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sábado, 9 de abril de 2022

Perspectiva histórica da democracia no Brasil: VI Conferência Atlantos - Paulo Roberto de Almeida

 Perspectiva histórica da democracia no Brasil 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor, diretor de publicações no IHG-DF

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Texto de apoio à participação na VI Conferência Atlantos, no Teatro da Unisinos

(Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600, Boa Vista, Porto Alegre; 10 de abril de 2022, 14:00hs) 


 

Democracia não era um conceito que tivesse ampla aceitação, mesmo entre homens de Estado e personalidades liberais, no início do século XIX, quando o Brasil se constituiu como nação independente, como novo Estado soberano, recém emergindo de seu longo passado colonial, para assumir a condição de monarquia constitucional, mais especificamente como Império (dada a amplitude de seu território). As demais nações do hemisfério ocidental que, na sequência da independência americana, também estavam instaurando seus regimes políticos, muitos outros Estados soberanos, dada a fragmentação dos antigos vice-reinos da coroa espanhola, também não se definiam exatamente, quanto à forma de governo, como “democracias”, e sim como repúblicas. 

Os conceitos aplicados aos diferentes tipos de regimes políticos evoluíram muito ao longo do tempo, e o significado de democracia não era exatamente o mesmo ao tempo dos antigos gregos – os inventores do nome – e na conjuntura das revoluções atlânticas que desmantelaram os antigos domínios coloniais europeus e os substituíram por regimes políticos independentes, todos eles com um substrato constitucional, no caso das ex-colônias ibéricas vagamente inspiradas na Constituição de Cádiz (1812), de nítidos princípios liberais.

Aristóteles, que dedicou vários livros da Política a seu aluno Alexandre, distinguiu diversos tipos de regimes políticos, desde a tirania, passando por diferentes modalidades de monarquia, e também tipos diversos de democracia, ou seja, o regime do povo. Mas, o que era esse povo? Não era exatamente a maioria do povo, pois que se só os ricos dominassem esse sistema, o regime político estaria mais próximo de uma oligarquia. A democracia, para ele, seria um tipo de Estado no qual os homens livres governam, ou seja, excluindo escravos e, obviamente, as mulheres. Mas poderia ser uma espécie de democracia censitária, isto é, seriam chamados a deliberar na ágora apenas aqueles que tivessem uma determinada quantidade de riqueza, que foi, aliás, o que tivemos como eleitores, sob a Constituição de 1824, a que foi chamada de “Constituição da mandioca”, pois que seriam eleitores apenas os súditos do Imperador que tivessem uma renda anual equivalente a 150 alqueires de mandioca. 

Uma outra forma de democracia, para Aristóteles, aceitaria os votos em assembleia de todos os homens que tivessem um nascimento digno, ou seja, que fizessem parte da comunidade e fossem identificados como tal, mas apenas seriam eleitos aqueles que tivessem meios de exercer cargos públicos sem receber remuneração, ou seja, que pudessem viver sem trabalhar diretamente. Ainda um tipo de regime democrático seria aquele que aceitasse todos os cidadãos livres, sem distinção, mas todos respeitando o Estado de direito. Finalmente, haveria um tipo de democracia, o mais radical, no qual todos os cidadãos teriam os mesmos direitos e deveres, em total liberdade, o que Aristóteles julgava ser perigoso, pois os homens livres, sem distinção de saberes ou propriedades, poderiam ser manipulados por demagogos, que se aproveitariam deles em seu benefício pessoal, e não em favor da polis; como os pobres e ignorantes costumam ser maioria nas sociedades, esse tipo de regime poderia descambar para uma “politirania”. 

Temos, na História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, uma bela defesa da democracia, ateniense, na chamado “oração aos mortos”, feita por Péricles, para homenagear aqueles que tinham caído na luta contra Esparta, o protótipo do regime autocrático na Grécia clássica. Nesse discurso, que Tucídides reproduz a partir de algumas frases pronunciadas efetivamente por Péricles e outras que ele imaginou que Péricles teria dito, se faz uma defesa vibrante da democracia, o regime político de Atenas, considerado superior aos de todas as demais cidades-Estado da Grécia, que estava baseado na igualdade de todos os cidadãos, ou seja, daqueles homens livres, detentores de direitos e capazes de servir à polis. Dois trechos de Tucídides merecem ser reproduzidos: 

A nossa constituição política não segue as leis de outras cidades, antes lhes serve de exemplo. O nosso governo chama-se democracia, porque a administração serve aos interesses da maioria e não de uma minoria.

