Avanços do iliberalismo no mundo: notas rápidas
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Respostas a questões sobre temas do Fórum das Liberdades (Porto Alegre, 2022): ascensão dos novos autoritarismos no mundo.
1) Como observa a ascensão de expressões autoritárias em governos de diferentes regiões, mas sobretudo na América Latina? Do que elas diferem e se aproximam de mandatários notadamente opressores que observamos emergir ao longo do século XX?
PRA: O século XX, sobretudo na sua primeira metade, e especialmente na Europa e na América Latina, foi, no dizer de vários historiadores, o século dos extremismos ideológicos, dos totalitarismos expansionistas, tanto à esquerda – o bolchevismo, o comunismo, a III Internacional, o socialismo do planejamento centralizado nos anos do pós-Segunda Guerra –, quanto à direita, sob a forma dos fascismos dos anos entre guerras, os nacionalismos autoritários, que aliás precipitaram a segunda parte de uma nova Guerra de Trinta Anos, como designou Winston Churchill essa fase de guerras contínuas entre 1914 e 1945, com guerras civis e invasões imperialistas no entre guerras.
Depois do término de várias ditaduras de direita – geralmente militares – em países do Terceiro Mundo (na América Latina especialmente) e até mesmo na Europa (países ibéricos, Grécia, Turquia e alguns impulsos em outros países (como o renascimento do fascismo na Itália e na Alemanha). Ocorreu então uma espécie de “onda democratizante”, saudada por acadêmicos e líderes políticos. Mas, os impulsos autoritários, tanto à esquerda quanto à direita, novamente, permaneceram, embora não mais na forma dos antigos golpes de Estado por militares do Terceiro Mundo, e sim sob as novas formas de autoritarismo, geralmente associado ao populismo, tanto à esquerda quanto à direita.
Diferentes observadores – revistas como a Economist, entidades como a Freedom House, think tanks e ONGS voltados para esse tipo de estudo – já publicaram estudos qualitativos e quantitativos sobre os avanços do que foi chamado de iliberalismo (até admitido por um desses autocratas, o primeiro-ministro Viktor Orban, da Hungria, que designa seu regime como uma “democracia iliberal). De fato, esses relatórios identificam uma redução dos governos plenamente democráticos ao redor do mundo, ou seja, a onda de retorno (no caso da AL, da Grécia), ou de ruptura com antigos regimes autoritários (caso do salazarismo e do franquismo na península ibérica), no curso dos anos 1980 e, depois, nos anos 1990, com a implosão do socialismo de tipo soviético na Europa central e oriental.
Em que os iliberalismos ou autoritarismos recentes diferem das modalidades anteriores, ou seja, os fascismos do entre guerras e as ditaduras castrenses na AL, na África e na Ásia? A diferença, muito clara no caso do chavismo na Venezuela, está em que não existe mais uma ruptura golpista, como nas modalidades clássicas de ditaduras emergindo a partir de golpes de Estado, e sim uma erosão gradual dos mecanismos, princípios e valores democráticos, por meio de pequenas alterações e “inovações” no funcionamento e na composição das principais instituições de Estado e na forma de atuação dos governos. Geralmente se começa pelo aparelhamento do Estado e do governo com os próprios partidários do dirigente democraticamente eleito, passa pela chantagem, suborno e pressões sobre os meios de comunicação independentes, alcança os partidos políticos e o próprio parlamento – por meio de cargos, subsídios, transferências de recursos –, assim como a composição e a forma de atuação de órgãos judiciais, inclusive, quando houver, as instituições que cuidam diretamente das eleições.
Muitos desses mecanismos estão descritos em livros de acadêmicos, como Timothy Snyder, sobre as novas formas de tirania, e Yasha Mounk, sobre o “povo contra a democracia”, entre vários outros autores. Chamo a atenção, especialmente, para o trabalho impecável do Varieties of Democracy, um instituto multidisciplinar da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, com relatórios ano a ano sobre a erosão democrática no mundo: https://www.v-dem.net/democracy_reports.html.
