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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Edgard Telles Ribeiro: O Punho e a Renda (2010) - resenha de Paulo Roberto de Almeida

 Um romance "histórico" dos tempos em que alguns, no Itamaraty, colaboraram com o regime militar. Não  foi o caso agora, quando das tentativas de golpe de um inepto desonesto e tresloucado ex-militar, que queria ter a 'sua ditadura'. Teria sido uma ditadura dos imbecis. A de 1964-1985 não, foi de militares preparados – para todo o mal que fizeram, mas também para a construção tentativa do "Brasil grande potência" – o que pode ter seduzido alguns oportunistas. 

Resenha antiga, mas ainda interessante, quando falam de um outro golpe e tentativa de implantar uma ditadura.

Paulo Roberto de Almeida, 17/02/2024

Rendas faustianas, punhos wagnerianos... 

Paulo Roberto de Almeida

 

Edgard Telles Ribeiro

O Punho e a Renda

(Rio de Janeiro: Editora Record, 2010, 560 p.; ISBN: 978-85-01-09162-8)  

 

O autor adverte, em sua nota inaugural, que este livro “é obra de ficção”. Acredito. Mas, como ocorre com certas declarações de diplomatas, talvez se deva dar um desconto em afirmação tão peremptória, algo como 50% em relação ao seu valor de face. É uma obra de ficção em grande parte de seu enredo essencial, mas que tem muito de verdade, no que se refere à fundamentação dos personagens e situações. Trata-se de um “romance” verossímil, de uma história plausível, com a vantagem de ter sido concebida e modelada por um “insider”, um diplomata distinguido, que calha ser também um excelente escritor, autor de vários outros romances e livros de contos. 

Eu começaria dizendo que se trata do “romance” (ou da história real) de uma geração: a dos diplomatas – estereotipicamente os de “punhos de renda” – que atravessaram os anos de chumbo do regime militar – feito quase só de punhos – e que conseguiram sobreviver, cada qual a seu modo. Diga-se, desde já, que quase todos “sobreviveram”, sem maiores percalços, e que os “sacrificados” foram poucos. Muitos outros brasileiros não sobreviveram, e é isto que interessa, talvez, não tanto ao Itamaraty, enquanto tal; mas aos brasileiros que saíram da anarquia “democrática” em vigor no início dos anos sessenta, enfrentaram mais de vinte anos de regime militar, e que ainda hoje tentam entender o que, afinal, aconteceu no Brasil, e na região, durante a longa noite de regimes autoritários na América Latina. 

Mas obra não é exatamente o “romance” de uma geração, ou sequer de toda uma casta de servidores públicos, o que são, indiscutivelmente, os diplomatas. Trata-se, mais apropriadamente, de uma “biografia não-autorizada”, talvez goethiana, de uma parte dessa casta de servidores do Estado, em um dos ministérios mais respeitados da burocracia federal. Tudo gira em torno de Max, o codinome, se poderia dizer, que se deixa aprisionar pelos novos tempos e é envolvido em suas tramóias mais sórdidas – quando o Brasil, não contente em consolidar o domínio autoritário no interior de suas fronteiras, ajudava a “corrigir” os desmazelos das democracias populistas nos países vizinhos, ali patrocinando golpes militares violentos. Ele consegue, inclusive, sobreviver à derrocada do regime, sempre apostando nas “pessoas certas”, nas personalidades influentes (a começar por um beijo no anel do cardeal brasileiro, pouco antes do golpe de 1964). Max tem um nome ficcional: Marcílio Andrade Xavier. Mas, na verdade, ele é um amálgama de diversos diplomatas que existiram, realmente, ao longo do regime militar (e mais além...).

O estilo é brilhante, e o leitor atravessa esse “romance-história” sem parar, do começo ao fim de suas 550 páginas, sempre com o personagem principal no centro ou em surdina ao enredo. Este é talvez goethiano, mais exatamente faustiano, pelo menos em partes da obra. Em outras partes, a obra vira um itinerário de descoberta, um pouco como nos romances de John Le Carré, em que os personagens do submundo da inteligência civil, têm de lidar com sentimentos e frustrações, com as emoções humanas, aquilo que Graham Greene chamou, em um dos seus livros, “the human factor”. Parafraseando aquela velha canção sobre os desafinados, pode-se dizer que os homens de inteligência também têm um coração. Pode até ser, mas não propriamente Max, que apenas tem como objetivos poder e prestígio, o tempo todo mirando no futuro, e não apenas no presente de luta surda (e aberta) contra as ameaças comunistas na América Latina em plena era da Guerra Fria.

O personagem principal aparece como um intelectual brilhante. Ele poderia, assim, ter tido sucesso apenas fazendo um pouco mais do que recomendaria o estrito dever funcional; ou então, como muitos outros na carreira, por meio de um desempenho “correto” numa profissão certamente exigente em qualidades pessoais, mas também marcada por tarefas aborrecidamente burocráticas na maior parte do tempo; em qualquer hipótese, ele teria tido a chance de se distinguir no cumprimento de suas “missões” e, dessa forma, ser promovido antes dos seus colegas de turma.

Max, no entanto, dotado de uma ambição desmedida, acaba fazendo um pacto faustiano: cercado, ou encurralado, por um manipulador de carreiras, aceita servir ao SNI, cooperar com a CIA e colaborar com a inteligência britânica, o MI6 (excusez du peu, como diriam os franceses). Sim, tudo isso por motivações puramente pessoais, sem qualquer desejo de vingança; menos ainda por amor ao dinheiro ou qualquer outro motivo mais mesquinho. Apenas um gosto inexplicável por uma vida de dupla, ou tripla, personalidade. Traço de caráter que, aliás, permanece não explicado ao longo do “romance”, o que acrescenta ao mistério (e que poderia ter sido explorado psicanaliticamente, como conviria, talvez, nessa espécie de Bildungsroman).

Todos os personagens têm nomes próprios no “romance”, ainda que ligeiramente trocados, por simples precaução do autor, como o agente da CIA morto pelos Tupamaros no Uruguai, por exemplo. Menos o personagem que introduziu Max no submundo da inteligência brasileira, alegadamente seu chefe em Montevidéu, um antigo embaixador por demais conhecido (dos mais velhos) na carreira, como um anticomunista profissional, e que deixou dois volumes de memórias até interessantes pela sinceridade com que revelou seus “golpes” contra os comunistas da carreira e os de fora dela. O “homem da capa preta” fica sem nome, mas não é difícil descobrir quem seja, e seria até interessante reler, hoje, certas passagens de suas memórias.

Os diplomatas também se precipitarão sobre alguns currículos de colegas, vivos ou “desaparecidos”, para saber o quanto existe de coincidências ou de similitudes, em termos de postos, datas e situações, com colegas que eles possam ter conhecido e que imaginam “retratados” no romance. Muitos se sentirão frustrados, mais, talvez, pelas não-coincidências do que por estas, que são todas absolutamente plausíveis, até mesmo possíveis, tomadas globalmente, ao longo de um itinerário de descobertas muito bem encadeado na competente e absorvente escrita do autor.

Como especialista em cinema – tendo, aliás, servido duas vezes em Los Angeles e dado aulas de cinema na UnB – ele traça um roteiro, um script, melhor dizendo, impecável, com flashbacks e cenas paralelas que prendem a atenção de qualquer leitor, ainda mais se este for da carreira e estiver interessado em conhecer um pouco mais do submundo em que o Itamaraty se envolveu durante os chamados anos de chumbo. O personagem Max, obviamente, confunde os colegas de carreira do autor, pois não corresponde a um diplomata em particular, mas sim a um “compósito literário”, elaborado a partir daqueles poucos que atuaram nas sombras e nos cenários cinzentos que marcaram os anos mais duros do regime militar: poucos desses, aliás, estariam em condições de assumir completamente a figura faustiana que emerge nesta obra, aspecto que se encontra na trama de alguns grandes “romances” clássicos. 

Curiosamente, é um livro de Thomas Mann que oferece ao MI6 britânico a chave, involuntária e inconscientemente fornecida por Max, para penetrar nos segredos do programa nuclear brasileiro, ainda em gestação no início dos anos 1970 – quando o Brasil colaborava com a CIA na montagem dos golpes militares no Uruguai e no Chile – mas cuja interface tecnológica alemã já deixava de cabelos em pé os “não-proliferadores” de Washington. Não, não se trata do Doktor Faustus (que só veio à luz nos anos 1950), mas de uma primeira edição autografada pelo autor de Der Zauberberg (A Montanha Mágica, publicado pela primeira vez em 1924), da qual o embaixador em Montevidéu jamais se separava (mas eu deixo esse spy-catch para os leitores do livro). Este aspecto talvez seja o “detalhe” mais realista – ainda que ficcional – do “romance”, pois se as perseguições a comunistas há muito ficaram para trás, determinadas “opções” nucleares continuam rigorosamente atuais (um pouco como uma baleia que emerge de vez em quando para respirar, segundo uma imagem, hors-roman, do autor). 

Hoje, aliás, os perseguidos dos anos 1970 se encontram em grande medida no poder – alguns até pretendendo se vingar de seus antigos torturadores – e revelações de arquivos diplomáticos (muito antes do Wikileaks) já demonstraram algumas facetas da colaboração de diplomatas com os antigos serviços de repressão. Max, quaisquer que sejam suas encarnações reais, continuou, no romance, atuando nas entrelinhas desses tempos sombrios, sempre com as cautelas necessárias, para emergir depois, aparentemente impoluto, e se adaptar aos novos tempos de república dos companheiros. Ele sobreviveu de um jeito ou de outro, até ver os antigos perseguidos do regime no comando do novo Estado, em uma situação de poder à qual ele mesmo aspirava chegar, como uma espécie de Santo Graal meritório, por suas grandes qualidades intelectuais (também reconhecidas pelos agentes da CIA e do MI6).

