Existe alguma relação entre a diplomacia e o liberalismo?
Paulo
Roberto de Almeida
Ainda algumas reflexões a propósito de meu livro recentemente publicado Nunca Antes na Diplomacia (ver neste link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/NuncaAntes2014.html), desta vez a respeito das relações que a política externa, ou o seu corpo profissional, possam ter com orientações mais ou menos liberais no mundo econômico.
Não creio,
sinceramente, que a diplomacia brasileira, no seu sentido estrito, ou seja,
enquanto corpo profissional dedicado a procedimentos de política externa, tenha
de se guiar por ideias liberais, uma vez que estas são expressões do
pensamento, ou posturas relativas aos temas de organização política e econômica
que pertencem ao terreno das definições de políticas públicas. Sendo assim, a
diplomacia executará aquelas opções de política que forem determinadas pelo
governo de turno, tendo em vista as grandes definições constitucionais e os
compromissos internacionais. Acredito que cabe ao diplomata avisar ao seu
superior, cabe ao chanceler avisar ao presidente, quando determinada iniciativa
política possuindo impacto externo venha a contrariar compromissos assumidos
externamente pelo Brasil enquanto Estado, não enquanto governo (mas o governo
deve se submeter ao Estado).
Dou um
exemplo prático, que aliás deve ter ocorrido em outras instâncias (ou com os
nosso vizinhos argentinos, por exemplo): por mais que sejam as dificuldades das
nossas empresas industriais, com a falta de competitividade trazida pelo
chamado custo Brasil e todo o horrível ambiente de negócios que prevalece entre
nós, o governo brasileiro não pode, simplesmente, adotar medidas
ultra-protecionistas, ou totalmente contrárias aos compromissos que assumimos
sob o Gatt, a OMC e todos os demais acordos internacionais ou regionais
contraídos pelo Estado brasileiro anteriormente, inclusive no âmbito do
Mercosul. Se isto ocorresse, nossos parceiros no Mercosul, ou as partes
contratantes ao Gatt teriam o direito, e não hesitariam em fazê-lo, de levar o
Brasil ao sistema de solução de controvérsias do Mercosul ou da OMC para
obrigá-lo, sob ameaça de retaliações, a revogar as medidas contrárias aos
compromissos existentes. Seria impensável que o Brasil o fizesse, e seria
impensável que o Brasil se eximisse de cumprir suas obrigações externas.
Nesse
caso, as ideias por trás das obrigações podem até ser liberais, mas elas não
têm nada a ver com isso. Pacta sunt servanda, isto é, os tratados devem ser
cumpridos, por mais que nos desagradem. Temos, é verdade, o direto de denunciar
um tratado, nos retirarmos de um organismo internacional, mas acredito que seja
dever de qualquer diplomata, em primeiro lugar do chanceler, avisar ao
presidente, e aos seus conselheiros mal avisados, das consequências práticas de
tais gestos, que sempre virão em detrimento do país e de seus interesses
práticos. O Gatt poderia ser até uma organização mercantilista e dedicada não
ao livre comércio – o que aliás ele não, estando bem mais voltado para a
liberalização do comércio, de modo geral – mas dedicada, por exemplo, ao
comércio administrado, e totalmente equilibrado, como se pretendia fazer em
outras épocas, mas caberia ao Brasil respeitar os compromissos assinados sob a
sua égide.
Obviamente,
para alguém que defende ideias liberais, para um governo que defende o livre
comércio, seria muito mais interessante ter a sua diplomacia a serviço dessas
ideias, pois a experiência histórica, e um modesto consenso econômico, ensinam
que a liberalização mais ampla de todos os fluxos comerciais, financeiros e de
serviços trazem uma melhor situação de bem estar, para todos, indistintamente,
do que a situação prevalecente atualmente, quando você tem, basicamente, um
mundo de fluxos regulados, não uma perfeita liberalização, mas um espaço
mundial dividido em esquemas de liberalização mais amplos – como a OCDE, por
exemplo – e outros países, ou grupos de países, ainda dominados pelas ideias
mercantilistas do passado, como pode ser o próprio Brasil e muitos outros na
região e fora dela. O socialismo já acabou, com duas ou três exceções, mas as
ideias socialistas, e mercantilistas, ainda perduram.
Mas
repare que isso não tem nada a ver com o fato de a diplomacia ser mais ou menos
liberal, ou mais protecionista e introvertida. A diplomacia sempre fará o que
os seus decisores assim o decidirem, o chanceler ou o próprio presidente. São
as políticas formuladas nesse nível que determinam o conteúdo da diplomacia,
não o seu envelope corporativo que é a diplomacia estrito senso.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 20 de agosto de 2014
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