível para que
construam uma nova ordem política. Em lugar de ir de baixo para cima,
como o mundo de nossos dias oferecem tantos exemplos, a subversão das
instituições brasileiras está sendo realizada do alto, com todas as
armas que dispõe o poder. Há, de fato, quem esteja em desespero de
causa: — o Brasil.”
E termina seu manifesto dizendo: “a nação está voltada para os seus
chefes militares — suspensa, espera o gesto que mata ou a palavra que
salva.” (vol. 1, pg. 465)
O gabinete negro de Góis Monteiro recebeu o manifesto com um misto de
estupefação e confusão. Estava denunciado o que se preparava na surdina.
Com o golpe marcado para o dia 15, anteciparam para 10 de novembro.
Getúlio fecha o Congresso e passa a governar com poderes especiais.
Prisões em massa se sucedem. Vargas trata de eliminar todos os que se
sobressaíam na política. Persegue, prende e exila Pedro Ernesto,
prefeito do Distrito Federal e altamente popular. Depois força Flores da
Cunha a renunciar ao governo do estado do RS de forma humilhante. No
RS, onde estava concentrada a maior divisão do exército em equipamentos e
soldados, e onde a Brigada Militar era uma força considerável, Vargas
manda requisitar a Brigada Militar para se subordinar ao exército a quem
havia mudado de comando meses antes na fase preparatória, deixando
Flores da Cunha completamente sem resistência.
Decretando intervenção no RS, Flores da Cunha foge para Uruguaiana e se
exila na Argentina. O mesmo ocorre em São Paulo. A força pública é
incorporada ao exército, ocorrendo o mesmo com a polícia do Espírito
Santo, Pernambuco e outros estados.
Sabendo que os integralistas de Plínio Salgado eram um concorrente para
si, Vargas infiltra diversos agentes em uma parada organizada pelo
movimento para provocar quebra-quebra e incompatibilizar a opinião
pública com os Verdes. Henriques foi testemunha ocular desses episódios,
pois conhecia pessoalmente os agentes varguistas infiltrados nas
passeatas.
Se você acha que o Congresso Nacional hoje prima pela subserviência,
fique sabendo que no fechamento decretado por Vargas em 10 de novembro
de 1937, 80 parlamentares foram saudá-lo pela medida que os havia
liquidado. Por aí se vê como é a cara do nosso sistema político.
Na nova constituição (chamada ‘a polaca’) Vargas decretou o fechamento
do Senado, do Congresso e das Câmaras municipais: não haveria portanto
legislativo. A esse novo regime Vargas chamou de Estado Novo.
Os fatos mais importantes relativos ao Estado Novo, período que vai de 37 a 45, diz respeito ao:
- Exílio e perseguição de líderes políticos e intelectuais;
- Início do nepotismo na administração pública;
- Crise econômica sem precedentes, com o Brasil perdendo oportunidades sucessivas de se enriquecer com a guerra.
- Corrupção e roubalheira generalizadas em todos os escalões da
República. Falência administrativa do governo federal e rapinagem
extensiva em alguns estados, como São Paulo, com o governo do nefando
Adhemar de Barros.
- Fraude e contrabando nas fronteiras de pneus, farinhas, tecidos, cimento.
- Abandono da infra-estrutura do país, com a paralisação de estradas de rodagem e sucateamento da malha ferroviária.
- Aparecimento no país — pela primeira vez — de filas para
abastecimento de gêneros de primeira necessidade, como pão, leite,
carne, açúcar, etc., que a ditadura atribuía à guerra, mas que se sabia
serem causadas pelo descalabro promovido por negocistas infiltrados em
todos os órgãos do governo com a finalidade de se apropriarem de todos
os bens relativos a sua pasta. É desta época a cultura da água no leite e
do milho no café.
- Estabelecimento do mercado negro de bens e alimentos, do câmbio
negro e de uma monumental carestia de vida. Escândalo do abastecimento
d’água, no IBGE e muitos outros.
Um dos pontos mais trágicos da ditadura Vargas, e que hoje ainda
perdura, foi o imposto sindical. Esta excrescência foi criada para
financiar correntes operárias favoráveis ao regime de exceção à custa do
salário de um dia de trabalho dos operários. A este respeito, assim se
manifesta Affonso Henriques:
“O imposto sindical não era taxa nem imposto. Era uma extorsão ilegal
arrancada dos trabalhadores, que produzia um rendimento elevadíssimo,
cujo total exato seria impossível apurar, dada a sua clandestinidade.
Sabia-se apenas que todo o dinheiro, que correspondia a um dia de
salário de cada trabalhador e uma contribuição fixa de 30 a 5 mil
cruzeiros (conforme o capital) por parte dos empregadores, era recolhido
ao Banco do Brasil, que se tornou assim um organismo arrecadador, a
usurpar as funções das coletorias e recebedorias federais, para que mais
facilmente se praticasse o desvio do numerário arrecadado...
E a fiscalização da aplicação do dinheiro extorquido aos trabalhadores e
aos patrões, a título de imposto? Por incrível que possa parecer, ou
ainda que isso estarreça, a verdade é que a única fiscalização existente
se resumia na remessa pelo Banco do Brasil à Comissão do Imposto
Sindical e ao Departamento Nacional do Trabalho de um extrato da
conta-corrente do respectivo sindicato, do qual mais nada constavam,
como é óbvio, senão o quantum das retiradas e das entradas de numerário.
Daí a série de falcatruas que os jornais frequentemente noticiavam, e
dos escândalos que constantemente arrebentavam, provocando inquéritos
rumorosos, que atiraram alguns líderes trabalhistas na cadeia, quando em
desgraça, pois os demais continuavam impunes. É que essa gente tinha as
mãos livres e podia fazer do dinheiro o uso que entendessem.
Mas isso ainda não era nada. Vinte por cento do imposto sindical devia
ser encaminhado às federações e confederações sindicais, para sua
manutenção. O dinheiro desaparecia repentinamente, porque persistia a
falta de fiscalização do seu emprego. Ficava no Rio de Janeiro, no
Ministério do Trabalho, subtraído, guardado ou aplicado, não se sabe
como. Havia uma Comissão do Imposto Sindical, que era presidida pelo
próprio titular da pasta e constituída de membros que ele mesmo
selecionava a dedo e nomeava. Dessa Comissão, não fazia parte nenhum
representante do Ministério da Fazenda. Seus atos não escapavam ao
reexame do Tribunal de Contas. Em suma: essa Comissão, que, em última
análise, se resume à pessoa do Ministro do Trabalho, não fazia apenas a
política demagógica do governo através do “peleguismo”, senão muito
mais: fazia a própria política do Partido Trabalhista Brasileiro e
contribuía para a prosperidade pessoal de muitos de seus membros.
Eis aí a situação em que havia caído o País.... Dos sindicados se exigia
apenas que o dinheiro fosse retirado mediante cheques assinados pelo
tesoureiro e visados pelos presidentes dos sindicatos. E eram quantias
vultosas, milhões de cruzeiros que tomavam destinos que nunca eram os da
conveniência dos pobres trabalhadores dos quais haviam sido ilegalmente
extorquidos.... Era, pois, daí que vinha o dinheiro para as campanhas
“queremistas”, para o suborno dos “pelegos”, para o pagamento de grossas
propinas aos celerados da “guarda - pessoal”, para as “paradas
trabalhistas” e, sobretudo, para as farras sem conta dos favoritos do
Catete, bem como para manter a Rádio Mauá, o DIP e tantas outras
organizações desse tipo.” (vol. 2, pgs 200-201)
Quando se compara com o veto do presidente Lula à fiscalização do
Tribunal de Contas sobre o imposto sindical, podemos ver com quem esse
governo se parece, e como é difícil, no campo da venalidade, criar algo
de novo no Brasil.
Legislação Trabalhista e Previdência social
Em todos os compêndios de história, em todos os cantos do Brasil, se
atribui a Getúlio Vargas a legislação trabalhista. A este assunto, assim
se refere Affonso Henriques:
“Muito antes do Sr. Getúlio Vargas ter se apossado do poder, já se havia
iniciado no país a legislação social trabalhista. A primeira dessas
leis teve lugar em 1919, sobre acidentes de trabalho, que ficou
intitulada “Lei Andrade Bezerra”. O seguro social teve início em 1923,
com a “Lei Eloi Chaves”. Nesse mesmo ano foi criado o Conselho Nacional
do Trabalho. Em 1926 e 1927 promulgou-se a lei de férias para os
comerciários e industriários. Em matéria sindical, havia a lei de 1903 e
a de 1907.
Poder-se-ia objetar, com justificadas razões, que a maioria da
legislação social do Brasil veio depois de 1930. É verdade. A maioria
dessa legislação veio depois de 1930, mas não por iniciativa do Sr.
Vargas, antes pelo contrário, surgiu exatamente durante o curto período
democrático que vigorou de 1934 a 1937, ou mais precisamente, a partir
da Constituição de 1934, regime e Constituição que foram ferozmente
combatidos pelo ditador, que não descansou enquanto não liquidou com
ambos, com o golpe de estado de 1937.
Pois foi justamente com a Constituição de 1934 que o trabalhador
brasileiro conseguiu a maioria de suas reivindicações, tais como o
horário de 8 horas, seguro social obrigatório, sindicalização,
regulamentação do trabalho de menores, de mulheres, etc. A lei de mais
vasta aplicação em matéria social foi baixada em 1935 e recebeu o nr.
62, depois incorporada à Consolidação das Leis do Trabalho. Essa lei,
que regula a despedida injusta e estabelece a indenização, nada teve a
ver com o Sr. Getúlio Vargas. Foi votada pela Câmara dos Deputados e nem
sequer foi sancionada por Vargas, mas pelo Sr. Antonio Carlos Ribeiro
de Andrada, que se achava interinamente na Presidência da República....
...No entanto, a própria criação do Ministério do Trabalho, que foi a
única coisa que realmente se deve à Revolução de 30, foi obra
exclusivamente de um homem: Lindolfo Collor, e esse homem morreu
abandonado, no exílio, esconjurando Vargas. E como o Sr. Lindolfo Collor
veio para o governo do Sr. Getúlio Vargas? Teria sido um elemento de
livre escolha do Sr. Getúlio Vargas e, nesse caso, não mereceria o Sr.
Vargas o crédito da escolha desse grande idealista? Nada disso. O Sr.
Lindolfo Collor entrou para o gabinete do Sr. Getúlio Vargas a
instâncias do Sr. Borges de Medeiros. Na realidade, o Sr. Collor havia
sido um grande admirador e correligionário político do Presidente
Washington Luis e nunca se aproximara muito do caudilho dos Pampas, do
qual tinha profundas desconfianças e ressentimentos. Jornalista emérito,
colunista do “Jornal do Comércio”, diretor de “A Pátria”, restaurador
de “A Tribuna”, diretor de “A Federação”, redator-chefe de “O País”,
ex-deputado pelo RS e líder da bancada do seu Estado, o Sr. Lindolfo
Collor tinha razões de sobra para conhecer o Sr. Getúlio Vargas. Sabe-se
que durante todo o tempo que o Sr. Collor esteve organizando o
Ministério do Trabalho, nenhuma ajuda, nenhum estímulo recebeu do Sr.