De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade. (in: Adriano Moreira, "Ideal Democrático, O Discurso de Péricles", Legado Político do Ocidente (O Homem e o Estado), 3.ª ed., Estratégia, vol. VIII, 1995, págs. 15-31)

 

Os gregos de Atenas temiam a tirania – mas estavam dispostos a aceitá-la, ou a tolerá-la, temporariamente, em caso de grave ameaça à cidade-Estado –, assim como temiam a demagogia, daí ressaltarem os méritos daqueles que se apresentassem para cargos públicos, assim como o “valor pessoal da classe a que pertence”, podendo, portanto, ser um cidadão pobre, desde que capacitado a prestar serviços à polis. O temor da demagogia produzida por um manipulador de multidões estava sempre presente na mente dos atenienses, assim como na dos romanos, ao tempo da República (na verdade, uma oligarquia de senadores). Este também era o temor dos liberais constitucionais do final do século XVIII e do início do século XIX, o de que um igualitarismo radical dos súditos, ou dos cidadãos, pudesse conduzi-los a um regime das massas ignorantes. James Fenimore Cooper, por exemplo, o famoso romancista americano dessa época, considerava que a democracia poderia representar uma espécie de mediocracia, o regime dos ignorantes e dos medíocres, daí o cuidado dos pais fundadores de compensar o voto dos eleitores, cidadãos livres, com circunscrições bem delimitadas elegendo representantes locais para a escolha dos eleitos às assembleias estaduais e ao Congresso Federal, e fazê-lo de uma forma que equilibrasse o poder das grandes aglomerações e dos pequenos distritos menos populosos. 

Democracia, portanto, não era uma palavra que dispusesse de boa aceitação ao início do século XIX: essa forma de administração do Estado era considerada quase o equivalente de um governo da turba ignara, do populacho ignorante, sempre cativo dos demagogos e falastrões da política. Algo do preconceito do liberalismo escocês contra a democracia, a partir do século XVIII, derivava do próprio pensamento grego clássico, sempre cético em relação a qualquer “governo popular”; mas os seus grandes autores – Ferguson, Hume, Locke, conhecidos dos intelectuais brasileiros e portugueses – também alimentavam essa rejeição, a exemplo de Hume, que declarava francamente que: 

... embora certamente, a liberdade seja preferível à escravidão, eu preferiria ver nesta ilha [Grã-Bretanha] um monarca absoluto a uma república. [...

Portanto, se existem motivos para termos desconfiança em relação à monarquia, por aparentemente representar o perigo maior, temos também motivos para desconfiar do governo popular, pois este representa um perigo ainda mais terrível. Isso pode nos dar uma lição de moderação em todas as nossas controvérsias políticas. (David Hume, Ensaios morais, políticos e literários. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 152 e 154).

 

Até o florescimento do parlamentarismo liberal, a partir de meados do século XIX, praticamente nenhum membro das elites dirigentes ousava defender um “sistema democrático de governo”. Mesmo Tocqueville, o aristocrata liberal que visitou e apreciou o regime de liberdades e de igualitarismo dos Estados Unidos, achava que os “pais fundadores” tinham procedido corretamente, ao impor limites e contrapesos, no sistema político e eleitoral, ao avanço da correntes populares na representação, o que poderia resultar na chamada “tirania da maioria”, daí a necessidade de circunscrever distritos e estabelecer sistemas indiretos de escolha, via colégio eleitoral, para barrar a ascensão dos demagogos e evitar o surgimento de um “novo rei” nas fímbrias da República.