Diplomatas e leitores externos ficarão perturbados, por diferentes razões, pelo desenvolvimento geral da trama deste “romance verdadeiro”, que refaz, por assim dizer, o itinerário dessa geração de diplomatas que teve de conviver, suportar ou então se aproveitar – no caso de muitos – das novas condições criadas pelo regime militar no Brasil. Ainda não existe uma história – por algum insider ou por um historiador profissional – de como o Itamaraty “conviveu” com – e se adaptou a – esses tempos sombrios, embora eu mesmo tenha tentado reconstituir uma parte da história neste capítulo de um livro coletivo: “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, In Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (orgs.), “Tempo Negro, temperatura sufocante": Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de Janeiro: PUC-Rio, Contraponto, 2008; p. 65-89). Sem se lograr, contudo, a colaboração dos envolvidos, é virtualmente impossível reconstituir as tramas mais importantes desse período que muitos querem esquecer.

Os próprios diplomatas que viveram esses tempos – o que não foi o meu caso, para aquela fase precisa da “diplomacia blindada”, digamos assim – ainda não escreveram sobre isso e duvido que venham a empreender a dolorosa tarefa de falar sobre as pequenas e grandes misérias do período. Que Edgard Telles Ribeiro o tenha feito – ainda que sob a forma de um “romance verdadeiro” – oferece uma prova de sua coragem, depois de tantos romances e livros de contos, em lançar-se no que poderia ser chamado de “revisão intelectual” de alguns dos personagens mais emblemáticos do ancien régime militar.

Um livro perturbador para uns e outros da carreira, certamente curioso, ou mais do que isso, para os de fora, em todo caso inédito para os padrões reservados ou circunspectos da Casa de Rio Branco. Os interessados na História, a real, tentarão estabelecer onde termina a realidade e onde começa a ficção; uma separação muito difícil de se fazer, dado o próprio envolvimento do autor com alguns dos que “colaboraram” – involuntariamente, por certo – para a montagem do personagem principal. Algum psicanalista talvez diga que a obra representou a forma de seu autor “matar” uma parte de seu passado, o que também é legítimo, sobretudo para os que viveram intensa e preocupadamente aqueles anos de escolhas difíceis e de futuros incertos. Nem todos os “sobreviventes” o fizeram com tanta dignidade e honestidade intelectual quanto o autor deste “romance”.

Para todos nós, leitores, o importante é saber que o “romance” – quaisquer que sejam suas partes de verdade e ficção – nos prende do começo ao fim, tão absorvedora é a “história” e tão cativantes são a escrita e o estilo do autor: dá para ler, em menos de 24 horas, uma trama de meio século...

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 6 de fevereiro de 2011; 2ª versão: 8/02/2011]

Versão reduzida desta resenha foi publicada neste formato:  

1025. “Diplomacia de capa e espada? Quase...”, Boletim ADB (ano 17, n. 72, jan-fev-mar 2011, p. 29-30; link: www.adb.org). Relação de Originais n. 2243b.

 

2243. “Rendas faustianas, punhos wagnerianos...”, Brasília, 6 fevereiro 2011, 5 p. Resenha de Edgard Telles Ribeiro: O Punho e a Renda (Rio de Janeiro: Editora Record, 2010, 560 p.; ISBN: 978-85-01-09162-8). Revista em 8/02/2011, com base em observações do autor. Feita versão reduzida, sob o título “Diplomacia de capa e espada? Quase...”, publicada no Boletim ADB (ano 17, n. 72, jan-fev-mar 2011, p. 29-30; link: www.adb.org). Versão completa publicada na Revista de Economia e Relações Internacionais (FAAP-SP; vol. 10, n. 19, julho de 2011, p. 183-186; ISSN: 1677-4973; link: http://www.faap.br/faculdades/economia/ciencias_economicas/pdf/revista_economia_19.pdf). Versão da ADB Divulgado no blog Diplomatizzando (24/12/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/12/o-punho-e-renda-romance-verdade-de.html). Postado novamente no blog Diplomatizzando, 17/02/2024: link: ). Relação de Publicados n. 1025 e 1057. 

terça-feira, 26 de abril de 2022

Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira - resenha de Paulo Roberto de Almeida

 Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira


 
 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Resenha do livro: Sergio Abreu e Lima Florêncio, Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Appris, 2022; ISBN: 978-65-250-2114-0)


  

Diplomatas costumam ser funcionários discretos, afáveis, mas reservados; são muito cordiais, mas algo distantes; também são bem-informados, mas geralmente calados; quando escrevem memórias, elas são invariavelmente politicamente corretas, contando largos trechos do itinerário pessoal, mas evitando de ofender quaisquer parceiros diplomáticos, amigos ou “inimigos” do Brasil. Não é o caso deste livro de memórias pessoais e diplomáticas, de um grande e velho amigo de décadas na carreira e que teve uma das trajetórias mais fascinantes, tanto no plano pessoal e familiar, quanto no campo da diplomacia. 

O embaixador Sergio Florência compôs um relato inédito nos anais da diplomacia brasileira, talvez até mundial, o que transparece, aliás, no subtítulo da obra, “de Vila Isabel a Teerã”, antes e depois da revolução dos aiatolás. O título já chama a atenção, não só pelos termos, mas sobretudo pela proporção, inversa, de seus componentes: as “memórias” começam por sete capítulos dedicados à “revolução”, mais exatamente pelo “filho da revolução”, o do próprio Sérgio e de Sonia, nascido na capital iraniana na turbulência dos anos em que ele se desempenhou como “encarregado de negócios” na embaixada do Brasil, depois que o embaixador, muito ligado à família do xá, foi retirado pelo Itamaraty. 

A “diplomacia” aparece na segunda parte, dez densos capítulos, menos dedicados a temas de política internacional e bem mais a “personagens” da convivência profissional do autor, inclusive este que aqui escreve, homenageado duplamente, numa recepção em sua casa, quando de minha tardia promoção, e no segundo capítulo deste bloco, onde sou tratado como “o embaixador ombudsman”. Finalmente, a terceira parte, a mais emotiva e sensível, trata dos afetos, aparentemente apenas 26 deles, mas muito mais do que isso, como transparece em cada uma das linhas dedicadas a filhos, netos, à sua mulher, familiares, conhecidos, interações inesperadas, até animais. Finalmente, dois apêndices voltam a tratar da revolução iraniana e um final relata o refúgio na embaixada do Brasil em Quito, onde Sérgio era embaixador, do presidente do Equador, escapando de um golpe de Estado.

Quando digo que este livro de “memórias” não se parece em nada com outras memórias diplomáticas, fica transparente logo no primeiro capítulo da terceira parte, a dos afetos, quando Sérgio discorre de forma amorosa sobre o seu “meio século de flor amorosa” ao lado de Sonia, primeiro cercando aquela moça “muito linda, sabida e irreverente”, depois inventando uma desculpa qualquer para visitar a jovem revisora do Jornal do Brasil, para culminar no pedido de casamento, em 1971, e o que veio depois, como ele mesmo descreve numa mensagem ao filho, em 2021, sobre a lua de mel improvisada:

Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, oito netos, 27 mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica, um golpe de estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar. (p. 80)

 

A crônica seguinte, “A menina do Sacré-Coeur e o sertanejo do Seridó” vai no memo tom, relatando a miscigenação cultural entre uma estudante que falava francês e o migrante do sertão para a aventura no Rio de Janeiro dos anos 1930, que se encontraram alguns anos depois nos corredores do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores do Estado Novo: 

Nesse ministério..., a Menina do Sacré-Coeur, que falava francês e tocava piano, apaixonou-se pelo Sertanejo do Seridó, que gostava de trovadores, repentistas e de baião. Em certo sentido era a elite que se encontrava com o povo. (p. 83)

 

Mas não só a parte dos “afetos” tem esse tipo de tratamento coloquial, uma narrativa sobretudo intimista, um Proust de Vila Isabel, onde o casal se instalou, mas as duas outras partes também tratam de assuntos “sérios” num linguajar coloquial, quase um Balzac do subúrbio do Rio. Impagável é o relato da “avó monarquista”, a atalhar os netos que pretendiam que a República era mais democrática: “E a Inglaterra? Você quer dizer que o Brasil, essa republicazinha, é mais é mais democrática que a Inglaterra? Ora bolas, vocês são uns bobos.” (p. 96). Impressionante também é o relato, bem mais dramático, sobre a retirada da família de Teerã durante a revolução e a guerra contra o Iraque, quando Sérgio contrariou as instruções de Brasilia e fez pessoalmente a viagem de carro até a fronteira da União Soviética, quanto o Itamaraty queria que os familiares saíssem pela Turquia, o que revela o espírito decidido do então jovem diplomata encarregado de negócios: 

Considerava uma irresponsabilidade colocar os brasileiros diante de graves riscos apenas para cumprir uma ordem que desconhecia a realidade. Tive um bate-boca com um diplomata que minha memória seletiva apagou do mapa. Só me lembro esbravejando um grito de independência: ‘Vocês têm poder para fazer o que quiserem. Mas fiquem sabendo de uma coisa: minha mulher e nossos três filhos não vão pela Turquia de jeito nenhum. Vão pela União Soviética. Nem com ordem do Presidente da República.” O bate-boca chegou aos ouvidos do então Chefe da Divisão de Comunicações, que depois vim a descobrir ser uma pessoa encantadora – Claudio Sotero Caio – e foi aprovada a rota via União Soviética. (p. 35)

 

O resto desse relato é eletrizante, como se fosse um roteiro de filme de Hollywood, com lances sempre inesperados, inclusive trafegar a toda velocidade, com faróis apagados, numa Teerã em pleno toque de recolher. Mas não só os capítulos “revolucionários” são absolutamente fascinantes, todo o livro transparece a maneira otimista, e divertida, de relatar casos os mais bizarros e inusitados num estilo próprios dos grandes mestres da escrita, como aliás confirma o prefaciador, sob a pena do embaixador Rubens Ricupero: 

Se o livro de Sergio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schumann, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann. (p. 11)

 

Tenho especial satisfação de fazer esta resenha, não pela generosa dedicatória que Sérgio me fez, ao entregar-me o livro na Biblioteca do Itamaraty – na qual ele reconhece meu “trabalho competente e corajoso de denunciar os graves equívocos (e acertos) de nossa política externa” – mas também por dedicar um capítulo inteiro a este diplomata contrarianista, chamado de “embaixador ombudsman”, como já referido. Já seu primeiro parágrafo me soa inteiramente elogioso, mas também correto no plano institucional: 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função.

