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quinta-feira, 22 de maio de 2025

Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira - resenha de Paulo Roberto de Almeida

Reprodução de postagem de 2022, resenha de livro: 

terça-feira, 26 de abril de 2022

Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira - resenha de Paulo Roberto de Almeida

 Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira


 
 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Resenha do livro: Sergio Abreu e Lima Florêncio, Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Appris, 2022; ISBN: 978-65-250-2114-0)


  

Diplomatas costumam ser funcionários discretos, afáveis, mas reservados; são muito cordiais, mas algo distantes; também são bem-informados, mas geralmente calados; quando escrevem memórias, elas são invariavelmente politicamente corretas, contando largos trechos do itinerário pessoal, mas evitando de ofender quaisquer parceiros diplomáticos, amigos ou “inimigos” do Brasil. Não é o caso deste livro de memórias pessoais e diplomáticas, de um grande e velho amigo de décadas na carreira e que teve uma das trajetórias mais fascinantes, tanto no plano pessoal e familiar, quanto no campo da diplomacia. 

O embaixador Sergio Florência compôs um relato inédito nos anais da diplomacia brasileira, talvez até mundial, o que transparece, aliás, no subtítulo da obra, “de Vila Isabel a Teerã”, antes e depois da revolução dos aiatolás. O título já chama a atenção, não só pelos termos, mas sobretudo pela proporção, inversa, de seus componentes: as “memórias” começam por sete capítulos dedicados à “revolução”, mais exatamente pelo “filho da revolução”, o do próprio Sérgio e de Sonia, nascido na capital iraniana na turbulência dos anos em que ele se desempenhou como “encarregado de negócios” na embaixada do Brasil, depois que o embaixador, muito ligado à família do xá, foi retirado pelo Itamaraty. 

A “diplomacia” aparece na segunda parte, dez densos capítulos, menos dedicados a temas de política internacional e bem mais a “personagens” da convivência profissional do autor, inclusive este que aqui escreve, homenageado duplamente, numa recepção em sua casa, quando de minha tardia promoção, e no segundo capítulo deste bloco, onde sou tratado como “o embaixador ombudsman”. Finalmente, a terceira parte, a mais emotiva e sensível, trata dos afetos, aparentemente apenas 26 deles, mas muito mais do que isso, como transparece em cada uma das linhas dedicadas a filhos, netos, à sua mulher, familiares, conhecidos, interações inesperadas, até animais. Finalmente, dois apêndices voltam a tratar da revolução iraniana e um final relata o refúgio na embaixada do Brasil em Quito, onde Sérgio era embaixador, do presidente do Equador, escapando de um golpe de Estado.

Quando digo que este livro de “memórias” não se parece em nada com outras memórias diplomáticas, fica transparente logo no primeiro capítulo da terceira parte, a dos afetos, quando Sérgio discorre de forma amorosa sobre o seu “meio século de flor amorosa” ao lado de Sonia, primeiro cercando aquela moça “muito linda, sabida e irreverente”, depois inventando uma desculpa qualquer para visitar a jovem revisora do Jornal do Brasil, para culminar no pedido de casamento, em 1971, e o que veio depois, como ele mesmo descreve numa mensagem ao filho, em 2021, sobre a lua de mel improvisada:

Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, oito netos, 27 mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica, um golpe de estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar. (p. 80)

 

A crônica seguinte, “A menina do Sacré-Coeur e o sertanejo do Seridó” vai no memo tom, relatando a miscigenação cultural entre uma estudante que falava francês e o migrante do sertão para a aventura no Rio de Janeiro dos anos 1930, que se encontraram alguns anos depois nos corredores do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores do Estado Novo: 

Nesse ministério..., a Menina do Sacré-Coeur, que falava francês e tocava piano, apaixonou-se pelo Sertanejo do Seridó, que gostava de trovadores, repentistas e de baião. Em certo sentido era a elite que se encontrava com o povo. (p. 83)

 

Mas não só a parte dos “afetos” tem esse tipo de tratamento coloquial, uma narrativa sobretudo intimista, um Proust de Vila Isabel, onde o casal se instalou, mas as duas outras partes também tratam de assuntos “sérios” num linguajar coloquial, quase um Balzac do subúrbio do Rio. Impagável é o relato da “avó monarquista”, a atalhar os netos que pretendiam que a República era mais democrática: “E a Inglaterra? Você quer dizer que o Brasil, essa republicazinha, é mais é mais democrática que a Inglaterra? Ora bolas, vocês são uns bobos.” (p. 96). Impressionante também é o relato, bem mais dramático, sobre a retirada da família de Teerã durante a revolução e a guerra contra o Iraque, quando Sérgio contrariou as instruções de Brasilia e fez pessoalmente a viagem de carro até a fronteira da União Soviética, quanto o Itamaraty queria que os familiares saíssem pela Turquia, o que revela o espírito decidido do então jovem diplomata encarregado de negócios: 

