Quais as relações entre a diplomacia e a política externa?
Paulo
Roberto de Almeida
Comento, em primeiro lugar, sobre a superposição que se faz frequentemente entre diplomacia e política exerna, e, adicionalmente, sobre as orientações mais liberais ou menos liberais, de uma política econômica interna e externa.
Duas distinções são
necessárias aqui: a primeira, entre a diplomacia estrito senso, por um lado, e
a política externa, em seu sentido mais lato, por outro lado; a segunda
distinção importante a ser feita, seria entre uma diplomacia que seria mais liberal,
de uma parte, e uma outra que seria menos liberal, de outra, cada caso a depender
do governo ou de alguma necessidade circunstancial. Existem aqui dois pequenos
problemas, que são muitas vezes do público em geral, sobre o que se entende que
seja a diplomacia, e sobre o que é política externa de um país.
Em meu
livro, cujo título completo é, Nunca
Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não
convencionais, eu não faço tanto uma análise crítica da atuação do
Itamaraty enquanto tal, ou seja, de nossa diplomacia, quanto sim, eu faço uma
avaliação muito realista da política externa brasileira, tal como efetivamente conduzida
na era do lulo-petismo. Talvez a junção dos dois conceitos no título do livro possa
se prestar a essa confusão, que eu pretendo agora esclarecer.
A
diplomacia, no sentido estrito da palavra, é uma mera técnica, ou seja, um dos
instrumentos, ou ferramentas, usados por qualquer Estado organizado, para
conduzir seus assuntos externos, suas relações com os demais países, sua
presença nas organizações internacionais. Todos os Estados modernos possuem
esse tipo de ferramenta, independentemente da natureza desse Estado – se
democracias, se regimes autoritários, até mesmo se perfeitas tiranias – e
independentemente do conteúdo de sua política externa. Esta pode ser mais
tradicional, pautando-se pelas regras do direito internacional, ou talvez um pouco
mais agressiva, mobilizando outros fatores de poder ou de projeção externa,
como podem ser as forças armadas, ou até mesmo as empresas de maior capacidade
de penetração internacional. Filmes de Hollywood podem ser uma forma de fazer
política externa, utilizando, digamos assim, uma forma não muito usual de
diplomacia. Projetar bases militares ao redor do mundo, também pode ser uma
forma, embora heterodoxa, de fazer diplomacia, que seria, digamos, a ameaça
velada como forma de persuasão.
Mas a
diplomacia é uma técnica que tem suas regras e rituais, independentemente do
seu conteúdo intrínseco. Na sua forma moderna, a de embaixadas permanentes e
de organismos especializados, ela começou a tomar forma no Congresso de Viena,
em 1815, e foi sendo aperfeiçoada, institucionalizada e organizada em função de
alguns grandes acordos internacionais, que surgiram ao cabo de guerras globais
– como a Liga das Nações, no final da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, ou
a ONU, na conferência de São Francisco, ao final da guerra de 1939-1945 – ou
que foram o resultado de conferências diplomáticas que codificaram algumas
regras das relações diplomáticas. Temos, a esse respeito, a Convenção de Viena
sobre Relações Diplomáticas, de 1961, que institucionaliza a forma pela qual os
estados se reconhecem, se relacionam, trocam representantes, protegem esses
representantes por meio de imunidades diplomáticas, e até regulam o rompimento
dessas relações ou a denúncia de tratados bilaterais ou multilaterais e a
retirada de Estados desses acordos ou organizações. Ou seja, tudo isso é pura
técnica, e nada diz sobre o conteúdo da diplomacia, ou mais exatamente, sobre a
natureza da política externa que é conduzida por cada Estado.
A
política externa, esta sim, depende de cada Estado especificamente, e pode ser
tão diferente entre dois Estados como é a conduta de um governo na frente
interna, segundo ele seja plenamente democrático, ou uma perfeita tirania. Cada
um deles usará a diplomacia de que dispõe para impulsionar seus interesses nacionais
na frente interna e na frente externa. A política externa é a que dá substância
ou conteúdo à diplomacia, que de outra forma permaneceria uma mera troca
burocrática de expedientes – notas, comunicados, projetos de acordos – ou de
representantes oficiais. É a política externa que determina como um governo, ou
um Estado vai se relacionar no plano internacional, sendo mais ou menos
cooperativo, ou mais agressivo, digamos, como também ocorre algumas vezes. Já
vimos Estados invadindo outros, ou provocando uma guerra, por razões de
fronteiras, ou qualquer outro motivo de conflito militar. Nesses casos, a
diplomacia entra em campo para fazer o que sempre faz: tentar resolver disputas
por meios pacíficos e apelando para tratados e organizações internacionais.