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. (p. 54)

 

Sou imensamente grato ao Sérgio Florêncio por ter reconhecido minhas tribulações profissionais, já pela segunda vez, durante a “tragédia” que foi a gestão do ex-chanceler acidental, como eu sempre me referi ao autor dos delírios diplomáticos durante a primeira metade do governo negacionista e antiglobalista: 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do presidente e do Chanceler. (p. 55; texto de 30 de janeiro de 2021, pouco antes da queda do desequilibrado gestor)

 

Mas ele também presta homenagem a um dos seus mais agradáveis chefes de posto, o romancista e acadêmico Josué Montello, que foi o titular da delegação do Brasil junto à Unesco, em Paris, quando Sérgio ali serviu com esse “Grande Contador de Histórias”, como se chama esse capítulo, no qual descreve o “método” de um escritor compulsivo que, acometido por insônia, encontrou a técnica para “enganar” a necessidade de dormir, com isso conseguindo produzir mais de cem livros:

Todas as madrugadas, por volta das três da manhã, ele despertava, sentava em frente a uma folha de papel em branco e não resistia. Era preciso preencher aquela ‘tabula rasa’ que nada continha. Mas que despertava irresistível encanto em meu Grande Contador de Histórias. (...)

Compreendi então sua máxima a respeito da irresistível atração que uma folha de papel em branco exerce sobre todo homem. Seria essa atração um movimento, uma inclinação de toda a humanidade? Seria o mero resultado de um metabolismo individual que passou a ser respeitado? Fica a pergunta no ar. (...)

Mas a atração da folha virgem alimentava uma criatividade exponencial, gerava frutos de uma mente que não parava de produzir histórias, de contar um conto sempre acrescentando um ponto. Tão grande era sua pulsão criativa, que nas manhãs de trabalho, como Embaixador do Brasil na Unesco, precisava contar a seu colaborador a arte de ocupar o espaço de uma folha de papel em branco. (p. 72)

 

Creio que eu e Sérgio padecemos do mesmo “mal”: não podemos ver uma folha de papel em branco, no meu caso prolongando a noite durante várias horas, madrugada adentro, nos velhos tempos preenchendo cadernos e mais cadernos de notas, de uns tempos para cá, contemplando uma desafiadora tela em branco no processador de textos. Assim concluo, pois, às 3hs da madrugada, a leitura deste fascinante livro de Sérgio Florêncio. Recomendo a todos que façam o mesmo, nos horários que julgarem mais convenientes. Comecem pelos afetos, depois enfrentem o roteiro da revolução e terminem pela diplomacia. Mas, em qualquer ordem, as crônicas desta autobiografia emotiva são absolutamente encantadoras.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4135: 26 abril 2022, 4 p.


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Permito-me incluir aqui, nesta postagem, o capítulo do livro que ele dedica a mim: 


 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 


     In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 54-55) 


 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios. 

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heroicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricúpero e do próprio nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.

 

sábado, 17 de abril de 2021

Lincoln Gordon, o "embaixador do golpe": minha convivência com ele e o livro que ele produziu sobre o Brasil - Paulo Roberto de Almeida


 Em correspondência sobre os tempos do Goulart, u
m amigo me falou do Lincoln Gordon, o "embaixador do golpe".  Convivi com Lincoln Gordon durante três anos, e talvez eu possa me vangloriar de tê-lo impelido a terminar o seu livro sobre o Brasil, que saiu quando eu estava nos EUA: Brazil’s Second Chance

Mas senti falta de um capítulo ou seção sobre o golpe, e lhe disse isso. A edição brasileira, que fiz traduzir e publicar teve esse acréscimo em relação à edição original, que teve apenas uma separata. Claro que ele disse que os EUA não tiveram nada a ver com o golpe, que foi 100% brasileiro. Quando ele me dizia isso, eu apenas sorria.

Depois, durante o resto do tempo que permaneci em Washington, insisti muito que ele terminasse suas memórias, o que me parece que nunca fez, mas pode ser que outros estudiosos tenham feito gravações sobre a vida dele, longuíssima por sinal. 

Eis minhas fichas sobre os dois textos que fiz sobre o seu livro, uma resenha da versão original e a introdução que fiz para a edição brasileira: 

788. “Mr. Gordon e o Brazil”, Washington, 3 maio 2001, 5 p. Resenha do livro de Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001). Publicado na Revista Eletrônica de História do Brasil, Dep. de História e Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 4, n. 2, jul./dez. 2000; na Via Mundi, Boletim de análise do estado da arte em relações internacionais (Brasília: Dept. de Relações Internacionais da UnB; n. 4, abr./jun. 2001, p. 20-21, ISSN 1518-1227); na Conjuntura Política (Belo Horizonte: UFMG, boletim eletrônico do Dep. de Ciência Política, n. 26, jun. de 2001); em versão abreviada no O Estado de São Paulo (Domingo, 10/06/2001, Caderno 2: Cultura); na Revista Brasileira de Política Internacional (a. 44, n. 1, 2001, p. 179-181); e no site Parlata (22 de abril de 2004). Relação de Publicados ns. 265, 270, 271, 272, 273 e 472.

894. “Mr. Gordon e o Brazil”, Washington, 22 abril 2002, 8 p. Apresentação à edição brasileira do livro de Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 p.; ISBN 0-8157-0032-6); A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo (São Paulo: Editora Senac, 2002). Relação de Publicados n. 384.

1108. “Elogio a um Andarilho do Século XX: Homenagem ao Embaixador Lincoln Gordon em seu 90º aniversário”, Washington, 7 setembro 2003, 3 p. Texto entregue com presente (livro The Modern Mind) ao embaixador Lincoln Gordon em almoço com Paulo Sotero e John Williamson no National Press Club, dia 9/09/2003. 


Mr. Gordon e o Brazil

 

Paulo Roberto de Almeida (http://pralmeida.tripod.com)

Doutor em ciências sociais. Autor do livro

O estudo das relações internacionais do Brasil (SP: Unimarco, 1999)

Publicado: Conjuntura Política

(Belo Horizonte: boletim eletrônico do Departamento de Ciência Política da UFMG, n. 26, jun. de 2001). Relação de Publicados nº 263.

 

Lincoln Gordon:

Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World

(A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo)

Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 p. 

ISBN 0-8157-0032-6      US$ 28,95

(Brookings: 1775 Massachusetts Avenue, Washington, DC 20036

www.brookings.edu)

 

 

Em “Mr. Slang e o Brasil” Monteiro Lobato utilizou-se de um recurso conhecido dos escritores desde os tempos de Montesquieu: criar uma personagem independente, necessariamente estrangeira, para poder discutir com uma certa isenção (e, talvez, ao abrigo da censura do rei) idiossincrasias e problemas do seu próprio país. A partir da visão do mundo do circunspecto inglês – como correspondia, aliás, a uma época de hegemonia britânica no Brasil – era possível ao jovem escritor de Taubaté criticar alguns dos absurdos de nossa organização política, social e econômica e propor soluções aos velhos problemas que o angustiavam, sem comprometer-se com o eventual sucesso ou fracasso de suas próprias fórmulas.

Mr. Slang tinha uma fina percepção das deficiências do Brasil e suas críticas deviam ser vistas, na ótica de Lobato, como uma tentativa de superar os grandes problemas da nacionalidade, não como uma confirmação derrotista de nossos piores defeitos. Mr. Gordon, um americano conhecido direta ou indiretamente de todos os brasileiros que estudaram nossa route para a ditadura militar, não é propriamente candidato a novo Mr. Slang, tanto porque ele não se refugia em algum sítio inacessível, nem ostenta a arrogância típica dos representantes imperiais da velha Albion. Não há dúvida, contudo, que o simpático e atento espectador de todas os encontros sobre o Brasil realizados na capital do novo império deve ser considerado como um intérprete realista do itinerário econômico e político brasileiro das últimas décadas, bem como, a julgar pelo livro aqui resenhado, um crítico sincero das velhas questões sociais que, já nos anos vinte, retinham a atenção do inglês imaginário e do escritor de Taubaté. 