Vargas, que o julgava um utopista incorrigível. A curta permanência do
Sr. Lindolfo Collor no Ministério do Trabalho se deve exclusivamente ao
imenso prestígio que ainda gozava, naquela época, a figura veneranda do
Sr. Borges de Medeiros.” (vol. 2, pgs. 207-209)
“Homem de princípios, depois do nefando assalto e empastelamento do
“Diário Carioca”, verificado em 1932, o Sr. Lindolfo Collor abandonou
definitivamente o cargo que exercia e regressou à sua terra, o Rio
Grande do Sul, onde foi recebido debaixo de estrondosas manifestações de
apreço de seus conterrâneos, conjuntamente com os Srs. João Neves da
Fontoura e Maurício Cardoso, que haviam tomado atitude idêntica. Dessa
data em diante, o Sr. Collor abandonou a política, passando vários anos
no exílio, perdendo assim o Brasil um dos seus grandes líderes.
Na verdade, a previdência social no Brasil, por ação dos poderes
públicos, teve início em 1923, quando pela Lei nr. 4.682 foram criadas
as Caixas de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários. Em 1926 foi o
âmbito da previdência social ampliado a todas as estradas de ferro do
país e estendido às entidades portuárias e à navegação marítima. Note-se
que essas Caixas estavam perfeitamente organizadas, com sua
contabilidade escriturada de forma a fornecer, com rapidez, os dados
sobre os contribuintes e facilitar assim a concessão dos benefícios. Não
havia negociatas e ninguém, no governo, se lembrara de transformar
aquelas instituições sagradas dos trabalhadores em ninhos de favoritos e
afilhados, nem em focos de escândalos e roubalheiras. Tudo se fazia no
silêncio que deve caracterizar os governos verdadeiramente democráticos,
onde não pode prevalecer o culto de individualidades.” (vol. 2, pg.
210)
Para Henriques, a Previdência Social foi uma jogada esperta para Vargas
criar empregos e sinecuras rendosas; estabelecer uma máquina burocrática
gigantesca para fins políticos; conseguir vastos capitais para grandes
negociatas, compra de terrenos, construção de apartamentos de luxo,
jogatina, depósitos em bancos duvidosos, etc. Tanto assim, que a lei
previa a contribuição tripartite em partes iguais para empregados,
empregadores e Estado. Só que do Estado não saiu nada, ao contrário, foi
o Estado que se apossou da Previdência para a farra dos financiamentos
aos amigos. Considerando que os juízes só vieram a ter desconto da
Previdência na reforma implantada por FHC, pode-se ter uma idéia de como
os privilégios perduram neste país.
“As nomeações feitas por Getúlio para os Institutos foram, com raras
exceções, erros palmares... Aristides Casado, um cavalheiro que nunca
tinha ouvido falar de administração, nem mesmo de uma mera
quitandinha.... quase arruinou completamente a organização de um dos
institutos. A sua ignorância em matéria administrativa escandalizou de
tal forma o país quando veio a público que, desconfiando de todo mundo,
quis ele próprio lançar as contribuições e as despesas num pequeno livro
”Caixa”, à moda das estâncias do Rio Grande, de onde viera. A onda de
protestos que então se levantou, forçou o ditador a substituí-lo. Os
seus substitutos foram todos mais ou menos da mesma espécie. Houve até
um caso, no Instituto dos Comerciários, da nomeação de estancieiro do
Rio Grande que mal sabia assinar o nome e por isso os documentos tinham
que ser postos sob sua mão e o lugar da assinatura devidamente indicado,
por um auxiliar solícito.... Para se dar uma idéia do descaso do Sr.
Getúlio Vargas pelas instituições máximas dos trabalhadores, basta citar
a nomeação por ele feita do chofer de seu filho Lutero Vargas, Sr. José
Cecílio Marques, para o alto posto de presidente do Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes de Cargas
(IAPETEC). A única credencial desse homem, além de ser chofer de seu
filho, era a de ser um eficiente cabo eleitoral. Esse pobre homem, como
era natural, nada entendendo do complexo mecanismo da instituição, meteu
os pés pelas mãos e acabou sendo um joguete nas mãos dos espertos e
velhacos que pululavam em torno do Instituto. A sua permanência no cargo
foi, como é de ver, bem curta. Não tardou que caísse em desgraça com os
Vargas. Pouco mais de um ano depois, recebeu recado do Sr. João
Goulart, então Ministro do Trabalho, para que pedisse demissão. Esses
recados se repetiram e o homem, tal como o ex-ditador (isto foi em
1952), não queria nem por nada largar o cargo. As veleidades da posição
tinham-no cegado. Ao último desses recados impertinentes do Sr. Goulart
ele respondeu: ‘A mão que me nomeou foi a mesma que nomeou você. E ela
pode me demitir. Mas eu não peço demissão...’ “ (vol. 2, pg. 214)
Esse foi o homem que os trabalhistas veneram como o “pai dos pobres”. E
Affonso Henriques conclui com seu tino de contador para o ano de 1956:
“enquanto no Brasil, para pouco mais de 4 milhões de contribuintes
existiam 42.500 empregados nas tarefas da previdência, nos EUA, para 10
milhões de segurados existiam 21.594 empregados.... esse formidável
exército burocrático está consumindo parte considerável das reservas que
sustentam a solidez financeira da instituição em seus futuros
compromissos aos contribuintes”.... (vol. 2, pg. 216)
E compara a cobrança de 2% do salário do trabalhador nos EUA contra 8%
no Brasil. E de 2% dos empregadores nos EUA, totalizando 4% contra 18% a
24% no Brasil daquela época. E aqui o dinheiro da previdência foi
utilizado para a compra de terrenos na periferia do Rio de Janeiro,
criando uma especulação imobiliária danosa para a cidade e para as
construtoras de então. Centenas de milhares de metros quadrados eram
adquiridos numa competição que fazia subir, dia a dia, o preço dos
terrenos, sem que, na realidade, houvesse valorização, pois as áreas,
uma vez adquiridas, eram abandonadas à expansão dos capinzais.... Se uma
instituição adquiria uma área ao preço de 2 cruzeiros o metro quadrado,
outra logo era convidada a fazer negócio com o vizinho, por preço
superior, pois os terrenos estavam escasseando. Com essa política
anti-social de competição entre os Institutos e as Caixas, os terrenos
no sertão da cidade maravilhosa passaram de cruzeiro e meio a dez e mais
cruzeiros o metro quadrado, sem que, na maioria deles, se houvesse
construído uma choupana sequer!” (Depoimento de Cupertino Gusmão, vol.
2, pg. 219)
Havia uma multiplicidade de institutos, chamados ora de Institutos (5)
ora de Caixas (40). Eles criavam um aumento exorbitante das despesas
administrativas, dificuldades e confusão na classificação dos
contribuintes e até na terminologia das contas. Havia 45 presidentes, 45
vice-presidentes, 45 seções de contabilidade, veículos, móveis,
utensílios, máquinas e por aí afora, cada qual operando por conta
própria. Este exército de funcionários naturalmente servia de ponte
entre a popularidade do tirano e o novo Brasil dos serviços públicos,
das Marias Candelárias, dos carrapatos orçamentívoros e dos políticos
calhordas que nunca mais largaram o osso chamado Brasil. Com a
multiplicação dos cargos públicos,
“...muita gente acreditava nas promessas do Sr. Getúlio Vargas de que
daria emprego a todo o mundo, reduziria o custo de vida, etc, o palácio
do Catete vivia assaltado por uma multidão de pedintes de emprego, sem
as necessárias credenciais de áulicos influentes. Decidiu-se então criar
o regime moralizador do concurso, sem que se prejudicassem de maneira
alguma os protegidos. A coisa funcionava de maneira muito simples:
nomeava-se o protegido interinamente para qualquer função. Abria-se mais
tarde um concurso para preencher a respectiva vaga. O protegido depois
de passar meses, e às vezes anos, dentro da repartição, tinha tempo de
sobra para aprender o mecanismo interno e preparar-se para o concurso,
competindo assim em evidentes condições de superioridade com os que
vinham de fora.... Se eram reprovados, depois de lavradas as respectivas
demissões e nomeados os candidatos aprovados, a maioria dessa gente era
novamente nomeada, não obstante terem dado prova flagrante de sua
completa incapacidade para as funções. Voltavam pois à interinidade e
recomeçava-se o círculo vicioso, isto é, abertura de novo concurso,
inscrição automática, reprovação e renomeação. Se, depois de uma série
de fracassos conseguiam esses felizardos ser aprovados, eles teriam o
direito de contar, para o feito de antiguidade, todos os períodos de
interinidade acumulados...” (vol. 2, pgs. 252-253)
Portanto, a atribuição a Vargas de “grande gesto”, de “grande
sensibilidade”, de “grande sabedoria” por ter criado a Previdência
Social demonstra o quanto de obscurantismo e ignorância são propalados
por nossos historiadores, articulistas e políticos. Ora, o tirano nada
mais fez do que por em prática uma política de criar enormes recursos
monetários para a distribuição clientelística. Já nos primórdios da
previdência, todos os homens em condições intelectuais de avaliar a
questão securitária avisavam que ela iria quebrar se o seu custeio fosse
indiscriminado. E de lá para cá o que vimos foi exatamente isso: golpes
sobre golpes nos aposentados do setor privado para compensar ora o
descalabro, ora o déficit crônico, a tal ponto que hoje em dia (2010) o
contribuinte (particular, pois sim) não sabe mais como calcular o valor
de sua aposentadoria, ficando a matemática a critério exclusivo dos
burocratas da previdência.
A tragédia do serviço público brasileiro merece um pouco de paciência do
leitor. Essas coisas não são comentadas em campanhas eleitorais e
raramente aparecem na imprensa – quase sempre comprometida com as
“verbas públicas”. Só mesmo quem viveu o serviço público pode saber por
que o Brasil é um país atrasado. E não apenas isso, mas como o atraso se
propaga indefinidamente. Veja por exemplo o que fala Affonso Henriques
sobre o serviço público na época da ditadura Vargas:
“Além dos interinos, havia outra porta larga para a admissão de
protegidos, dos ‘empistolados’. Trata-se dos ‘contratados’, admitidos
como os interinos, sem prestação de provas. Como é lógico, só técnicos
ou especialistas poderiam ser contratados. Surgiram então técnicos de
todos os tipos e em todos os ramos de atividade humana. O “Diário de
Notícias” de 20/4/44, portanto em pleno regime de terror do Estado Novo,
publicou cautelosamente uma nota sarcástica sobre o assunto, de que
transcrevemos os seguintes trechos:
“Temos à mão, por acaso, uma relação de contratos publicada em recente
número do ‘Diário Oficial’. E é curioso observar que, por exemplo, uma
professora de Desportos Aquáticos vai ter vencimentos iguais aos de um
médico leprologista (Cr$2.600); que um técnico de encadernação vai
ganhar o mesmo que um químico analista (Cr$1.800). A relação revela
também a existência de um ‘Técnico Especializado em Medicina
Administrativa e Seguros Sociais’. Salvante a redundância pelo menos
aparente, da expressão “técnico especializado”, pois parece que o que
distingue o técnico é exatamente a sua especialização, não seria
desinteressante saber em que consiste essa ’Medicina Administrativa’,
que não consta dos programas dos nossos cursos médicos. Aliás, também há
‘técnicos especializados em ... livrarias e edições’... (vol. 2, pg.
254)
O empistolamento se traduz no
modus operandi do regime de
contratação de funcionários. Praticado pelos piores governos da
República, representa um enorme poder de aliciamento eleitoral enquanto
uma reforma política não proibir funcionários contratados de exercer o
voto – coisa que nem sequer se cogita nos meios pensantes brasileiros –,
como única forma possível de acabar com a praga do empreguismo. O
empistolamento divide a sociedade entre “afilhados” e “desafilhados”
políticos. Aos afilhados tudo, aos sem um padrinho, a exclusão social.