O Império do Brasil surgiu em meio a disputas entre monarquistas constitucionais e republicanos radicais, aliás, desde antes da Independência, na revolução pernambucana de 1817 e, depois, na Confederação do Equador, em 1824. A turbulência dos primeiros tempos, ainda agravada pelas revoltas regionais durante as regências, foi duramente reprimida pelos homens de bem, e muitos liberais dos primeiros tempos operaram o famoso Regresso, a exemplo de Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos mais famosos liberais na Assembleia Geral do primeiro Reinado, e um conservador nas Regências e no início do segundo Reinado. Ficou famoso seu discurso em resposta a um deputado, ao tempo em que eram conduzidas reformas na Constituição e nos códigos civis que ele preconizava, como ministro da Justiça, para resguardar “a maior soma de liberdade com a mais perfeita segurança” 

Devo certificar ao nobre deputado que o ministro da Justiça não mudou; esteve e está sempre com o progresso: a diferença que há entre o ministro da Justiça de hoje e o deputado de outro tempo, é que a experiência, a observação dos resultados de alguns atos para que ele contribuiu, algumas ideias mais que com o estudo que tem granjeado, o têm convencido de que deve proceder como aconselhava Washington ... com pé firme, mas lento. (...)

Fui liberal, então a liberdade era nova no país, estava na aspiração de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo; fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometerama sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la quero salvá-la; e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendo, no dia dos seus perigos, de sua fraqueza; deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o sucesso a compromete. Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e a defesa da liberdade? Os perigos da sociedade variam: o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir o seu país? (in: Otávio Tarquínio de Sousa. História dos fundadores do império do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2019, v. 3, Bernardo Pereira de Vasconcelos, p. 191; apud Anais da Câmara, 1838, tomo I, p. 167; ênfase acrescentada; disponível: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/574685; acesso: 10 jul. 2021).

 

O fortalecimento contínuo da burguesia na Europa de meados do século XIX passou a atribuir um novo sentido ao conceito de democracia, até que ele se fortaleceu de forma mais decisiva com o aumento das franquias eleitorais – reformas políticas feitas na Inglaterra e nos demais países, tendentes a ampliar os antigos regimes eleitorais censitários – e o surgimento de sindicatos e partidos operários em sua segunda metade. O século XX, sobretudo depois da Grande Guerra, consagrou, de modo quase definitivo, o conceito moderno de democracia, baseado em franquias universais (mas as mulheres tiveram de empreender duras lutas para obterem igualdade de direitos) e na representação igualitária de todos os cidadãos (ou súditos), ainda que a primeira metade do século tenha conhecido a representação corporativa, quase uma continuidade da antiga sociedade estamental. O comunismo de tipo soviético e os regimes fascistas pretenderam instituir “democracias de massas”, mas acabaram fortalecendo a centralização estatal da forma mais tirânica possível.

As poucas democracias de mercado existentes no pós-Segunda Guerra coexistiram durante bastante tempo com o desafio comunista e regimes autoritários na periferia, geralmente ditaduras militares de direita, em especial na América Latina. O Brasil não foi muito diferente da maioria das ex-colônias ibéricas, inclusive porque as metrópoles também inovaram no caudilhismo autoritário, na pretensão a erigir um “Estado Novo”, que sempre foi muito mais autoritário do que os regimes elitistas conservadores do século XIX, com sua aparência de “liberalismo inglês”, mas apenas de fachada. Os processos de urbanização e de democratização social, no quadro de uma sociedade de massas, e as demandas por um Welfare State levaram a um lento e incerto processo de democratização da vida política, decididamente baseado na universalização do voto (na República Velha, e até a República de 1946, a exclusão feita pelas comissões de “verificação” de votos e pela exclusão dos analfabetos, fazia com que um presidente fosse eleito por uma margem reduzida de eleitores).

