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segunda-feira, 14 de março de 2016

Diarios da presidencia: Getulio Vargas e FHC - Boris Fausto (FSP)

Diários podem ser sinceros, mas muito raramente. Quem faz um diário geralmente é narcisista, e procura dar uma versão a mais positiva possível de suas ações, decisões, pensamentos, omissões. Mas eles constituem uma fonte primária relevante para elucidar determinados momentos do processo decisório, uma vez que podem confirmar ou corrigir o que já figura na literatura secundária.
Os diários de Getúlio Vargas e de FHC (apenas os dois primeiros anos do primeiro mandato) são analisados pelo historiador Boris Fausto, que destaca pequenas passagens sobre relações internacionais e política externa do Brasil.
Paulo Roberto de Almeida


Historiador Boris Fausto compara os diários de Getúlio Vargas e FHC


RESUMO Historiador se debruça sobre os diários presidenciais de Getúlio Vargas (1882-1954), publicados em 1995, e os de Fernando Henrique Cardoso, cujo segundo tomo sai em maio. A comparação deixa ver não só diferenças e semelhanças entre eles mas quanto GV aparece como modelo, a seguir ou com o qual romper, para FHC.
*
Dois diários, contendo anotações de dois presidentes da República –Getúlio Vargas (GV) e Fernando Henrique Cardoso (FHC)–, são uma raridade nos registros históricos deste desmemoriado país.
A publicação do "Diário" de Getúlio, em 1995 (Siciliano/FGV), foi precedida de uma aura de mistério. Como narra Celina Vargas do Amaral Peixoto, neta de Getúlio e principal responsável pela publicação, a primeira referência que teve a respeito dos cadernos de seu avô apareceu no livro de sua mãe, Alzira, "Getúlio Vargas, Meu Pai", de 1960 (Globo).
Nesse texto, Alzira menciona uma conversa com Oswaldo Aranha, ministro de Getúlio e seu amigo íntimo, nos tempos do Estado Novo: "Teu pai anda escrevendo algumas coisas em um caderninho preto que ele esconde sempre. Hoje ele me deu algumas notas que me deixaram preocupado".
Alzira lê furtivamente os escritos do pai e, não encontrando nada que a alarmasse, esquece-os até 1945, quando Vargas é deposto.
A essa altura, encarregada de guardar a papelada do pai, Alzira lembra-se da história do caderninho preto, pergunta a Getúlio onde ele estaria, e este responde que o queimara antes de deixar o palácio. Por fim, ainda em vida de Alzira, reapareceu o "caderninho preto" que, na verdade, eram vários cadernos, dando origem a sua publicação por iniciativa de Celina, após a morte da mãe.
Essa microhistória de mistério aumentou a expectativa acerca das revelações do "Diário" quando, afinal, ele veio a ser publicado. Entretanto, a expectativa foi em grande parte frustrada. Eu mesmo escrevi um artigo para a Folha, sob o título de "Memórias escritas a lápis" (8.mar.1996), dizendo que "nada ou quase nada existe nele [no 'Diário'] que leve a uma revisão histórica, nem lá se encontram reflexões sobre os grandes temas da história brasileira, entre os anos 1930-42. [...] Ficamos sem saber como Getúlio Vargas encarava a implantação de uma legislação operária, o desenvolvimento industrial ou a criação do Estado Novo, ou ainda que tipo de forças teve de enfrentar na realização de um presumível projeto nacional de grandes proporções".