Eis o que conclui Henriques:
“A técnica para a sabotagem dos concursos e de seus candidatos era
verdadeiramente diabólica. Submetiam-se os candidatos a uma guerra de
nervos, pela demora e incerteza em chamá-los às provas, eliminando-os
pelo cansaço, pela exaustão, pela descrença. Convocavam-se milhares de
candidatos, obrigando-os a despesas, a perda de tempo, a alterações de
vida e de saúde, na esperança de melhoria social ou econômica, e,
depois, lhe arrebatavam as vagas existentes para as dar a quem não
despendeu esforço, nem demonstrou preparo; sabotavam-se concursos para
beneficiar os interinos apadrinhados e incompetentes, temerosos de
perderem a sinecura conseguida. Criavam-se, ademais, cursos de
aperfeiçoamento não para ilustrar servidores, mas para dar empregos e
títulos a professores que nunca ensinaram e conheciam menos da matéria
de que certos ouvintes de suas aulas. Mandavam-se para o exterior, por
conta do Estado, para aperfeiçoarem conhecimentos inexistentes ou
desnecessários, a alguns felizardos que viajavam como turistas e nada
traziam de útil aos serviços públicos.” (vol. 2 , pg. 254)
Alguma semelhança com um governo que conhecemos?
O DIP
O Departamento de Imprensa e Propaganda foi uma das maiores invenções
criadas pela ditadura para o culto da personalidade, o controle da
imprensa e a desinformação. No tocante ao culto da personalidade,
qualquer escritor de segunda, qualquer “cabeça de aluguel” que fizesse
uma obra laudatória a Getúlio e enviasse ao DIP a teria publicada.
Depois era só esperar a nomeação para uma sinecura no governo. Com isso,
dezenas de livros, artigos e teses eram escritos e publicados. Outra
especialidade do DIP era fazer de Vargas o autor das obras prontas.
Estradas construídas em outras administrações – como a Rio-Petrópolis –
passaram ao acervo das obras do ditador: “fotografias eram
constantemente publicadas em livros de propaganda, principalmente os
destinados ao estrangeiro, de maneira a dar a impressão de que havia
sido construída pela ditadura.” (vol. 2 pg. 264). No combate à seca do
Nordeste, se dizia que “durante toda a vida política do Brasil não se
havia construído um só açude no Nordeste para o combate à seca e que
Getúlio Vargas havia construído mais de 200...”
Alguma semelhança com um presidente que conhecemos?
Não obstante o controle da imprensa, a censura direta de notícias,
editoriais e até notas nos jornais, a ditadura inventou a Hora do Brasil
e encarregou o DIP da redação. Um amontoado de elogios e hosanas ao
governo diariamente irradiados em cadeia nacional que perdura até hoje,
comprovando que o Brasil só se reforma aos pedaços, aos poucos, e assim
mesmo em alguns administrações acanhadas como os 2 períodos de governo
de FHC.
A sabujice ao ditador chegou ao cúmulo de elegê-lo para a Academia
Brasileira de Letras, em um espetáculo tão humilhante que alguns poucos
“imortais” se recusaram a participar das sessões enquanto o ditador
estivesse entre seus pares. Ora, sabidamente Vargas não tinha dotes
literários, era intelectualmente obtuso, um fracasso em matemática e
finanças, e um ignorante completo em matéria de administração. Mas para
os brasileiros engajados nas benesses do seu governo, isto não era
importante, como hoje em dia não é relevante que um apedeuta ocupe a
presidência da república para aqueles educados na pedagogia do
“oprimido”. As anedotas em torno dos dotes literários de Vargas eram
generalizadas. Um jornalista assim se referia: “a veleidade do
presidente parecia doença. Sabe lá o que é não possuir certa aptidão e
ser apaixonado por ela? Eu, por exemplo, sou louco varrido por saxofone.
Considero-o um instrumento divino, grave e melodioso, mas nunca pude
tocar duas notas certas”.
O diabo é que para ser membro da Academia é preciso que alguém morra. E
Vargas queria a veleidade da cadeira muito antes que alguém morresse. O
tempo corria e nada de mortes. Até que um belo dia, por um descuido
indesculpável, um imortal passa para o outro mundo. Para que as coisas
não ficassem chatas e se evitasse a qualquer custo a competição pela
excelsa vaga, os amigos literatos do tirano promovem uma reforma nos
estatutos da Academia para que o indicado pudesse ser admitido por
aclamação em vez de eleição. E lá vai Vargas vestir o fardão dos
imortais e receber os aplausos.
A Queda de Vargas
Finda a Segunda Guerra em 1945, o Brasil desperta para a vitória da
democracia e do liberalismo e começa a levantar-se. Os mais célebres
exilados de Vargas (Armando de Sales, Octávio Mangabeira e Paulo de
Nogueira Filho) começam a ganhar habeas corpus do Supremo Tribunal,
coisa que lhes foi negada nos anos de chumbo. Professores antes
demitidos, são anistiados, a UNE convoca uma campanha pela anistia
promovendo comícios por toda a parte. A opinião pública força Vargas a
fazer concessões. Os presos políticos são libertados e, para espanto
geral, eis que Prestes sai da prisão apoiando seu carrasco.
Foi um dos maiores choques na opinião pública e um acontecimento
histórico que denegriu a tal ponto o movimento comunista brasileiro que
nunca mais o tornaria respeitado, ao menos enquanto estivesse comandado
por Luis Carlos Prestes.
A coisa se passou da seguinte forma: estando preso e com imposição de
silêncio, Prestes recebe a visita de João Alberto (seu velho companheiro
dissidente da coluna, a quem ele dizia peremptório que as pessoas
tomassem cuidado com João Alberto por causa de sua desonestidade), agora
chefe de polícia do Distrito Federal. Ninguém soube nada da conversa.
Como Getúlio, Prestes passou 9 anos na prisão e nunca foi capaz de
escrever uma linha sobre seu testemunho pessoal e experiências
políticas. Nada transpirou dessa conversa, exceto que Prestes foi
imediatamente liberado e “logo que saiu [26/4/45], prestou declarações à
imprensa favoráveis ao ditador, declarando que Vargas deve continuar à
testa do governo, estarrecendo todo o mundo” (vol. 2, pg. 321).
“Como se justifica que esse homem, o ‘cavaleiro da esperança’, o ídolo
das massas, o comandante da ‘Coluna Prestes’, o homem, que, em 1930,
recusou o cargo de Ministro da Guerra da ditadura; que, naquela época,
num vibrante manifesto ao povo, não só denunciara Getúlio Vargas como
traidor do povo, como também a vários próceres daquela revolução; que em
1935, no famoso manifesto de 5 de julho, concitava as massas e os
militares a se levantarem contra o ditador; que, depois de preso,
recusou-se altivamente a ser julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional
...; que teve a esposa presa e, não obstante o adiantado estado de
gravidez, deportada para a Alemanha, onde Vargas sabia perfeitamente que
ela seria assassinada nos campos de concentração (como o foi); como se
justifica que um homem, depois de tudo isso, venha a público e se
declare favorável ao ditador? “(vol. 2, pg. 321)
Eis aí a personalidade de Prestes. Essa atitude provocou mais baixas em
seu partido do que se poderia imaginar. O pessoal de esquerda, que tinha
se sacrificado na luta contra a ditadura, com não poucas sequelas do
prolongado regime de Vargas, de repente tem que engolir o apoio de
Prestes ao ditador conchavado com seu chefe de polícia em um encontro na
cela do presídio?!
Estava claro que Vargas tinha colocado em marcha mais um plano
continuísta, agora com apoio dos comunistas, já que o fascismo tinha
sido derrotado. “Vargas repetia-se a si mesmo com pasmosa insistência e
até monotonia. O Plano a ser posto em ação seria o mesmo levado a efeito
em 1933 e 1934 quando, premido pelo movimento constitucionalista de São
Paulo, viu-se obrigado a aceitar a volta do regime democrático no País.
Isto é, a eleição de uma assembléia constituinte com a maioria dos
respectivos membros escolhidos a dedo pelos interventores, que não mais
eram do que títeres e depois eleger-se, não pelo voto direto do povo,
mas por essa assembléia constituinte.” (vol. 2, pg. 324)
Considerando que Hitler se suicidara em 30 de abril, vale à pena
acompanhar os acontecimentos cronologicamente. Em 7 de abril, quando o
destino da Alemanha estava selado, Prestes envia um telegrama a Vargas
(que estava em Petrópolis) dizendo congratular-se com ele pelo
restabelecimento de “relações com o heróico povo soviético. São gestos
desta altura e fatos assim concretos e de tão evidente cunho democrático
que os patriotas reclamam de V. Excia., na sua qualidade de Chefe da
Nação e comandante supremo de suas Forças Armadas, .... Urge agora para
que se restabeleça a confiança popular nas inclinações democráticas de
V. Excia, a decretação imediata da anistia, com exclusão do meu caso
pessoal, se necessário, e que seja assegurada, sem maior demora, a livre
organização de partidos políticos para que estes, por seus
representantes autorizados, possam intervir na redação de uma lei
eleitoral capaz de assegurar as eleições livres e honestas que reclama a
nação....”(vol. 2, pg. 325)
Este telegrama de Prestes vinha no bojo das manifestações que estavam
ocorrendo no país. Em fevereiro, José Américo (candidato em 1938) faz um
violento discurso contra a ditadura. O jornal “Correio da Manhã”
publica integralmente desobedecendo a censura. Em março, Getúlio no seu
estilo gaudério resolve convidar Dutra para ser seu sucessor sabendo que
ele iria declinar. Para espanto de Getúlio, Dutra aceita em 13 de
março. Nesse meio tempo, a oposição se reúne em uma coalizão que
denomina de União Democrática Nacional (UDN). A situação se estrutura
fundando o Partido Social Democrático (PSD), enquanto os trabalhistas
fundam o PTB.
Em 14 de abril João Alberto visita Prestes na prisão; em 17 de abril o
Brigadeiro Eduardo Gomes dá uma entrevista dizendo-se candidato à
sucessão presidencial pela UDN; em 18 de abril, Vargas decreta a
anistia-geral; em 26 de abril Prestes dá a entrevista apoiando Vargas
para espanto geral.
Em 1º de maio (já com a notícia da morte de Hitler circulando pelo
mundo) Getúlio faz o discurso do dia do trabalho ainda no velho estilo
fascista. Em 11 de maio regressa do exílio Otávio Mangabeira.
O quadro parece ameaçador. Milhares de apaniguados nos sindicatos, nas
Caixas de previdência, no funcionalismo inchado de partidários, todos
querem preservar os cargos. Surge o movimento queremista, uma
denominação dos primeiros brados gritados em coro em um comício no dia
20 de agosto de 1945 que diziam: “Queremos Getúlio”, “Queremos Getúlio”,
gritavam nos degraus da escada do Palácio Guanabara, enquanto Getúlio
aparecia para provocar com sua incrível técnica de despistamento: “ –‘já
fazem 15 anos que estou no poder. Vocês não acham que tenho direito de
descansar?” ‘- Não, não! V. Excia não pode nos abandonar!’, estertoram
os pelegos” (vol. 3, pg. 329). Os queremistas deixam o palácio e em
manifestação partem para o Largo do Machado onde fazem outro comício,
depois pela Rua do Catete apedrejam a Faculdade de Direito, depois
chegam no centro da cidade sempre em passeata, fazendo algazarra em
frente às redações dos principais jornais sem que nenhum policial
interviesse.