Em meu
livro, portanto, eu não critico o Itamaraty, enquanto diplomacia, embora ele
possa ter tido um maior ou menor engajamento com a política externa do governo,
mas faço uma avaliação da política externa conduzida nos últimos anos, que pode
não ter sido elaborada no Itamaraty, nem pelo Itamaraty, ou sequer conduzida
por ele. Como sabemos, grande parte das iniciativas da era lulo-petista na
frente externa foram concebidas e aplicadas a partir da própria presidência da
República, o que pode até ser legítimo, uma vez que, num regime presidencial
como o nosso, a política externa é a determinada pelo presidente da República,
que pode, ou não, utilizar a diplomacia para suas finalidades pessoais. Como
sabemos, muitas decisões ou iniciativas foram tomadas no próprio Palácio do
Planalto, que possui um assessor presidencial para assuntos internacionais que
é militante do partido, não integrante dos quadros diplomáticos como costumava
ser anteriormente.
Indo
agora para a segunda distinção, não se pode exatamente dizer que uma diplomacia
seja mais liberal do que outra, uma vez que a mesma ferramenta pode ser
utilizada para fins muito distintos, dependendo da natureza e das orientações
de um governo, de um regime, de um Estado. O que as diferencia são os métodos empregados
e o conteúdo das políticas impulsionadas. Democracias liberais de mercado
tenderão naturalmente a promover acordos consensuais para alcançar seus
objetivos típicos: abertura do maior número de países ao comércio e aos
investimentos diretos, cooperação em bases voluntárias, respeitando a soberania
de cada Estado, abstenção de recurso a meios militares ou a ameaças diretas
para dirimir disputas ou resolver conflitos. Tiranias podem ser imprevisíveis,
pois tanto podem conduzir uma diplomacia “pacífica”, digamos assim, reservando
a repressão para o seu próprio povo, como impulsionar ações unilaterais,
agressivas, no plano externo, desprezando tratados firmados ou a existência de
organizações dedicadas à paz e à cooperação.
Democracias
liberais são relativamente transparentes ao escrutínio público sobre suas
políticas, inclusive a externa, com amplos debates no parlamento, na imprensa,
entre a opinião pública, com os encarregados da diplomacia serem frequentemente
convidados a se explicar, perante os legisladores, ou na imprensa, sobre o
sentido e a direção que eles estão imprimindo à diplomacia e à política
externa. Regimes autoritários são bem mais fechados, e esse tipo de debate
raramente ocorre, e não porque a diplomacia seja mais liberal ou menos liberal,
mas porque o próprio regime atua de forma antiliberal, ou seja, de modo
autoritário, sem os famosos contrapesos dos regimes democráticos, sem a
transparência existente nesse regimes.
Concluindo
sua pergunta, eu diria: a diplomacia profissional brasileira sempre atuou do
mesmo modo, em situações democráticas, ou sob o regime autoritário, digamos o
período militar dos anos 1960 ou 1970, quando a preocupação dos dirigentes
estava voltada para os cenários típicos da Guerra Fria: a luta contra o
comunismo e contra os regimes esquerdistas na América Latina. O conteúdo da
política externa é que mudou, e as orientações eram no sentido de impulsionar
aqueles objetivos dos militares. Provavelmente, naquele período, a diplomacia
brasileira tenha protagonizado episódios pouco gloriosos de sua história, no
sentido de conduzir ações incompatíveis com os seus princípios tradicionais,
que são os da absoluta neutralidade política e o da não intervenção nos
assuntos internos de outros Estados. Podem ser identificados esses episódios
nos casos de ameaças esquerdistas, ou vistas como tal pelos militares, em
governos vizinhos, de países como Uruguai, Bolívia ou Chile (sob Allende, por
exemplo).
Mais
recentemente podem ter ocorrido episódios semelhantes, mas em favor de regimes
ditos progressistas na América Latina, como são os chamados bolivarianos, na
mesma Bolívia, na Venezuela, ou no caso do regime comunista de Cuba. Digo podem
ter ocorrido porque não há um registro perfeito de determinados episódios, uma
vez que alguns deles, justamente, não foram conduzidos pela diplomacia
profissional, e podem não ter deixado um registro sobre foram conduzidas
determinadas ações. Imagino, por exemplo, que até hoje o Congresso brasileiro
não tenha uma ideia precisa de como foi conduzido o programa Mais Médicos, com
seu número extraordinariamente elevado de pessoal cubano – muitos deles de
qualificação duvidosa – uma vez que faltam informações adequadas sobre a
negociação e sobretudo sobre os compromissos financeiros contraídos ao abrigo
desse programa; o Itamaraty, provavelmente, não foi o responsável pela sua
tramitação. Trata-se ai de um nítido exemplo de política externa que pode ter
sido subtraído aos canais habituais da diplomacia.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 20 de agosto de 2014
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