Minha participação neste seminário:
4125. “Você é livre para discordar?”, Curitiba, 4 abril 2022, 5 p. Notas para participação no 35º Fórum da Liberdade (www.forumdaliberdade.com.br); Painel “Autoritarismo e Liberdade de Expressão", com Tom Palmer (VP de Programa Internacional da Atlas Network-USA e membro sênior do Cato Institute) e Roberto Salinas (Diretor da América Latina na Atlas Network e Presidente do Fórum Empresarial do México); PUCRS, Porto Alegre, 11/04/2022; 14h30.
Você é livre para discordar?
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Notas para participação no 35º Fórum da Liberdade (www.forumdaliberdade.com.br); Painel “Autoritarismo e Liberdade de Expressão", com Tom Palmer (VP de Programa Internacional da Atlas Network-USA e membro sênior do Cato Institute) e Roberto Salinas (Diretor da América Latina na Atlas Network e Presidente do Fórum Empresarial do México); PUCRS, Porto Alegre, 11/04/2022; 14h30.
Discordar de autoridades, desde chefes de tribos a presidentes ou soberanos nacionais – imperadores, reis, tiranos consolidados –, ou ousar enfrentar líderes religiosos, quando a religião se confunde com o Estado, no caso de alguma rígida teocracia, não devia ser fácil em tempos recuados, quando não se tinha noção dos, sequer respeito pelos direitos individuais. A noção moderna dos direitos individuais conheceu uma lenta emergência a partir da Magna Carta, em 1215, quando barões ousaram discrepar do rei João Sem Terras, atravessou as turbulências conhecidas na Inglaterra absolutista – quando Henrique VIII mandou ao cadafalso Thomas Morus – e, mais ainda nas guerras civis do século XVII, quando se estabeleceu que o monarca não poderia governar sem o consentimento do Parlamento, princípio finalmente consagrado pela Revolução Gloriosa de 1688.
Os grandes preceitos da Magna Carta – sobretudo o de que ninguém está acima da lei, nem mesmo o rei, o do habeas corpus, assim como o consentimento dos governados para a imposição de qualquer tributo – estavam praticamente esquecidos na própria Inglaterra, quando, na segunda metade do século XVIII, os colonos americanos se revoltaram contra os impostos sobre o chá – e também sobre outras mercadorias, com o fito de sustentar as guerras do rei George III –, argumentando que eles não estavam representados no Parlamento inglês para serem obrigados a aceitar novas taxas sem a sua expressa aprovação. O grande pensador Edmund Burke, que não um opositor do Império britânico, ficou resolutamente do lado dos colonos americanos, em função dos princípios da equidade e das liberdades, de conformidade com as doutrinas liberais que estavam sendo forjadas nessa mesma conjuntura, no contexto do Iluminismo escocês, também disseminado no âmbito continental europeu.
A queda da Bastilha, em 1789, que precipitou a queda do Antigo Regime, mas que antecedeu a fase de arbítrio e terror da Revolução francesa, produziu, logo em seu início, o documento seminal das liberdades modernas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em agosto daquele ano. Ela faz parte do mesmo movimento que já tinha resultado na Declaração da Independência americana, de 1776, na qual se inspirou, consolidando, em seu preâmbulo e nos seus 17 artigos substantivos, os princípios fundamentais dos direitos individuais, notadamente os de expressão e de religião. Como estabelecido no seu segundo artigo, são definidos direitos “naturais e imprescritíveis”, como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Os artigos 10º e 11º, por sua vez, expressam claramente que ninguém pode ser proibido de expressar sua opinião política e religiosa, seu pensamento, à condição de não tolher a liberdade dos demais e de não perturbar a ordem pública.