Ilustração Manuela Eichner

ESPÍRITO
A decepção é compreensível, mas, na verdade, os diários, tanto os de Getúlio Vargas quanto os de Fernando Henrique Cardoso, são fontes históricas importantes, quando mais não fosse, por revelarem estados de espírito, dúvidas, desabafos, reações diante dos fatos, que os autores não expressariam em público. Eles são, porém, bem mais do que isso, pois oferecem pistas para a reconstrução do exercício do poder, de dentro para fora, em momentos cruciais da história brasileira.
Aqui uma observação preliminar: o "Diário" de Vargas diz respeito a um período de quase 12 anos (1930-42), enquanto a parte publicada até agora dos *"Diários da Presidência 1995-1996" [Companhia das Letras, 936 págs., R$ 74,90; e-book, R$ 44,90]* de Fernando Henrique Cardoso limita-se a seus dois primeiros anos como presidente –o próximo volume será publicado em maio.
Há também uma diferença quantitativa. As anotações de Getúlio resultam em cerca de mil páginas de livro; os registros gravados por FHC abrangem, em extensão semelhante, apenas os mencionados dois anos de seus oito de mandato.
Os diários são escritos íntimos ou destinavam-se à publicação? Na introdução ao "Diário" de Getúlio, Celina Vargas do Amaral Peixoto lida com a questão, assinalando que o texto deixado pelo avô oscila entre as duas intenções.
Isso aparece logo no início, quando, ao explicar sua motivação, Getúlio afirma que "vai anotar os fatos de sua vida, como quem escreve para si próprio". Se a mirada na posteridade está implícita em quase todo o "Diário", a introspecção aparece também em muitas passagens: "Mas tudo isso é comigo e, se escrevo aqui, não falo a ninguém". Ou ainda: "Quanto mais só sinto-me mais tranquilo e dono de minha própria pessoa".
A mesma dupla intenção transparece nos "Diários da Presidência", com a diferença de que FHC prevê, no texto, a publicação dos escritos após sua morte, provavelmente para não ferir melindres. Para satisfação dos vivos, porém, ele superou essa limitação.
O personagem Getúlio Vargas integra a vida de Fernando Henrique desde a infância, como se infere de seu livro de recordações, com o título de "O Improvável Presidente do Brasil" (Civilização Brasileira, 2013).
Nele, FHC narra a tentativa de assalto ao Palácio Guanabara –residência de Getúlio e sua família–, por um grupo de integralistas, em maio de 1938. O ataque foi repelido por um contingente do Exército de que fazia parte seu pai, o futuro general Leônidas Cardoso, após intensa fuzilaria e várias mortes. Comentando o episódio, FHC descreve-o como uma revelação perturbadora: "Em minha cabeça de criança o governo do Brasil era absolutamente inseparável da minha família; eram a mesma coisa".
Depois de lembrar antepassados participantes da vida política do país, desde seu bisavô, relata que Augusto Ignácio do Espirito Santo Cardoso, seu tio-avô, fora ministro da Guerra de Getúlio, e que vários outros membros da família eram generais e oficiais intimamente ligados ao regime, embora nem toda a família tivesse essa mesma inclinação.
PONTO COMUM
Entre Getúlio e Fernando Henrique, há notórias diferenças de geração, de formação, de concepções políticas, de estilos de vida. Mas há um importante ponto comum entre ambos. Os dois comportam-se como governantes que miram o interesse nacional –qualquer que seja seu conteúdo para um e para outro– acima dos interesses privados e das infindáveis miudezas da política. FHC reconhece essa aproximação, em meio a críticas a Getúlio, quando diz: "Não obstante, a gente tem uma noção do Estado, uma noção do país, que é o que eu tenho e Getúlio tinha essa noção".
Fernando Henrique Cardoso refere-se pela primeira vez à leitura de fragmentos do "Diário" de GV, dizendo-se algo decepcionado porque esse homem distante, frio, não registra os principais acontecimentos, e sim coisas pessoais.
Entretanto, mais adiante, sempre a partir do "Diário" de Getúlio, FHC pondera: "Ele enfrentou muito mais dificuldades, meu deus, para organizar o Estado mais moderno que construiu, muito mais dificuldade. Fez também à base de muito mais ditadura, com atropelos de toda ordem. Era um inferno, e é gozado como a pequena política dominava. A impressão era de que os fatos iam conduzindo Getúlio, e não Getúlio os fatos, e na verdade não era bem assim".
O fim trágico de Getúlio Vargas aparece nos "Diários da Presidência" de Fernando Henrique Cardoso num momento em que ele revela certo desencanto com reações da sociedade e com hesitações no interior do próprio governo.
FHC lança aí uma reflexão que qualifica como um pouco amarga: "Há momentos em que a gente pensa: bom, já fiz tanta coisa, será que não dá para parar? É como se houvesse um começo de sentimento de morte, que nunca tive". Nessa altura, surge em contraste a figura de Vargas: "O Getúlio, entretanto, li no seu 'Diário', fala sempre em suicídio; sempre fui o oposto, não penso em nada disso, estou pensando no quanto a morte, no passado, era encarada por mim como uma coisa terrível e agora, pouco a pouco, vai me parecendo coisa natural".
Em outra passagem, FHC fala de grandes figuras políticas da segunda metade do século 20, dizendo que De Gaulle tinha uma ideia de morte, de quem quer entrar para a imortalidade, diferente da de Getúlio. A morte para GV era uma espécie de vingança pessoal: "Já que eu não posso ganhar, eu ganho morrendo. Se matou e ganhou. No caso de Getúlio, a visão é a de um homem autoritário: ou aceitam o que estou fazendo ou então eu ganho nem que seja me matando".
Essa observação não faz jus ao momento final da vida de Vargas –um episódio complexo que até hoje se abre a muitas controvérsias. Sem pretender enveredar pelo caminho da psico-história, convém levar a sério, como elemento explicativo, alguns traços da personalidade de Getúlio, entre eles a tendência ao pessimismo –vejam-se as observações melancólicas quando ele encerra o "Diário"– e a encarar o suicídio como alternativa à vida.
Essa alternativa aparece já no deflagrar da Revolução de 1930, associada a um código de honra que não admite derrotas. A tranquilidade demonstrada quando é apeado do poder em 1945 não chega a ser uma exceção, pois nesse episódio Getúlio surge mais como vencedor do que como vencido.