Esta situação contaminou todo o país. Manifestações pelas eleições
começaram a ocorrer nas capitais, com comícios de ambos os lados. No
campo institucional, criou-se uma confusão legal para convocar eleições.
Pelo decreto nr. 7.586 de 28 de maio de 1945, ficou disposto que as
eleições para presidente da república se realizariam no diz 2 de
dezembro e as de governadores e representantes das assembléias
legislativas estaduais, no dia 6 de maio de 1946 (cinco meses depois).
Ocorre que com o desenrolar dos acontecimentos Vargas percebe que o novo
presidente da República poderia tomar posse e destituir todos os
interventores antes das eleições de maio de 46, provocando uma
reviravolta eleitoral. Tinha cometido um erro que precisava se
corrigido. Para isso, baixa o decreto-lei 8.063 antecipando as eleições
para governadores e representantes das assembléias estaduais para a
mesma data da eleição presidencial. Ele ainda procurava uma brecha para
se recandidatar sob o calor das massas queremistas.
A onda de protestos que se seguiu foi a gota d’água para a deposição
de Vargas. O decreto de Vargas dava poder aos interventores de elaborar
as constituições estaduais por decreto. Com isso ficava claro que eles
preparariam as eleições ao seu modo, que era o que Vargas queria. Era
mais do que evidente que todos os interventores tinham a faca e o queijo
na mão para serem reeleitos. A temperatura política começou a subir
violentamente.
Além disso, Vargas havia editado outro decreto-lei de nr. 7666 em que
“instituía poderes absolutos para intervir em todas as empresas
comerciais, industriais, agrícolas e similares, inclusive editoriais,
jornalísticas e de radiodifusão, bem como expropriar qualquer empresa,
fixando-lhe o valor de seus bens e pagando-lhe a importância da
avaliação em títulos do Tesouro Nacional amortizáveis em 40 anos. O
mesmo decreto privava de toda a ação legal as empresas eventualmente
afetadas e estabelecia que não poderiam recorrer à Justiça e não teriam
direito a nenhum amparo judicial ou mandado de segurança”. (vol. 2, pg.
336)
Esta lei foi chamada “Lei Malaia” e procurava manter Vargas a todo custo
no comando do Estado. Logo os candidatos concluíram que não poderiam
participar das eleições com Vargas no Poder. Em uma reunião dos
generais, em que participaram Góis Monteiro, Dutra (candidato) e Eduardo
Gomes (candidato), juntamente com todo o alto comando, decidiram que só
haveria uma solução para a crise institucional: a deposição de Vargas.
Com isso Góis Monteiro passa ao comando supremo do Exército, a Marinha e
Aeronáutica lhe hipotecam apoio e a notícia é levada a Vargas, que
propõe várias fórmulas conciliatórias, todas rejeitadas. Na noite de 29
de outubro de 1945, numa conferência com o general Cordeiro de Farias, o
ditador decide renunciar.
Como combinado, no dia seguinte assume o governo provisório o Presidente
do Supremo Tribunal José Linhares em uma pequena cerimônia. A ditadura
chegava ao fim.
O governo Dutra
O que acontece com uma ditadura de 8 anos em que o governo havia sido
aparelhado por todos os escalões com os apaniguados de Vargas, a ponto
de confundir o Estado com o próprio getulismo? Como ficariam as
instituições assoberbadas de corruptos, negocistas, aproveitadores,
chefetes inescrupulosos, auxiliares venais, funcionários privilegiados,
pelegos piqueteiros, banqueiros enriquecidos com o dinheiro público,
industriais cevados nas mamatas das reservas de mercado, fornecedores
locupletados com negociatas milionárias com departamentos e órgãos do
governo?
Essa gente arregalou os olhos e tratou de por panos quentes na situação.
Enquanto a opinião pública esclarecida, se não sofredora direta, ao
menos humilhada pelos desmandos do tirano clamava para que os crimes
praticados durante a ditadura fossem esclarecidos e seus autores
punidos, começando pelo presidente, a reação não se fez por esperar.
Embora Góis Monteiro em suas memórias jure de pés juntos que a cúpula
militar queria punição para Vargas, esta não aconteceu. Com apoio dos
comunistas, que lutavam pela constituinte e não pela sua punição,
transformados então em força contra-revolucionária, Vargas deixara o
poder sem que lhe faltassem aliados para manobrar para que tudo ficasse
por isso mesmo.
“A não punição do Sr. Getúlio Vargas fez com que o mesmo viesse, mais
tarde, flagelar o País por mais quatro anos, e, mesmo depois de sua
morte, lançar a discórdia e a confusão, das quais até hoje o País ainda
não se livrou integralmente” (vol. 2, pg. 351).
Estas observações são de 1958. Em 2010, o ranço do getulismo está ainda
lançando miasmas na organização sindical obrigatória, nas estruturas
partidárias meramente oportunistas, no modo de agir burocrático e
arrogante do funcionalismo, no descalabro da previdência, no apartheid
social produzido por leis iníquas, no empreguismo que estoura
orçamentos, no concessionismo que compra votos, no assistencialismo que
não liberta da pobreza e todas as formas, métodos e procedimentos de
estelionato eleitoral.
Vargas assina um manifesto de despedida e se manda para sua fazenda em
São Borja. De lá, começa a receber visitas de correligionários e amigos
que lhe mantém na mídia. Enquanto isso, o governo provisório de Linhares
revogava o decreto 8.063. Por sua vez, o PTB, enriquecido com os vastos
financiamentos do ditador, anunciava em página inteira diariamente em
pelo menos seis jornais da capital da república, a propaganda partidária
em favor de Vargas. As rádios igualmente divulgavam incessantemente de
manhã à noite declarações, jingles e propaganda do regime deposto.
Vargas sabia que a escolha de Dutra para substituí-lo era a sua garantia
de impunidade. Se Dutra abrisse processo contra Vargas, seria
igualmente acusado de suas preferências pelo nazismo no vai-e-vem da
guerra. Neste caso, seu papel exigia uma postura enérgica e de
rompimento com o passado. Porém, sua personalidade retraída mantinha-o
preso na vacilação e no imobilismo. Nessa situação, Vargas se candidata a
uma vaga pelo senado, e como na época a eleição de senador não era
federalizada, termina eleito com os votos de vários estados.
A eleição de Vargas senador foi um alerta geral para as forças
progressistas e democráticas do país. A opinião de alguns periódicos era
a de que o Tribunal Eleitoral deveria negar o registro da candidatura,
não só de Getúlio, como de todos os antidemocratas do passado, como
Prestes e Plínio Salgado.
Com o Congresso restabelecido, começam a aparecer as falcatruas da
ditadura. Um dos escândalos mais notórios foi o do Banco Continental,
comandado pelo sinistro Hugo Borghi. Este paulista, comerciante
quebrado, emergiu para o mundo das finanças ao convidar um genro de
Getúlio para um cargo na instituição e dali fazer negociatas com o
governo no negócio do algodão. As negociatas funcionavam assim:
“Consoante contrato firmado entre o BB e o governo, o banco daria, por
conta do Tesouro, o dinheiro a quem apresentasse recibos de depósito de
algodão em armazéns gerais. O tomador do dinheiro ficava com o direito
de vender o algodão ao preço que encontrasse. Se achasse preço maior do
que o recebido do BB, ele venderia; caso contrário, se o algodão
baixasse por qualquer circunstância, teria a faculdade de ‘largar a
mercadoria’ como se dizia na gíria comercial, deixando o algodão com o
banco, que o transferiria imediatamente para a conta do governo. Em
suma, se prejuízo houvesse, nunca seria atribuído ao tomador do
dinheiro, nem ao banco, mas sempre à União, isto é, ao eterno
sacrificado: o povo.” (vol. 2, pg. 359)
O dinheiro era levantado por simples ligações telefônicas do Ministro da
Fazenda, o incompetente Souza Costa, cupincha de Getúlio e mancomunado
com este nas negociatas com a finalidade de financiamento eleitoral da
volta do ditador. Os recibos de depósito de algodão eram fornecidos pela
Companhia Campineira de Armazéns Gerais, cujo proprietário era Hugo
Borghi e a empresa responsável pela aquisição do algodão era a Companhia
Nacional de Anilinas, da qual era diretor e proprietário, isto é, o
mutuário e o depositário eram a mesma pessoa. Hugo Borghi comprava de si
mesmo com os recursos do BB. Este escândalo estourou no Congresso
quando se soube das transferências do BB de 10 milhões em 9/5/45, mais
10 milhões em 16/5/45, mais 10 milhões em 21/5/45, totalizando 30
milhões de cruzeiros em 3 semanas. O apetite, no entanto, redobrou, como
é costume no Brasil, e no dia 29 de maio de 1945 houve uma
transferência de 20 milhões e em 13/6/45 mais 15 milhões, totalizando
portanto 65 milhões de cruzeiros.
A quadrilha montada por Hugo Borghi com o genro de Getúlio (Rui da Costa
Gama) emergiu espetacularmente do nada para uma grande instituição
financeira ao conseguir, mediante simples solicitação por carta, a
preferência no recebimento dos depósitos dos fundos das contribuições do
Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários. Era o dinheiro
da previdência social fluindo para os bancos dos aventureiros, uma
prática que persiste até os dias atuais, se o leitor não estiver
esquecido do recente caso do Banco Santos.
Na investigação levantada pelo inquérito aberto pelo Congresso
constatou-se que a direção da campanha queremista era financeiramente
comandada pelo genro de Getúlio e que o total de retiradas de Hugo
Borghi do BB em 13 de novembro de 1945 chegou a 250 milhões de
cruzeiros.
A comissão de inquérito designada pelo Sr. José Linhares, quando
interinamente na Presidência da República, para apurar o caso, entregou
em 4 de junho de 1946 ao presidente Dutra o relatório final dos
trabalhos. A comissão concluiu pela culpabilidade não apenas de Hugo
Borghi, como também de Souza Costa, ex-Ministro da Fazenda, e Souza
Mello, diretor da Carteira de Crédito Agrícola do BB. Dutra tinha em
mãos um processo capaz de levar Getúlio à cadeia. Em vez de assumir,
passou para o Ministério da Justiça como se fosse uma batata quente, de
onde esfriou para sempre.
Mas Hugo Borghi não era um pilantra somente na esfera federal. O assunto
não tinha ainda morrido quando surge de São Paulo a notícia de diversas
irregularidades nas empresas de Borghi e de débitos com o fisco
estadual que ultrapassavam 300 milhões de cruzeiros, quantia superior às
retiradas do BB. Como se vê, ele atuava em todas as esferas.
Enquanto isso, Vargas continuava discursando, acusando as finanças
internacionais pela sua derrubada, arrogando a si todas as obras
públicas do País, especialmente as estradas de rodagem e de ferro, a
salvação da classe operária da miséria com a criação do salário mínimo,
das leis trabalhistas e da previdência social.
Para preparar o caminho de sua volta ao poder era necessário dar uma
explicação para os fatos da governança passada. Assim, o golpe de 37 foi
feito para salvar o Brasil do nazismo. Já não era o comunismo como
tinha apregoado em 10 de novembro de 1937 com o famigerado Plano Cohen.
Agora em aliança com os comunistas, a ameaça era mesmo o nazismo. As
colônias estrangeiras através dos quintas-colunas eram uma tentativa de
fragmentar o Brasil e por isso o golpe era justificado.