San Tiago Dantas foi um dos mais notáveis combatentes pela democracia no curto espaço de tempo que lhe coube viver no regime de 1946; vindo do fascismo e do integralismo dos anos 1930, realizou uma transição das mais bem sucedidas em direção à democracia social, isto é, trabalhista, muito influenciado pelo Labour e pela doutrina socialdemocrata. Afonso Arinos, por sua vez, que poderia ter feito um aristocrata típico do século XX, lutou pelo fim da discriminação racial e, sobretudo por um sistema de governo – parlamentarista ou semipresidencialista – que permitisse evitar as frequentes crises entre as duas maiorias legítimas, a do chefe do Executivo e da representação proporcional ou federal do Congresso. Roberto Campos, um ex-seminarista que ingressou na diplomacia pois era o único concurso federal que não exigia títulos de graduação, percorreu um itinerário brilhante, desde sua condição inicial de tecnocrata altamente intelectualizado, que trabalhou para o fortalecimento do Estado, até sua conversão definitiva em liberal antiestatista que não conseguiu debelar o monstro que ele mesmo tinha ajudado a construir. José Guilherme Merquior, finalmente, que, como seu mestre e amigo San Tiago Dantas, faleceu cedo demais, deu nova consistência à doutrina liberal, mas animada de propósitos de justiça distributiva que poderiam sustentar um modelo avançado de democracia social.

Todos eles possuíram projetos de governo, de Estado e de nação mais ou menos abrangentes, ainda que não tenham logrado traduzir na prática os seus conceitos sofisticados de organização política, de políticas econômicas e de medidas sociais, basicamente por falta de apoio nas elites dominantes e nos estratos dirigentes, de modo geral apoiados nos setores conservadores da sociedade. Nenhum deles viveu para ver o experimento de um governo “trabalhista” e “socialdemocrata”, que deu início a programas de inclusão social não exatamente sustentáveis, mas que, ao fim e a cabo, terminou reduzindo muito pouco a imensa desigualdade distributiva, que é estrutural numa nação pouco educada, ademais de provocar uma crise econômica que nada ficou a dever a fracassos similares em regimes mais conservadores.

San Tiago Dantas ficou identificado, na fase final de sua vida, com a busca de uma via democrática, constitucional, para as chamadas “reformas de base”, a grande palavra de ordem no Brasil do início dos anos 1960. Com efeito, nos últimos quinze anos de sua breve vida (53 anos apenas), ele se empenhou pela incorporação a uma união nacional em prol dessas reformas daquela fração do espectro político-partidário que ele chamava de “esquerda positiva”, para distingui-la da esquerda romântica, identificada com a luta anticapitalista em favor de uma definição socialista para os rumos da economia e da política no Brasil. No entanto, começou sua vida política, antes mesmo de concluir o curso de Direito, no início dos anos 1930, aliando-se ao integralismo e colaborando ativamente com esse movimento da direita nacionalista criado por Plínio Salgado. San Tiago, nessa época, chegou inclusive a elaborar uma estrutura de um Partido Nacional Fascista. No regime que se iniciou ao final de 1945, San Tiago ficou mais próximo da ação ponderada do Estado do que do livre mercado de Eugênio Gudin, e a serviço de uma democracia social que se apoiava na soberania popular e na primazia do trabalho. Daí em diante, ele se tornou um “ideólogo do trabalhismo democrático”, no modelo inglês do Labour, daí sua filiação ao Partido Trabalhista. 

Numa conferência que ele fez alguns meses antes de morrer, ao receber o Prêmio Homem de Visão de 1963, e que pode ser considerado uma espécie de “testamento intelectual” de San Tiago, ele resumiu seu ideário democrático. Nesse discurso, que ele considera um “ensaio de justificativa”, San Tiago começa por expressar o entendimento que tinha sobre seu papel como homem público a respeito dos desafios do Brasil e do mundo; ele afirmou suas duas certezas do momento:

a) a certeza de que a sobrevivência da democracia e da liberdade, no mundo moderno, depende de nossa capacidade de estendermos a todo o povo, e não de forma potencial, mas efetiva, os benefícios, hoje reservados a uma classe dominantedessa liberdade e da própria civilização;

b) a certeza de que a continuidade da civilização, com o seu resultado final que é a reconciliação dos homens, depende da nossa capacidade de preservar a paz, substituindo a competição militar entre os povos por técnicas cada vez mais estáveis de cooperação e de convivência, e caminhando para uma integração econômica que nivele as oportunidades, com a rápida eliminação dos resíduos do imperialismo e das rivalidades nacionais. (Texto constante do Site Oficial San Tiago Dantashttps://www.santiagodantas.com.br/; 1963, p. 1-2; ênfase acrescentada)