Ilustração Manuela Eichner

Os dois presidentes relatam as dificuldades para harmonizar ministros e assessores mais próximos. Várias vezes, seus juízos são irônicos ou implacáveis. Por exemplo, o amigo íntimo Oswaldo Aranha ganha uma referência irônica em abril de 1932, quando era ministro da Fazenda: "Há uma novidade: a zanga do Oswaldo Aranha, ameaçando deixar o ministério, porque não foi promovido a cônsul de terceira classe o auxiliar de consulado Sousa Dantas... Escrevi-lhe uma carta acomodando".
Quanto aos militares, veja-se uma referência cheia de restrições ao ministro da Guerra, o general Eurico Gaspar Dutra, em março de 1939: "Despacho nas pastas militares. Notei o ministro da Guerra apreensivo, pensando que não passaremos este ano sem subversão da ordem. Ele é um espírito impressionável e muito suscetível a acreditar em boatos e intrigas".
No que diz respeito a FHC, é surpreendente a franqueza das adjetivações com relação a seu "entourage". Ele se refere aos atritos entre Malan e Serra; às atitudes intempestivas de Sérgio Motta; aos intermináveis pedidos de Mário Covas –e por aí vai.
Entre os políticos, ganha a palma o senador José Sarney, que recebe uma memorável, embora silenciosa, paulada, quando afirma que "setores do governo são favoráveis a uma coisa mais autoritária, querem desmoralizar o Congresso e que a luta pela democracia contra o autoritarismo é uma luta cotidiana": "Ora", diz FHC, "esta é boa!". "Fiquei pensando com os meus botões: ele serviu a todos os governos militares, nunca lutou nada, não me esqueço até hoje do discurso violento que fez de resposta ao Ulysses, que queria as diretas já. Ele, presidente do PDS, fez um discurso exaltado no Senado, contra. Aderiu ao Partido da Frente Liberal no finzinho, apenas, porque não tinha mais saída com a questão do Maluf e do Figueiredo, e agora vir posar de democrata já é um escárnio! Uma vergonha." Elogios ao senador, como político e homem versado na literatura, não chegam a apagar a contundência dessa crítica.
AMARGURA
Os dois diários retratam uma carregada atividade cotidiana. Aqui e ali, FHC revela um certo desânimo, uma certa amargura, por ver-se cercado de incompreensões de toda ordem. Getúlio vai muito além e várias vezes se refere não só a incompreensões mas a ameaças, a conspirações reais ou fantasiosas.
Em maio de 1939, em pleno Estado Novo, quando enfeixa poderes ditatoriais, GV faz uma anotação surpreendente sobre suas relações com o Exército: "A campanha de boletins infamantes contra mim é muito grande. Confesso que estou apreensivo com estas conspirações e a falta de coesão entre os elementos que apoiam o governo. Estou a mercê do Exército, sem força que o controle, e sem uma autoridade pessoal e efetiva sobre ele. Estou só e calado para não demonstrar apreensão".
Entre as muitas coisas que separam Getúlio Vargas de Fernando Henrique Cardoso, uma das mais evidentes é o encanto por regimes autoritários, no caso de GV, e a convicção democrática de FHC, resultantes em grande medida da formação pessoal de cada um e das épocas contrastantes em que exerceram a Presidência da República.
No "Diário", Vargas manifesta seguidamente sua afinidade com os regimes ditatoriais e faz referências aos obstáculos ao exercício do poder impostos pela ideologia liberal e pela democracia. Fico com um único, mas expressivo exemplo: suas reações ao processo de democratização do país em 1933-34, que conduziu à aprovação da Constituição de 16 de julho de 1934.
Instalado no comando unipessoal do governo provisório, GV prevê dificuldades, ainda no curso dos trabalhos da Assembleia Constituinte: "Não tenho dúvidas sobre as dificuldades que vou enfrentar, e talvez seja mesmo preferível que tome outro rumo, pois já começo a acreditar que, com tal instrumento de governo, será perdido o esforço".