Os discursos no Senado eram pronunciados sem concessão de apartes, com
retirada rápida antes que as réplicas dos outros senadores pudessem
colocar em risco suas afirmações. De fato, como senador Vargas aparecia
raramente. Preferia ficar articulando nos gabinetes sua volta ao poder.
Não lhe faltavam recursos nem apoio. Era só uma questão de esperar
tirando proveito das dificuldades em que tinha deixado o país.
Para isso, em maio de 47 lê um discurso criticando a situação econômica
do país, sem contudo deixar de elogiar Dutra na velha tática de “morder e
soprar”. De um lado criticava, de outro elogiava para não irritar o
governo. Se irritasse o velho e soturno Dutra, este poderia lhe cassar
os direitos políticos e entregá-lo a justiça. De outro, precisava
preparar seu retorno e essa atitude significava agradar o eleitorado.
Ora, Vargas havia cassado e exilado diversos homens públicos. Por que o
mesmo recurso não era aplicado contra ele? Por que Dutra se mostrava
indulgente com a mais cruel ditadura da história brasileira? Temia os
seus asseclas? Mas um general não tem o dever de enfrentar os inimigos
da pátria? E não é natural esperar desordens de uma canalha nutrida com
dinheiro público ou extorquido do povo? Foi o que de fato aconteceu sem
que se chegasse ao justiçamento do ditador.
“Em 29, 30 e 31 de agosto de 1946 estalam gravíssimas desordens em
virtude da crise de alimentos. O povo ignorante, iludido pela propaganda
da ditadura, ataca em massa os estabelecimentos comerciais da cidade,
saqueando-os, destruindo-os, durante 3 dias consecutivos, até que a
cidade fosse ocupada militarmente pelo exército, sob o comando do
general Zenóbio da Costa. Houve numerosos feridos entre civis e
militares. A destruição de gêneros alimentícios, o saque, os incêndios,
vieram agravar ainda mais a crise alimentar, cuja existência se devia
quase que exclusivamente aos erros praticados por Vargas, ou seja, o
mesmo homem que agora insuflava a baderna. À testa das massas alucinadas
se viam, sistematicamente, os execrandos membros da ‘guarda-negra’ do
ditador, atiçando, instigando, insuflando, como verdadeiros demônios,
esse quebra-quebra infernal.” (vol. 2, pg. 386)
Em maio de 1947 ocorre um levante dos sargentos de um dos regimentos da
Vila Militar. Esses sargentos pretendiam depor Dutra e recolocar Vargas
no poder. Chegaram a organizar uma comissão para se encontrar com
Vargas, sendo recebidos pelo nefando Gregório Fortunato. De ditador
Vargas passara a conspirador. Mas no senado fazia discurso no tom de
quem se opunha a toda e qualquer desordem e agitação, exatamente o
contrário do que praticava nos bastidores.
Com a intentona da Vila Militar fracassada, Vargas tenta levantar o Rio
Grande do Sul e também nada consegue. Não satisfeito iniciou uma
campanha contra Dutra no parlamento, dizendo que Dutra era devedor de si
do mandato, das promoções de tenente a general. Logo vem a eleição para
governadores. Em São Paulo, Vargas apoia Borghi, porém Adhemar também
se inscreve, além de Almeida Prado e Mario Tavares. Os resultados são
alarmantes: Adhemar vence, seguido de perto por Borghi. Almeida Prado e
Mario Tavares ficam em distantes terceiro e quarto lugares. Era sinal
inequívoco de que a ditadura não tinha ensinado ao eleitorado paulista o
caminho das virtudes políticas.
A campanha presidencial de 1950
Com montanhas de dinheiro à disposição, Vargas inicia um plano
sebastianista de retorno ao poder. Militantes do PTB, na qualidade de
turistas políticos, percorriam o país pregando o advento do novo
salvador, do pai dos pobres, do homem que haveria de varrer com a
carestia e a fome. Em Carazinho, numa entrevista à imprensa, seu filho,
Manuel Vargas disse “que o povo brasileiro era um rebanho de gado, o Sr.
Getúlio Vargas o dono da estância, não passando o General Dutra de um
simples capataz dessa fazenda de criação” (vol. 2, pg. 449). A
declaração vazou para o país e provocou uma saraivada de manifestações.
Foi a partir daí que apareceu a expressão “currais” eleitorais.
Nesse meio tempo Adhemar de Barros, investido na posse do governo
paulista, prepara sua campanha ao Catete. Para isso compra rádios em
Santa Catarina e Porto Alegre, tipografia em São Paulo, cria agências do
Banespa em outros Estados, com gerentes políticos escolhidos a dedo.
Ocorre que o vice-governador, eleito separadamente, era Novelli Junior, o
candidato de Dutra. Se Adhemar deixasse o governo para
desincompatibilizar-se 6 meses antes, Novelli Junior assumiria e
acabaria com a máquina montada por Adhemar em poucos dias. Com isso,
Adhemar retira sua candidatura ao pleito. Getúlio por sua vez, dá
declarações em fins de maio de 1950 dizendo que demitira Adhemar da
interventoria em São Paulo por causa da sua desonestidade. Não obstante,
manda um bilhete a Adhemar pedindo seu apoio nos seguintes termos:
“Meu Prezado Amigo: Depois de um longo exame da situação do Brasil e da
minha posição na política nacional, resolvi aceitar o lançamento da
minha candidatura. Está o meu prezado amigo autorizado a lançar o meu
nome onde e como julgar conveniente. Estou disposto à luta. Ela será
árdua, mas espero que se desenvolva dentro de um campo de elevado
patriotismo. Estamos unidos para a redenção do Brasil.” (vol. 2, pg.
451)
Na outra ponta aparece o nome de Eduardo Gomes pela UDN para a
presidência, e também de Cristiano Machado (PSD) e João Mangabeira.
O movimento estudantil inicia uma intensa mobilização contra Vargas em
todo o país. O getulismo estava tão arraigado na administração pública
que os estudantes que fixavam cartazes nos muros do Rio eram presos por
ordem do prefeito. Os comunistas, apoiadores incondicionais de Getúlio,
insultavam a mocidade acusando-a de vendida ao imperialismo
norte-americano. Em 13 de outubro realizou-se um imenso comício na Praça
Floriano, convocado pelos jornais. Sem dinheiro, mas com uma imensa
disposição de lutar contra o getulismo, os estudantes assumiram a
vanguarda da mobilização nacional criando o Movimento Nacional Popular.
Foi uma campanha desigual. De um lado, o Brasil espontâneo, com poucos
recursos, de outro lado, Getúlio com seus milhões. Em seu aniversário de
19 de abril de 1950, Vargas oferece um churrasco em sua fazenda de São
Borja de dimensões pantagruélicas, pois foram abatidos “100 bois, 60
carneiros e um número incalculável de animais menores” (vol. 2, pg.
456).
“Justamente no auge da campanha eleitoral de 1950, fizemos uma viagem ao
Brasil procedente dos Estados Unidos, para melhor observarmos essa
campanha. Em Belém do Pará, na praça principal, dependurado por um cabo
entre 2 postes, um alto-falante repetia de 15 em 15 minutos slogans como
os seguintes: ‘Trabalhadores do Brasil: Getúlio Vargas não é candidato
de partidos; Getúlio Vargas é um candidato do povo!’; ‘É preciso que o
Brasil acabe com os tubarões, antes que os tubarões acabem com o
Brasil’; ‘No governo do Sr. Getúlio Vargas não haverá privilégios, os
trabalhadores subirão com ele os degraus do Palácio do Catete’ etc. O
objetivo em mira não era falar à razão, ao bom-senso do povo, mas à sua
emotividade. Era, em suma, aproveitar-se ao máximo da cegueira mental
das classes menos favorecidas da fortuna e explorá-la ao máximo, a velha
tática de todos os demagogos.” (vol. 2, pg. 458)
Em todo o Brasil os alto-falantes – ligados às emissoras queremistas –
foram instalados nas praças de maior movimento tocando música
intercaladas com slogans favoráveis a Getúlio. No famoso discurso no
estádio do Vasco em 12 de agosto de 1950, a massa ululava a qualquer
palavra do ditador, até mesmo quando este traiu dizendo-se inimigo da
democracia e um ex-ditador. Depois do comício, os queremistas saíram em
passeata pela Praia do Flamengo em sua maioria pobres operários e
empregadas domésticas cantando “Getúlio, Getulinho” numa repetição
interminável, enquanto “2 crioulos fortes, conduzindo enormes garrafões
de cachaça, distribuíam gratuitamente o ‘precioso’ líquido a todo mundo
que o pedisse” (vol. 2, pg. 460)
A tática de Vargas eram as promessas mirabolantes, como baixar o leite
de 4 para 1 cruzeiro, os alugueis de 1000 para 600, um terno de roupa de
1500 passaria a 600 cruzeiros, e por aí afora. Como sua meta era
desvalorizar a moeda para atender os compromissos com os exportadores,
naturalmente que os preços iriam subir em vez de baixar. Nesse momento,
se diria estar com as mãos amarradas, que o Congresso não lhe deixava
trabalhar livremente, que os tubarões eram os verdadeiros culpados pelo
aumento dos preços etc., até que criasse a atmosfera para o fechamento
do parlamento e a reinstalação da ditadura.
“Os petebistas, a guarda-negra (já inteiramente restaurada e aumentada) e
os pelegos iniciariam uma campanha de agitação tendo por palavra de
ordem a frase – ‘Libertemos Getúlio’, isto é, ‘Libertemo-lo do Congresso
e da imprensa livre...” (vol. 2, pg. 461)
O resultado das eleições garantiu (arredondando) 3.850.000 votos a
Vargas contra 2.342.000 a Eduardo Gomes e 1.700.000 a Cristiano Machado,
tendo João Mangabeira irrisórios 10 mil votos. Foi um resultado que
estarreceu a opinião pública porque a grande vitória de Vargas foi em
São Paulo, justamente o estado que ele mais tinha prejudicado desde
1930. Vargas obteve em SP quase 1 milhão de votos contra 350 mil de
Eduardo Gomes e 150 mil de Cristiano Machado. A razão para isso era o
apoio de Adhemar de Barros e Hugo Borghi. Considerando que nessa época
os analfabetos não votavam, Henriques atribui à vergonhosa derrota das
forças progressistas em São Paulo ao semi-analfabetismo, ao eleitor que
só sabe assinar o nome. A outra causa foi o papel de Dutra,
completamente indiferente às maquinações de Vargas. Dutra tinha a
obrigação de cassar os direitos políticos de Vargas com base nas
revelações do inquérito realizado pelo Congresso a respeito das
negociatas do algodão com o Sr. Hugo Borghi. Mas não o fez, temendo os
amigos de Vargas que eram agora os amigos dele. Os postos-chave da
administração e do congresso estavam ocupados por getulistas. Nesta
situação, Dutra era a personalidade mais incapaz para ser o sucessor de
Vargas. E de fato isto ficou comprovado com seu retorno triunfal ao
Catete.