Segunda Chance do Brasil estava no forno há pelo menos uma década e meia e, como confessa o próprio Mr. Gordon, as chances do livro ser concluído tinham simplesmente desaparecido do cenário durante a “década perdida” de desarticulação macroeconômica dos anos oitenta e começo dos noventa. Ele foi salvo pelo “rum creosotado” do Plano Real, que devolveu ao País a esperança de sonhar com a retomada do crescimento e de aspirar ao eventual salto para o Primeiro Mundo, na interpretação do antigo embaixador americano nos governos João Goulart e Castelo Branco. Para aqueles que esperam ver no livro novas revelações sobre o envolvimento americano no golpe militar de 1964, a impressão é de um déjà vu again, pois o texto, a despeito de um relato circunstanciado dos eventos que levaram ao golpe, contempla, como documentos novos, tão somente uma troca de telegramas, nos dias 30 e 31 de março daquele ano, sobre as expectativas de Washington e a disposição da Embaixada no Rio de Janeiro em garantir um mínimo de legitimidade política aos conspiradores brasileiros contra Goulart, o que habilita Gordon a reafirmar sua convicção de que o golpe foi “100% brasileiro”.

A obra não trata, contudo, dessa conjuntura ou das peripécias políticas e militares das últimas décadas, mas sim do processo estrutural de desenvolvimento brasileiro na era republicana, com ênfase nos aspectos econômicos e políticos (inclusive no que se refere à política externa) e nas dimensões sociais que permearam a experiência histórica do Brasil desde a época da “primeira chance” – grosso modo a era Kubitschek – até a atual, e ainda aberta, janela da “segunda chance” das administrações FHC. O livro é, com efeito, uma discussão exaustiva – e razoavelmente isenta para um representante da principal potência imperial de nossa época – das razões que impediram o Brasil de atingir o status de nação desenvolvida naquela primeira fase e dos requerimentos colocados à sua sociedade e elites políticas para que ele possa fazê-lo na atual. O julgamento do novo Mr. Slang não faz concessões às aparências: enganam-se aqueles que julgam que seu livro poderia mostrar complacência com os militares que derrubaram o populista Goulart e que pretendiam, justamente, alçar o Brasil à condição de “grande potência”, mediante doses maciças de investimento pesado e de boa receptividade ao capital estrangeiro. Faltou ao Brasil militar um dos ingredientes que Mr. Gordon julga indispensáveis ao status de nação do Primeiro Mundo: a democracia política.

O fracasso da era militar foi de natureza política e o da Nova República, de Sarney a Collor, foi de caráter econômico, pois que o populismo social da Constituição de 1988 e o quadro de inflação crônica vivido até 1994 impediram o Brasil de realizar sua segunda chance de desenvolvimento. Os resultados das eleições de 2002 podem determinar, segundo Mr. Gordon, se o Brasil conseguirá alcançar o que ele chama de “full first world status”, ou se o País continuará patinando naquela trajetória errática que Darcy Ribeiro interpretava como sendo um desenvolvimento aos “trancos e barrancos”, com tremendas doses de desperdício humano e muita frustração social e política. O livro de Mr. Gordon, diferentemente das interpretações algo impressionistas de Darcy, apresenta uma rigorosa análise econômica e um sensato diagnóstico político sobre os quatro grandes desafios estruturais enfrentados pelo Brasil na presente conjuntura: consolidar a estabilidade macroeconômica, reduzir o grau anormalmente elevado de desigualdade social e de pobreza, continuar o ativo processo de inserção internacional e de engajamento na globalização e persistir na reforma das instituições políticas, pouco funcionais para os requisitos do desenvolvimento integrado de um país tão complexo e diversificado como o Brasil.

Não há porque pensar que Mr. Gordon está interessado em aplicar receitas americanas ao caso brasileiro. Longe disso, ainda que um certo comparatismo com os Estados Unidos, mesmo deplacé, seja de rigueur: segundo ele nós estaríamos, por exemplo, na situação dos EUA dos anos 20, o que não leva em conta os diferenciais “estruturais” de produtividade que derivam, segundo este resenhista, do fato de ter o capitalismo americano modelado um “modo inventivo de produção” ainda na primeira Revolução industrial, ao passo que nós sempre esperamos por “alvarás d’El Rey” para iniciar qualquer nova atividade econômica e ainda insistimos em praticar uma cultura tecnológica que rejeita, inconscientemente, um sistema patentário intensivo.

Mr. Gordon tem um grande respeito pela racionalidade intrínseca dos dados numéricos – ele já era professor de relações econômicas internacionais em Harvard desde os anos 30, quando metade da atual população brasileira ainda não tinha nascido – e tampouco acredita que fórmulas políticas bem sucedidas num determinado contexto social (como o dos EUA) sejam transplantáveis a um outro cenário institucional. Ele conhece bem o Brasil, os brasileiros e os diferentes autores que ao longo dos anos foram acumulando “explicações” sobre as razões de nosso fracasso ou da não repetição do bem sucedido experimento americano de desenvolvimento econômico e tecnológico e de relativa inclusão social. Leitor de Viana Moog, ele conhece a diversidade de raízes culturais e pode, por isso mesmo, reconhecer no Brasil e nos brasileiros a capacidade de realizar nossa própria modalidade de ascensão ao “primeiro mundo”. Seu livro é verdadeiramente equilibrado e completo e, se lido com a isenção que a distância de 1964 nos recomenda, pode ser uma excelente fonte de reflexões para todos nós, de gerações pré- e pós-golpe militar, que pensamos em colocar o Brasil, não no “primeiro”, mas num mundo mais desenvolvido e humano como gostariam todos os brasileiros.

Apenas um reparo, do ponto de vista de quem se ocupa profissionalmente das relações internacionais do Brasil desde algumas décadas: para quem freqüentou os meios acadêmicos e diplomáticos e conhece bem nossos agentes do serviço exterior e a própria agenda internacional, Mr. Gordon é bastante cético quanto às chances de o Brasil aceder ao status de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (“It is unlikely, however, that Brazil will fulfill its ambition for a permanent place on the UN Security Council”, p. 2). Se admitirmos que a reforma da Carta da ONU possa ser realizada no futuro previsível e que um novo membro possa ser designado a partir da América Latina, é o caso de perguntarmos a Mr. Gordon: se não o Brasil, quem? O ceticismo é contraditório com a postura de quem acredita que o Brasil pode chegar, efetivamente, ao status de potência mundial. Admitida uma hipótese, fica difícil recusar a outra, a menos que a nova Roma já tenha decretado, secretamente, que não haverá reforma da ONU. Trata-se, mais uma vez, de uma realidade que um antigo embaixador brasileiro em Washington, Araújo Castro – e que Mr. Gordon conheceu bem –, caracterizou como sendo o “congelamento do poder mundial”, algo inaceitável para velhas e novas gerações de diplomatas brasileiros. Mas, isso Mr. Gordon deve saber muito bem.

 

Índice de Brazil’s Second Chance de Lincoln Gordon:

1. The Goal: Genuine First World Status (O objetivo: status verdadeiro de primeiro mundo)

2. The First Chance: What Went Wrong?  (A primeira chance: o que deu errado?)

3. Structural Change Under the Military Republic (Mudança estrutural na República militar)

4. The Incomplete Transformation: Economic Structures (A transformação incompleta: estruturas econômicas)

5. The Social Dimension (A dimensão social)

6. The Political Structure (A estrutura política)

7. From Debt and Drift to Real - and Stability? (Da dívida e deslize para o Real – e a Estabilidade?)

8. Brazil and the World (O Brasil e o mundo)

9. The Prospects (As perspectivas)

 

Quem é Lincoln Gordon:

Atualmente pesquisador convidado em estudos de política externa da Brookings Institution, um dos mais prestigiosos think tanks de Washington, Gordon tem uma vasta experiência acadêmica, política e diplomática, tendo desempenhado funções no Departamento de Estado que o vincularam para sempre ao Brasil. Pesquisador do desenvolvimento econômico brasileiro nos anos 50, depois de ter trabalhado no Plano Marshall e no processo de reconstrução européia, ele desempenhou o cargo de embaixador americano no Brasil na fase crucial da Guerra Fria (1961-66), tendo depois servido como Secretário de Estado assistente para os assuntos inter-americanos (1966-1967). Professor de Harvard desde os anos 30 e ex-reitor da Universidade Johns Hopkins, hoje com 87 anos, Gordon é autor de numerosos livros, entre eles Eroding Empire: Western Relations with Eastern Europe (Destruindo o Império: as relações das potências ocidentais com a Europa oriental; Brookings Institution, 1987).

 

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 788: 3 de maio de 2001

 

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Free translation of article on BRAZIL’S SECOND CHANCE by Minister Paulo Roberto de Almeida at the Brazilian Embassy in Washington for publication in the Revista Brasileira de Politica Internacional (Brazilian Review of International Policy), No. 1 —2001 (July 2001)

 

MR. GORDON AND BRAZIL

 

Paulo Roberto de Almeida (http://pralmeida.tripod.com)

Doctor in Social Sciences, Author of O estudo das

relações internacionais do Brasil (São Paulo: Unimarco, 1999)

[The Study of Brazil’s International Relations].

 

Lincoln Gordon:

Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World

(A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo)

Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 pp.

ISBN 0-8157-0032-6 US$28.95

(Brookings: 1775 Massachusetts Avenue, Washington, DC 20036

www.brookings.edu)

 

Mr. Gordon, an American known directly or indirectly by all Brazilians who have studied our route to military dictatorship, is a friendly [simpático] and attentive participant in all the discussion meetings about Brazil now taking place in the capital of the American empire. With more than 45 years of study dedicated to Brazil, he can be considered a realistic interpreter of Brazils economic and poltical journey of recent decades, and to judge by the book summarized here, a sincere analyst of social issues as old as the Republic.

