Tendo em vista o debate anunciado pelo autor do livro Mundo Fraturado: Reflexões sobre a Crise da Ordem Liberal (Matrix, 2024), diplomata Diogo Ramos Coelho, promovido pelo IRel-UnB, no dia 4 de abril, sexta-feira, às 15hs (transmissão ao vivo: https://lnkd.in/dXsau3mJ), vou postar abaixo a resenha que efetuei desse livro, ainda não publicada:
4841. “O mundo fraturado pode ser restaurado?”, Brasília, 5 fevereiro 2025, 3 p. Resenha do livro de Diogo Ramos Coelho: Mundo Fraturado: reflexões sobre a crise da ordem liberal (São Paulo: Matrix, 2024, 312 p.).
O mundo fraturado pode ser restaurado?
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Resenha do livro:
Diogo Ramos Coelho,
Mundo Fraturado: reflexões sobre a crise da ordem liberal
São Paulo: Matrix, 2024, 312 p.
Se havia alguma dúvida quanto à fragmentação da ordem internacional, econômica e política, criada em 1944-45 pelos Estados Unidos, a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia a partir de fevereiro de 2022 se encarregou de eliminá-la de forma determinante. Na verdade, a agressão já tinha começado oito anos antes, quando Putin ordenou a invasão e a anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia em fevereiro de 2014, ação recebida com sanções moderadas por parte dos principais países do mundo ocidental. Mas, por incrível que possa parecer, o poder constituído e historicamente encarregado de manter o mundo mais ou menos colado nos compromissos multilaterais formulados pela grande potência hegemônica do pós-guerra, os Estados Unidos, se encarregou de fraturar ainda mais a ordem mundial cuidadosamente construída a partir das conferências diplomáticas de Bretton Woods (1944, para a ordem econômica) e de São Francisco (1945, para a ordem política), a partir da nova eleição de Donald Trump como presidente 47 da grande nação líder do Ocidente.
Não há dúvida, portanto, que o mundo está fraturado – não se sabe ainda, se de modo irremediável –, e pode, a partir de 2025, aprofundar ainda mais esse esgarçamento pleno de tensões entre as grandes potências. Essa nova realidade parece se contrapor à última frase do livro do diplomata Diogo Ramos Coelho, que vale reproduzir ao início desta resenha: “Um mundo fraturado requer reparos – e não golpes que o destruam de modo irrecuperável” (p. 286). Ora, as guerras de agressão de Putin no seu entorno imediato – Georgia desde 2008, tribulações russas na Moldova em torno de 2010, culminando na Ucrânia a partir de 2014 e, sobretudo, 2022, sem perspectiva de cessar-fogo –, assim como as primeiras “iniciativas” provocadoras de Trump, nos seus primeiros dias de governo, representam, justamente, esses golpes que dificultam, ou impossibilitam quaisquer tentativas de “reparos” dessas fraturas.
Independentemente da frustração que emerge ao final da obra em questão, a análise conduzida por Diogo Coelho ao longo das quatro partes, 18 seções e 15 subseções (na terceira parte) das “reflexões” do autor sobre a “crise da ordem liberal”, oferece um amplo panorama sobre a evolução do sistema internacional, e das relações entre as grandes potências desde o início do século, quando os primeiros sinais dessa fratura passaram a se revelar de modo mais transparente. O mundo saía, justamente, de dez anos de globalização “triunfante”, de unipolaridade arrogante por parte da potência mais do que nunca hegemônica, os EUA. O que emergiu, ao final da última década do século XX, não foi a continuidade da globalização, mas uma desglobalização não negociada ou administrada, pois que o mundo passou a enfrentar uma série de desafios colocados não apenas para as grandes potências, mas para praticamente para todos os atores, pequenos e médios, da comunidade internacional: retorno do nacionalismo, reforço do populismo, contestação das instituições multilaterais, aprofundamento do protecionismo comercial (como na última década do século XIX, começando o declínio da belle époque), um processo de reconcentração da renda (mas bem mais internamente aos países, sobretudo desenvolvidos, do que entre os países, pois que a globalização diminuiu significativamente os níveis de pobreza pré-existente), agravamento dos extremos climáticos, ademais da exacerbação dos desafios militares no contexto de um cenário geopolítico já configurando uma “segunda Guerra Fria” (embora analogias sejam sempre enganadoras).