O Estado de São Paulo, em um editorial de 7/10/1950 denominado ‘A Grande
Ilusão’ assim se referia à futura vitória do ex-ditador:
“O proletariado afaga a esperança de que Getúlio Vargas lhe dará riqueza
e bem-estar, em chuvas de maná que cairá do céu ao toque mágico do
demagogo.... Mas o certo é que [o governo Vargas] falhará e os mais
negros dias estão reservados para o Brasil, com um governo de
expedientes, um governo flácido, um governo inepto, que irá de desastre
em desastre até a catástrofe final.” (vol. 2, pg. 465)
O Segundo Governo Vargas
A catástrofe anunciada pelo editorial do Estadão foi efetivamente
realizada. O governo Vargas foi loteando os órgãos públicos com
apaniguados, a corrupção se tornou uma praga, o oportunismo era a ordem
do dia, as vantagens pessoais o objetivo corriqueiro, e o Brasil
mergulhou em um processo inflacionário. Neste segundo governo aparecem
as figuras que depois seriam as herdeiras do getulismo, como o ferrabrás
Brizola, o malquisto batoteiro João Goulart, o sucessor Juscelino e o
jovem iniciante Tancredo Neves.
Mas não se pense que Vargas agradava a todos: ao contrário, até mesmo ao
PTB Vargas conseguia desagregar as iniciativas do partido no sentido de
estabelecer uma doutrina trabalhista de cunho socializante, dada a
situação comprometedora dele com os banqueiros internacionais.
“Na constituição de seu ministério, Vargas aplicou uma nova modalidade
dessa tática [de atirar uns contra os outros]. Como não podia dar as
pastas a todos que as desejavam (e eram muitos), adotou a atitude
maquiavélica de declarar todos os seus ministros em caráter temporário,
dando ao gabinete o título de ‘ministério da experiência’. O resultado
dessa política foi, como era de esperar, desastroso para o interesse
público. Os ministros, com a espada de Dâmocles sobre suas cabeças,
pouco ou nada faziam. Sentiam-se sem autoridade, manietados, humilhados e
inseguros. Mas Vargas rejubilava-se com a subserviência dos que
pretendiam substituí-lo, e que vinham, escabujantes, se atirar a seus
pés, cercando-o de engrossamentos, de adulações as mais abjetas e
servis, na ânsia de obterem um desses ministérios.” (vol. 3, pg. 62)
“O Brasil, que durante todo o período do governo do General Dutra havia
entrado num regime de calma, de ordem, de progresso, de estabilização do
custo de vida e de relativa abundância, logo que o Sr. Getúlio Vargas
assumiu o governo, transmudou-se integralmente. As desordens e a
agitação se espalharam novamente pelo País inteiro. Boatos alarmantes
lançavam o pavor nos lares e nas ruas. Greves deflagravam por toda a
parte. A inflação a jato contínuo, forçando a alta do custo de vida,
intensificava ao máximo a agitação no seio do proletariado, o qual,
devidamente mistificado pelos pelegos e agitadores dos porões do Catete,
atribuía essa situação às classes conservadoras. O próprio presidente
da República, abertamente, claramente e sem rebuços, concitava o povo a
lançar mão das armas e da violência e a fazer justiça pelas próprias
mãos. O Brasil foi mergulhado num verdadeiro caos, num pandemônio, em
que todos queriam mandar e ninguém obedecia.” (vol. 3, pg. 65)
Espelhando-se no governo de Perón na Argentina, Vargas mantinha fortes
laços com os asseclas de Perón, pois conduzia o mesmo tipo de governo:
populismo e demagogia ao máximo, combinados com concessões às massas com
grande espalhafato, e uma desordem econômica motivada por uma política
de privilégios a determinados grupos de banqueiros e industriais que se
sucediam em escândalos e prejuízos ao tesouro, pretensamente escoimados
por ataques genéricos aos tubarões. A técnica de culpar os tubarões pelo
fracasso das políticas de governo – de resto seguidas sem nenhum
planejamento consistente, mas única e exclusivamente ao léu do improviso
– trazia o benefício de jogar os pobres contra os ricos, criar a
agitação básica para a preparação de mais um golpe institucional para
sua perpetuação no poder aos moldes de 1937.
Ocorre que o país ainda lambia as feridas do golpe de 37 e não dava
créditos às agitações, perturbações da ordem e denúncias de conspirações
comunistas que volta e meia medravam pela imprensa. Mesmo assim, Vargas
insistia em seu propósito de implantar uma “república sindicalista” aos
moldes de Perón. Para se perpetuar no Poder, Vargas promove uma reforma
constitucional.
“Os primeiros arranjos e entendimentos foram no sentido de prorrogação
dos mandatos somente dos deputados. Essa idéia diabólica se baseava no
princípio de que, se os parlamentares cometessem a fraqueza de reformar a
Constituição em seu próprio benefício, a fim de se manterem no poder,
essa fraqueza os impossibilitaria moralmente de se oporem a que se
empreendesse outra reforma prorrogando igualmente o mandato do
Presidente da República, além de contribuir grandemente para a
desmoralização do regime democrático. De uma assentada, dar-se-iam dois
rudes golpes no regime.” (vol. 3 pg. 77)
Mas a estratégia fracassou depois de 3 tentativas. Felizmente o
Congresso tinha suficiente clareza do que se preparava e Vargas foi
obrigado a adotar novas iniciativas. Em 1953 ocorreram episódios de
greves operárias no Rio de Janeiro, conduzidas por pelegos e elementos
do PTB, tendo por trás a guarda-negra do palácio. As greves dos
operários contra a carestia e as perdas inflacionárias logo migraram
para os portos com a paralisação de 80 mil marítimos. Ao mesmo tempo,
numerosas firmas norte-americanas manifestaram ao Sr. Amaral Peixoto
(genro de Getúlio) quando em viagem a Nova York, que em face das greves e
desordens que ocorriam estavam suspendendo investimentos no Brasil.
Nesse meio tempo, o Sr. Hugo Borghi, banqueiro sob auspício do
ex-ditador e financiador da campanha queremista, vinha a público dizer
que “o povo devia exigir a demissão de todos os ministros civis, que o
povo devia ajudar o providencial Sr. Getúlio Vargas a realizar aquele
governo socialista prometido na campanha eleitoral.” (vol. 3, pg. 82)
Era uma situação de aturdimento, pois logo aconteceu uma reforma
ministerial. Com a nomeação de João Goulart para o Ministério do
Trabalho em 15 de junho de 1953, o ‘Correio da Manhã’ lança um editorial
chamado “Preparando o Golpe” denunciando as maquinações dos grupos
intimamente ligados a Goulart para a paralisação das atividades do país.
Com a extensão da greve dos marítimos comandada por gente ligada
diretamente a Jango e a paralisação simultânea de 200 mil operários em
São Paulo, organizados por esse mesmo pessoal, estava na cara que
Getúlio era a figura mais interessada em violar a Constituição que havia
– na posse – jurado defender.
Em 30 de julho de 1953 ‘O Estado de São Paulo’ publica um artigo
intitulado “Conspiração em Marcha” onde denunciava uma conspiração para a
implantação de uma ditadura de tipo peronista no Brasil. O Jornal era
incisivo: “acha-se à frente dessa campanha o atual Ministro do Trabalho,
Sr. João Goulart” (vol. 3 pg. 85). No comando grevista, comunistas e
trabalhistas se uniram para paralisar o país. Por todos os lados começa a
haver reação. A OAB lança manifesto ao Congresso advertindo para a
gravidade da situação. A UDN igualmente se manifesta e até o New York
Times publica matéria detalhando os planos peronistas de Vargas. Com
isso as Forças Armadas se fecharam contra o ditador, inibindo qualquer
mudança de comando. Além disso, seu principal oponente no pleito de 1950
era o Brigadeiro Eduardo Gomes, com grande liderança não só na
Aeronáutica, como em todas as armas.
O suporte para as greves vinha da imprensa subsidiada, especialmente da
‘Última Hora’, o jornal de Samuel Wainer financiado diretamente por
Vargas. O escândalo da ‘Última Hora’ começara em junho de 1951, logo
após a posse de Vargas. Um obscuro repórter, nascido na Bessarábia,
auto-declarado marxista, e empregado de Assis Chateaubriand, recebera a
missão de cobrir a campanha de Getúlio. Já tinha sido preso pelo
ditador, mas agora em franco namoro conseguiu que o caudilho lhe
financiasse um jornal ao serviço da causa.
Wainer percebeu o mecanismo de propaganda getulista de alto-falantes,
cartazes, galhardetes, flâmulas, de cadeias de emissoras de rádio, de
aviões jogando volantes e de jornais comprados. Se o Partido Comunista
apoiava Vargas, por que ele não iria tirar proveito da situação? Como
seria esse jornal? Deixemos que Henriques conte:
“Nada mais nada menos do que um grande jornal, estipendiado pelo
governo, com instalações luxuosas e salários de nababos. Para amaciar os
escrúpulos dos jornalistas marxistas (Wainer se dizia marxista)
colocaria no jornal os mais brilhantes deles, depois de convencê-los de
que era muito mais fácil lutar contra as correntes fascistas e em prol
do proletariado aderindo, colaborando e unindo-se aos ditadores, do que
arriscando a vida e a liberdade em escaramuças de rua ou em combate a
peito aberto contra os esbirros policiais, como se fazia antes de 1935, e
como se faz no Mundo inteiro. O Sr. Wainer adotou então a política
oportunista de que ‘os fins justificam os meios’. Foi positivamente uma
idéia magistral: comunistas que viviam perseguidos ou na prisão, se
adaptaram maravilhosamente à nova ideologia revolucionária de Wainer.
Colocaram-se em posições rendosas, passaram a envergar casaca e cartola;
a comer nos melhores restaurantes e a deslizar pelas ruas do Rio em
carros de luxo. Deu-se então um fato curiosíssimo: a luta dos vermelhos
brasileiros passou a ser renhida, enérgica, violentíssima, contra os que
combatiam o fascismo e a favor do maior fascista do Brasil. Os
marxistas, que outrora se identificavam pela cor macilenta da pele,
oriunda dos sofrimentos nas prisões, tornaram-se nédios e sadios.”
“E assim foi que Samuel Wainer, vendendo sua alma ao diabo, aderiu ao
ditador de corpo e alma. Em troca, o Sr. Getúlio Vargas abriu-lhe, de
par em par, as arcas do Banco do Brasil para que fundasse a ‘Última
Hora’, jornal que seria o baluarte dos planos peronistas do ex-ditador.”
(vol. 3 pg. 251)
Getúlio que falava nos rádios com o refrão “pela primeira vez na
história desse país” lembrando muito um presidente que conhecemos,
subornava a todos com empregos, altos cargos na república, sinecuras em
escritórios de representação comercial em Nova York, México, Londres,
Paris e por aí afora.
Da mesma forma como o aval ao empréstimo do Banco Mundial para as obras
do metrô de São Paulo (linha 5) é apregoado como investimento federal em
São Paulo na corrente campanha presidencial de 2010, Vargas fazia o
mesmo, arrogando a si as obras realizadas pelo governador mineiro
Juscelino Kubitscheck do qual participara apenas na dotação
orçamentária. As semelhanças estarrecem qualquer leitor de ‘Ascensão e
Queda de Vargas’.
A CPI criada para apurar os desvios de dinheiro para financiamento de
‘Última Hora’ não ficou só nisso: descobriu, por exemplo, desvio de
dinheiro no SESI, na época dirigido pelo milionário Euvaldo Lodi
(segundo as más-línguas o homem que ficou mais rico com Getúlio,
secundado por Ricardo Jafet e Hugo Borghi). O dinheiro destinado aos
serviços sociais era simplesmente desviado para os bolsos dos amigos do
presidente. Só do SESI descobriu-se um contrato de 9 milhões de
cruzeiros com a ‘Última Hora’. Assim como na CPI da Petrobras, o sr.