 

De forma muito diferente aos seus escritos “pró-fascistas” da primeira metade dos anos 1930, ao se alinhar ao trabalhismo democrático, no pós-guerra, San Tiago passa a defender acirradamente uma democracia representativa que se empenhe decididamente nas reformas sociais em prol das chamadas classes trabalhadoras. Em face da realidade social do Brasil, num contexto político extremamente conturbado, de lutas a partir de concepções exacerbadas dos partidos existentes por diferentes formas de organização política e econômica, San Tiago preconizava o que lhe parecia ser o único caminho possível naquele momento: 

1. Terá de ser uma reforma incorporada às aspirações do povo, que suba das próprias bases sociais, debatida e filtrada nas organizações de classe, e não uma reforma outorgada pela classe dominante, expressiva apenas de uma concessão sem conciliação;

2. Terá de ser uma reforma que fira de frente o problema vital da segurança econômica do indivíduo na sociedade, pois na sociedade burguesa, em cujas formas já decompostas ainda vivemos, a segurança econômica é o privilégio do proprietário, do chamado homem-independente, enquanto a forma universal de participação do indivíduo na sociedade é o trabalho, e o status que a todos corresponde é o de trabalhador;

3. Terá de produzir, a curto prazo e sem violência, com respeito dos direitos subjetivos, uma redistribuição da renda social, de modo que esta, através do salário, dos serviços coletivos e dos investimentos no setor público e privado, atinja a sociedade no seu todo, eleve o padrão de vida e crie o número crescente de ocupações e atividades requeridas pelo aumento e pela ativação da população. (1963, p. 3; idem)

 

Pode-se dizer que, sem qualquer necessidade de atualização substantiva ou revisão conceitual, o programa de reforma social preconizado por San Tiago em 1963, para aproximar o Brasil de um cenário próximo ao Welfare State que ele admirava na experiência inglesa do pós-guerra, permanece válido e necessário seis décadas depois dessas propostas terem sido apresentadas, propostas que ele mesmo inseria no âmbito de um “projeto brasileiro”, capaz de “enfrentar o problema da desorganização crescente, que avassala nossas atividades econômicas e sociais” (p. 4).

Um dos discípulos de San Tiago Dantas, o diplomata José Guilherme Merquior, que foi o orador de sua turma do Instituto Rio Branco em 1963, cujo patrono foi exatamente San Tiago Dantas, retomou as lições do grande estadista brasileiro, defensor de uma “esquerda positiva” – para contrastá-la com a esquerda negativa defensora do socialismo de tipo centralizado –, e se empenhou na defesa de um liberalismo social, modernizante e inclusivo do ponto de vista da realidade social do Brasil. No início dos anos 1980, depois de ter defendido sua tese na London School of Economics, sobre Rousseau e Weber, ele publicou uma obra que ele chamou de “pequeno livro de palavras simples sobre coisas complexas”, cujo título tem um leve sabor hegeliano: A Natureza do Processo (1982). As palavras simples são: indústria, progresso, economia, liberdade, democracia, socialismos e humanismos, que constituem as sete partes nas quais se distribuem quatro dezenas de seções interligadas. 

Essa obra, A natureza do processo, constituiu uma preparação para saltos ainda maiores nessa década, representados pelos dois grandes livros seguintes, sobre o marxismo ocidental e sobre o liberalismo. No seu décimo-quinto livro, O Argumento Liberal (1983), Merquior cobre, em duas dúzias de textos (em geral artigos rápidos, publicados em jornais do Rio ou São Paulo), os temas da dicotomia esquerda-direta, as relações entre justiça social e consciência jurídica, o conceito e a realidade da revolução política e sócia, as relações entre estado e sociedade civil, divididos em quatro partes bem identificadas: perspectivas filosóficas, temas de teoria política, história e ideologia e Brasil e América Latina. “Em duas palavras”, sua introdução datada do Rio de Janeiro, em janeiro de 1983, Merquior explica que, como no livro anterior, A Natureza do Processo, sua nova obra

