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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 20 de agosto de 2022

Kasparov, resistente democrático, tem seu livro resumido por Carlos Pozzobon

 Carlos U. Pozzobon

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Fragmentos 42

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo 


Winter is Coming — Garry Kasparov

Kasparov era conhecido pelo destaque obtido na imprensa com os campeonatos mundiais de xadrez em que venceu sucessivos torneios. Nascido em Baku, de origem armênia e judia, criou-se na cultura russa e desde a infância se apaixonou pelo tabuleiro que haveria de celebrizá-lo enquanto jogador e, mais tarde, como militante pela causa democrática na queda do Império Soviético. Em Winter Is Coming (O Inverno Está Chegando) narra sua luta contra a autocracia russa comandada por Putin, fazendo tábula rasa de todo o discurso conciliador e sobretudo favorável a que Putin prosseguisse com sua recriação da URSS através da invasão brutal dos países vizinhos, complementada pela guerra da Ucrânia iniciada em 2014. O livro é de 2015 e nele Kasparov descreve fatos que pertencem a uma assustadora previsão dos acontecimentos atuais (2022), como se fosse um prestidigitador do futuro. Enfatizando que o xadrez é sobretudo um método para se pensar a realidade quando o aficcionado dispõe das ferramentas críticas, adverte para os erros do Ocidente, citando os principais mandatários e seus equívocos frente a uma personalidade tantálica de um psicopata capaz de assassinar todos e quaisquer adversários que se anteponham ao seus mandos. Descreve a década democrática dos anos 90 na Rússia sabotada com a ascensão de Putin em 2000 e as sucessivas manipulações legais para a concentração do poder e eliminação de adversários, até a repressa brutal que transformou a Rússia atual em uma ditadura com centenas de milhares de dissidentes espalhados pelo mundo, inclusive o autor e sua família. Livro indispensável para entender o que se passa no mundo hoje, especialmente devido a ameaça potencial de uma guerra nuclear se Putin não for detido. 

Introdução

1) Parafraseando a definição de apaziguamento de Winston Churchill, estamos alimentando os crocodilos, esperando que eles nos comam por último.

2) Em vez de nos apoiarmos nos princípios do bem e do mal, do certo e do errado, e nos valores universais dos direitos humanos e da vida humana, o que temos é engajamento, reajustes e equivalência moral. Ou seja, apaziguamento com outros nomes. O mundo precisa de uma nova aliança baseada em uma Carta Magna global, uma declaração de direitos fundamentais que todos os membros devem reconhecer.

3) O objetivo não deve ser construir novos muros para isolar os milhões de pessoas que vivem sob regimes autoritários, mas dar-lhes esperança e perspectiva de um futuro melhor. A maioria de nós que vivia atrás da Cortina de Ferro sabia muito bem que havia pessoas no mundo livre que se importavam e que lutavam por nós, não contra nós. E saber isso importava. Hoje, os chamados líderes do mundo livre falam em promover a democracia enquanto tratam os líderes dos regimes mais repressivos do mundo como iguais. As políticas de engajamento com ditadores falharam em todos os níveis, e já passou da hora de reconhecer esse fracasso.

4) Em 2005, me aposentei depois de vinte anos no topo do mundo do xadrez profissional para me juntar ao incipiente movimento pró-democracia russo. Tornei-me campeão mundial em 1985, aos 22 anos, e consegui tudo o que queria no tabuleiro de xadrez. Eu sempre quis fazer a diferença no mundo e senti que meu tempo no xadrez profissional havia acabado. Eu queria que meus filhos pudessem crescer em uma Rússia livre.

5) Havia a sensação de que o país poderia cair no caos sem uma mão mais forte no leme. A insegurança física e social sempre foi alvo fácil em democracias frágeis, e a maioria dos ditadores chega ao poder com apoio público inicial. Ao longo da história, ciclos intermináveis de autocratas e juntas militares foram fortalecidos pelo apelo popular à ordem e "la mano dura" para conter os excessos de um regime civil instável. De alguma forma, as pessoas sempre esquecem que é muito mais fácil instalar um ditador do que removê-lo.

6) A ideia ingênua era que o mundo livre usaria os laços econômicos e sociais para liberalizar gradualmente os estados autoritários. Na prática, os estados autoritários abusaram desse acesso e interdependência econômica para espalhar sua corrupção e alimentar a repressão em casa.

7) Estados não livres exploram a abertura do mundo livre contratando lobistas, espalhando propaganda na mídia e contribuindo fortemente para políticos, partidos políticos e organizações não governamentais (ONGs).

8) Assim, enquanto nosso movimento de oposição em constante evolução fez algum progresso em chamar a atenção para a realidade antidemocrática da Rússia de Putin, estávamos em uma posição perdedora desde o início. A dominação dos meios de comunicação de massa pelo Kremlin e a perseguição implacável de toda a oposição na sociedade civil tornaram impossível construir qualquer impulso duradouro. Nossa missão também foi sabotada por líderes democráticos que abraçaram Putin no cenário mundial, fornecendo-lhe as credenciais de liderança de que tanto precisava na ausência de eleições válidas na Rússia. É difícil promover a reforma democrática quando todos os canais de televisão e todos os jornais mostram imagem após imagem dos líderes das democracias mais poderosas do mundo aceitando um ditador como parte de sua família. Passa a mensagem de que ou ele não é realmente um ditador ou que a democracia e a liberdade individual nada mais são do que as moedas de barganha que Putin e sua turma sempre dizem que são.

9) Durante anos, à medida que a situação dos direitos humanos na Rússia se deteriorava constantemente, políticos e especialistas ocidentais como Condoleezza Rice e Henry Kissinger defenderam a fraqueza ocidental em confrontar Putin dizendo que os russos estavam em melhor situação do que nos dias da União Soviética.

10) Os Estados Unidos e a União Européia impuseram sanções contra autoridades e indústrias russas, ainda que muito pouco e tarde demais. E, no entanto, eles ainda se recusam a admitir a necessidade de condenar e isolar a Rússia como o perigoso estado desonesto em que Putin a transformou. Esta geração de líderes ocidentais se recusa a admitir que o mal ainda existe neste mundo e que deve ser combatido em termos absolutos, não negociados. Está claro no momento que as democracias do século XXI não estão prontas para essa luta. Ainda é uma questão em aberto se eles podem ou não se preparar.

11) É muito perigoso acreditar que a queda de um símbolo é o mesmo que o fim do que aquele símbolo representou, mas a tentação de fazê-lo é quase irresistível. [O fim do regime militar e as Diretas Já criaram a ilusão de que uma nova constituinte recolocaria o Brasil no eixo. O engano foi generalizado.]