Euvaldo Lodi ao ser exigido que prestasse contas de sua entidade,
“obstinou-se em não obedecer a esta atitude moralizadora, arrogando-se,
assim, prerrogativas especiais, um verdadeiro privilégio de
irresponsabilidade incompatível com o regime democrático” (vol. 3 pg.
257).
A CPI ouviu a todos os financiadores de Wainer, a começar por Matarazzo,
Lutero Vargas (filho de Getúlio), Jafet e Lodi. Por fim, ante as
evidências das negociatas, encaminhou a conclusão ao judiciário, para
responsabilizá-los criminalmente. Mas a maioria getulista da Câmara
negou autorização para processar Lutero e Lodi que possuíam mandato
parlamentar, e a justiça concedeu habeas corpus a Ricardo Jafet, então
presidente do Banco do Brasil nomeado por Vargas. Num gesto que causou
perplexidade aos demais deputados, em 24 de julho de 1954, um mês antes
do suicídio de Getúlio, o relator da CPI, deputado Frota Aguiar, sobe na
tribuna com os depoimentos da CPI e rasga-os um a um discursando:
“desejo apresentar minhas homenagens à Justiça sábia do meu País com
este ato que agora vou praticar” (vol. 3 pg. 265).
O mar de lama
O mar de lama em que estava mergulhado o governo respingava em todos os
setores da sociedade. Ia do contrabando de carros de luxo ao jogo do
bicho. Não havia setor do Estado que não estivesse comprometido com a
corrupção desenfreada que avassaladoramente tomou conta do país com a
aliança PSD, PTB e PCdoB. Havia escândalos até no exterior: um bacanal
em Paris, com cenas orgíacas que envolveram até a esposa e a filha de
Getúlio, veio à tona. Os jornais falavam em decomposição moral,
desenfreada libertinagem envolvendo senadores, magnatas, tudo organizado
pelo celerado Assis Chateaubriand. A festança ocorrera no castelo do
costureiro Fath, a pretexto de propaganda dos tecidos brasileiros. As
cenas eram chocantes para a época conforme documentou a ‘Tribuna da
Imprensa’ que Henriques comenta:
“... com a presença da esposa e da filha do Presidente da República,
estampa fotografias ilustrativas colhidas naquele ato [A Tribuna da
Imprensa]. Numa se vê uma convidada vestindo apenas combinação, com as
pernas todas à mostra, tendo ao lado, de joelhos, no chão, um cavalheiro
que a olha no rosto. Outra apresenta o Sr. Fath, o dorso nu, dançando
rumba e roçando um pano nos quadris. A dois passos, entrega-se à dança
uma senhorita de São Paulo. E, finalmente, num terceiro flagrante,
aparece o costureiro-anfitrião em posição de ballet, trazendo como único
vestuário uma espécie de sunga ou tanga minúscula de plumas amarrada
por um retalho estreito de ‘lamet’ em torno dos rins, e um convidado com
os mesmos trajes sumaríssimos. A um canto se vê um colchão de praia
estendido no jardim. Mas essas fotografias eram apenas as que se podiam
publicar num periódico de certa compostura, as demais foram omitidas por
motivos óbvios (...) O governo forneceu ao Sr. Assis Chateaubriand
cambiais no valor de 15 milhões de francos para a farra do Castelo de
Corbeville, ao câmbio livre. (...) Esta importância destinou-se a cobrir
apenas as despesas do baile, correndo o resto – fretamento de dois
aviões especiais, orquestras, cantantes, vestidos, estada em hotéis etc –
em cruzeiros e dólares, por conta do câmbio negro.” (vol. 3 pg. 292)
Aliás, toda a ditadura tem o zelo de impulsionar a indústria do sexo. Na
Argentina de Perón, se sabia do caso deste com estudante de um colégio
secundarista que acabou sendo sua amante com 13 anos de idade. No livro
‘Memórias Sem Maquiagem’, Carlos Machado conta das amantes de João
Goulart que recebiam telefones gratuitos em suas garçonières com números
fornecidos pelo Instituto Brasileiro do Café. Para satisfazer os
desejos dos poderosos, concorria uma enorme malta de cafetões e
cafetinas em busca de todo o tipo de mulheres. Artistas e prostitutas se
revezavam na lista de ofertas de programas e enchiam os prostíbulos
mais ou menos velados que existiam nos bairros elegantes do Rio e de São
Paulo.
“Certos cavalheiros fizeram disso uma verdadeira indústria. Um deles
houve que casou duas vezes com mulheres de grande beleza, cujos
atrativos físicos só eram excedidos pela sua esperteza e ambição
desmedidas, com o objetivo previamente combinado de servirem de amantes
aos maiorais da ‘República Nova’ e do ‘Estado Novo’. Este cavalheiro
chegou a ocupar os mais altos cargos da República, onde chegou a
desempenhar as funções de conselheiro de Estado, e ainda hoje continua
brilhando com estrela de primeira grandeza no cenário da oligarquia
getulista que ainda domina o País e continuará dominando se não se levar
a efeito a reforma eleitoral que preconizamos no fim desta obra.”(vol.
3, pg. 294)
O atentado da Toneleiros
No dia 6 de agosto de 1954, quando chegava no edifício que residia na
rua Toneleiros, no Rio de Janeiro, em companhia de seu filho e do major
Rubens Florentino Vaz, Carlos Lacerda foi vítima de um atentado à bala
disparado por 2 indivíduos armados que, descendo de um carro, atiraram
contra o tribuno, acertando-o no pé esquerdo, mas matando o major Vaz. O
caso logo teve tremenda repercussão em todo o país. Já se sabia que
Carlos Lacerda era um crítico impiedoso de Vargas. Através de suas
reportagens ficou-se sabendo do escândalo de ‘Última Hora’ e da CPI
correspondente, além da miríade de denúncias de acontecimentos nos
segundo e terceiro escalões do governo.
A irritação dos militares já era grande. O Congresso e o Senado
responderam com indignação e repúdio à covardia do atentado. Enquanto a
tensão aumentava, o zunzun das ruas dizia que o atentado tinha sido
dirigido do palácio do governo. A Aeronáutica, por ter um de seus
membros assassinados, abriu um inquérito Policial-Militar e passou a
investigar à revelia da polícia, que, como se sabe, não deu a mínima
importância ao caso. Com a firmeza da liderança do Brigadeiro Eduardo
Gomes, o inquérito foi avançando.
“Após uma série de diligências espetaculares, toda a quadrilha envolvida
caía nas mãos desses ativíssimos militares. E todos eles – os
criminosos – estavam ligados ao Catete (...) Em 18 de abril de 1954, um
grupo de oficiais da Aeronáutica tendo à frente o coronel Adil [que
comandava o inquérito] realizou uma diligência no Palácio do Catete,
dali retirando o arquivo particular de Gregório [Fortunato, chefe da
guarda pessoal de Vargas], uma pasta com várias cartas e documentos
(...) Logo depois eram divulgados os primeiros documentos do arquivo de
Gregório, revelando vultosas e ilícitas transações com departamentos e
membros do governo. Confirmou-se que o chefe da guarda pessoal gozava de
grande prestígio e ascendência junto a altas autoridades e
personalidades do País. Constavam do arquivo pedidos de interferência e
proteção assinados por políticos, industriais e comerciantes
proeminentes. A fortuna pessoal de Gregório subia a muitos milhões de
cruzeiros. [Gregório era um negro humilde que crescera nos campos de
Getúlio e ascendeu a sua condição de guarda-costas pela força física e
coragem pessoal, assumindo a chefia somente em 1950, depois da retirada
do irmão mais novo de Getúlio, Benjamim Vargas, um arruaceiro e
desequilibrado, bêbado e bandido]. Sua mulher [de Gregório] sócia de uma
firma de gêneros alimentícios com o capital de 2 milhões de cruzeiros,
dispunha de três carros oficiais da Presidência, de uma secretária
particular, e ela própria recebia do Estado, como funcionária do
Departamento dos Correios e Telégrafos, sem concurso e sem nunca ali ter
posto os pés. Apurou-se posteriormente que Valente, o sub-chefe e, pelo
menos, mais dois outros elementos da guarda, por ordem de Gregório,
valiam-se de bicheiros para formar uma ‘caixinha’ para uso da guarda e
do seu chefe. Descobriu-se que Gregório, recebendo salário de 15 mil
cruzeiros mensais, havia adquirido de Manuel Vargas, filho de Getúlio, a
fazenda São Manuel, em São Borja, por quase 4 milhões de cruzeiros,
tendo parte do pagamento sido feita com um empréstimo de 3 milhões do
Bando do Brasil.” (vol. 3, pgs. 333- 334)
Foi como se tivesse estourado um cano de esgoto dentro do Catete. Logo a
conexão com Gregório, como o mandante do crime, ficou evidenciada. A
oposição no Congresso começou a insistir para a renúncia de Vargas, por
julgar inaceitável a desculpa de que o crime não tivera um mandante. O
Clube da Aeronáutica se reúne contra a vontade do Ministro da
Aeronáutica e divulga uma nota dizendo que “o crime deve ser apurado até
o fim”. Havia 600 oficiais no evento, não só da Aeronáutica como do
Exército e da Marinha.
Em 11 de agosto uma grande multidão se reúne em frente ao Palácio Monroe
aos gritos de ‘Abaixo Getúlio’. Em 12 de agosto, os comícios e
protestos se espraiam por toda a capital pedindo a renúncia de Getúlio.
Numerosos carros foram incendiados, alguns deles do PTB com propaganda
de Lutero Vargas. Houve uma tentativa de invadir a sede do PTB, que foi
contida pela polícia com o uso de brucutus.
Nesse meio tempo, as Forças Armadas declaram que o país estava
moralmente sem presidente. Vargas replica que não renunciaria para não
entregar o poder ao vice Café Filho ou ao presidente do Congresso, Nereu
Ramos. E propôs que o governo fosse ocupado por uma junta militar
comandada pelo General Zenóbio Costa. O Alto Comando militar repudia a
solução por ser inconstitucional.
No mesmo dia 12 de agosto, a pretexto de inaugurar as novas instalações
da Companhia Mannesmann, e para desanuviar, Getúlio viajou para Belo
Horizonte. Enquanto Getúlio era recebido por Juscelino, os estudantes
faziam um enterro simbólico com um caixão levando seu nome pelo centro
de Belo Horizonte. Logo outro caixão é queimado nas proximidades do
Palácio da Liberdade. Um automóvel, carregado de estudantes e com uma
faixa com o nome de Carlos Lacerda furou a comitiva presidencial e se
meteu no meio do cortejo. Era um sinal inequívoco de que o governo
estava perdendo autoridade.
Então estala um início de crise político-militar. Vargas nomeia para o
Ministério da Aeronáutica o Brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos. Era
uma provocação ao Brigadeiro Eduardo Gomes, pois aquele era um dos
poucos oficiais que não se relacionavam com ele. A Aeronáutica esperava a
nomeação do Brigadeiro Dayton Fontenele. Com isso, a ala militar
aumenta a pressão pela renúncia, sendo obstada pela opinião do General
Juarez Távora que pedia que primeiro se encerrasse o inquérito. Mas isso
era quase impossível. O inquérito iria durar mais alguns meses e a
situação política se deteriorava a cada dia. Em 20 de agosto a OAB
propõe a renúncia de Vargas. Pedia a restauração da ordem legal com a
posse do vice-presidente. O Instituto de Engenharia de São Paulo envia
um apelo ao Congresso pedindo o impeachment do presidente. O Catete
começou a receber um número tão elevado de telegramas pedindo a renúncia
que teve de dar ordens aos Correios e Telégrafos para que não
entregasse as correspondências.