... se baseia na convicção de que tanto o saber quanto a história – a lógica do conhecimento e a lógica da experiência – estão do lado da democracia liberal. Mas ao contrário de A Natureza do Processo, que tenta aprofundar a consciência do mundo presente num único ensaio longo, O Argumento Liberal, coletânea de ensaios quase todos curtos, multiplica os ângulos de análise pela crítica de alguns conceitos e teorias de filosofia e política. (José Guilherme Merquior, O Argumento Liberal. Rio de Janeiro: Topbooks, 1983, p. 11; ênfase agregada)

 

Num dos capítulo desse livro, que justamente deu origem ao seu título, “O Argumento Liberal”, dedicado a Marcílio Marques Moreira – um ensaio originalmente publicado na revista Tempo Brasileiro (n. 65-66, 1981) –, Merquior começa por afirmar que o “cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu”, segundo quem “não basta decidir sobre a base social do poder, mas é igualmente importa determinar a forma de governo” e garantir que o poder “não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso” (p. 87). Por isso que o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo, ou seja, a limitação do poder, fazendo com que este seja exercido com autoridade, mas não como violência. Mas o constitucionalismo não é uma condição suficiente e não possui legitimidade fora do ideal democrático. Merquior identifica três fases principais no liberalismo: 

Locke e Montesquieu são, por assim dizer, mais ancestrais do que fundadores, porque sua teorização precede o advento da revolução industrial e da Revolução Francesa, e o liberalismo cresceu como ideologia profundamente marcada por ambas. (...) Mas o primeiro ato da ópera liberal, após essa imprescindível ouverture, é o que se estende de Benjamin Constant (1767-1830) a Herbert Spencer (1820-1903).

De Constant a Spencer, floresce o paleoliberalismo. Seu maior mérito foi ter acrescentado à teoria da limitação do poder um conceito decisivamente ampliado da liberdade. (...)

Em compensação, esse tipo de liberalismo se mostraria singularmente cego ante a dimensão do estado. Nem Constant nem Spencer souberam ver o que viu Tocqueville: que o crescimento da liberdade civil foi acompanhado, e na realidade pressupôs, uma tremenda expansão da regulamentação da sociedade pela lei, isto é, pelo estado enquanto foco emissor do direito. (...)

Bem antes que a ideologia paleoliberal declinasse, uma outra fase da história do liberalismo começou: a fase social-liberal. (...)

A rigor a época social-liberal pode ser colocada entre [John Stuart] Mill e os liberals rooseveltianos – ou melhor, entre Mill e Keynes, já que este foi seu grande economista, o diagnosticador e terapeuta das insuficiências do laissez-faire. (...) 

Do predomínio da ideologia social-liberal na era keynesiana (1930-1973) resultou na entronização política daquilo que Raymond Aron chama de ‘síntese democrático-liberal’... (...)

Qual seria a terceira fase da ideologia liberal? Nesses últimos anos, a voga do antikeynesianismo e a viragem direitista na política anglo-saxônica deram novo lustre ao neoliberalismo. Seu maior profeta, o austro-inglês F.A. Hayek, propõe um verdadeiro desmantelamento do social-liberalismo, um retorno em regra ao estado mínimo e à convicção de que o progresso deriva automaticamente de uma soma não-planejada de iniciativas individuais. (...)