Brazil’s Second Chance has been in the cooking oven for at least a decade and a half and, as Mr. Gordon himself acknowledges, the chances of the book being finished simply disappeared from the scene during the "lost decade" of failed macroeconomic policy during the 1980s and early 1990s. It was rescued by the "sovereign remedy" of the Real Plan, which renewed the nations hopes of dreaming about a renewal of growth and and the prospects for an eventual leap into the First World, in the view of the former American ambassador during the governments of João Goulart and Castello Branco. For those who hoped to find in the book new revelations about American involvement in the military coup of 1964, the impression is "déjà vu all over again," since the text, apart from an account of the events that led to the coup, provides as new documents only an exchange of telegrams, dated March 30 and 31 of that year, concerning Washingtons expectations and the attitude of the Embassy in Rio de Janeiro toward securing a minimum of political legitimacy for the Brazilian conspirators against Goulart; that permits Gordon to reaffirm his conviction that the coup was "100% Brazilian." 

The work, however, is not about this series of events or the political and military peripatetics of recent decades. It deals with the structural processes of Brazils development in the republican era, with emphasis on the economic and political aspects (including those connected with foreign policy) and also the social aspects which permeate the historical experience of Brazil since the era of the "first chance" —broadly speaking, the Kubitschek era —up until the present, and still open, window of the "second chance" of the FHC [Fernando Henrique Cardoso] administrations. The book presents an exhaustive discussion of the factors which prevented Brazil from achieving the status of a developed nation during that first phase and the requirements confronting its society and political leaders in order to succeed in the present phase. Mr. Gordons judgments do not make concessions to surface appearances; those persons deceive themselves who expect that his book might show softness toward the military groups that overthrew the populist Goulart and then thought that they could achieve for Brazil the status of "great power" though massive doses of heavy investment and a welcoming attitude toward foreign investment. Brazils military period was lacking in one of the ingredients which Mr. Gordon considers indispensable to the category of First World nations: political democracy.

The failure of the miliary period was political in nature and that of the New Republic, from Sarney to Collor, was economic, because the social populism of the 1988 Constitution and the chronic inflation experience until 1994 prevented Brazil from achieving its second chance for development. The results of the 2002 elections may determine, according to Mr. Gordon, whether Brazil will succeed in achieving what he calls "full first world status" or will return to an erratic "Stop-Go" performance. Mr. Gordons book present a rigorous econmic analysis and a sober-minded political diagnosis of the four great structural challenges facing Brazil in todays framework: to consolidate macroeconomic stability; to reduce the exceptionally high levels of social inequality and poverty; to continue the active process of international engagement and participation in globalization; and to carry through the reform of political institutions which do not meet the needs of integrated development in a country as complex and diversified as Brazil. 

Mr. Gordon has great respect for the intrinsic rationality of quantitative data —he was already Professor of International Economic Relations at Harvard in the 1930s, when half of Brazils present population had not yet been born —but he also does not believe that political formulas which succeed well in some social contexts (such as in the U.S.A.) can simply be transplanted to a different institutional setting. He is well acquainted with Brazil and the Brazilians and the various authors who over the years have piled up "explanations" of the reasons for our failure in not duplicating the very successful North American experiment in economic and technological development with relative social inclusiveness. A reader of Viana Moog, he is aware of the differences in cultural roots and for this very reason can recognize in Brazil and the Brazilians the capacity to find our own route toward ascending iinto the "first world." His book is truly balanced and thorough and, if read with the objectivity which distance from 1964 commends to us, can be an excellent source of reflection for all of us, from both the pre- and post-military coup generations, who are thinking about placing Brazil, if not in the "first" surely in a more developed and humane world, as desired by all Brazilians.

 

 Paulo Roberto de Almeida 

Washington, 788b: May 3, 2001 

 

Matéria sobre o lançamento do livro:

 

Política

Gordon lança livro sobre 'a segunda chance do Brasil'

Paulo Moreira Leite

Gazeta Mercantil, 07/06/2001

 

            Washington e Brasília, 7 de junho de 2001 - De vez em quando, as pessoas perdem noção de tempo e de lugar. Um nome familiar nada mais diz, uma lembrança nada representa, a memória desaparece. É provável que um lapso desse tipo tenha acontecido na embaixada brasileira, quando se decidiu abrir as portas do edifício de linhas modernas na avenida Massachusetts, em Washington, para que ali o embaixador Lincoln Gordon promovesse, ontem, a sessão de autógrafos do livro 'A segunda chance do Brasil'.

             Embaixador dos EUA durante o golpe de 64, Gordon foi inúmeras vezes ao local. Conversa à vontade com diplomatas brasileiros, vai a coquetéis, participa de seminários. Mas a idéia de fazer uma festinha com vinho e refrigerantes, pão de queijo e mandioca frita, reunir amigos e festejar num local que, afinal, é território brasileiro, revelou-se tão esquisita que mais tarde até se falou na hipótese de cancelar o evento - mas aí seria um outro tipo de desastre, tudo já fora encaminhado, os convites haviam sido distribuídos.

             A proposta de fazer o coquetel na embaixada teve um motivo razoável - um pedido do Brookings Institution, entidade prestigiadíssima, que lançou 'A Segunda Chance do Brasil.' O Brookings fez a lista de convidados, imprimiu e distribuiu os convites, instalou recepcionistas que montaram uma banca de vendas na embaixada. Corretamente preocupado em reforçar a presença do Brasil na cena cultural de Washington, o embaixador Rubens Barbosa considerou que não havia nada demais. Para o ministro-conselheiro Paulo Roberto de Almeida, diplomata de boas leituras e que, antes de ingressar no Itamaraty, viveu no exílio as agruras propiciadas pelos militares, passados quase 40 anos é hora de parar de brigar no passado. 'Não estamos falando de uma pessoa mas de um livro. Eu acho o livro bom e não vejo por que não poderíamos fazer o lançamento aqui.' A lista de agradecimentos do livro inclui o próprio Paulo Roberto e também o embaixador Rubens Barbosa. São mencionados outros nove ministros, dois ainda no governo, Pedro Malan e Francisco Weffort.

             Mas há uma diferença entre aparecer numa lista de agradecimento e abrir a casa para um convidado receber amigos, mesmo sob a marca Brookings. Em Brasília, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) mostrou-se desconcertado: 'Não entendo o que está acontecendo, vou conversar com o Rubens' disse, referindo-se ao embaixador. Como diz um diplomata baseado na capital federal 'é como chamar o Henry Kissinger para autografar suas memórias numa festa na embaixada do Chile.' A comparação faz sentido, ainda que exagerada. Kissinger foi um estrategista que deu orientações para a queda de Salvador Allende em 1973. Em 31 de março de 64, no Rio, Gordon cumpria ordens, com as quais estava de acordo. Mantendo-se em anonimato, como convém a personagens de um relato sobre lapsos de memória, um professor universitário de Washington, com longo convívio com as coisas brasileiras, conta que ficou surpreso ao descobrir o local do coquetel. 'Nunca vi coisa igual' disse. 'Será que a embaixada americana deixaria Fernando Gabeira autografar 'O Que é Isso Companheiro' em seu salão?'

             Integrante do grupo que sequestrou um sucessor de Gordon, o deputado Fernando Gabeira foi informado por este jornal sobre o coquetel. Disse que não via nada demais, lembrando que 'o embaixador fala do Brasil, sobre assuntos nos quais teve participação direta.' O deputado considera 'louvável' que a embaixada tome essa iniciativa, demonstrando um espírito tolerante que nem de longe lhe foi retribuído, já que até hoje continua proibido de ter um visto de entrada nos Estados Unidos.

             Um aspecto curioso do coquetel é que, graças a uma dessas terríveis artimanhas da democracia brasileira, Gordon foi assinar seu livro na embaixada daquele que pode ser considerado o primeiro governo brasileiro constituído por políticos que de fato foram golpeados em 64 - a Nova República terminou com José Sarney. Seu sucessor, o vendaval Fernando Collor, também teve origem no regime militar.

             Depois do 31 de março, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso convenceu-se de que vivia uma situação de risco e mudou-se para o exílio com a família. O ministro da Saúde, José Serra, entrou para a clandestinidade e só retornou escondido ao Brasil, usando um bigode postiço para despistar a polícia. O ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, que foi para o Chile, destacou-se por gestos de coragem para auxiliar perseguidos. Nos dias posteriores ao golpe, Rubens Barbosa ajudou dois deputados, Waldir Pires e Fernando Santana, a se refugiar na embaixada da Iugoslávia. 

            Era curioso procurar lembranças sobre 64 entre os presentes ao coquetel. 'Para mim, 64 foi apenas o passo inicial para o advento de ditaduras no continente', diz um executivo argentino. Um cientista político especializado em América Latina só ouviu falar do golpe de 64 quando estava no colégio. 'Falava-se muito de regimes militares no Continente', diz ele. Gordon ficou no Brasil até 1966. Em seguida, foi para Washington, como Secretario Assistente de Assuntos Interamericanos, onde ficou até 1967, ano em que retornou a vida acadêmica.