Considerava uma irresponsabilidade colocar os brasileiros diante de graves riscos apenas para cumprir uma ordem que desconhecia a realidade. Tive um bate-boca com um diplomata que minha memória seletiva apagou do mapa. Só me lembro esbravejando um grito de independência: ‘Vocês têm poder para fazer o que quiserem. Mas fiquem sabendo de uma coisa: minha mulher e nossos três filhos não vão pela Turquia de jeito nenhum. Vão pela União Soviética. Nem com ordem do Presidente da República.” O bate-boca chegou aos ouvidos do então Chefe da Divisão de Comunicações, que depois vim a descobrir ser uma pessoa encantadora – Claudio Sotero Caio – e foi aprovada a rota via União Soviética. (p. 35)

 

O resto desse relato é eletrizante, como se fosse um roteiro de filme de Hollywood, com lances sempre inesperados, inclusive trafegar a toda velocidade, com faróis apagados, numa Teerã em pleno toque de recolher. Mas não só os capítulos “revolucionários” são absolutamente fascinantes, todo o livro transparece a maneira otimista, e divertida, de relatar casos os mais bizarros e inusitados num estilo próprios dos grandes mestres da escrita, como aliás confirma o prefaciador, sob a pena do embaixador Rubens Ricupero: 

Se o livro de Sergio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schumann, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann. (p. 11)

 

Tenho especial satisfação de fazer esta resenha, não pela generosa dedicatória que Sérgio me fez, ao entregar-me o livro na Biblioteca do Itamaraty – na qual ele reconhece meu “trabalho competente e corajoso de denunciar os graves equívocos (e acertos) de nossa política externa” – mas também por dedicar um capítulo inteiro a este diplomata contrarianista, chamado de “embaixador ombudsman”, como já referido. Já seu primeiro parágrafo me soa inteiramente elogioso, mas também correto no plano institucional: 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função.

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. (p. 54)

 

Sou imensamente grato ao Sérgio Florêncio por ter reconhecido minhas tribulações profissionais, já pela segunda vez, durante a “tragédia” que foi a gestão do ex-chanceler acidental, como eu sempre me referi ao autor dos delírios diplomáticos durante a primeira metade do governo negacionista e antiglobalista: 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do presidente e do Chanceler. (p. 55; texto de 30 de janeiro de 2021, pouco antes da queda do desequilibrado gestor)

 

Mas ele também presta homenagem a um dos seus mais agradáveis chefes de posto, o romancista e acadêmico Josué Montello, que foi o titular da delegação do Brasil junto à Unesco, em Paris, quando Sérgio ali serviu com esse “Grande Contador de Histórias”, como se chama esse capítulo, no qual descreve o “método” de um escritor compulsivo que, acometido por insônia, encontrou a técnica para “enganar” a necessidade de dormir, com isso conseguindo produzir mais de cem livros:

Todas as madrugadas, por volta das três da manhã, ele despertava, sentava em frente a uma folha de papel em branco e não resistia. Era preciso preencher aquela ‘tabula rasa’ que nada continha. Mas que despertava irresistível encanto em meu Grande Contador de Histórias. (...)

Compreendi então sua máxima a respeito da irresistível atração que uma folha de papel em branco exerce sobre todo homem. Seria essa atração um movimento, uma inclinação de toda a humanidade? Seria o mero resultado de um metabolismo individual que passou a ser respeitado? Fica a pergunta no ar. (...)