Em outros termos, o direito de discordar, como indicado no tema-título deste ensaio, estava implicitamente consagrado na Declaração de 1789, cujos dispositivos fundamentais se disseminaram, ao longo do século XIX, nas chamadas “democracias burguesas”, incluindo os regimes monárquicos ou presidencialistas, que incluíram o núcleo essencial das liberdades democráticas em seus textos constitucionais. Esses princípios, hoje considerados universais, encontraram sua formulação contemporânea na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, com esta condicionalidade de que se trata de uma “declaração”, ou seja, de um compromisso assumido pelos Estados signatários, que podem ou não cumprir aquilo que foi acordado por seus dirigentes e representantes num momento especial de horror coletivo pela memória recente do Holocausto nazista. Ouso dizer que se essa Declaração fosse apresentada hoje, numa nova conferência da ONU, talvez ela não obtivesse uma aprovação unânime que consagrasse efetivamente seu alegado status de “universal”.
O que diz exatamente a Declaração de 1948 sobre os direitos de expressão, que incluem, por óbvia dedução, o direito de discordar de decisões e de posturas governamentais? O núcleo básico dos direitos consagrados neste documento fundamental das liberdades contemporâneas está consagrado nestes três artigos:
Artigo 18°
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Artigo 19°
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Artigo 20°
1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
O fato de pertencer a uma associação, movimento, partido ou religião implica, obviamente, o direito de divergir, ou seja, de expressar uma opinião contrária a certas posturas estabelecidas, mesmo oficialmente, desde que isso não configure uma quebra de direitos coletivos ou desobediência à ordem legal vigente no país, supondo-se que tal ordem legal tenha obtido o consentimento de maioria expressiva da coletividade, por meio da livre expressão das opiniões vigentes na sociedade. Tais direitos são normalmente tidos por naturais ou implícitos aos regimes representativos contemporâneos, já em número expressivo se considerarmos a evolução política do mundo moderno, desde o estabelecimento da ordem política multilateral consagrada na Carta da ONU de 1945.
Em termos concretos, o direito de discordar da opinião dominante encontra-se plenamente garantido pelos principais atos internacionais vigentes e, ainda que formalmente, na maior parte dos instrumentos nacionais regulando a vida política dos Estados modernos. Na prática, esse direito sofre restrições, ou é claramente proibido nos regimes ditatoriais, ou seja, nas diversas modalidades de autoritarismo ainda subsistentes, quando não nos poucos governos totalitários conhecidos, entre eles o da Coreia do Norte, de Cuba, e de alguns outros países. Esses casos são claramente conhecidos e condenados pela opinião pública dos países democráticos, mas tolerados em nome do princípio da soberania dos Estados, bem como o da não interferência nos seus assuntos internos. Existem formas mais sutis de cercear, limitar ou mesmo obstar ao direito de divergir das posturas dominantes, como observado em diversos casos contemporâneos conhecidos como regimes iliberais.
Trata-se da coerção direta ou indireta exercida contra os meios livres de expressão, os da mídia independente doestado, do controle sobre o Judiciário e, mais frequentemente, o uso de mecanismos semilegais para dificultar ou impedir os movimentos de oposição, rompendo, portanto, com o princípio da alternância como resultado legítimo de eleições livres. São diversos os exemplos dessa deriva autoritária em regimes formalmente democráticos, ou seja, convivendo com eleições regulares, mas frequentemente manipuladas para favorecer os incumbentes ou agrupamentos dominantes em esferas cruciais da vida política da nação. A Venezuela e a Nicarágua constituem os exemplos mais dramáticos da involução dos direitos democráticos e das liberdades civis na América Latina. Mas na própria Europa existem casos igualmente recentes dessa deriva autoritária, aliás até reconhecida como democracia iliberal.