             Como se sabe, cada pessoa tem um jeito próprio de conviver com a própria memória. Todos têm direito a suas lembranças e aos próprios esquecimentos, sem os quais também seria impossível viver. A maioria dos presentes ao coquetel eram senhores já de cabelos brancos, acompanhados de suas mulheres. Seguravam cálices na mão, sorriam educadamente, aproveitavam a oportunidade para reencontrar velhos amigos. Ouviram Rubens Barbosa fazer um pequeno discurso, explicando que a embaixada atendera a um pedido do Brookings. Lincoln Gordon também teve direito a um pequeno pronunciamento, onde afirmou que o Brasil necessitava de reformas no sistema político. Um jovem diplomata, que sequer havia nascido em 1964, ouviu o comentário e achou engraçado Gordon falar sobre isso. 

(Gazeta Mercantil/Página A9) (Paulo Moreira Leite, Aldo Renato Soares e João Domingos) 

 

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Mr. Gordon e o Brazil


Paulo Roberto de Almeida

 [Introdução à edição brasileira: A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro MundoSão Paulo: Editora Senac, 2002] 

 

Em Mister Slang e o Brasil, obra publicada em 1927, Monteiro Lobato utilizou-se de um recurso conhecido dos escritores desde as Lettres persanes de Montesquieu (publicadas em Amsterdã em 1721): criar personagens independentes, necessariamente estrangeiras, para poder discutir com uma certa isenção (e certamente ao abrigo da censura do rei) idiossincrasias e problemas do seu próprio país. Lobato, de seu lado, inventou um filósofo de origem inglesa, Mr. John Irving Slang, morador do bairro carioca da Tijuca, para comentar com um “homem comum” – não exatamente o fazendeiro, o empresário e o homem de livros que era Lobato, mas um brasileiro médio – possíveis respostas às mazelas que afligiam o Brasil daqueles tempos (e provavelmente até hoje). A partir da visão do mundo do circunspecto, mas não menos iracundo, inglês – como correspondia, aliás, a uma época de hegemonia britânica no Brasil – era possível ao jovem escritor de Taubaté criticar alguns dos absurdos de nossa organização econômica, política, social e cultural e propor novas soluções aos velhos problemas que o angustiavam, sem comprometer-se com o eventual sucesso ou fracasso de suas próprias fórmulas.

Mr. Slang, talvez por filósofo, mais provavelmente por força da idade e um pouco por ser inglês, tinha uma fina percepção das deficiências do Brasil e suas críticas deviam ser vistas, na ótica de Lobato, como uma tentativa de superar os grandes problemas da nacionalidade, não como uma confirmação derrotista de nossos piores defeitos. O curioso era que os exemplos citados pelo inglês eram retirados da experiência bem sucedida do progresso industrial dos Estados Unidos, começando pelo protótipo do gênio capitalista que foi Henry Ford – como correspondia, aliás, a uma época de transição de hegemonias. Respondendo ao brasileiro que não compreendia como o Brasil podia ser pobre a despeito de um imenso território dotado de recursos e que sugeria que “talvez a gente não preste”, Mr. Slang respondia peremptoriamente: “Depois que Henry Ford demonstrou como se aproveitam até cegos e aleijados, ninguém tem o direito de alegar o que não presta. Tudo presta. (…) A questão está em proporcionar-se-lhes condições para prestar. (…) O brasileiro precisa de condições para prestar – e a condição número um é a fixidez da medida do valor, a moeda”. E qual o segredo de Henry Ford, segundo Mr. Slang? “Não há categorias de trabalho nas suas indústrias. Não há trabalho mais nobre ou menos nobre. Há trabalho apenas. Varrer ou desenhar plantas: tudo é trabalho. (…) O trabalho, só ele, resolve todos os problemas da vida”, concluía o inglês. [1]

Mr. Gordon, um americano conhecido direta ou indiretamente de todos os brasileiros que estudaram a trajetória do Brasil para a ditadura militar, não é propriamente candidato a novo Mr. Slang, não apenas porque não se trata de personagem imaginária, mas sobretudo porque ele não se refugia em algum sítio inacessível, nem ostenta a arrogância típica dos representantes imperiais da velha Albion. Ao contrário, desde que ele deixou o cargo de embaixador dos Estados Unidos no Brasil (entre 1961 e 1966), Mr. Gordon continuou a interessar-se e a estudar seriamente os problemas do Brasil, como fazia aliás o inglês da Tijuca. Tendo tornado-me morador em Washington desde outubro de 1999 e freqüentador por obrigação profissional de todos os encontros sobre o Brasil ali realizados, logo descobri quem era aquele simpático e atento espectador das coisas brasileiras na capital do novo Império: ele mesmo, o “embaixador do golpe”, Mr. Gordon. 

Um contato inicial permitiu-me conhecer um Mr. Slang em carne e osso, assim como a chance de apreciar este livro ainda antes que ele aparecesse na edição original americana, tendo seu autor dado-me a possibilidade de comentá-lo em primeiríssima mão. Constatei, aliviado, que a obra não possuía nenhum daqueles julgamentos furibundos, por vezes impressionistas, com que Mr. Slang rebatia as sugestões algo ingênuas de seu interlocutor brasileiro. Não há dúvida, contudo, que, sem ostentar os traços idealistas do filósofo inglês, Mr. Gordon pode ser considerado como um intérprete realista do itinerário econômico e político brasileiro das últimas décadas, bem como, a julgar por este livro que agora sai publicado em versão ampliada, como um crítico sincero das velhas questões econômicas e sociais que, já anos vinte, retinham a atenção do inglês imaginário e de Lobato. 

Segunda Chance do Brasil, não com esse título, estava em preparação há pelo menos uma década e meia antes de nosso primeiro encontro em Washington no final de 1999 e, como confessou-me o próprio Mr. Gordon, as chances do livro ser concluído tinham simplesmente desaparecido do cenário durante a “década perdida” de desarticulação macroeconômica dos anos oitenta e começo dos noventa. Ele ficou no forno por muitos anos, submetido a diversas revisões estatísticas e novas análises de atualização substantiva, mas o fato é que a trajetória do Brasil não ajudava na tarefa de “definição de uma época”: o País simplesmente não conseguia encontrar um caminho de estabilização macroeconômica que justificasse a publicação da obra como uma espécie de balanço de uma trajetória de desenvolvimento, como era intenção do autor. Assim como Lobato recomendava o “biotônico Fontoura” para curar alguns dos males endêmicos do Brasil, esta obra foi salva pelo “rum creosotado” do Plano Real, que devolveu ao País a esperança de sonhar com a retomada do crescimento e de aspirar ao eventual salto para o Primeiro Mundo, na interpretação do antigo embaixador americano nos governos João Goulart e Castelo Branco. 

Uma advertência inicial quanto ao conteúdo da obra. Não se queira encontrar aqui um relato circunstanciado dos eventos que levaram ao movimento militar de 1964 ou revelações “revisionistas” sobre o envolvimento americano no golpe, a despeito de o livro ostentar, sim, material inédito ou pouco conhecido sobre os movimentados meses que antecederam o episódio de 31 de março daquele ano. Dentre os documentos novos, referidos apenas parcialmente em trabalhos anteriores, foram incluídos nesta edição brasileira a versão integral – finalmente levantada depois de quatro décadas de caráter “classificado” – de alguns telegramas expedidos pelo próprio Lincoln Gordon, então à frente da Embaixada no Rio de Janeiro, respondendo às demandas de Washington quanto aos processos em curso, ou ainda em relação atores envolvidos, naquela conjuntura dramática da história nacional.[2]

Melhor ainda, esta edição comporta, por recomendação minha, um capítulo adicional inteiro sobre esses tormentosos momentos finais da República de 1946, todo ele dedicado à visão que os Estados Unidos mantiveram sobre João Goulart nesse período, desde as expectativas iniciais de um relacionamento correto até a quase certeza de que o líder trabalhista estava articulando um golpe sindicalista à la Perón (e, o que era pior, com o apoio e a provável hegemonia dos comunistas). A recapitulação desses episódios, nos quais transparece a preocupação em garantir legitimidade política aos conspiradores brasileiros contra Goulart, permite em todo caso a Mr. Gordon reafirmar sua convicção de que o golpe foi “100% brasileiro”, o que certamente será visto com desconfiança pelos historiadores de esquerda. [3]

Antes de arregalar o olho cético de indignação anti-imperialista, o leitor deste livro deve certificar-se, contudo, que esta obra não se ocupa primordialmente, dessa conjuntura de conspirações militares – melhor abordadas nas obras já bem conhecidas de John W. F. Dulles ou de Thomas Skidmore – nem, essencialmente, das peripécias políticas das últimas décadas. Ela trata, basicamente, de um processo estrutural, o desenvolvimento brasileiro na era republicana, com ênfase nos aspectos econômicos, tecnológicos e políticos (inclusive no que se refere à política externa) e nas dimensões sociais que permearam a experiência histórica do Brasil desde a época da “primeira chance” – grosso modo a era Kubitschek – até a atual, e ainda aberta, janela da “segunda chance” das administrações FHC.

O livro é, com efeito, uma discussão exaustiva – e razoavelmente isenta para um representante da principal potência imperial de nossa época – das razões que impediram o Brasil de atingir o status de nação desenvolvida naquela primeira fase e dos requerimentos colocados à sua sociedade e elites políticas para que ele possa fazê-lo na atual. O julgamento do novo Mr. Slang não faz concessões às aparências: enganam-se aqueles que julgam que seu livro poderia mostrar complacência com os militares que derrubaram o populista Goulart e que pretendiam, justamente, alçar o Brasil à condição de “grande potência”, mediante doses maciças de investimento pesado e de boa receptividade ao capital estrangeiro. Faltou ao Brasil militar um dos ingredientes que Mr. Gordon julga indispensáveis ao status de nação do Primeiro Mundo: a democracia política.