Mas a atração da folha virgem alimentava uma criatividade exponencial, gerava frutos de uma mente que não parava de produzir histórias, de contar um conto sempre acrescentando um ponto. Tão grande era sua pulsão criativa, que nas manhãs de trabalho, como Embaixador do Brasil na Unesco, precisava contar a seu colaborador a arte de ocupar o espaço de uma folha de papel em branco. (p. 72)

 

Creio que eu e Sérgio padecemos do mesmo “mal”: não podemos ver uma folha de papel em branco, no meu caso prolongando a noite durante várias horas, madrugada adentro, nos velhos tempos preenchendo cadernos e mais cadernos de notas, de uns tempos para cá, contemplando uma desafiadora tela em branco no processador de textos. Assim concluo, pois, às 3hs da madrugada, a leitura deste fascinante livro de Sérgio Florêncio. Recomendo a todos que façam o mesmo, nos horários que julgarem mais convenientes. Comecem pelos afetos, depois enfrentem o roteiro da revolução e terminem pela diplomacia. Mas, em qualquer ordem, as crônicas desta autobiografia emotiva são absolutamente encantadoras.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4135: 26 abril 2022, 4 p.


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Permito-me incluir aqui, nesta postagem, o capítulo do livro que ele dedica a mim: 


 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 


     In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 54-55) 


 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios. 

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heroicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricúpero e do próprio nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.


terça-feira, 4 de junho de 2024

A busca desenfreada da diplomacia de Lula por protagonismo revelou-se uma ilusão - Sergio FLorêncio (Estadão)

Artigo do embaixador Sergio Florêncio, do Portal da revista Interesse Nacional  

Estadão

Internacional

Opinião

A busca desenfreada da diplomacia de Lula por protagonismo revelou-se uma ilusão

Apostas do PT em política externa têm mais erros que acerto nos mandatos de Lula e Dilma e leva a uma diplomacia errática

Por Sergio Florêncio

O Estado de S. Paulo, 27/05/2024 | 20h00


Na América do Sul somos o “país más grande do mundo”. Nossa diplomacia era conhecida pelo infalível slogan “Itamaraty no improvisa”. Várias vezes, ao dizer que era brasileiro, ouvi essa frase de nossos vizinhos. “O Brasil não é um país. É um continente, uma civilização”. Nossa música, a mais sedutora (a bossa nova) e a mais alegre (o samba). Nossa agroindústria é uma das maiores e mais competitivas. Somos a 9ª economia do mundo. Um país com esse perfil tem tudo para ser uma grande potência. O que falta para atingir esse almejado status? Na avaliação do ex-chanceler Celso Amorim, falta apenas superar o “complexo de vira-lata” (marca por ele atribuída à Política Externa Brasileira (PEB) de Fernando Henrique Cardoso) e projetar para o mundo uma “diplomacia ativa e altiva (atributos da PEB de Lula e Dilma). Será verdade?


O Brasil tem uma história singular e a política externa foi um dos pilares fundamentais dessa construção: no século 19 fomos a única monarquia do continente; aquela ilha de estabilidade num mar de rebeliões que dilacerava a América Latina; uma extensa unidade territorial conquistada não nos campos de batalha, mas sim nas mesas de negociação. A grande figura da diplomacia – o Barão do Rio Branco – suplanta em popularidade o patrono do Exército – Duque de Caxias. Sua morte levou multidões às ruas, causou comoção nacional e fato inédito naquele ano de 1912 – o adiamento do carnaval.

Essas verdades inegáveis construíram o mito da grandeza do Brasil. Mas também esconderam as verdades de nossas fragilidades: o último a abolir a escravidão; o país que mais recebeu escravizados nas Américas; dezenas de rebeliões reprimidas na Regência e na República; o fim da monarquia proclamado por um golpe militar; uma longa república oligárquica; sete golpes de Estado militares; os maiores índices de desigualdade no mundo; um sistema político disfuncional; e, finalmente, uma democracia – mas tutelada pelos militares.

Esses traços de nossa história estão na origem de uma política externa pautada por destacada projeção regional e por considerável influência junto aos países em desenvolvimento. Essas duas vertentes foram preservadas graças a uma diplomacia profissional, orientada pelos paradigmas da autonomia e do desenvolvimento, e, com raras exceções, distanciada de partidos políticos e de alinhamento com as superpotências.


Distorções na diplomacia

O governo de Jair Bolsonaro, além das comprovadas ameaças à democracia, provocou a demolição dos princípios básicos de nossa diplomacia. Diante desse desastre, a vitória de Lula foi saudada, nacional e internacionalmente, com visível alívio e esperança. Entretanto, a política externa do atual governo tem provocado ampla frustração de expectativas, ao romper tanto com a tradição de distanciamento em relação às superpotências, como com o pragmatismo apartidário.

Essas duas distorções ficam particularmente visíveis no foco central da atual política externa: a aspiração de alcançar o status de grande potência e, em consequência, o abandono da condição de potência média, regional, com interesses globais.