Em 21 de agosto, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica entram de
prontidão. O Congresso fervia de discursos contra Vargas. Prendem o
Delegado Brandão Filho por suas ligações com Gregório na exploração do
jogo do bicho. Corre o boato de que João Goulart estava tramando uma
aliança com os comunistas para uma grande manifestação de massas em
apoio a Getúlio para 2 de setembro. Militares exaltados fazem discursos
violentos contra o governo. Era um rompimento da hierarquia, o que
obrigava seus chefes a dar voz de prisão e ter que relaxar logo a seguir
por tal atitude de crítica ao governo ter produzido a solidariedade do
resto da oficialidade presente. Então que se prendam a todos os oficiais
bradavam os exaltados.
Sabendo que Vargas não aceitaria Café Filho como substituto, este vai ao
Congresso e num gesto comovente propõe que ambos renunciem, para que se
convoquem eleições antecipadas. Vargas recua, pois seu único desejo,
sua verdadeira vocação era o continuísmo.
Em 23 de agosto, 51 almirantes levaram ao Ministro da Marinha sua
decisão unânime de apoio aos brigadeiros da aeronáutica. Na nota diziam
que condenavam um governo que havia afundado na corrupção e no crime.
João Goulart reage e envia uma ‘Proclamação ao Povo Brasileiro’ como
matéria paga em todos os jornais falando de receio de golpes, de
atentados à Constituição. Era claramente uma defensiva de Vargas, o
reconhecido violador de constituições agarrando-se a ela. Para isso,
tenta decretar o estado de sítio. Fechado o Congresso, tudo iria
evoluir como em 1937. Os lideres da minoria na Câmara foram alertados em
tempo e se pronunciaram imediatamente contra a tentativa de golpe.
Vargas recua. O Clube da Aeronáutica se reune às 10 horas da manhã e a
reunião avançou noite adentro. O fantasma do major Vaz insuflava a
reunião. Finalmente vem a público a decisão final, redigida como um
ultimatum:
“Os oficiais generais da Força Aérea Brasileira, abaixo-assinados,
reafirmando seus propósitos de permanecerem dentro da ordem, da
disciplina e dos preceitos constitucionais, acham que a presente crise
nacional só poderá ser satisfatoriamente resolvida com a renúncia do
Presidente da República.” (vol. 3, pg. 364)
“O general Mascarenhas de Moraes foi o portador da mensagem a Vargas. O
ex-ditador respondeu que, tendo sido eleito pelo povo para governar
cinco anos, não deixaria o governo.” (vol. 3, pg. 365)
Neste mesmo dia, começa a circular sigilosamente um Manifesto no
Exército, nos mesmos termos, isto é, apoiando os oficiais da
Aeronáutica. Estava na cara que os ministros militares já estavam
perdendo o pé da situação e que para manter Vargas teriam que prender os
insubordinados. Isto não seria possível sem um banho de sangue e com
altíssimas possibilidades de derrota para o governo.
Na madrugada de 24 de agosto estão reunidos Osvaldo Aranha, Tancredo
Neves, Epaminondas e Guillobel (ministro da Marinha). Chegam os generais
Mascarenhas, Zenóbio e Denis e expõem aos ministros a situação militar:
era um ultimatum para a renúncia já. Pouco depois, sobem para a sala de
despacho do segundo andar e encontram Vargas. Repetem a mensagem dos
quartéis. Zenóbio informa que apenas uma pequena parcela iria apoiar a
permanência do Presidente, mas por obrigação do cargo estava disposto a
lutar até o fim, mesmo sabendo que acarretaria derramamento de sangue
com poucas possibilidades de êxito. Surge então a hipótese de um pedido
de licença de Vargas até transmitir o mandato no próximo ano ao seu
sucessor. Vargas recusa também esta fórmula e acaba a reunião dizendo
que iria convocar o ministério imediatamente para que este deliberasse a
respeito.
Reune-se o ministério às 3h30min da madrugada. Vargas continua
inflexível. O general Zenóbio então levanta-se e diz que vai prender os
generais que quebraram a disciplina. Era o anúncio indireto de uma
guerra civil. Vargas, parecendo tranqüilo, encerrou a sessão dizendo:
“Já que os senhores não decidem, eu vou decidir. Minha determinação aos
ministros militares é no sentido de que mantenham a ordem e respeitem a
Constituição. Nestas condições estarei disposto a solicitar uma licença,
até que se apurem as responsabilidades. Caso contrário, se os
insubordinados quiserem impor a violência e chegarem até o Catete,
levarão apenas o meu cadáver.” (vol. 3, pg. 367)
Uma nota ministerial foi redigida, aprovada pelo Presidente e
transmitida às 4h45min para todas as emissoras.
O General Zenóbio convocou todos os generais para uma reunião às 6h30min
no Ministério da Guerra, a fim de informar a decisão do Presidente. “A
licença do Presidente é definitiva, pois assim ouvi eu da conversa dos
Srs. Ministros após a reunião e quando ali retornei a chamado do Sr.
Osvaldo Aranha.” (vol. 3, pg. 368)
Logo após a reunião, chega fardado no catete do ex-chefe de Polícia, o
General Morais Âncora, saído direto da reunião do Ministério da Guerra.
“Ao entrar é cercado pelos presentes, ansiosos para saber como
transcorrera a reunião. O General Âncora disse que tudo correra bem, mas
acrescentou que o Ministro da Guerra dissera ter ouvido que o
Presidente não voltaria mais (...) Essa revelação do general Âncora
feita talvez de boa-fé, constituiu a verdadeira razão do suicídio de
Vargas.
Benjamim Vargas, estranhando tal revelação, pede pormenores. O General
Âncora confirmou que na reunião Zenóbio, depois de lida a nota redigida
pelo ministério, ‘acrescentava que, apesar dos seus termos, o
afastamento de Vargas seria definitivo e que ele não mais voltaria ao
governo’. E informa ainda que, depois dessas palavras, discursara o
general Fiuza de Castro congratulando-se com o Exército pelo término da
crise.
Alvoroçado Benjamim Vargas correu aos aposentos do irmão e despertou-o
para transmitir-lhe essa informação (...) a Vargas, que até então se
mostrara tão calmo, tranquilo e até aparentemente indiferente,
sobressaltou-se e indagou profundamente surpreendido:
— ‘Então quer dizer que estou deposto?’
— ‘Não sei se está deposto’, respondeu Benjamim. ‘O que sei é que é o fim. Foi a maneira mais fácil de te tirarem do governo’.
— ‘Volte lá embaixo e vá esmiuçar isso’ — determinou Vargas.
— ‘Não vejo porque’ — contesta Benjamim. ‘Âncora é um homem sério e foi
definitivo. Não seria capaz de inventar uma coisa assim. Em todo o caso
vou apurar’.
— ‘Vá saber com detalhes e volte em seguida’ — insistiu Vargas, profundamente preocupado.
Como Benjamim Vargas, meia-hora depois, ainda não houvesse regressado,
Vargas mandou procurá-lo. Alguns minutos depois ouviu-se um tiro. O Sr.
Getúlio Vargas havia se suicidado com um tiro no coração.” (vol. 3, pg.
369)
Este episódio final está cercado de especulações. Não são poucas as
obras escritas para descrever os últimos momentos de Vargas. Para
Affonso Henriques, o fim de Vargas está inscrito em sua própria adoração
pelo poder:
“Na realidade, Vargas foi coerente consigo mesmo. Desde 1930, todos os
seus atos, todas as suas atitudes, todos os seus desmandos, todos os
seus discursos, todos os seus despistamentos, todas as corrupções e
negociatas, todas as conspirações, revoluções, agitações, greves, motins
e desordens que tramava, tinha um objetivo único e imutável: manter-se
no poder a qualquer custo. Perdidas todas as esperanças de continuar no
poder, o Mundo para ele já não valia mais nada.” (vol. 3, pg. 369)
Mas existia o temor de que deposto a podridão começasse a vir à tona,
com revelações de seus íntimos, a começar por Gregório Fortunato. Seria
uma espiral tão violenta que ele iria certamente para trás das grades.
O último episódio foi sua carta-testamento. Essa famosa carta que até
hoje serve ao propósito político de incensar o mais funesto ditador e
presidente que o país teve no século XX, está cercada de mistérios. Ela
estava na mesa de cabeceira de Getúlio e de lá voou para as mãos do Sr.
Amaral Peixoto, seu genro, e para as mãos de sua filha Alzira que se
encarregou de divulgar o teor. O mistério que cerca a carta testamento é
que o camareiro de Getúlio, chamado Barbosa, havia entrado e saído umas
3 vezes sem notar coisa alguma.
“Nem bem foi divulgada a carta-manifesto, começaram a surgir ressalvas e
dúvidas sobre sua autenticidade. De fato, o estilo literário não se
assemelha ao do ex-presidente: sua longa extensão parece inadequada à
trágica ocasião, e por fim, há o caso de existirem dois documentos,
quando um só seria o natural.” (vol. 3, pg. 375)
Henriques fala dos documentos achados no cofre e recolhidos por Alzira
Vargas. O segundo documento (cópia) teria sido encontrado por João
Goulart. A carta-testamento foi apresentada à imprensa na forma
datilografada. Ocorre que Getúlio não escrevia à máquina. A pessoa que
datilografou nunca apareceu. Depois de analisar todos os detalhes e
contradições entre as declarações e os fatos, Henriques conclui que o
que houve foi um bilhete manuscrito de Getúlio sobre a renúncia,
habilmente modificado para servir de testamento. De fato, pelo tamanho
do texto, Getúlio não poderia ter escrito no intervalo de meia-hora
depois da partida de seu irmão Benjamin e sua morte. Então os herdeiros
de Vargas trataram habilmente de produzir um documento que servisse aos
propósitos políticos do continuísmo getulista sem seu criador. Embora os
presidentes Juscelino Kubistchek e João Goulart tenham sido herdeiros
diretos de Vargas, o getulismo persiste até hoje na política nacional.
Ele é o cerne do sistema político que continua a destruir o Brasil
através do empreguismo, do concessionismo, do apadrinhamento, do
desperdício de recursos públicos, e de um modelo de Estado capaz de
deter o desenvolvimento econômico brasileiro.
Henriques termina seu trabalho propondo uma reforma política capaz de
evitar que demagogos como Getúlio Vargas se apoderem do país. O sistema
eleitoral proposto por ele está discutido na seção DNA Brasil no título
‘O Modelo Político’.
Podemos dizer que ‘Ascensão e Queda de Getúlio Vargas’, em seus 3
volumes, é um dos livros que se inscrevem na História do Brasil como uma
das obras mais bem documentadas de uma Era. Deve ser lida por todos os
brasileiros que se interessam pela pátria e que prestigiam o julgamento
independente e a opinião desinteressada e desarvorada de preconceitos
ideológicos e obscurantismos filosóficos. Juntamente com Euclides da
Cunha, Monteiro Lobato, Emil Farhat e alguns outros, Affonso Henriques
comprova que o Brasil é mais e melhor conhecido por seus intelectuais
independentes e abnegados do que por seus
domines acadêmicos. As pessoas que falam em crise da educação brasileira deveriam atentar para esse fato.
Fim
Postado por
Carlos U Pozzobon
às
12:56