Crise política fecha trilogia sobre Getúlio Vargas
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
Folha.Ilustrada, 09/08/2014
Há 60 anos o Brasil
vivia uma aguda crise política. Getúlio Vargas tinha aumentado em 100% o
salário mínimo e provocara a ira de empresários e comandantes militares. Os
Estados Unidos estavam incomodados com a limitação de remessas de lucros de
companhias estrangeiras no país, o estabelecimento do monopólio estatal da
exploração do petróleo e a recusa de envio de brasileiros para a guerra na Coréia.
No Congresso,
barulhentos conservadores falavam em mar de lama no governo. Na madrugada de 5
de agosto, a notícia do atentado contra Carlos Lacerda, com a morte do major
Rubens Vaz, acelerou a turbulência, que culminou com o suicídio de Getúlio, no
dia 24. A comoção que tomou conta do país adiou os planos da oposição, que só
conseguiu se rearticular na trama do golpe de 1964.
A narrativa desses
tempos conturbados é o ápice do último livro da trilogia "Getúlio",
do jornalista Lira Neto, que chega agora às livrarias, abarcando o período de
1945 a 1954. No conjunto, o autor trabalhou cinco anos na biografia do líder
político. Os dois primeiros volumes venderam no total 79 mil exemplares; esse
novo sai uma tiragem de 40 mil.
"Não acredito em
biografias definitivas. Getúlio é ainda um território vasto a ser explorado.
Ele é o personagem mais importante da história brasileira, para o bem e para o
mal. Não sou louco de tentar defini-lo", diz Lira, 50, à Folha.
Para ele, Getúlio
deixou um amplo legado, que extrapola a política. "Ele modernizou o
Brasil, tirou o país de uma situação agrária e o conduziu para um projeto de
desenvolvimento, com uma legislação trabalhista que era moderníssima para
aquele momento. A pergunta que faço é quanto disso poderia ter sido conquistado
com mais democracia", avalia.
Apesar de ter sido
investigada em centenas de livros, a trajetória de Getúlio ainda contém
aspectos nebulosos. "Há determinadas coisas que não permitem fazer uma
narrativa pronta, única e acabada", diz Lira. Exemplo principal: o
assassinato do major Vaz, que fazia a segurança de Lacerda, na rua Tonelero, em
Copacabana.
"O que aconteceu
de fato naquela noite nunca vamos saber. Lacerda contou a história de duas
formas diferentes e nunca entregou a sua arma para perícia. Os interrogatórios
da investigação do caso foram conduzidos, digamos, de forma pouco polida.
Pessoas interrogadas [na chamada "República do Galeão] relataram, se não a
tortura física, a psicológica. Sofreram ameaças. Todas as perguntas desse caso
estão em aberto", afirma o autor.
Se hipoteticamente
pudesse perguntar algo a Getúlio, o jornalista trataria do caso da venda da
fazenda de Maneco Vargas, filho do presidente, a Gregório Fortunato, chefe da
guarda e já envolvido no caso Vaz. Na visão de Lira esse escândalo foi crucial
para o desfecho da crise.
"Foi o grande
golpe naquele instante final de isolamento", diz. O jornalista lembra que
"mesmo os antigetulistas mais ferrenhos não se arriscam a acusar Getúlio
de ter se beneficiado financeiramente do poder. O homem mais poderoso da
história do Brasil de todos os tempos tinha dificuldades para pagar contas. Em
São Borja, seu patrimônio era quase ridículo. Por isso, naquele momento, aquela
revelação o feriu".
Para além da crise
final do governo, Lira trata, nesse terceiro volume, do exílio de Getúlio em
São Borja, das suas articulações políticas para a volta à cena nacional, da
campanha vitoriosa à presidência. Para isso, utiliza com fartura mais de 1600
páginas de cartas trocadas com a filha Alzira _"um tesouro virgem",
diz o autor.
Também os originais
nunca publicados de uma segunda obra de Alzira sobre o pai são importantes no
texto. O período anterior a 1950 têm, relativamente, bastante espaço. Com isso,
a narrativa sobre o governo propriamente dito não fica prejudicada? Lira
discorda. Para ele, o livro discorre bem sobre a assessoria econômica paralela
criada por Getúlio para gestar seus grandes projetos.
Chamados
"boêmios cívicos", o grupo arquitetou o BNDE, a Petrobras, a
Eletrobras, contornando as limitações de um ministério conservador, formado em
razão de negociações políticas. "Todo esse projeto desenvolvimentista não
poderia passar pelas vias tradicionais do congresso", avalia.
Lira enxerga
paralelos entre as turbulências do governo de Getúlio e a situação atual.
"Sessenta anos depois estamos discutindo as mesmas coisas de quando ele
estava no poder: mais ou menos estado, o quanto é possível falar em mão
invisível do mercado num país com tantas contradições. Isso é um sintoma até
grave", analisa.
Para o biógrafo,
hoje, como naquele tempo, o debate político acontece em torno de posições
extremadas —"nem sempre com o mesmo brilhantismo dos polemistas daquela
época". Ele próprio sentiu isso há alguns dias quando, numa rede social,
apareceu uma foto sua entregando o novo livro ao ex-presidente Lula.
"Lula me
convidou para um almoço. Eu não vou? É uma questão de cortesia, de educação.
Mas pessoas, até amigos, disseram que eu estava mancomunado com mensaleiro, que
tinha virado um 'petralha'. Uma incompreensão do ofício do jornalismo, uma
reação muito raivosa".
Na semana que vem
Lira pretende começar a definir seu próximo projeto. Não uma biografia, mas
algo ligado à cultura do século 20.
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