Para parte importante da literatura especializada, um país que ambiciona atingir o status de grande potência é naturalmente levado a escolher lados. No caso brasileiro, isso se traduz no abandono do padrão histórico de distanciamento e na identificação com uma das superpotências – a China.

O Brasil tem inegáveis vantagens comparativas em termos de soft power. Entretanto, como lembra Buarque, embora o soft power seja ingrediente importante na política das grandes potências, nenhum país atingiu tal condição apenas com esse atributo e destituído de hard power.


Busca por protagonismo

A política externa brasileira nos governos Lula e Dilma, seja nos momentos de visível êxito, seja nos casos de marcantes fracassos, sempre preservou um padrão paradigmático que assumiu centralidade ainda maior na atual gestão de Lula III – a busca de protagonismo e projeção internacional, destinada a assegurar ao país o status de grande potência.

O propósito deste artigo é examinar seis temas concretos em que a política externa dos citados governos assumiu posições com resultados relevantes para o país. Dois temas aqui focalizados tiveram, em nossa avaliação, resultados positivos, e quatro outros, negativos. A parte final do artigo examina a posição da política externa em relação a duas instituições – Brics e OCDE. Essa postura é considerada reveladora da aderência ao paradigma da busca do status de grande potência, no primeiro caso, e do abandono do paradigma do desenvolvimento, no segundo.


Assento permanente no Conselho de Segurança

Uma vertente importante dessa busca de status e reconhecimento como grande potência é a aspiração a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Essa pretensão é justa, legítima e histórica – remonta à nossa aspiração, nos anos 1920, de ingressar no Conselho Executivo da Liga das Nações (semelhante ao CSNU).

O argumento central para uma cadeira permanente no CSNU é plenamente justificável – seu atual formato reflete a realidade de poder do pós-guerra, e não a atual. Dele estão ausentes a terceira maior economia – o Japão, o país mais populoso do mundo – a Índia, a grande potência europeia – a Alemanha, e a maior economia da América Latina – o Brasil.

Entretanto, uma aspiração legítima nem sempre é uma política correta. Esse é o caso da prioridade excessivamente alta ao ingresso como membro permanente do CSNU. Excessiva porque, embora legítima, é uma pretensão inalcançável no curto e médio prazos. A razão mais óbvia é que todos os pretendentes acima citados, contam com a contundente oposição de vizinhos também aspirantes a integrar o CSNU ou de seus atuais membros. Excessiva também porque essa aspiração tem determinado distorções em temas relevantes. Por exemplo, na política brasileira de direitos humanos. Embora de forma velada, no Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, o Brasil evita votar de forma divergente de Índia, Rússia e China, ou seja, um alinhamento com os países do Brics.

Além dos argumentos anteriores, obter um assento permanente no CSNU depende do reconhecimento atribuído ao Brasil pelos países com status mais elevado na comunidade internacional. 

A percepção externa sobre o Brasil, entretanto, indica que o país está longe de ser aceito como grande potência, e que deu passos para trás nesse processo nos últimos anos


A ascensão econômica do Brasil

Em lugar de priorizar a busca de status e reconhecimento internacional por meio do protagonismo e do reconhecimento internacional, o caminho mais recomendável consiste em medidas destinadas a promover reformas na economia e no sistema político que possam contribuir para o hard power do país.

A percepção da comunidade de política externa (CPE) das grandes potências é que a melhor forma de um Estado como o Brasil (que não tem muito poder militar) atingir o nível de prestígio equivalente ao delas seria focar no desenvolvimento econômico

Em grande medida, esse foi o padrão do primeiro mandato de Lula e da metade do segundo, que deu continuidade à política econômica de Fernando Henrique, ao aprofundar, ampliar as políticas sociais e se beneficiar do boom dascommodities, tendo como corolário expressivo crescimento econômico e efetivas políticas sociais.

Nesse contexto, a busca de projeção internacional do país – consistente com a transformação interna e um quadro externo favorável – teve sólidos resultados concretos. O país se projetou como uma das grandes economias emergentes, teve relevante papel na recuperação da economia internacional pós crise financeira de 2008, juntamente com China e Índia, reconhecido na cúpula de presidentes do G-20, que reuniu, entre outros, Obama e Lula.


O Brasil e as missões de paz da ONU

A crescente participação nas Operações de Manutenção de Paz da ONU trouxe relevante contribuição. Sobretudo a liderança brasileira da missão de paz no Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, foi reconhecida como um êxito diplomático para o país.