12) Escrevi sobre o que chamo de “a gravidade do sucesso passado” no xadrez. Cada vitória puxa o vencedor ligeiramente para baixo e torna mais difícil colocar o máximo esforço para melhorar ainda mais. Enquanto isso, o perdedor sabe que cometeu um erro, que algo deu errado, e ele vai trabalhar duro para melhorar na próxima vez. O feliz vencedor geralmente assume que ganhou simplesmente porque é ótimo. Normalmente, no entanto, o vencedor é apenas o jogador que cometeu o penúltimo erro. É preciso uma tremenda disciplina para superar essa tendência e aprender lições de uma vitória.

[Argumento notável sobre o entorpecimento do sucesso e a fatalidade do decaimento.]

13) Mas o mal não morre, assim como a história não acaba. Como uma erva daninha, o mal pode ser cortado, mas nunca totalmente desarraigado. Ele espera sua chance de se espalhar pelas frestas de nossa vigilância. Pode criar raízes no solo fértil de nossa complacência, ou mesmo nos escombros pedregosos da queda do Muro de Berlim.

14) Além de sua capacidade militar, a URSS era uma ameaça porque propunha agressivamente uma ideologia tóxica, o comunismo, capaz de se espalhar muito além de suas fronteiras. Até recentemente, Putin se sentia capaz de saquear a Rússia e consolidar o poder sem recorrer a nada parecido com ideologia. “Vamos roubar juntos” tem sido o único lema de sua elite governante, usando o poder do governo para mover dinheiro para os bolsos daqueles que exercem esse poder. Mas à medida que a situação econômica na Rússia se deteriorou, Putin foi obrigado a recorrer aos últimos capítulos do manual do ditador para encontrar novas maneiras de justificar seu papel como líder supremo.

15) Quando o presidente fantoche de Putin na Ucrânia, Viktor Yanukovych, fugiu do país após os protestos “Euromaidan” exigindo maior integração europeia, Putin aproveitou a chance. Citando a necessidade de proteger os russos na Ucrânia, ele primeiro ocupou e anexou a Crimeia e depois começou a incitar a violência por meio de “rebeldes” apoiados pelos russos no leste da Ucrânia. Logo depois, apesar das alegações cada vez mais absurdas do Kremlin em contrário, tropas russas e armas pesadas transformaram o conflito em uma invasão real.

16) Uma guerra por qualquer motivo é terrível, mas a perigosa virada de Putin para o imperialismo de base étnica não pode ser ignorada. Aqueles que dizem que o conflito na Ucrânia está longe e que provavelmente não levará à instabilidade global ignoram a clara advertência que Putin nos deu. Não há uma razão para acreditar que sua visão propalada de uma “Grande Rússia” terminará com o leste da Ucrânia, mas muitas razões para acreditar que não. Os ditadores só param quando são parados, e apaziguar Putin com a Ucrânia só vai alimentar seu apetite por mais conquistas. A Ucrânia é apenas uma batalha que o mundo livre gostaria de ignorar em uma guerra maior que se recusa a reconhecer que existe. Mas fingir que você não tem inimigos não torna isso verdade. O Muro de Berlim e a União Soviética se foram, mas os inimigos da liberdade que os construíram não. A história não termina; ela funciona em ciclos. O fracasso em defender a Ucrânia hoje é o fracasso dos Aliados em defender a Tchecoslováquia em 1938. O mundo deve agir agora para que a Polônia em 2015 não seja chamada a desempenhar o papel da Polônia em 1939.

17) Preocupar-se apenas com o que pode acontecer quando a situação atual já é catastrófica é uma tentativa patética de adiar decisões difíceis.

18) Putin, como todo ditador conhecido antes dele, cresce em confiança e apoio quando não é desafiado. Cada passo que ele pode anunciar como um sucesso para o povo russo torna mais difícil removê-lo e é mais provável que ele se sinta corajoso o suficiente para dar passos ainda mais agressivos.

19) É verdade que se a América, a Europa e o resto das democracias do mundo finalmente perceberem que a era do engajamento acabou e atacarem Putin e os outros bandidos cortando-os em pedaços e fornecendo apoio avassalador aos seus alvos, os conflitos podem piorar antes que eles possam ser extintos. Essa visão – a disposição de aceitar sacrifícios de curto prazo para o bem de longo prazo – requer o tipo de liderança que o mundo livre tem muito pouco hoje. Requer pensar além da próxima pesquisa de opinião, do próximo relatório trimestral e da próxima eleição. As políticas da Guerra Fria mantiveram-se notavelmente firmes por décadas, em todas as administrações, e eventualmente terminaram em uma grande vitória para o lado da liberdade. Desde então, um presidente após o outro, um primeiro-ministro após o outro, passou a responsabilidade dos direitos humanos na Rússia até que Putin teve impulso suficiente para lançar uma guerra real em solo europeu. Um argumento popular sem fundamento consiste em sugerir que a intervenção contra a agressão pode levar à Terceira Guerra Mundial ou mesmo a um holocausto nuclear. Pelo contrário, a única maneira de a crise atual continuar a aumentar é se Putin não for confrontado com uma ameaça esmagadora ao seu poder, que é a única coisa com que ele se importa. Se Putin puder ir de vitória em vitória, eliminando qualquer oposição em casa enquanto ganha território e influência no exterior, o risco de uma guerra total aumenta dramaticamente.

20) Se, no entanto, os líderes do mundo livre voltarem a si a tempo e apresentarem uma forte frente unida contra Putin - com sanções econômicas, substituição da energia russa, isolamento diplomático e apoio econômico e militar para seus alvos - isso fornecerá uma base para uma nova aliança das democracias do mundo.

21) A ascensão e queda da democracia russa daria um livro dolorosamente curto. Demorou apenas oito anos para a Rússia passar de uma multidão jubilosa celebrando o colapso da União Soviética em 1992 para a ascensão do ex-agente da KGB Vladimir Putin à presidência. Depois, Putin levou mais oito anos para corromper ou desmantelar quase todos os elementos democráticos do país – equilíbrio nos ramos do governo, eleições justas, judiciário independente, mídia livre e uma sociedade civil que pudesse trabalhar com o governo em vez de viver com medo dele. Oligarcas não cooperativos foram presos ou exilados e a imprensa rapidamente soube o que podia e o que não podia ser dito. Putin também consolidou a economia russa, reprimindo reformas de livre mercado e enfatizando a criação de “campeões nacionais” nos setores de energia e bancário. Um potencial ponto de virada veio em 2008, quando o limite constitucional de Putin de dois mandatos de quatro anos estava terminando. Poucos esperavam que ele se aposentasse garbosamente, ou coisa do gênero, mas exatamente como ele manteria o controle enquanto mantinha as aparências era um tema quente de debate. Putin canalizou o poder não apenas para seu partido ou seu cargo, mas para si mesmo pessoalmente. Sua partida teria sido como arrancar a espinha do estado mafioso da KGB que ele e seus aliados passaram oito anos construindo. Ele poderia alterar a constituição russa para concorrer novamente, mas na época Putin ainda era sensível em manter as aparências democráticas. Por um lado, teria sido estranho para seus colegas líderes do G8 recebê-lo após qualquer tomada primitiva de poder, e permanecer nas boas graças dos líderes dos Estados Unidos, Japão e Europa Ocidental foi muito útil para Putin em casa. Como ele poderia ser chamado de antidemocrático, muito menos de déspota, se foi abraçado com tanto entusiasmo por pessoas como George W. Bush, Silvio Berlusconi e Nicolas Sarkozy?