2) No Brasil, essas expressões de autoritarismo têm dados diversas demonstrações. Acredita que o nosso regime democrático atual pode se considerar flagrantemente sob ameaça diante desse cenário? O que fazer para reagir institucionalmente?
PRA: Não existe a menor dúvida de que Bolsonaro emerge a partir de velhas e novas tendências do pensamento e das práticas autoritárias, e ele foi o agregador, sem ser doutrinário ou sequer pensador (o que seria impossível), de diversas correntes de direita e conservadores que estavam mais ou menos retraídas durantes os anos do tucanismo (governos FHC, de 1995-2002) e do lulopetismo (2003-2016), ambos representantes da socialdemocracia, mas possuindo o PT diversas conexões com as ditaduras de esquerda na AL, dada a composição do partido com muitos egressos dos movimentos de oposição armada à ditadura militar nos anos 1960-70.
No caso do atual dirigente ele é um representante repugnante não dos autoritários do regime militar, mas daquela categoria que Elio Gaspari chamou de “tigres”, ou seja, a fração mais totalitária e repressiva da ditadura, os homens das catacumbas, os torturados e assassinos, militares e civis, engajados na eliminação dos “comunistas” daqueles tempos. Ele próprio confessou admirar o “representante-modelo” da tortura e da repressão daquele momento, o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais bárbaros integrantes da “tigrada” das catacumbas do regime. Na verdade, Bolsonaro não tem nenhuma ideologia definida, além dessa adesão ao extremismo de direita, mas apenas atendendo a seus instintos primitivos, não a alguma doutrina anticomunista formalmente organizada e racional.
O Brasil sempre teve impulsos autoritários muito evidentes desde o advento da República, um golpe militar autoritário, que se manifestaram em governos autoritários (Estado Novo, tentativas de golpes antes e depois disso, finalmente a ditadura tecnocrática de 1964 a 1985. Mas, mesmo nos momentos democráticos, o regime democrático sempre foi de muito baixa qualidade, geralmente sob controle das oligarquias rurais, na primeira metade do século XX, depois crescentemente sob a influência das elites industriais e também do setor primário. Só nos tornamos uma democracia de massas a partir da reconstitucionalização de 1988, com a admissão do voto dos analfabetos, e ainda assim com as inclinações elitistas conhecidas (só fica na cadeia comum os desprovidos de um canudo qualquer). As elites políticas expressam geralmente o poder do dinheiro, ou seja, os interesses das elites dominantes, os donos do capital, mas também houve uma progressiva evolução para uma representação mais conforme os diferentes estratos sociais da população.
Na República Velha, dizia Gilberto Amado, as eleições eram falsas, mas a representação era verdadeira, ou seja, eram eleitos representantes das elites educadas. Na democracia de massas do período atual, pode-se dizer que as eleições são verdadeiras, mas a representação expressa o corporativismo crescente na sociedade, com muitos representantes de grupos de interesse, sindicalistas de diversas categorias profissionais, lobbies setoriais (bancada ruralista, evangélicos, etc.). Muitos desses grupos setoriais são inegavelmente autoritários, sem serem totalitários, pois que não existem mais condições de se defender um regime de extrema-direita atendendo perfeitamente aos impulsos fascistas dos partidos dessa vertente. O presidente Bolsonaro é um representante inepto dessas correntes, mas não tem condições de conduzir o Brasil a um golpe militar ou a um populismo autoritário ao estilo chavista. Nem o seu conservadorismo é verdadeiro, pois ele também partilha os mesmos instintos estatistas e estatizantes de grande parte da esquerda. Ele certamente é um iliberal, mas não tem sequer condições de dirigir um “movimento estruturado de direita”. Ele é apenas o representante confuso desses instintos autoritários saudosistas da ditadura militar, sem qualquer doutrina forma. Trata-se de um fenômeno, não de um movimento fascista.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4131: 27 abril 2022, 4 p.
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