Depois, na data da promulgação da Constituição, Vargas registra secamente: "Entre festas e demonstração de regozijo, foi promulgada a nova Constituição. Parece-me que ela será mais um entrave do que uma fórmula de ação". Escusado dizer que o entrave seria removido pouco mais de três anos depois, pela instauração da ditadura do Estado Novo.
JORNAIS
A opinião pública raramente é um tópico relevante no "Diário" de Getúlio. Em contraste, Fernando Henrique preocupa-se com a formação da opinião pública, e frequentemente se irrita com as críticas de jornais e revistas. A Folha, que não lhe dá trégua, é o alvo principal; mas mesmo "O Estado de S. Paulo", tido como o jornal que mais simpatiza com o governo, não sai ileso.
Durante um longo despacho com o ministro das Minas e Energia, Raimundo Mendes de Brito, FHC lhe pede que preste bastante atenção à nova lei de regulamentação das atividades petrolíferas "porque as críticas que vêm, vêm sempre do chamado pensamento liberal, do Roberto Campos ou de 'O Estado de S. Paulo', que no dia de hoje [2 de janeiro de 1996] tem um editorial preventivo contra mim, dizendo que eu na verdade não teria aderido propriamente aos ideais liberais como se isso fosse necessário para fazer a modernização do Brasil. É só a visão ideológica. Na verdade eles têm medo de que a regulamentação dê mais força às estatais".
Em outros momentos, o indignado presidente dá lugar ao sociólogo. É o caso de um encontro com o pessoal da Redação de "Veja" para uma longa conversa em que FHC trata de lhes explicar sua visão de Brasil em torno de um plano estratégico, "para ver se eles entendem que há um programa, um rumo para o país".
LAZER
A circulação e o lazer dos dois presidentes são condicionados por um entorno muito diverso. Se FHC vive nos palácios de Brasília, GV instala-se no centro do Rio de Janeiro, entre o Palácio do Catete e o Palácio Guanabara. Durante vários anos, pôde dar-se ao luxo de caminhar até a Cinelândia, no centro da cidade, para ir a um cinema, acompanhado apenas de um ajudante de ordens.
Só depois do ataque dos integralistas ao Palácio Guanabara Getúlio aceitou a formação de uma guarda pessoal chefiada por Gregório Fortunato, mas não parece ter ficado à vontade com a segurança. Premonitoriamente, ele anotou no "Diário", em abril de 1941: "Esta guarda pessoal, embora composta de homens dedicados e fiéis que tenho pena de mandar embora, é para mim um motivo de constrangimento. Não gosto de andar cercado de capangas".
As referências à família e ao lazer como espaços de tempo subtraídos ao exercício do poder fazem parte de ambos os diários. Alegria com as reuniões familiares, preocupações com enfermidades e acidentes.
O aristocrático golfe tem no "Diário" de GV um lugar privilegiado, em passagens que lembram poemas minimalistas dos primeiros tempos do modernismo: "'Golf', chuva, gripe, cinema"; ou em outra ordem: "Trabalho, passeio, 'golf'".
Vargas se encanta também com encontros que lembram o ambiente dos pampas. São os churrascos em companhia de amigos, os exercícios de equitação de cavaleiros do Exército e, como ponto mais alto, a presença ao Jockey Club Brasileiro, nas ocasiões em que se disputava o Grande Prêmio Brasil –um evento social relevante em tempos passados.
POLÍTICA EXTERNA
A certa altura de seus "Diários da Presidência", referindo-se a Vargas, Fernando Henrique Cardoso diz que pensou que "ele não tivesse uma noção da política externa e, na verdade, tinha".
De fato, GV era obrigado a levar a sério o campo das relações internacionais, marcado pela ascensão do nazismo na Alemanha e a eclosão da Segunda Guerra, mas essa não era área de sua preferência. Seu universo limitava-se aos países vizinhos da América do Sul –um universo conhecido para um gaúcho nascido em São Borja, na fronteira com a Argentina. Dois amigos próximos eram o general Justo, presidente da Argentina, e o presidente do Uruguai, Gabriel Terra.