22) Havia alguns solavancos na estrada, no entanto. Apenas três meses antes da eleição presidencial de 4 de março, os maiores protestos políticos da era pós-soviética eclodiram espontaneamente depois que as eleições parlamentares foram tão descaradamente manipuladas que foi demais para muitos suportarem. Nos meses seguintes, centenas de milhares de russos foram às ruas, muitos gritando “Fora Putin!” e “Rússia sem Putin!”

23) Mas o ímpeto não pôde ser mantido. Novas leis draconianas contra a liberdade de reunião foram rapidamente aprovadas, permitindo multas enormes e criminalizando protestos não violentos. Muitos líderes e membros da oposição foram perseguidos, presos e interrogados sobre seus papéis na organização dos protestos. O Kremlin empenhou recursos maciços contra os protestos; a última manifestação em massa, em 6 de maio de 2013, foi brutalmente dispersa e levou ao chamado caso da Praça Bolotnaya, que os registros mostram que envolveu mais de treze mil entrevistas com testemunhas e que levou dezenas de manifestantes a serem condenados a anos de prisão.

24) Os presidentes dos EUA, em particular, sempre depositaram muita fé em indivíduos na Rússia, em vez de apoiar as reformas estruturais e institucionais que poderiam ter garantido a sobrevivência da democracia.

25) No início de 1991, Gorbachev estava perdendo o controle de seu tímido programa de reformas à medida que os ventos da mudança sopravam com força da Europa Oriental. Bush fez o seu melhor para apoiar os esforços de Gorbachev para manter a URSS unida, proferindo seu infame discurso “Frango à Kyiv” em 1º de agosto de 1991, quando ele enfureceu muitos ucranianos, advertindo-os contra pressionar demais pela independência da URSS.

26) Apesar da tentativa de rebatizar o método como “engajamento”, o cheiro de apaziguamento é impossível de mascarar. A lição fundamental de Chamberlain e Daladier indo ver Hitler em Munique em 1938 é válida hoje: dar a um ditador o que ele quer nunca o impede de querer mais; isso o convence de que você não é forte o suficiente para impedi-lo de fazer o que quer.

27) Os sinais de alerta sobre a natureza e a intenção de Putin eram abundantes. Sua ascensão ao poder foi auxiliada por sua resposta brutal aos bombardeios de apartamentos em 1999, aos atos terroristas que muitos ainda suspeitam ter sido uma provocação ao estilo do Reichstag. (Mas, ao contrário do Reichstag, houve derramamento de sangue de verdade.) Bombardeios de arrasar tudo e tortura de civis em toda a Chechênia foram apresentados como parte da guerra global contra o terror, que era uma invenção completa. Mais tarde, o desprezo de Putin pelo valor da vida humana foi confirmado em duas situações de reféns, a primeira em 2002, quando tropas federais usando um gás ainda não especificado mataram dezenas de reféns no confronto do teatro Nord-Ost em Moscou. A segunda veio em 2004, quando as forças de segurança usando armas militares demoliram uma escola cheia de crianças reféns em Beslan, resultando na morte de centenas.

28) Os meios de comunicação foram tomados por forças amigas de Putin e seus associados mais próximos. O proprietário da NTV, Vladimir Gusinsky, passou três dias na prisão em junho de 2000 e foi forçado a desistir de sua empresa. De fato, no que se tornaria um típico “método de negociação” da época, ele foi forçado a assinar o repasse de sua empresa antes de ser autorizado a sair da prisão. Ele fugiu para Israel enquanto seu canal era apropriado e absorvido pelo portfólio do Kremlin em abril de 2001, e hoje, ironicamente, a NTV é provavelmente a mais suja das estações oficiais de propaganda contra uma concorrência muito dura nesse campo. Essa “censura branda” foi acompanhada pelo tipo mais convencional, com suas listas de nomes non grata e tópicos proibidos. O poder midiático foi centralizado da mesma forma que o poder político, e com o mesmo propósito: saquear o país sem causar uma revolta popular.

29) Putin conseguiu retratar a Rússia como um aliado dos EUA – no Afeganistão em particular – enquanto trabalhava ativamente contra os interesses americanos e europeus em outros lugares.

30) Quando o governo dos EUA finalmente tomou medidas limitadas para responder aos muitos abusos do regime de Putin, isso aconteceu somente depois que Putin alcançou o poder total na Rússia e uma sensação de completa impunidade. E a mudança nem veio de dentro da administração. A legislação da Lei Magnitsky, que impôs sanções sobre bens e viagens a alguns funcionários russos por abusos de direitos humanos, foi defendida pelo investidor americano-britânico Bill Browder. Um dos advogados de seu grupo de investimentos russo, Sergei Magnitsky, foi preso em 2008 pelos mesmos policiais corruptos cuja fraude maciça ele havia exposto. Um ano depois, morreu em prisão preventiva depois de ser espancado sem ter recebido atenção médica adequada.

[ Esta introdução basta por si só para um conhecimento geral do livro de Kasparov. No entanto, resumi todo o livro. O leitor poderá solicitar por comentário abaixo mencionando seu email (que não será publicado) as 35 páginas restantes que compõem os 119 itens totais que selecionei da edição em inglês].