O livro do já experiente jovem diplomata tem início por uma abordagem histórica e conceitual sobre “caos e ordem no sistema internacional” (Parte 1), quando são apresentadas as principais configurações e reconfigurações desse sistema, desde as ordens imperiais anteriores, passando pela nova estrutura (westfaliana) de Estados soberanos, chegando às tentativas de estabelecimento de “ordens internacionais” parciais: desde Viena (1815), indo à quebra do Concerto Europeu, as guerras totais do século XX e o frágil equilíbrio da Guerra Fria, que assistiu, mesmo assim, ao predomínio das economias de mercado e à construção (precária) de uma ordem liberal novamente desafiada em menos de duas décadas.
As partes 2 e 3 (a mais longa) se ocupam, respectivamente, das “forças de coesão” e das de “dissonância”, sendo que a primeira começa por um exame dos acertos e erros da “tese” de Fukuyama sobre o “fim da história”, e se prolonga no exame, por 60 páginas, dessas primeiras forças: o pensamento iluminista, as instituições internacionais (típicas do multilateralismo contemporâneo), a globalização e as tecnologias de informação e de comunicação. O longo capítulo sobre as “forças de dissonância” (130 páginas) representa uma contrapartida às forças da coesão: as fraturas das ideias, dos regimes e instituições multilaterais, da globalização e das redes tecnológicas de comunicações.
A parte 4, finalmente, aborda em 20 páginas, as “consequências de um mundo fraturado”, entre as quais identifica o enfraquecimento relativo do poder hegemônico, a introversão de muitos Estados em suas pequenas questões interiores, os “tabuleiros” existentes de guerras por substituição (Oriente Médio, Ucrânia, Pacífico “chinês”), bem como as diferenças entre a “Guerra Fria 2.0” e a original (1.0), sendo a principal a emergência da China como principal rival estratégico, no lugar de uma Rússia já diminuída, ainda relevante militarmente (p. 273-74). O mundo não é mais feito de países alinhados ou não alinhados, crescendo o espaço para a “formação de parcerias variadas” (p. 275). Também nessa Parte 4, o autor discute os conceitos de “autonomia” e de “soberania”, relevantes no caso brasileiro, ilustrando com os exemplos históricos da era Vargas (equidistância pragmática), da Política Externa Independente, assim como a diplomacia ecumênica, “sem preconceitos ideológicos”. Finalmente, cabe o registro de que a globalização da fase liberal não se distribuiu de maneira uniforme entre regiões e países.
As conclusões retomam a discussão dos temas de ordem e anarquia na sociedade internacional, a não linearidade do processo histórico e as tensões existentes entre as forças de coesão e de dissonância, bem como a difícil e incessante busca de um mundo cosmopolita e humanista, que só pode ser pluralista, tanto quanto possível laico, fundada numa “ordem” que permaneceria aberta a reformas e ajustes (o que remete novamente à última frase da obra, já referida ao início desta resenha). Uma avaliação final confirma as virtudes deste livro, mas também as da capacidade expositiva e analítica do seu autor, de quem eu já havia resenhado o livro anterior: Mundo em crise: a história da crise financeira, seus impactos nas relações internacionais e os atuais desafios (2014).
Como já registrado dez anos atrás, tratando da crise financeira e das reações dos governos, o autor considerava que as democracias não tinham sabido realizar as reformas necessárias, em face dos custos políticos e sociais, que atingiam praticamente todos os países: não temos certeza de que elas tenham superado tais impasses, uma vez que a principal democracia prevalecente tampouco parece propensa a defender os valores e princípios de uma ordem democrática, que deveriam ser os seus próprios (mas que parecem ter passado a segundo plano). Não é um bom augúrio...
[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4841, 5 de fevereiro de 2025, 3 p.]