Getúlio não tinha afinidades com dirigentes de países europeus e detestava particularmente os ingleses. Demonstrou, porém, franca simpatia pelo presidente Roosevelt. Por ocasião de uma viagem-relâmpago deste ao Brasil, em novembro de 1936, GV anotou no "Diário": "O homem [...] é de uma simpatia irradiante, de um idealismo pacifista sincero, e o próprio defeito físico [resultante de poliomelite] que o torna enfermo do corpo aperfeiçoa-lhe as qualidades morais e aumenta o interesse pela sua pessoa. É um orador claro, simples e cheio de imaginação, mas despido das hipérboles 'criollas'".
Ele encontrou-se uma segunda vez com o presidente americano em Natal, no curso da Segunda Guerra Mundial, mas nunca aceitou os convites para ir aos EUA, apesar da insistência de Roosevelt.
Já para FHC a política externa é não só uma fonte de interesse constante mas uma atividade atraente. Vejam-se as linhas dos "Diários" em que as viagens presidenciais, os encontros com Bill Clinton, Jacques Chirac, Felipe González e várias outras personalidades parecem um remanso, uma pausa nas vicissitudes do poder.
Um contraste significativo salta aos olhos de quem se familiariza com os dois diários.
Como se sabe, Vargas passou para a história como o primeiro presidente a preocupar-se com os trabalhadores urbanos e com os setores mais desfavorecidos da sociedade –os "humildes" como ele gostava de dizer. A legislação trabalhista que concedeu direitos básicos à classe trabalhadora; a organização dos sindicatos atrelados ao Estado; a construção de uma imagem carismática que vem perdurando depois de sua morte representam um legado histórico incontornável.
Apesar disso, esse aspecto significativo de seu longo exercício do poder quase não aparece nas anotações do "Diário". Aqui e ali, uma referência à assinatura de um decreto instituindo o salário mínimo, à criação da Justiça do Trabalho, ou rápidas alusões às comemorações festivas de Primeiro de Maio.
Por outro lado, uma oposição eficaz no plano da comunicação conseguiu convencer amplos setores da sociedade de que FHC foi um presidente preocupado apenas com a estabilidade financeira e desinteressado do avanço social.
Seus "Diários da Presidência" mostram o contrário. A questão da reforma agrária, que tinha em 1995-96 muito maior impacto do que hoje, é um tópico importante de suas preocupações.
Cito apenas uma, entre dezenas de referências sobre o tema, um diálogo travado no curso de uma reunião ministerial: "Serra fez um apelo contra a reforma agrária, nesta reunião, dizendo que é perda de dinheiro, que não tem efeito. Ainda que ele tivesse razão, não dá para dizer isso em público, nem ele está pedindo que se diga, mas acho que não tem razão. É preciso haver um esforço correto do governo também nessa matéria de assentamentos rurais".
A necessidade da demarcação das terras indígenas aparece também em vários tópicos, combinada com a preservação do ambiente. Indo do rural ao urbano, as relações com os sindicatos e especificamente com a CUT ocupam várias passagens dos "Diários". Embora as opiniões divirjam, o clima das reuniões retratado no texto está longe de ser o de uma guerra opondo inimigos, como iria acontecer em anos seguintes.
Ao falar da série de reformas necessárias para integrar o país em um mundo em transformação, Fernando Henrique diz ter por objetivo desmontar a Era Vargas.
De fato, ele propôs-se a alinhar o país com as novas realidades de um mundo globalizado, ao promover, exemplificando, a abertura do Brasil ao comércio internacional; ao realizar privatizações de grandes empresas estatais, sujeitas a um estatuto regulatório; ao aprovar normas que garantiram a estabilidade fiscal.
Fernando Henrique Cardoso teve êxitos e derrotas na busca desses objetivos, porém, mais para mal do que para bem, não podemos afirmar que o Brasil virou a página da Era Vargas.