Índice do livro:

1: O FIM DA GUERRA FRIA E A QUEDA DA URSS
2: A DÉCADA PERDIDA
3: AS GUERRAS INVISÍVEIS
4: NASCIDO NO SANGUE
5: PRESIDENTE VITALÍCIO
6: EM BUSCA DA ALMA DE PUTIN
7: FORA DO TABULEIRO, NO FOGO CRUZADO
8: OPERAÇÃO MEDVEDEV
9: A AUDÁCIA DA FALSA ESPERANÇA
10: GUERRA E PACIFICAÇÃO
CONCLUSÃO


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

US-China Trade Agreement: resumo por Paulo Roberto de Almeida

O acordo acaba de ser assinado, e me pareceu uma rendição quase completa da China em face das imposições autoritárias dos EUA, que conseguiram impor obrigações à China que rompem com o espírito multilateralista do sistema de comércio regido pela OMC. 
Trata-se de um acordo bilateral que recua 90 anos na história do comércio internacional, regulando fluxos de comércio no espírito do mercantilismo do século XVIII.
Acho que a China não tinha muito o que fazer pois as perdas poderiam provocar problemas internos nas suas cadeias produtivas.
Tenho certeza de que o Brasil será prejudicado, obviamente bem mais na área agrícola do que na área industrial. 
Na luta entre elefantes, quem sofre é a grama, ou as formigas...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de janeiro de 2020

Acordo Econômico e Comercial EUA-China; alguns dispositivos:
Seleção e recortes por Paulo Roberto de Almeida

Sobre propriedade intelectual:
"Within 30 working days after the date of entry into force of this Agreement, China will promulgate an Action Plan to strengthen intellectual property protection aimed at promoting its high-quality growth. This Action Plan shall include, but not be limited to, measures that China will take to implement its obligations under this Chapter and the date by which each measure will go into effect."

Productos lácteos:
"[China deve] within 10 days of the date of entry into force of this Agreement, recognize the U.S. dairy-safety system as providing at least the same level of protection as China’s dairy-safety system; (...) allow U.S. dairy imports into China from those facilities; (...) allow the importation of U.S. dairy permeate powder;"

Carne de Aves:
"...China shall permit their importation consistently with existing bilaterally-agreed import protocols;"

Carne bovina:
"China recognizes the U.S. beef and beef products traceability system. (...) Within one month of the date of entry into force of this Agreement, China shall adopt maximum residue limits (MRLs) for zeranol, trenbolone acetate, and melangesterol acetate for imported beef. "

Carne processada:
"Upon entry into force of this Agreement, China shall recognize FSIS oversight of U.S. meat, poultry meat, and processed meat and poultry meat facilities for purposes of allowing imports of U.S. meat, poultry meat, and processed meat and poultry meat. (...) Each time the United States provides China with an updated and complete list of FSIS- approved facilities, China shall, within 20 working days of receipt, publish the list on the GACC website and allow the importation into China of products from all facilities on the list."

Produtos aquáticos:
"... each time the United States provides China with an updated and complete list of aquatic products facilities under the jurisdiction of the FDA, within 20 working days of receipt of the list, register the facilities, publish the list of the facilities on the GACC website, and allow U.S. aquatic product imports into China from those facilities."

Arroz:
"Each time the United States provides China with a list of rice facilities approved by the APHIS..., within 20 working days of receipt of the list, China shall register the facilities, publish the list of facilities, and allow the importation of U.S. rice from each of the APHIS- approved rice facilities."

Pet food:
"...upon entry into force of this Agreement, allow the importation of U.S. pet foods containing poultry products;"

Medidas de apoio doméstico:
"China shall respect its WTO obligations to publish in an official journal its laws, regulations, and other measures pertaining to its domestic support programs and policies."

Serviços financeiros:
"China shall accept any applications from a U.S. electronic payment services supplier, including an application of a supplier seeking to operate as a wholly foreign-owned entity, to begin preparatory work to become a bank card clearing institution within five working days of submission, and may make a one-time request within those five working days for any corrections or supplementary information."
"No later than one month after a U.S. service supplier notifies China that it has completed its preparatory work, China shall accept the license application of such U.S. supplier, including any license application of Mastercard, Visa, or American Express, and shall make a determination with respect to the application, including an explanation of any adverse determination."
"No later than April 1, 2020, China shall remove the foreign equity cap in the life, pension, and health insurance sectors and allow wholly U.S.-owned insurance companies to participate in these sectors."

Políticas macroeconômicas e cambiais:
"Each Party confirms that it is bound under the International Monetary Fund (IMF) Articles of Agreement to avoid manipulating exchange rates or the international monetary system in order to prevent effective balance of payments adjustment or to gain an unfair competitive advantage. (...) achieve and maintain a market-determined exchange rate regime;"

Expansão econômica e oportunidades de comércio:
[PRA: Na verdade, comércio administrado]
"During the two-year period from January 1, 2020 through December 31, 2021, China shall ensure that purchases and imports into China from the United States of the manufactured goods, agricultural goods, energy products, and services identified in Annex 6.1 exceed the corresponding 2017 baseline amount by no less than $200 billion. ...
(a) For the category of manufactured goods identified in Annex 6.1, no less than $32.9 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2020, and no less than $44.8 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2021;
(b) For the category of agricultural goods identified in Annex 6.1, no less than $12.5 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2020, and no less than $19.5 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2021;
(c) For the category of energy products identified in Annex 6.1, no less than $18.5 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2020, and no less than $33.9 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2021; and
(d) For the category of services identified in Annex 6.1, no less than $12.8 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2020, and no less than $25.1 billion above the corresponding 2017 baseline amount is purchased and imported into China from the United States in calendar year 2021." (...)
"The Parties project that the trajectory of increases in the amounts of manufactured goods, agricultural goods, energy products, and services purchased and imported into China from the United States will continue in calendar years 2022 through 2025. The United States shall ensure to take appropriate steps to facilitate the availability of U.S. goods and services to be purchased and imported into China."

Solução de Controvérsias:
"The Parties shall create the Trade Framework Group to discuss the implementation of this Agreement, which shall be led by the United States Trade Representative and a designated Vice Premier of the People’s Republic of China. The Trade Framework Group shall discuss (a) the overall situation regarding implementation of this Agreement, (b) major problems with respect to implementation, and (c) arrangements for future work between the Parties. The Parties shall resume macroeconomic meetings to discuss overall economic issues, which shall be led by the United States Secretary of the Treasury and the designated Vice Premier of the People’s Republic of China. Both Parties shall make every effort to ensure that meetings of the Trade Framework Group and the macroeconomic meetings are efficient and oriented toward solving problems."

Entrada em vigor do acordo:
"This Agreement shall enter into force within 30 days of signature by both Parties or as of the date on which the Parties have notified each other in writing of the completion of their respective applicable domestic procedures, whichever is sooner."

Vale a leitura completa da prepotência americana.
Paulo Roberto de Almeida

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lei da Liberdade Econômica - resumo do escritório Veirano Advogados


O Escritório Veirano Advogados preparou um resumo explicativo da Lei da Liberdade Econômica, transcrito abaixo e neste link:

LIBERDADE ECONÔMICA
APENAS UMA DECLARAÇÃO DE (BOAS) INTENÇÕES – OU MUITO MAIS DO QUE ISTO?