Na Nicarágua e na Belarus candidatos de oposição foram assassinados, encarcerados ou condenados ao exílio involuntário por dirigentes autoritários, de direita ou de esquerda. Em países em desenvolvimento, a manipulação eleitoral, quando não a violência física contra os opositores, também são frequentes, mesmo de forma disfarçada, como por exemplo a discriminação contra os veículos da mídia e a perseguição política e mesmo judicial contra os partidos e movimentos alternativos ao poder em vigor. Foi o que ocorreu na Venezuela, na Hungria, na Turquia e em outros países de orientação iliberal. Em todos esses exemplos, discordar do poder vigente pode ser uma temeridade, não apenas para líderes da oposição, mas também para jornalistas ou até juízes e outros funcionários públicos, inclusive militares. Ser livre para discordar pode ser uma temeridade, como o caso de Hong Kong provou nos últimos três anos: a imprensa foi amordaçada, a representação parlamentar distorcida e as pressões sobre o judiciário também se manifestaram de forma aberta ou disfarçada. Em todos os casos, o que se observou foi uma degradação do Estado de Direito e a toda preeminência do poder executivo, usando diretamente as forças de repressão para conter manifestações.
A América Latina tem uma larga história de subornos a órgãos de imprensa, pressões sobre líderes políticos independentes e o uso da burocracia de Estado, geralmente de natureza fiscal ou tributária como forma de induzir os recalcitrantes à obediência. No caso do Brasil, o que se registrou, nos três últimos anos, foi uma intervenção direta do Executivo nos órgãos de controle e de fiscalização das atividades governamentais e de seus gastos, inclusive pela manipulação do orçamento e das dotações individuais de recursos para os parlamentares, assim como a nomeação de subordinados complacentes nos órgãos de investigação e denúncia. O atual governo brasileiro registra intensa troca de ministros das áreas sensíveis, de responsáveis pela polícia judicial, assim como pela desativação ou neutralização dos órgãos de controle e vigilância; essas trocas alcançam inclusive as Forças Armadas, ademais das tentativas de colocar as forças estaduais de segurança sob a jurisdição do governo central.
As formas podem variar bastante, mas a intenção é sempre a de colocar barreiras não só à ação e movimentação de grupos e personalidades opositores dos mandantes do poder em diferentes países, mas também à simples expressão livre dos alternativos ao poder, assim como aos próprios veículos independentes de informação e comunicação. Resumindo: só se é completamente livre para discordar nas democracias plenas, pois nas ditaduras acabadas e consolidadas não só é proibido discordar, como os que tentam podem ser enquadrados numa das ferramentas repressivas do Estado.
Nos tempos do stalinismo na URSS, ou mesmo no período da gerontocracia soviética, o refuznik discordante poderia acabar no Gulag ou num asilo de alienados mentais, submetido a choques e remédios. Na Nicarágua atual, assim como na Belarus tal postura resultaria num bilhete de ingresso para a cadeia, com condenação judicial ou mesmo sem nenhum processo. Não é preciso mencionar os casos ainda mais graves da Coreia do Norte, de Cuba ou da própria China: nesta, o advogado de direitos humanos, que atuou na defesa dos estudantes das manifestações da Praça da Paz Celestial, e que tinha sido contemplado com o Prêmio Nobel da Paz, morreu na cadeia, condenado a mais de nove anos de cadeia.
No Brasil ainda é possível de discordar, mas os atuais donos do poder montaram, ainda antes da eleição de 2018, e durante todo o período decorrido desde então, uma poderosa máquina de manipulação de informação, de fabricação de FakeNews, que equivalem, num certo sentido, a uma indução à concordância com os poderosos do momento, ou seja, uma forma de coibir a livre expressão do pensamento da oposição, que é rotineiramente obrigada a se defender das notícias falsas fabricadas no próprio palácio presidencial.
De meu lado, como contrarianista que sou – o que é uma forma de expressar meu ceticismo sadio contra posturas identificadas com o poder, com qualquer poder – vou continuar discordando das autoridades, de qualquer autoridade, pois esta é uma forma de exercer o meu sistema de checks and balances pessoal.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4125: 4 abril 2022, 5 p.
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