O fracasso da era militar foi de natureza política e o da Nova República, de Sarney a Collor, foi de caráter econômico, pois que o populismo social da Constituição de 1988 e o quadro de inflação crônica vivido até 1994 impediram o Brasil de realizar sua segunda chance de desenvolvimento. Os resultados das eleições de 2002 podem determinar, segundo Mr. Gordon, se o Brasil conseguirá alcançar o que ele chama de “uma autêntica inserção no Primeiro Mundo” (full first world status), ou se o País continuará patinando naquela trajetória errática que Darcy Ribeiro interpretava como sendo um desenvolvimento aos “trancos e barrancos”, com tremendas doses de desperdício humano e muita frustração social e política. O livro de Mr. Gordon, diferentemente das interpretações algo impressionistas de Darcy Ribeiro, apresenta uma rigorosa análise econômica e um sensato diagnóstico político sobre os quatro grandes desafios estruturais enfrentados pelo Brasil na presente conjuntura: consolidar a estabilidade macroeconômica, reduzir o grau anormalmente elevado de desigualdade social e de pobreza, continuar o ativo processo de inserção internacional e de engajamento na globalização e persistir na reforma das instituições políticas, pouco funcionais para os requisitos do desenvolvimento integrado de um país tão complexo e diversificado como o Brasil.

Não há porque pensar que Mr. Gordon está interessado em aplicar “receitas americanas” ao caso brasileiro. Longe disso, ainda que um certo comparatismo com os Estados Unidos, mesmo deplacé, seja de rigueur. Assim, segundo ele, nós estaríamos, por exemplo, na situação dos EUA dos anos 20, o que não leva em conta os diferenciais estruturais de produtividade que derivam, segundo este apresentador, do fato de ter o capitalismo americano conseguido modelar, ainda na primeira Revolução industrial, um “modo inventivo de produção”, caracterizado pela capacitação endógena em novas tecnologias, ao passo que nós sempre esperamos por “alvarás d’El Rey” para iniciar qualquer novo empreendimento econômico, somos consciente ou inconscientemente defensivos na questão da inserção internacional, não conseguimos criar uma cultura exportadora e ainda insistimos em preservar uma mentalidade tecnológica que rejeita, de certa forma, um sistema patentário intensivo. As comparações efetuadas neste livro – sobretudo as do capítulo 4, sobre a transformação incompleta das estruturas econômicas – se efetuam mais bem com países emergentes ou de industrialização tardia de potencial igual ou similar, como a Índia, o México, a Coréia do Sul, ou ainda a Espanha e a Itália, economias cuja atividade manufatureira ostenta intensidade em capital relativamente equivalente à da brasileira.

Mr. Gordon tem um grande respeito pela racionalidade intrínseca dos dados numéricos – ele já era professor-assistente de relações econômicas internacionais em Harvard ainda antes da Segunda Guerra Mundial, quando metade da atual população brasileira ainda não tinha nascido – e tampouco acredita que fórmulas políticas bem sucedidas num determinado contexto social (como o dos EUA) sejam transplantáveis a um outro cenário institucional. Ele conhece bem o Brasil, os brasileiros e os diferentes autores que ao longo dos anos foram acumulando “explicações” sobre as razões de nosso fracasso ou da não repetição do bem sucedido experimento americano de desenvolvimento econômico e tecnológico e de relativa inclusão social. Leitor de Viana Moog, [4] ele conhece a diversidade de raízes culturais e pode, por isso mesmo, reconhecer no Brasil e nos brasileiros a capacidade de realizar nossa própria modalidade de ascensão ao “primeiro mundo”. Seu livro é verdadeiramente equilibrado e completo e, se lido com a isenção que a distância de 1964 nos recomenda, pode ser uma excelente fonte de reflexões para todos nós, de gerações pré- e pós-golpe militar, que pensamos em colocar o Brasil, não no “primeiro”, mas num mundo mais desenvolvido e humano como gostariam todos os brasileiros.

Apenas um reparo, do ponto de vista de quem se ocupa acadêmica e profissionalmente, como este apresentador, das relações internacionais do Brasil desde algumas décadas. Para quem freqüentou os meios universitários e diplomáticos e conhece bem nossos agentes do serviço exterior e a própria agenda internacional, Mr. Gordon mostra-se bastante cético quanto às chances de o Brasil aceder ao status de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (vide cap. 1: “Não é provável, contudo, que o Brasil preencha sua ambição de ocupar um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.”). Se admitirmos que a reforma da Carta da ONU possa ser realizada no futuro previsível e que um novo membro possa ser designado a partir da América Latina, é o caso de perguntarmos a Mr. Gordon: se não o Brasil, quem na América Latina disporia de chances comparáveis?

O ceticismo é contraditório com a postura de quem acredita que o Brasil pode chegar, efetivamente, ao status de potência mundial. Admitida uma hipótese, fica difícil recusar a outra, a da nossa admissão nesse círculo restrito do poder mundial, de fato um “diretório oligárquico” que já chegamos a censurar – por acaso desde as conferências da paz realizadas na Haia e antes mesmo do surgimento da ONU, no caso da Liga das Nações – como anti-democrático e pouco condizente com a igualdade soberana das nações. A menos, obviamente, que a nova Roma já tenha decretado, secretamente, que não haverá reforma da ONU, o que aliás, a despeito de uma retórica aparentemente favorável ao ingresso da Alemanha e do Japão, parece coincidir com os interesses de todos, ou quase todos, os demais membros permanentes do Conselho. Trata-se, mais uma vez, de uma realidade que um antigo embaixador brasileiro em Washington, Araújo Castro – e que Mr. Gordon deve ter conhecido –, caracterizou como sendo o “congelamento do poder mundial”, algo inaceitável para velhas e novas gerações de diplomatas brasileiros. Mas, isso Mr. Gordon deve saber muito bem. A questão não parece residir tanto na “incapacidade” de o Brasil aceder ao CSNU, mas na aparente impossibilidade da reforma da Carta. Pessoalmente acredito que, se houver reforma e ampliação do Conselho, o Brasil é um candidato “natural”, ou mesmo incontornável.

Finalmente, uma nota pessoal vem a calhar nesta introdução a uma obra que, a despeito de sua concentração em temas estruturais de longa duração – como os processos econômicos, sociais e políticos que moldaram o Brasil contemporâneo –, pode vir a contribuir para o início de uma reavaliação isenta, e não mais passional ou partidarizada, do regime militar e seu papel no sistema econômico e político brasileiro contemporâneo. Quando o Embaixador Lincoln Gordon, e a própria Editora Senac, formularam, quase ao mesmo tempo, o convite para que eu escrevesse a introdução-apresentação à edição brasileira desta obra, pensei comigo mesmo: mas, justo eu, que em 1964 me encontrava do outro lado do muro? Com efeito, minha educação política se fez à sombra das chamadas “lutas democráticas” da república populista e na oposição ao golpe militar e pertenço a uma geração que se acostumou a gritar, desde as primeiras manifestações contra o novo regime, a conhecida frase de Otto Lara Resende: “Chega de intermediários, Lincoln Gordon para presidente!”. Pouco tempo depois, o tamanho dos cassetetes começou a aumentar, a repressão se fez mais dura e muitos de nós, com participação direta ou indireta na resistência armada (e, cabe aqui reconhecer, de certa forma responsáveis pelo endurecimento subsequente do regime), começamos a buscar o caminho do exílio.

Desde então o Brasil tem vivido politicamente dividido, se não mais do ponto de vista do funcionamento do seu sistema político – hoje amadurecido e que, finalmente, comporta poucos representantes que ainda “vivem” nos idos de 1964, como um Brizola, por exemplo – pelo menos do ponto de vista da produção historiográfica. Esta ainda exibe uma “muralha” ideológica e um maniqueismo político que continuam visíveis, sobretudo, nos livros didáticos. Uma obra como esta, trazendo o ponto de vista de um novo e sensato Mister Slang sobre um país tão diferente e no entanto ainda tão similar, em vários aspectos, àquele analisado no início do século XX por homens como Lobato, pode contribuir para diminuir o “fosso mental” entre opositores e partidários de um regime que já pertence à história do Brasil, tanto quanto o período varguista ou o processo de seu alegado “desmantelamento” a partir dos anos 90.

O Brasil atual, sobre o qual se debruçou um estudioso constante e aplicado como Mr. Gordon, tornou-se muito diferente do Brazil que figurava em seus telegramas e ofícios aos Departamento de Estado do início dos anos 60. Aparentemente nos libertamos do complexo de inferioridade que fazia com que nossas elites olhassem para o estrangeiro, mais precisamente para a sede do único império que então contava (e ainda conta) em termos econômicos e financeiros, para a solução da maior parte dos nossos problemas. Muita coisa mudou, certamente, e para melhor, nestes últimos quarenta anos, muito embora a mesma fragilidade financeira externa e a mesma miséria educacional do ponto de vista das massas populares continuem sendo fatores que nos assombram enquanto economia ou como sociedade carente de verdadeira integração. Pelo menos não nos voltamos mais, como nos tempos em que Mr. Gordon era embaixador, para o estrangeiro em busca de novas soluções a velhos problemas que já deixavam indignado o jovem Lobato: sabemos que as respostas se encontram aqui mesmo, ao alcance de um entendimento político genuinamente nacional. Por vezes, carecemos de suficiente distância – neste caso ideológica, não temporal – para ver com clareza quais são os verdadeiros problemas de que padece a sociedade brasileira e como poderíamos enfrentá-los na missão de diminuir os níveis anormalmente elevados de iniquidade social que ainda caracterizam nosso País. Dentre esses problemas, o de uma suposta dominação estrangeira sobre nossa economia é provavelmente o de menor importância relativa, sobressaindo-se, ao contrário, os de origem propriamente interna, como os da baixa capacitação educacional da população e dos níveis inaceitavelmente baixos de geração e adaptação endógenas de tecnologia. Um livro como este de Mr. Gordon, um autor estrangeiro sinceramente amigo do Brasil, nos ajuda a ver mais claro nesse esforço analítico, aliás não desprovido e de fato impulsado por um legítimo interesse nacional americano (o de ver a economia brasileira ainda mais vinculada e interconectada à dos EUA, objetivo que, tomado num sentido não excludente ou naturalmente interdependente, em nada se choca com o interesse nacional brasileiro). O leitor brasileiro está convidado verificar por sua própria conta esta afirmação. Que tenha bom proveito!