Em 20 de setembro de 2019, entrou em vigor a Lei no 13.874 (“Lei no 13.874”), proveniente da Medida Provisória no 881, publicada em 30 de abril de 2019 (“MP da Liberdade Econômica” ou “Medida Provisória”), com o objetivo declarado de promover uma “mudança cultural nas relações entre o Poder Público e os agentes privados”.
A MP da Liberdade Econômica foi editada visando estabelecer a intervenção excepcional nas relações privadas, proporcionar uma desburocratização e simplificação para os pequenos e médios empreendedores e consolidar em lei a jurisprudência já firmada no Superior Tribunal de Justiça (por exemplo, com relação ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica).
A Lei no 13.874 pode trazer efeitos positivos duradouros na maneira como os negócios serão conduzidos no Brasil. Obviamente, a mudança cultural necessária para torná-la efetiva somente ocorrerá se os princípios e disposições nela contidos forem adotados (e genuinamente apoiados) pelos servidores públicos em todos os níveis do governo, incluindo os juízes brasileiros, responsáveis por aplicar esses princípios em casos concretos.
Para que se possa compreender, sob uma perspectiva geral, as principais mudanças introduzidas pela Lei no 13.874 ao ordenamento jurídico, preparamos um breve guia para tratar dos denominados direitos de liberdade econômica, bem como das principais alterações que poderão afetar as relações privadas.

1. PRINCÍPIOS NORTEADORES
O Brasil ocupa o 110o lugar (em 190) no ranking do Doing Business World Bank e é colocado de maneira impressionante em alguns sub rankings relacionados às interações com o Estado: iniciar um negócio (140o lugar em 190), licenças de construção (175o em 190) e pagamento de impostos (184o de 190). Além disso, o Brasil é um dos países mais litigiosos do mundo- nossos tribunais receberam cerca de 28 milhões de novos casos em 2018, ou quase 11.800 casos por cada 100.000 habitantes. Leis como a proveniente da referida Medida Provisória visam levar esses números a um nível mais racional.
A Lei no 13.874 foi elaborada com base nos seguintes princípios norteadores: (i) a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; (ii) a boa-fé do particular perante o poder público; (iii) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e (iv) o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
Alguns desses princípios não são novidade - a Constituição Federal já prevê, por exemplo, a livre iniciativa, o livre exercício da atividade econômica e a intervenção mínima e excepcional do Estado na exploração direta da atividade econômica, mas, na prática, sempre se observou uma grande carga burocrática e dificuldade para que os agentes privados iniciassem e desenvolvessem suas atividades.
Alguns exemplos da presença dos princípios norteadores descritos acima no conteúdo da Lei no 13.874 encontram-se:
2.
(i)
(ii)
em seu artigo 3o, inciso I, o qual prevê que as atividades econômicas de baixo risco poderão ser desenvolvidas sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da respectiva atividade. A classificação de atividades de baixo risco, por sua vez, dependerá de ato do Poder Executivo federal, o qual deverá ser observado na ausência de legislação estatual, distrital ou municipal específica e, quando não houver o referido ato do Poder Executivo federal, deverá ser aplicada a resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM; e
em seu artigo 3o, incisos IX e X, os quais preveem, respectivamente, que o particular (a) deverá ser cientificado expressa e imediatamente pela autoridade competente sobre o prazo máximo estipulado para análise de seu pedido, de modo que, após transcorrido o prazo fixado, o silêncio da referida autoridade importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei e (b) poderá arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para comprovação de qualquer ato de direito público.

AUTONOMIA DA VONTADE E INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
2.1. Interpretação do negócio jurídico
A Lei no 13.874 introduziu ao artigo 113 do Código Civil, que trata da interpretação dos negócios jurídicos conforme a boa- fé e os usos do lugar de sua celebração, a indicação de que os negócios jurídicos deverão ser interpretados no sentido que (i) for confirmado pelo comportamento das partes posteriormente à celebração do negócio; (ii) corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo do negócio; (iii) corresponder à boa-fé; (iv) for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (v) corresponder à qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, conforme as demais disposições do negócio e a racionalidade econômica das partes.
Além disso, foi inserido o §2o ao artigo 113 do Código Civil para prever que as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei, o que significa que as partes terão liberdade não apenas para estipular regras interpretativas adicionais, mas também para alterar ou mesmo excluir a aplicação das novas regras interpretativas estabelecidas pela Lei no 13.874.

2.2. Os limites da função social do contrato
O Código Civil, até a entrada em vigor da MP da Liberdade Econômica, previa em seu artigo 421 que a “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. A Lei no 13.874 inseriu o parágrafo único ao referido artigo com a seguinte redação: “nas relações contratuais privadas, prevalecerão os princípios da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”
A redação original do artigo 421 do Código Civil possuía natureza bastante genérica, conferindo grande margem à discricionariedade do Poder Judiciário em cada caso concreto (ao analisar se o negócio jurídico estabelecido contratualmente pelas partes no exercício da autonomia da vontade haveria violado uma função social). Frequentemente, esse exercício acarretava uma reinterpretação judicial dos direitos e das obrigações contratuais, causando insegurança e imprevisibilidade aos contratantes.
Referida inserção pela Lei no 13.874 visa evitar a intervenção e o ativismo judicial excessivos nas relações contratuais privadas. Caberá observar como esta inovação será aplicada pelo Poder Judiciário.
2.3. Parâmetros de revisão ou resolução de pacto contratual e alocação dos riscos definidos
A Lei no 13.874 introduziu, ainda, o artigo 421-A ao Código Civil, para dispor que os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais e garantindo também que (i) as partes negociantes possam estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (ii) a alocação de riscos definida pelas partes seja respeitada e observada; e (iii) a revisão contratual somente ocorra de maneira excepcional e limitada.
No ponto, a Lei no 13.874 reforçou o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) que, como dito acima, é frequentemente mitigado por reinterpretações judiciais.

3. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1. Alterações no Código Civil
Embora, em regra, os sócios não sejam pessoalmente responsáveis por dívidas das sociedades em que possuam participação, na prática, comumente os juízes estendem a responsabilidade patrimonial da sociedade aos sócios diretos e indiretos de empresas brasileiras (e até afiliadas e administradores) por - entre outros - passivos trabalhistas e de natureza consumerista. Houve casos em que os juízes perseguiram a controladora final e (em casos trabalhistas) outras empresas membros do mesmo grupo econômico. As relações de trabalho e de consumo tendem a ter uma abordagem social ou distributiva (funcionários e consumidores são considerados o “elo mais fraco da cadeia”) e os juízes geralmente relativizam o conceito da autonomia patrimonial das sociedades ou o rejeitam por completo.
Infelizmente, a Lei no 13.874 adotou uma abordagem um tanto tímida, alterando apenas o Código Civil, para tornar expresso certos precedentes já estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça (e não a legislação específica que trata das matérias trabalhista, consumerista, ambiental e de corrupção, por exemplo).
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica de forma a atingir os bens particulares dos sócios e/ou dos administradores que praticarem abuso da personalidade de sociedade empresária já era previsto expressamente no Código Civil, em seu artigo 50.
O referido artigo, em sua redação original, previa que o abuso da personalidade jurídica estaria caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial (conceitos até então não definidos no referido diploma legal).
Com a nova redação incluída pela Lei no 13.874, (i) ficou expresso no caput do artigo 50 que apenas os administradores ou sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso poderão ter seus bens particulares atingidos em decorrência da desconsideração e (ii) definiu-se os conceitos de desvio de finalidade e de confusão patrimonial.
Quanto à definição de desvio de finalidade, a novidade é o pressuposto expresso do propósito (dos sócios ou administradores beneficiados) em lesar credores ou praticar atos ilícitos; quanto à definição de confusão patrimonial, as novidades são dois exemplos concretos de atos que a caracterizam: o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador (ou vice-versa) e a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e um terceiro exemplo genérico referente à prática de outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Foi introduzida, ainda, previsão no sentido de que a mera existência de grupo econômico sem a presença de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica (nos termos do §4o do artigo 50) e que não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica (nos termos do §o5 do artigo 50).
Esse dispositivo não representa propriamente uma alteração ao ordenamento jurídico, apenas servindo ao propósito de reforçar a autonomia privada, consignando expressamente que as partes terão liberdade em estipular os termos e condições dos contratos que celebrarem e que, com relação às matérias definidas, a revisão contratual pelo Poder Judiciário deverá ser medida excepcional.

Embora já reconhecida pela Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a desconsideração inversa da personalidade jurídica (ou seja, a possibilidade de extensão das obrigações de sócios e/ou de administradores à pessoa jurídica em caso de desvio de finalidade e confusão patrimonial) foi inserida no artigo 50 do Código Civil.
Além disso, também foi inserida previsão expressa no Código Civil, mediante a inclusão do artigo 49-A, no sentido de que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores e que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
Importa notar que as novas regras sobre desconsideração da personalidade jurídica se restringem à matéria cível e não se aplicam à discussão da responsabilidade de natureza trabalhista, tributária, ambiental, consumerista e concorrencial e outras que são reguladas por leis específicas.

4. LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
4.1. Sociedade Limitada Unipessoal
Uma importante inovação trazida pela Lei no 13.874 consiste na possibilidade de a sociedade empresária limitada ser constituída por um único sócio, nos termos do §1o introduzido ao artigo 1.052 do Código Civil. Trata-se do reconhecimento da unipessoalidade de fato de sociedades limitadas com sócios formais, permitindo a alteração de contratos sociais em que a pluralidade de sócios é composta por sócios apenas de direito.
Introduziu-se também o §2o ao artigo 1.052 do Código Civil, no sentido de que, se a sociedade for unipessoal, aplicar-se- ao ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.
A sociedade empresária limitada unipessoal provavelmente tornará pouco usual a constituição de empresa individual de responsabilidade limitada (“EIRELI”) prevista no artigo 980-A do Código Civil, diante da exigência constante no referido artigo de que o capital social da EIRELI, devidamente integralizado, não seja inferior a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País à época da constituição da EIRELI.
Vale ressaltar que o Código Civil veda, ainda, que uma mesma pessoa física seja titular de mais de uma EIRELI (nos termos do §2o do artigo 980-A). O objetivo desta vedação era justamente coibir abusos da personalidade jurídica e fraudes a credores.
Uma vez que a Lei no 13.874 não introduziu a mesma vedação para as sociedades empresárias limitadas unipessoais e tampouco exigiu a integralização de capital social mínimo para sua constituição, caberá verificar como esta nova estrutura será de fato utilizada e se serão adotados mecanismos de proteção aos credores.
Além disso, embora inserida a possibilidade de constituição de sociedade limitada por 1 (um) único sócio, não foi feita nenhuma exceção no artigo 1.033, inciso IV, do Código Civil, o qual prevê que, quando a pluralidade de sócios não for reconstituída no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, dissolver-se-á a sociedade.
O dispositivo da Lei no 13.874 (artigo 19, IV) que revogava o inciso IV do art. 1.033 do Código Civil foi vetado, sob o argumento (correto) de que este tinha aplicação não apenas à sociedade limitada, mas também aos outros tipos societários previstos no Código Civil. Mesmo faltando uma ressalva expressa — similar à prevista no artigo 1.033, parágrafo único, do Código Civil (que prevê a possibilidade de conversão da sociedade unipessoal em EIRELI ou em empresa individual) — parece-nos que, com o veto, a regra de dissolução pela não recomposição da pluralidade somente será aplicável se, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, o sócio remanescente não deliberar por manter a sociedade com apenas 1 (um) sócio, reformando o contrato social para essa finalidade. Sobre esse ponto, convém ver como as Juntas Comerciais reagirão em tais casos.
4.2. Limitação à responsabilidade do titular da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI
Foi, ainda, introduzida previsão expressa no Código Civil no sentido de que, ressalvados os casos de fraude, o patrimônio do titular de EIRELI não se confundirá com o patrimônio da empresa, conforme §7o do artigo 980-A do Código Civil, incluído pela Lei no 13.874, proveniente da MP da Liberdade Econômica.

5. LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS COTISTAS DE FUNDOS DE INVESTIMENTOS E PRESTADORES DE SERVIÇOS FIDUCIÁRIOS