O país tem longo histórico nessas operações, que remonta à distante crise do Canal de Suez, em 1956, quando participou da Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF). O Brasil já participou de cerca de 50 missões da ONU, seja missões de manutenção da paz, seja missões políticas especiais, com o envolvimento de aproximadamente 60 mil militares e policiais. Por ocasião do trágico terremoto de 2010 no Haiti, com o terrível saldo de 230 mil mortos, 18 brasileiros integrantes da missão brasileira naquele país perderam a vida, inclusive Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança.

Conforme ressaltado por Miguel Mikelli Ribeiro:

“Dentre os países do Sul Global, o Brasil tem um histórico importante de envolvimento em CMTs (Conflict Management Tools). O país é um exemplo de contribuidor frequente em operações de paz, inclusive liderando por mais de dez anos a missão de paz no Haiti.” “Mesmo que o Brasil não tenha uma capacidade militar expressiva, em comparação com as potências ocidentais, ele busca construir credenciais na agenda de paz e segurança”


O Brasil e o acordo nuclear fracassado no Irã

Em contraste com essas duas histórias de sucesso, a iniciativa turco-brasileira, objeto da Declaração de Teerã de 2010, firmada por Lula, Ahmadinejad e Erdogan, foi um exemplo claro de busca de protagonismo destituída de cálculo realista da política de poder.

Era compreensível o envolvimento da Turquia – país com significativo peso político no Oriente Médio e com interesse em ser admitido na União Europeia. Muito incompreensível era a participação do Brasil, sem importância expressiva na região, o que levou muitos países a interpretá-la apenas como uma irrefletida busca de protagonismo a qualquer preço.

A rapidez da rejeição dos P5+1( membros permanentes do CSNU mais a Alemanha) à Declaração de Teerã reflete o óbvio – as grandes potências não querem perder seu monopólio de decisão em questões de segurança e estratégia. O previsível fracasso ficou claro na contundente derrota de Brasil e Turquia na votação da questão no Conselho de Segurança da ONU. Mais óbvio ainda ficou o malogro em virtude do longo processo negociador do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano, concluído, com a liderança de Obama, apenas em 2015.

Três anos depois, o Acordo – passo muito importante para reduzir a tensão regional – foi revogado por Trump, com consequências desoladoras para o Oriente Médio e para o Irã. Esses acontecimentos deixam claro o que era óbvio já em 2010 – dois países médios e desnuclearizados, Brasil e Turquia, nunca poderiam resolver a complexa questão do programa nuclear iraniano. As utopias têm um preço alto na história.

Essa avaliação negativa da Iniciativa turco-brasileira sobre o Programa Nuclear Iraniano é compartilhada por Mikelli Ribeiro.

“Os dois primeiros mandatos do presidente Lula foram marcados por uma busca de elevação do status brasileiro por diversos meios. …Dois exemplos, inclusive por resultados diversos, são ilustrativos nesse sentido: a participação na Minustah e a tentativa de um acordo nuclear entre Irã e o Ocidente. No primeiro caso, o Brasil liderou a missão de paz no Haiti por 13 anos (2004-20017). O saldo da participação brasileira é visto como positivo pela própria diplomacia. … Por outro lado, o governo Lula também procurou costurar um acordo com o Irã e o Ocidente para resolver o impasse sobre o programa nuclear daquele país. O resultado desse acordo foi a Declaração de Teerã. … Nesse caso, contudo, o resultado foi diverso. As grandes potências rejeitaram o acordo final, culminando com um saldo diplomático negativo para o país”.


A guerra na Ucrânia e a ambiguidade de Lula

Essa retrospectiva de sucessos e fracassos de nossa política externa criou expectativas de aprendizado com os erros do passado e, assim, de uma diplomacia esclarecida no atual governo Lula. Infelizmente esse não foi o caso.

As ambiguidades em nosso posicionamento com relação à guerra da Ucrânia, com as declarações do presidente agravando esse quadro, deixam claro que a busca de protagonismo está acima da defesa do interesse nacional. Essa atitude refletiu uma sobrevalorização da capacidade de uma potência média como o Brasil influenciar o rumo de uma guerra que pode selar o destino da segurança na Europa e no mundo. Ao se posicionar em diversos momentos mais favorável à potência invasora e mais crítico do Ocidente, Lula não contribuiu para elevar a credibilidade do Brasil junto à União Europeia e aos EUA, mas sim para consolidar seus laços com o Brics.