O neoliberalismo é, portanto, essencialmente, a reprise do paleoliberalismo; e como verificamos as deficiências deste último em matéria de visão histórica e consciência social, parece inevitável preferir, ao retrocesso neoliberal, uma retomada criadora do social-liberalismo. (Merquior, O Argumento Liberal, 1983, p. 89-95)

 

Merquior estava totalmente afinado com San Tiago Dantas na defesa de um modelo de organização política baseado no liberalismo social, provavelmente nos quadros de um sistema parlamentar moderno, dotado de um tipo de representação política condizente com as peculiaridades de uma nação-continente, regionalmente e socialmente muito desigual, como sempre foi o Brasil. Merquior, tinha chegado, ao termo de um percurso intelectual magnífico, a concepções de sociedade e de organização econômica e institucionalidade política não muito diferentes, em sua essência, àquelas exibidas por outros grandes estadistas brasileiros: uma ordem política aberta e mantida dentro dos limites que Rui Barbosa chamaria de Estado de Direito, uma organização econômica baseada na iniciativa individual, como queriam Cairu e Roberto Campos, na liberdade de empreender e de usufruir dos frutos desse trabalho, como queria Gudin, enfim, oportunidades abertas a todos os nacionais e aos imigrantes, por meio de um sistema de educação pública de qualidade, capaz de oferecer oportunidades iguais e todos os habitantes, dos mais ricos aos mais humildes. Num momento em que o Brasil enfrenta mais uma das recorrentes crises de sua história – certamente na esfera econômica, mas também, e sobretudo, no plano moral – parece útil refletir sobre as oportunidades perdidas de realizar projetos de construção da nação, a partir de propostas feitas por alguns desses visionários, projetos que foram muito parcialmente implementados.

A agenda de reformas modernizadoras e corretoras de nossas grandes lacunas sociais permanece inconclusa. Na verdade, em vários casos, ela só existe no papel, uma vez que não pudemos contar, ainda, com estadistas que as implementassem efetivamente, com base num consenso político necessário e no pleno respeito das liberdades democráticas. Percorrendo as várias etapas, da construção do Estado, na independência, passando pela construção da Ordem, no Império, entrando no Progresso, que deveria ser o objetivo da República, chegamos, finalmente, a um tipo de democracia que não pode, ainda, equiparar-se à estabilidade e à qualidade funcional das grandes democracias de mercado, que funcionam geralmente no quadro de regime parlamentares, ou de um sistema presidencialista dotado de fortes tinturas congressuais. O parlamentarismo do Império perdeu-se nas brumas do passado, inclusive porque o nosso presidencialismo, fortemente marcado por incursões militares, sempre foi mais propenso a se dotar de cores bonapartistas.

Se olharmos a nossa democracia atual, pode-se perguntar: onde ficam a igualdade e a justiça social, a distribuição de renda, a alta cultura, o bem-estar, a segurança civil? E os direitos dos indígenas, nossos ancestrais nesta terra, na qual muitos carregam consigo algo que vindo dos autóctones? E os negros, os mulatos, pardos, cafuzos, todos os mestiços, que estão sempre sendo olhados com suspeita pelos agentes da segurança, mesmo quando estes são tão negros quanto os suspeitos de um momento? Como assegurar a higidez das contas públicas, quando tantos penduricalhos se apegam aos orçamentos e concorrências públicas? O que dizer dos privilégios abusivos dos mandarins do Estado, transformados em novos aristocratas de um antigo regime desaparecido alhures?

A meta é a de nos realizarmos como nação vencedora na escala civilizatória dos progressos humanos. Se a agenda já existe, pelo menos potencialmente, caberia unir a nação num esforço conjunto e passar à execução das tarefas mais urgentes. O problema básico da democracia no Brasil, atualmente, é a divisão do país, a falta de unidade da nação em torno de um projeto comum, consensual, de desenvolvimento social com uma agenda de inclusão dos mais pobres, pela educação e pelos mercados, não exatamente pela assistência estatal. Esta é a tarefa da atual geração, a missão que deve ser a nossa pelos próximos anos, a começar pelo próximo período legislativo. Sim, antes legislativo do que presidencial: muito mais importante do que a eleição de um próximo salvador da pátria, um demagogo, como temiam os homes de dois séculos atrás, é a eleição de representantes do povo comprometidos com as reformas estruturais, entre elas uma revolução educacional, a luta contra a corrupção política, a correção da insegurança jurídica e o equilíbrio das contas públicas. Seria pedir muito de nossos eleitores e dos futuros dirigentes da nação? 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4097: 6 março 2022, 11 p.

 

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