5.1. Natureza jurídica e disciplina dos fundos de investimento
A Lei no 13.874 também introduziu um capítulo específico no Código Civil para tratar sobre fundos de investimento (conforme artigos 1.368-C a 1.368-F). No artigo 1.368-C, prevê-se que os fundos de investimento possuem natureza jurídica de condomínio de natureza especial e são destinados à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. É válido ressaltar que a referida definição está alinhada com o que já era estabelecido pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”).
Tendo em vista que foi adicionada referência específica aos fundos de investimento destinados à aplicação de recursos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza, entende-se que as disposições do Código Civil introduzidas pela Lei no 13.874 são aplicáveis tanto aos fundos de investimento em participações, regulados pela Instrução da CVM no 578, de 30 de agosto de 2016, conforme alterada (“Instrução CVM 578”) e a todas as demais classes de fundos de investimento atualmente existentes, nos termos da Instrução da CVM no 555, de 17 de dezembro de 2014, conforme alterada (“Instrução CVM 555”).
Conforme prevê o §2o do artigo 1.368-C, competirá à CVM disciplinar os fundos de investimentos.
Outra alteração importante foi introduzida no §3o do artigo 1.368-C no sentido de que o registro do regulamento dos fundos de investimento na CVM é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros. Com isso, estaria dispensada a necessidade de registro do documento em cartório de títulos e documentos.
Resta verificar, no entanto, como será a aplicação desta dispensa na prática, tendo em vista que a Instrução CVM 578 prevê expressamente que o funcionamento do fundo de investimento será automaticamente concedida pela CVM mediante o protocolo na autarquia de certidão que comprove que o ato de constituição e o regulamento do fundo foram devidamente registrados em cartório de títulos e documentos, nos termos do artigo 2o, inciso I, da Instrução CVM 578.
Conforme dispõe o artigo 1.368-F do Código Civil, introduzido pela Lei no 13.874, os fundos de investimento regulamentados pela CVM deverão, no que couber, seguir as disposições dos 1.368-C a 1.368-F do Código Civil.
5.2. Regras aplicáveis aos cotistas de fundos de investimento e aos prestadores de serviços fiduciários
Outra importante inovação no tocante aos fundos de investimento introduzida pela Lei no 13.874 consiste na possibilidade de o regulamento do fundo estabelecer (i) limitações à responsabilidade de cada cotista ao valor de suas cotas; (ii) limitações à responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários ao cumprimento dos deveres particulares de cada um (ou seja, sem solidariedade), perante os cotistas e entre si; e (iii) classes de cotas com direitos e obrigações distintos, com possibilidade de constituição de patrimônio segregado para cada classe (o qual somente responderá por obrigações vinculadas à classe respectiva), nos termos do 1.368-D do Código Civil.
Antes das alterações introduzidas pela Lei no 13.874, a responsabilidade limitada apenas era prevista expressamente no ordenamento jurídico brasileiro para os fundos de investimentos imobiliários (e era aplicável apenas aos cotistas destes fundos, não aos seus prestadores de serviços fiduciários), nos termos da Lei no 8.668, de 25 de junho de 1993.
Conforme dispõe o artigo 15 da Instrução CVM 555, os cotistas de fundos de investimento estão sujeitos à responsabilização pelo patrimônio líquido negativo do fundo, sem prejuízo da possibilidade de o administrador e o gestor serem responsabilizados, caso a política de investimento ou os limites de concentração previstos nos respectivos regulamentos dos fundos e na Instrução CVM 555 não forem observados. 
Ainda nos termos da Instrução CVM 555, o contrato de prestação de serviços dos fundos de investimento regulados pela referida instrução deverá prever a responsabilidade solidária entre o administrador do fundo e o prestador de serviços por eventuais prejuízos incorridos pelos cotistas que derem causa em virtude de condutas contrárias à lei, às normas da CVM e ao regulamento dos fundos. A Instrução CVM 578 traz previsão no mesmo sentido, com exceção às contratações de serviços relacionados especificamente à gestão de carteira.
Ainda, nos termos do novo artigo 1.368-D, §1o, do Código Civil, a adoção da responsabilidade limitada, caso assim passar a ser estabelecido pelo respectivo regulamento, por fundo inicialmente constituído sem esta limitação, somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança no regulamento.
Tendo em vista a ausência de regulamentação específica da CVM para tratar das inovações trazidas ao Código Civil pela Lei no 13.874, será necessário aguardar esta regulamentação para que os regulamentos dos fundos possam ser alterados de modo a prever limitações à responsabilidade do cotista e dos prestadores de serviços fiduciários.
A possibilidade de se estabelecer as limitações acima descritas poderá proporcionar maior previsibilidade e segurança jurídica aos investimentos realizados por meio de fundos, além de representarem um incentivo para que os prestadores de serviços fiduciários atuem de forma cada vez mais ativa e inovadora neste mercado.
Por fim, foi introduzida a aplicabilidade das regras de insolvência civil previstas nos artigos 955 a 965 do Código Civil, caso o fundo de investimento com limitação de responsabilidade não possua patrimônio suficiente para responder por suas dívidas. Com essa regra exclui-se a possibilidade de falência ou de recuperação judicial do fundo de investimento.
A insolvência civil poderá ser requerida judicialmente por credores, por deliberação própria dos cotistas do fundo de investimento, nos termos dos respectivos regulamentos, ou pela CVM, conforme previsto nos parágrafos 1o e 2o do artigo 1.368-E do Código Civil.

6. ALTERAÇÕES NA LEI DAS S.A.

Com relação à Lei das S.A., foi inserida a possibilidade de dispensa de assinatura de lista ou de boletim de subscrição no ato da subscrição de ações a serem realizadas em dinheiro, caso a liquidação da oferta pública em questão ocorra por meio de sistema administrado por entidade administradora de mercados organizados de valores mobiliários, nos termos do §2o do artigo 85 da Lei das S.A., introduzido pela Lei no 13.874.
Trata-se de medida de desburocratização para companhias abertas, estimulando o acesso ao mercado de capitais.

7. ALTERAÇÕES NA LEI DE REGISTRO PÚBLICO DE EMPRESAS MERCANTIS

A Lei no 13.874 introduziu, ainda, diversas alterações na Lei no 8.934, de 18 de novembro de 1994 (“Lei de Registro Público de Empresas Mercantis”). Dentre elas, destaca-se a obrigatoriedade de o registro dos atos constitutivos e de suas alterações e extinções ocorrer independentemente de autorização governamental prévia, devendo os órgãos públicos ser informados pela Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim) apenas a respeito dos registros sobre os quais manifestarem interesse.
Além disso, nos termos do novo parágrafo único do artigo 41 da Lei de Registro Público de Empresas Mercantis, os pedidos de arquivamento (i) dos atos de constituição de sociedades anônimas; (ii) dos atos referentes à transformação, incorporação, fusão e cisão de empresas mercantis; e (iii) dos atos de constituição e alterações de consórcio e de grupo de sociedades, conforme previsto na Lei das S.A. deverão ser decididos no prazo de 5 (cinco) dias úteis, contados da data de seu recebimento pela Junta Comercial competente, sob pena de os atos serem considerados arquivados, mediante provocação dos interessados, sem prejuízo do exame das formalidades legais pelas procuradoria.
Para outros pedidos de arquivamento não citados acima (como alterações ao contrato social de sociedades empresárias limitadas), o prazo para decisão sobre o respectivo deferimento pela Junta Comercial competente será de 2 (dois) dias úteis, sob pena de os atos serem igualmente considerados arquivados, mediante provocação dos interessados.
Outra importante alteração é o deferimento de registro automático para o arquivamento de atos constitutivos e alterações de sociedades limitadas caso estejam presentes os requisitos de (i) aprovação da consulta prévia da viabilidade do nome empresarial e de localização e (ii) utilização de instrumento padrão estabelecido pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (Drei). Essa medida certamente desburocratizará o registro, permitindo às partes que adequem o contrato social às especificidades da sociedade em um segundo momento.
Ainda, nos termos do §3o introduzido ao artigo 63 da Lei de Registro Público de Empresas Mercantis, fica dispensada a autenticação dos atos levados a arquivamento nas Juntas Comerciais nos casos em que o advogado ou o contador da parte interessada declarar, sob sua responsabilidade pessoal, a autenticidade da cópia do respectivo documento.
A Lei de Registro Público de Empresas Mercantis passou a prever, ainda, que os atos de constituição, alteração, transformação, incorporação, fusão, cisão, dissolução e extinção de registro de empresários e de pessoas jurídicas poderão ser realizados também por meio de sistema eletrônico criado e mantido pela administração pública federal. A ameaça de concorrência potencial de um registro federal pode servir de estímulo para que as Juntas Comerciais de cada Estado sejam mais eficientes.