 

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 22 de abril de 2002

Doutor em ciências sociais. Autor do livro

Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (Senac, 2001)

 

 

[Apresentação à edição brasileira de

Lincoln Gordon:

Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World

Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 p. 

ISBN 0-8157-0032-6

A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo

São Paulo: Editora Senac, 2002

Relação de Trabalhos nº 894, rev 1: 22.04.02; Relação de Publicados nº ].

 

 



[1] Cf. José Bento Monteiro Lobato, Mister Slang e o Brasil: colloquios com o inglez da Tijuca (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927), pp. 27-28 e 69-72, citado por Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia (3ª ed.; São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001), pp. 205-210. A personagem de Mr. Slang seria retomada em seu livro de 1932, América, no qual relata um pouco de sua experiência como adido comercial junto ao Consulado brasileiro em Nova York, no final dos anos 20; op. cit., pp. 249-252.

[2] Já por sugestão minha, a edição original americana tinha acolhido um addendum ao capítulo 2, voltado para a questão do papel dos Estados Unidos no golpe de 1964, com a inclusão de telegramas pertinentes.

[3] O ceticismo é plenamente justificável, uma vez que todos sabemos que a defesa feita pelos EUA da democracia e dos direitos humanos no Terceiro Mundo, mesmo quando não simplesmente retórica, sempre foi condicionada, aliás desde a Guerra Fria até os dias de hoje, aos critérios primordiais da segurança nacional americana e dos interesses exclusivos dos EUA.

[4] Para os leitores mais jovens, esclareça-se que Clodomiro Viana Moog foi o autor de um famoso ensaio comparativo de inspiração weberiana, Bandeirantes e Pioneiros: paralelo entre duas culturas (Porto Alegre: Livraria O Globo, 1954), no qual ele traçava um paralelo entre o desenvolvimento dos Estados Unidos e do Brasil em seus processos respectivos de formação nacional. A obra foi traduzida e publicada nos EUA, tendo gozado de grande prestígio entre os meios acadêmicos e oficiais justamente quando Mr. Gordon se desempenhava nas lides brasileiras do Departamento de Estado: Bandeirantes and Pioneers (tradução de L. L. Barret; New York: G. Braziller, 1964). Mr. Gordon, entretanto, leu Vianna Moog já em 1960, ainda no original, portanto, ao preparar-se para assumir seu posto diplomático no Brasil, juntamente com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek e a obra seminal de Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil (1958), que só seria traduzida em inglês em 1963.


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Elogio a um Andarilho do Século XX

Homenagem ao Embaixador Lincoln Gordon em seu 90º aniversário

 

Paulo Roberto de Almeida

(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

 


Nonagenários estão se tornando mais comuns em nossos dias, bem mais, é verdade, entre as mulheres do que entre os homens. Não é todavia ainda muito frequente a comemoração dos 90 anos de alguém em plena saúde física e vigor mental, sendo por isso motivo de grande satisfação participar de um evento como este, o nonagésimo aniversário do Embaixador Lincoln Gordon. Tenho não apenas o imenso prazer de estar presente neste aniversário, como sinto-me no direito de esperar que ele também possa estar presente em minha festa de 90 anos, daqui a exatamente 37 anos.

Nonagenários, eu dizia, são mais frequentes atualmente, mas eles não o eram no século que atravessou, e ao qual sobreviveu, o professor e diplomata Lincoln Gordon. O “breve século XX” – no dizer de Eric Hobsbawm, pois começou apenas em 1914 e já tinha terminado em 1989 – foi também, para todos os efeitos humanos, um dos mais mortíferos e destruidores de toda a história da civilização humana sobre este planeta. Algumas dezenas de milhões de indivíduos – e também espécies animais, não esqueçamos, assim como cidades inteiras – foram eliminados da face da terra pelas máquinas mortíferas criadas pelo homem: canhões, armas químicas e nucleares, ou então simples machetes foram usados para eliminar “excedentes demográficos”, substituindo-se às igualmente devastadoras epidemias naturais, hoje menos comuns do que nos séculos precedentes.

O embaixador Lincoln Gordon, um andarilho de quase todo o século XX, foi portanto um sobrevivente, algo mais fácil de ser, sendo americano, do que se tivesse nascido em alguma outra região, não apenas nos continentes do hemisfério meridional, mas igualmente do outro lado do Atlântico. Apenas para ficar nas hecatombes e processos destruidores mais “eficientes” deste breve século XX, vamos listar de maneira algo impressionista os eventos e catástrofes a que sobreviveu o nosso personagem. 

Tendo se atrasado por um ano para o naufrágio do Titanic (1912), o evento que simbolizou durante tanto tempo – de certa forma até hoje – a impotência humana em face de certos fenômenos naturais, o Embaixador Lincoln Gordon conseguiu também escapar incólume de muitos desastres provocados pela mão do homem (ou sobreviveu, no sentido positivo, a outros tantos eventos políticos e sociais). Minha lista pessoal comportaria os seguintes fatos e processos a que sobreviveu ou dos quais escapou Lincoln Gordon:

 

1)    à Primeira Guerra Mundial;

2)    aos dez dias que abalaram o mundo e ao nascimento do sistema soviético;

3)    à gripe espanhola e à NEP leninista;

4)    ao tratado de Versalhes e suas consequências econômicas;

5)    a proibição do álcool nos Estados Unidos;

6)    às consequências econômicas dos senhores Churchill, Coolidge e Hoover;

7)    à crise de 1929 e à estupidez protecionista da Tarifa Hawley-Smoth;

8)    a estudos em Harvard, em Oxford e a uma Europa em processo de nazificação;

9)    ao fim do padrão-ouro e à teoria geral da intervenção dos governos na economia;

10) ao filme “Gone with the Wind” e a J. Edgar Hoover;

11) a Pearl Harbor, a uma grande guerra quente e à toda a Guerra Fria;

12) ao nascimento, crise e fim posterior do sistema de Bretton-Woods;

13) ao macartismo de MacCarthy e ao existencialismo de Jean-Paul Sartre;

14) aos coquetéis da vida diplomática e à Aliança para o Progresso;

15) à crise dos foguetes em Cuba e aos longos discursos de Fidel;

16) aos discursos do Brizola, à inflação brasileira e à morte de John Kennedy; 

17) à Revolução Cultural Chinesa e ao debate estruturalismo versus monetarismo;

18) a Woodstock, a Richard Milhous Nixon e a vários aumentos e quedas do dólar;

19) aos ecologistas anti-econômicos e aos politicamente corretos de modo geral;

20) ao sistema DOS e depois ao Windows, inventados por Bill Gates;

21) à queda do muro do Berlim e ao desaparecimento do sistema soviético; 

22) ao fim das ideologias, à morte das religiões e ao fim da História;

23) a dois choques do petróleo, a dois ou três blackouts e a muitas crises financeiras; 

24) a novos e repetidos discursos do Brizola e à transformação do PT em partido socialdemocrata e,

25) finalmente, como que provando que a evolução intelectual não segue uma linha reta nem é irreversível, ele tem sobrevivido, mais ou menos bem, ao imenso arsenal de globobagens dos atuais anti-globalizadores, ludditas de uma nova era e arautos de uma volta a tempos que nunca existiram.

 

Por tudo isso, e ainda por muitos eventos mais, que falhamos em registrar aqui, podemos ver no embaixador Lincoln Gordon um sobrevivente do século 20, mas também um jovem andarilho do século 21, como todos nós aliás. Comparando sua vida com a de muitos outros seres humanos, dentre os mais de 3 bilhões de habitantes deste planeta, ele pode se considerar como um verdadeiro felizardo, pois que finalmente produziu um rico legado de realizações intelectuais e práticas que enriqueceu esta mesma humanidade.

Mas para enriquecer ainda um pouco mais a parte de felicidade de seus muitos amigos e admiradores, ele precisaria avançar e terminar, o quanto antes, o seu projeto de depoimento pessoal para a história. Nele teremos um quadro das ideias, dos principais eventos e das realizações concretas que formulou, a que assistiu, ou de que participou, ao longo de uma longa vida rica de experiências marcantes nos campos político, econômico, diplomático e intelectual.

Portanto, ele não está autorizado a se aposentar antes de terminar a redação de suas memórias do século passado, bem como suas reflexões para este nosso século, como testemunha e pensador que foi, e ainda é, de um mundo em transformação.

Longa vida ao embaixador Lincoln Gordon!

 

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 7 de setembro de 2003