Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Resenha do livro: Sergio Abreu e Lima Florêncio, Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Appris, 2022; ISBN: 978-65-250-2114-0)
Diplomatas costumam ser funcionários discretos, afáveis, mas reservados; são muito cordiais, mas algo distantes; também são bem-informados, mas geralmente calados; quando escrevem memórias, elas são invariavelmente politicamente corretas, contando largos trechos do itinerário pessoal, mas evitando de ofender quaisquer parceiros diplomáticos, amigos ou “inimigos” do Brasil. Não é o caso deste livro de memórias pessoais e diplomáticas, de um grande e velho amigo de décadas na carreira e que teve uma das trajetórias mais fascinantes, tanto no plano pessoal e familiar, quanto no campo da diplomacia.
O embaixador Sergio Florência compôs um relato inédito nos anais da diplomacia brasileira, talvez até mundial, o que transparece, aliás, no subtítulo da obra, “de Vila Isabel a Teerã”, antes e depois da revolução dos aiatolás. O título já chama a atenção, não só pelos termos, mas sobretudo pela proporção, inversa, de seus componentes: as “memórias” começam por sete capítulos dedicados à “revolução”, mais exatamente pelo “filho da revolução”, o do próprio Sérgio e de Sonia, nascido na capital iraniana na turbulência dos anos em que ele se desempenhou como “encarregado de negócios” na embaixada do Brasil, depois que o embaixador, muito ligado à família do xá, foi retirado pelo Itamaraty.
A “diplomacia” aparece na segunda parte, dez densos capítulos, menos dedicados a temas de política internacional e bem mais a “personagens” da convivência profissional do autor, inclusive este que aqui escreve, homenageado duplamente, numa recepção em sua casa, quando de minha tardia promoção, e no segundo capítulo deste bloco, onde sou tratado como “o embaixador ombudsman”. Finalmente, a terceira parte, a mais emotiva e sensível, trata dos afetos, aparentemente apenas 26 deles, mas muito mais do que isso, como transparece em cada uma das linhas dedicadas a filhos, netos, à sua mulher, familiares, conhecidos, interações inesperadas, até animais. Finalmente, dois apêndices voltam a tratar da revolução iraniana e um final relata o refúgio na embaixada do Brasil em Quito, onde Sérgio era embaixador, do presidente do Equador, escapando de um golpe de Estado.
Quando digo que este livro de “memórias” não se parece em nada com outras memórias diplomáticas, fica transparente logo no primeiro capítulo da terceira parte, a dos afetos, quando Sérgio discorre de forma amorosa sobre o seu “meio século de flor amorosa” ao lado de Sonia, primeiro cercando aquela moça “muito linda, sabida e irreverente”, depois inventando uma desculpa qualquer para visitar a jovem revisora do Jornal do Brasil, para culminar no pedido de casamento, em 1971, e o que veio depois, como ele mesmo descreve numa mensagem ao filho, em 2021, sobre a lua de mel improvisada:
Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, oito netos, 27 mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica, um golpe de estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar. (p. 80)
A crônica seguinte, “A menina do Sacré-Coeur e o sertanejo do Seridó” vai no memo tom, relatando a miscigenação cultural entre uma estudante que falava francês e o migrante do sertão para a aventura no Rio de Janeiro dos anos 1930, que se encontraram alguns anos depois nos corredores do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores do Estado Novo:
Nesse ministério..., a Menina do Sacré-Coeur, que falava francês e tocava piano, apaixonou-se pelo Sertanejo do Seridó, que gostava de trovadores, repentistas e de baião. Em certo sentido era a elite que se encontrava com o povo. (p. 83)
Mas não só a parte dos “afetos” tem esse tipo de tratamento coloquial, uma narrativa sobretudo intimista, um Proust de Vila Isabel, onde o casal se instalou, mas as duas outras partes também tratam de assuntos “sérios” num linguajar coloquial, quase um Balzac do subúrbio do Rio. Impagável é o relato da “avó monarquista”, a atalhar os netos que pretendiam que a República era mais democrática: “E a Inglaterra? Você quer dizer que o Brasil, essa republicazinha, é mais é mais democrática que a Inglaterra? Ora bolas, vocês são uns bobos.” (p. 96). Impressionante também é o relato, bem mais dramático, sobre a retirada da família de Teerã durante a revolução e a guerra contra o Iraque, quando Sérgio contrariou as instruções de Brasilia e fez pessoalmente a viagem de carro até a fronteira da União Soviética, quanto o Itamaraty queria que os familiares saíssem pela Turquia, o que revela o espírito decidido do então jovem diplomata encarregado de negócios:
Considerava uma irresponsabilidade colocar os brasileiros diante de graves riscos apenas para cumprir uma ordem que desconhecia a realidade. Tive um bate-boca com um diplomata que minha memória seletiva apagou do mapa. Só me lembro esbravejando um grito de independência: ‘Vocês têm poder para fazer o que quiserem. Mas fiquem sabendo de uma coisa: minha mulher e nossos três filhos não vão pela Turquia de jeito nenhum. Vão pela União Soviética. Nem com ordem do Presidente da República.” O bate-boca chegou aos ouvidos do então Chefe da Divisão de Comunicações, que depois vim a descobrir ser uma pessoa encantadora – Claudio Sotero Caio – e foi aprovada a rota via União Soviética. (p. 35)