8. ALTERAÇÕES NA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO

As alterações introduzidas pela Lei no 13.874 na Consolidação das Leis do Trabalho, no intuito de desburocratizar o empreendedorismo brasileiro, dizem respeito (i) às anotações do contrato de trabalho e da carteira de trabalho; (ii) à anotação da jornada de trabalho; e (iii) ao Sistema de Escrituração Digital de Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (E-Social).
8.1. Anotações do Contrato de Trabalho e da Carteira de Trabalho
Alterações e revogações dos textos contidos nos artigos no 13, 14, 15, 16, 29, 40 e 135 da CLT, com a implementação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (“CTPS”) eletrônica, sendo a física apenas emitida em caráter excepcional, competindo ao Ministério da Economia essa atribuição, são algumas das alterações introduzidas pela Lei no 13.874 na CLT.
Com a entrada em vigor da Lei no 13.874, a CTPS estará vinculada apenas ao CPF do trabalhador. O empregador terá 5 (cinco) dias úteis para proceder à anotação da contratação mediante um novo cadastro eletrônico de empregador. Em 48 (quarenta e oito) horas após a anotação da CTPS, o trabalhador deverá ter acesso às informações.
Por fim, está revogado o inciso II do artigo 40 da CLT, retirando a necessidade de prova das anotações da CPTS para fins de comprovação de dependentes perante a Previdência Social.
Para os empresários, a alteração simplifica a burocracia de contratar e segue a tendência digital. Indiretamente, mitiga registros precários e imprecisos. Logo, é positiva.
8.2. Anotação da Jornada de Trabalho
Foram implementadas, ainda, alterações e revogações no texto do artigo 74 da CLT, de modo a aumentar de 10 (dez) para 20 (vinte) o número de empregados do estabelecimento para que o empregador tenha a obrigação do controle e registro de ponto.
Serão anotadas as jornadas de trabalho por meio manual, mecânico ou eletrônico, conforme regulamentação administrativa do Ministério da Economia, sendo possível a pré anotação do período de repouso. Também há novas regras para a anotação da jornada de trabalho daqueles que laboram fora do estabelecimento do empregador.
Por fim, por acordo individual escrito, por Acordo Coletivo ou por Convenção Coletiva de Trabalho, será autorizada a anotação da jornada pelo regime de “exceção” (anotação apenas da jornada extraordinária).
As alterações parecem positivas para os empresários, especialmente a que diz respeito ao número mínimo de empregados para registro de horário obrigatório. O texto original é muito antigo e a atividade econômica muito mais modesta. Assim, a alteração parece ser mais fiel ao espírito da norma do que a sua literalidade atual.
A anotação do horário do empregado externo deve ser entendida em harmonia com a regra do artigo 62 da CLT, portanto, sendo aplicável apenas aos casos em que seja possível o controle dessa jornada.
A anotação pelo regime de exceção é mais prática com vantagens para o empregador pela simplificação, sem prejuízo para o empregado. O argumento por vezes apresentado de que ele inibiria o registro de horas extras, na verdade, serviria a qualquer forma de anotação ou não haveria tanto contencioso por horas extras.

8.3. E-SOCIAL
Por fim, o Sistema de Escrituração Digital de Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (E-Social), que unifica o envio de dados de trabalhadores e de empregadores, será substituído, em nível federal, por um sistema mais simples, de informações digitais de obrigações previdenciárias e trabalhistas.
As dificuldades operacionais do sistema são notórias, bastando ver os sucessivos adiamentos. Não se trata de eliminar registros, mas de procurar um sistema digital mais eficiente.
A proposta original de permissão geral para o trabalho aos domingos caiu, assim como a regulamentação da alteração do dia de descanso e do adicional.

9. DIREITO DO CONSUMIDOR

A Lei no 13.874 não altera expressamente qualquer artigo da Lei no 8.078, de 11 de novembro de 1990 (“Código de Defesa do Consumidor” ou “CDC”)1. Assim, genericamente falando, a opção da Lei no 13.874 parece ter sido a de não restringir direitos dos consumidores, ao menos não aqueles previstos expressamente no CDC. Ao garantir ‘a livre definição, em mercados não regulados, do preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda’ (art. 3o, III), a Lei no 13.874 foi ainda mais específica e excluiu expressamente desse âmbito a legislação de defesa aos direitos do consumidor, assim como a de defesa da concorrência e às demais disposições protegidas por lei federal (art. 3o, § 3o, II, da Lei no 13.874). Mas essa foi a única exclusão relacionada a direito do consumidor, ou seja, tão somente no que se refere à definição de preços de produtos.
Ocorre que o sistema de proteção e defesa do consumidor no Brasil não se resume ao que está disposto no CDC, mas é composto por uma série de normas infralegais e regras que compõem um vasto sistema regulatório que transcendem ao Código de Defesa do Consumidor, de modo que as alterações trazidas pela Lei no 13.874 deverão impactar em alguma medida também as relações de consumo, inclusive podendo flexibilizar algumas perspectivas protetivas, desde que não afrontem diretamente disposições do CDC.
Publicidade e propaganda. Um claro exemplo de impacto da Lei no 13.874 nas relações de consumo refere-se à maior flexibilização dos critérios a serem observados para publicidade e propaganda de serviços e produtos.
O art. 4o da Lei no 13.874 define ser “dever da Administração Pública [...] evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente [...] restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal” (inciso VIII). Nesse contexto, não sendo expressamente vedado pelo CDC, não restam dúvidas que a Lei no 13.874 conferiu às empresas fornecedoras maior liberdade na veiculação da publicidade sobre produtos, justamente com o objetivo de evitar restrições indevidas no que tange a tal direito de expressão, comunicação e/ou interação dirigida ao público visando à promoção, divulgação ou venda de um produto ou serviço.
Estamos à sua disposição caso tenha dúvidas ou precise de informações adicionais.

Lior Pinsky
Maria Letícia Góes
Os autores gostariam de agradecer os inputs valiosos de Jose Wahle (Direito Trabalhista), Paula Surerus (Direito Societário), Cassio Cavalli (Insolvência e Reestruturação), Priscila Sansone (Direito do Consumidor e Product Liability), e Pedro Boueri (Direito Civil).