BORIS FAUSTO, 85, historiador, é autor de, entre outros, "História do Brasil" (Edusp) e "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (Companhia das Letras).

MANUELA EICHNER, 31, é artista e viajante. Suas colagens podem ser encontradas pelas ruas de São Paulo, Berlim, Nova York.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Brasil e Argentina: Hermanos pero no mucho: livro de Devoto e Fausto - Resenha de Paulo R Almeida

Eu preferi não ser muito cáustico ao tratar das relações entre os dois países, inclusive por respeito ao livro, que é muito respeitoso dessas relações, ou melhor, muito correto, sem negligenciar as disputas geopolíticas e as bobagens acumuladas de um e outro lado da fronteira.
A Argentina, por exemplo, foi sequestrada por aventureiro, setenta anos atrás, e ainda não se libertou da cadáver e das suas ideias bizarras. O Brasil, por sua vez, parece que está copiando um peronismo de botequim, com perdão do botequim...
Enfim, nada a ver com o livro, que é muito bom: 



12. “Hermanos, pero no mucho”, Brasília, 8 fevereiro 2005, 3 p. Resenha de Boris Fausto e Fernando J. Devoto, Brasil e Argentina: Um ensaio de história comparada (1850-2002) (São Paulo:Editora 34, 2004, 574 p: ISNB: 85-7326-308-3). Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 2, nº 8, março 2005, p. 79; link: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1766:catid=28&Itemid=23).  Relação de Trabalhos nº 1389. Relação de Publicados nº 546.

Hermanos, pero no muchoImprimirE-mail
Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

livro023
Brasil e Argentina padecem de certa insuficiência de desenvolvimento econômico e social, sendo a maior parte de seus problemas derivada de erros de gestão macroeconômica e de escolhas infelizes de suas elites ao longo dos anos. Durante muito tempo prevaleceu no Brasil a noção de que a Argentina era mais desenvolvida graças a um maior componente "europeu" na sua formação étnica e aos cuidados com a educação. Depois, prevaleceu na Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem-sucedido no fortalecimento da base econômica graças ao maior envolvimento do Estado. Hoje, pretende-se avançar no desenvolvimento conjunto, com o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre-comércio demonstram os limites da integração.

Essa complexa realidade é examinada por um historiador de cada um dos dois países. Eles colocam em perspectiva, não necessariamente em paralelo, duas trajetórias comparáveis, na forma e no conteúdo. O "ensaio de história comparada" começa por um excelente capítulo introdutório que discute as vantagens e as modalidades do comparatismo em história.

As influências mútuas dos dois maiores países da América do Sul foram, na verdade, limitadas. As duas economias sempre foram voltadas para o hemisfério norte. Além disso, os regimes políticos mantiveram, contra toda a racionalidade e os interesses imediatos, certo distanciamento competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade. Os autores mostram como os dois países enfrentaram, depois de superadas suas repúblicas "oligárquicas" - nos anos 30 -, seus processos de modernização econômica e política por meio de experimentos nacionalistas e populistas. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o Brasil foi bem menos errático no seu processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina.

Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas classes médias como provenientes da sindicalização excessiva do sistema político também conduziram ambos os países a episódios de autoritarismo militar. A redemocratização permitiu revigorar o processo de integração, que tinha começado no final dos anos 50, desta vez segundo um formato bilateral - um tratado para a formação de um mercado comum, de 1988. Mas a zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira é perfurada por inúmeras exceções e o mercado comum, prometido para 1995, é um sonho ainda distante.

O longo ensaio histórico não traz notas de rodapé, mas um capítulo final com recomendações bibliográficas, o que confirma que os autores trabalharam com literatura secundária. Uma cronologia paralela de mais de 40 páginas completa a informação histórica sobre a trajetória contrastante, poucas vezes coincidente, de dois países, que a visão otimista do presidente Roque Sáenz Peña pretendia resumir nesta frase: "Tudo nos une, nada nos separa". Talvez, mas a história ainda precisa provar essa assertiva, com a provável exceção dos campos de futebol.
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Agora a versão completa:

Hermanos, pero no mucho

Boris Fausto e Fernando J. Devoto:
Brasil e Argentina: Um ensaio de história comparada (1850-2002)
São Paulo:Editora 34, 2004, 574 p: ISNB: 85-7326-308-3