O resto desse relato é eletrizante, como se fosse um roteiro de filme de Hollywood, com lances sempre inesperados, inclusive trafegar a toda velocidade, com faróis apagados, numa Teerã em pleno toque de recolher. Mas não só os capítulos “revolucionários” são absolutamente fascinantes, todo o livro transparece a maneira otimista, e divertida, de relatar casos os mais bizarros e inusitados num estilo próprios dos grandes mestres da escrita, como aliás confirma o prefaciador, sob a pena do embaixador Rubens Ricupero:
Se o livro de Sergio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schumann, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann. (p. 11)
Tenho especial satisfação de fazer esta resenha, não pela generosa dedicatória que Sérgio me fez, ao entregar-me o livro na Biblioteca do Itamaraty – na qual ele reconhece meu “trabalho competente e corajoso de denunciar os graves equívocos (e acertos) de nossa política externa” – mas também por dedicar um capítulo inteiro a este diplomata contrarianista, chamado de “embaixador ombudsman”, como já referido. Já seu primeiro parágrafo me soa inteiramente elogioso, mas também correto no plano institucional:
Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função.
O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. (p. 54)
Sou imensamente grato ao Sérgio Florêncio por ter reconhecido minhas tribulações profissionais, já pela segunda vez, durante a “tragédia” que foi a gestão do ex-chanceler acidental, como eu sempre me referi ao autor dos delírios diplomáticos durante a primeira metade do governo negacionista e antiglobalista:
Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do presidente e do Chanceler. (p. 55; texto de 30 de janeiro de 2021, pouco antes da queda do desequilibrado gestor)
Mas ele também presta homenagem a um dos seus mais agradáveis chefes de posto, o romancista e acadêmico Josué Montello, que foi o titular da delegação do Brasil junto à Unesco, em Paris, quando Sérgio ali serviu com esse “Grande Contador de Histórias”, como se chama esse capítulo, no qual descreve o “método” de um escritor compulsivo que, acometido por insônia, encontrou a técnica para “enganar” a necessidade de dormir, com isso conseguindo produzir mais de cem livros:
Todas as madrugadas, por volta das três da manhã, ele despertava, sentava em frente a uma folha de papel em branco e não resistia. Era preciso preencher aquela ‘tabula rasa’ que nada continha. Mas que despertava irresistível encanto em meu Grande Contador de Histórias. (...)
Compreendi então sua máxima a respeito da irresistível atração que uma folha de papel em branco exerce sobre todo homem. Seria essa atração um movimento, uma inclinação de toda a humanidade? Seria o mero resultado de um metabolismo individual que passou a ser respeitado? Fica a pergunta no ar. (...)
Mas a atração da folha virgem alimentava uma criatividade exponencial, gerava frutos de uma mente que não parava de produzir histórias, de contar um conto sempre acrescentando um ponto. Tão grande era sua pulsão criativa, que nas manhãs de trabalho, como Embaixador do Brasil na Unesco, precisava contar a seu colaborador a arte de ocupar o espaço de uma folha de papel em branco. (p. 72)
Creio que eu e Sérgio padecemos do mesmo “mal”: não podemos ver uma folha de papel em branco, no meu caso prolongando a noite durante várias horas, madrugada adentro, nos velhos tempos preenchendo cadernos e mais cadernos de notas, de uns tempos para cá, contemplando uma desafiadora tela em branco no processador de textos. Assim concluo, pois, às 3hs da madrugada, a leitura deste fascinante livro de Sérgio Florêncio. Recomendo a todos que façam o mesmo, nos horários que julgarem mais convenientes. Comecem pelos afetos, depois enfrentem o roteiro da revolução e terminem pela diplomacia. Mas, em qualquer ordem, as crônicas desta autobiografia emotiva são absolutamente encantadoras.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4135: 26 abril 2022, 4 p.
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Permito-me incluir aqui, nesta postagem, o capítulo do livro que ele dedica a mim:
2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN
In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 54-55)
Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função.
O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida.
Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta.
Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios.
Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas.
Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma.
Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico.
Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heroicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça.
Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu princípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo.
Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricúpero e do próprio nos Cadernos de Política Exterior da Funag.
Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.
Brasília, 30 de janeiro de 2021.
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