            Brasil e Argentina padecem de certa insuficiência de desenvolvimento econômico e social, sendo a maior parte dos problemas derivada de erros de gestão macroeconômica e de escolhas infelizes de suas elites políticas ao longo dos anos de formação das nações respectivas e dos momentos de ajuste aos desafios externos, no decorrer do século XX. Durante muito tempo, prevaleceu no Brasil a noção de que a Argentina era bem mais desenvolvida, graças a um maior componente “europeu” na sua formação étnica e aos maiores cuidados com a educação do seu povo. Depois, prevaleceu na Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e no fortalecimento da base econômica, graças ao maior envolvimento de seu Estado na gestão macroeconômica, em lugar do liberalismo praticado naquelas margens da bacia do Prata. Hoje, se pretende avançar no desenvolvimento conjunto, mediante o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre comércio demonstram os limites da integração econômica.
            Essas visões, parcialmente corretas, decorrem de uma complexa realidade que é examinada com lentes cuidadosamente focadas nas particularidades nacionais por um historiador de cada um desses dois países, que colocam em perspectiva comparada, mas não necessariamente em paralelo, duas trajetórias comparáveis, na forma e no conteúdo. Eles se baseiam, neste empreendimento inédito na historiografia regional, em metodologia proposta há muitos anos pelo historiador francês Marc Bloch, que recomendava o estudo de sociedades próximas no espaço e no tempo, buscando não apenas as semelhanças, mas também as diferenças. Este “ensaio de história comparada” começa, justamente, por um excelente capítulo introdutório que discute as vantagens e modalidades do comparatismo em história.
As influências mútuas entre os dois maiores países da América do Sul foram, na verdade, limitadas, uma vez que as duas economias sempre foram relativamente excêntricas – isto é, voltadas para os parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo distanciamento competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade, isto é, para a corrida armamentista e uma possível disputa pela hegemonia regional. Esta se deu desde o início da formação dos dois estados nacionais, primeiro em torno da Cisplatina – finalmente consagrada como o estado independente do Uruguai, um “algodão entre cristais”, segundo a definição do diplomata britânico que presidiu ao arranjo de 1828 –, depois a propósito do Paraguai, que antes de surgir como enclave independente, integrava o Vice-Reinado do Rio da Prata, do qual fazia parte a Bolívia, também. A diplomacia imperial sempre se preocupou em assegurar que o mesmo poder não ocuparia as duas margens do Prata, daí os conflitos com os caudilhos argentinos, que aliás se prolongaram, pelo menos como hipótese bélica, até avançado o século XX.
Os autores mostram, num jogo de contrastes e comparações, como os dois países enfrentaram, depois de superadas suas repúblicas “oligárquicas” – mais ou menos na mesma época, isto é, os anos 1930 –, seus processos respectivos de modernização econômica e política por meio de experimentos nacionalistas e populistas, politicamente identificados com as figuras de Vargas e Perón. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o Brasil foi bem menos errático no seu processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar a construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, que permanece ainda hoje uma economia agro-exportadora.
Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas classes médias como provenientes da sindicalização excessiva do sistema político também conduziram ambos os países em direção de episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar. Este assumiu dimensões bem mais dramáticas na Argentina, com um custo elevado em vidas humanas e outras conseqüências menos desejáveis no plano das relações bilaterais, como o fenômeno que os autores chamam de “afinidades repressivas”.
A fase de redemocratização permitiu revigorar o processo de integração, que tinha começado no final dos anos 1950, desta vez segundo um formato bilateral – tratado para a formação de um mercado comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão quadrilateral, ao incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir outros países associados, como o Chile e a Bolívia (em 1996) e, recentemente, os demais vizinhos andinos, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira é perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum, prometido para 1995, um sonho ainda distante.
Este longo ensaio histórico (512 páginas de texto) não traz notas de rodapé, mas um capítulo final de recomendações bibliográficas, o que confirma que os dois autores, dispensando referências diretas de arquivo, trabalharam sobretudo a partir da literatura secundária, em especial sínteses históricas anteriores, o que não diminuiu em nada o seu próprio esforço de síntese. Uma cronologia paralela de mais de 40 páginas completa a informação histórica sobre a trajetória contrastante, poucas vezes coincidente, de dois países, que a visão otimista do presidente Roque Sáenz Peña pretendia resumir nesta frase: “Tudo nos une, nada nos separa”. Talvez, mas a história ainda precisa provar essa assertiva, com a provável exceção dos campos de futebol.

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)