A diplomacia brasileira diante da guerra na Ucrânia reedita o desafio encarado pelo país 80 anos antes, na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, ao contrário dos expressivos êxitos colhidos pela equidistância pragmática de Vargas, a atual reviravolta na PEB – ao abandonar o princípio da não intervenção e se inclinar em favor do invasor – tem o potencial de comprometer a exitosa trajetória diplomática brasileira.

Essa visão encontra respaldo na análise de Mikelli Ribeiro:

“Lula propôs a formação de um grupo de países pela paz … O presidente, no entanto, passou a oscilar entre posicionamentos que sugeriam neutralidade e outros que tendiam a ser vistos como mais condescendentes com a Rússia, indicando uma suposta responsabilidade compartilhada entre russos e ucranianos pelo conflito. Esse tipo de fala teve forte repercussão negativa no mundo ocidental, fazendo com que, por vezes, o presidente tivesse que reajustar os posicionamentos” (6).


Uma diplomacia presidencial impulsiva: A guerra Israel x Hamas

O Itamaraty atuou de forma correta na guerra entre Hamas e Israel, com propostas construtivas durante a presidência brasileira do CSNU. Apesar desse perfil, nossa política externa ficou marcada pela ambivalência, em função do recorrente contraste entre uma postura institucional equilibrada e declarações do presidente Lula geradoras de descrédito e desconfiança.

Na retórica presidencial era evidente a assimetria entre, de um lado, o reconhecimento dos bárbaros crimes de guerra israelenses, e, de outro, a falta de condenação, com o devido rigor, das atrocidades cometidas pelo Hamas.

Esse desvirtuamento de pilares da PEB encontrou seu clímax na desproporcional comparação entre a tragédia na Faixa de Gaza e o Holocausto. Essas impertinências verbais do presidente, somadas ao padrão de íntima relação do Brasil com o Irã, mereceram críticas generalizadas e terminaram por dar argumento ao hediondo regime de Netanyahu.

Assim, o gesto de Lula, paradoxalmente, fortaleceu Netanyahu, hostilizado por ampla maioria da população, político autoritário e que tem os dias contados com o fim do conflito. A infeliz declaração de Lula reflete personalismo, busca de protagonismo injustificável e acentua os descaminhos de uma política externa com importante patrimônio de realizações.


A prevalência da ideologia sobre o pragmatismo

Um exame da política externa de Lula III revela a ausência de uma estratégia que permita dar coerência a nossas posições não só no plano global, mas também em nossa região. Esse vácuo se reflete em posturas inexplicáveis da perspectiva do interesse nacional, como a resiliente defesa de regimes autoritários na Venezuela e na Nicarágua. Um corolário desse descaminho de nossa política externa é a incapacidade de contar com apoios regionais para retomar iniciativas anacrônicas como a Unasul e as vigorosas críticas dos mandatários de Uruguai, Paraguai e até mesmo do Chile à proposta brasileira de volta ao passado.

A pretensão de status de grande potência assume diversas outras dimensões e vem condicionando uma busca de protagonismo exagerado, sem prévia estratégia de política externa.

A ruptura de nossa política tradicional de distanciamento em relação às superpotências vem assumindo no governo Lula uma dimensão nova e preocupante – o alinhamento com o Brics e o afastamento da OCDE.

O Brics, nascido como um agrupamento de perfil essencialmente econômico, refletia as aspirações das economias emergentes, onde a influência dos cinco membros se difundia sem grandes disparidades. Entretanto, por seu crescimento exponencial, a China assumiu a hegemonia do Brics. Além disso, a crescente rivalidade com os EUA transformou o agrupamento em vetor muito mais geopolítico do que econômico.

Em contraposição ao Brics, a OCDE é a organização voltada para as melhores práticas, para a boa gestão das políticas públicas e para estratégias de inclusão social. O processo decisório é certamente muito mais horizontal que o do Brics. A expansão da OCDE em direção a novos membros resulta de um longo processo de aprimoramento da governança e de avanço democrático. Em contraste, a recente incorporação de seis membros ao Brics resultou da imposição da China, apesar da relutância inicial de Brasil e Índia. Dos seis novos membros, apenas um tem regime democrático – a Argentina.

Essa opção preferencial do Brasil pelo Brics é mais um ponto de inflexão de nossa política externa em favor de um alinhamento com a China, ou seja, mais uma demonstração de que a busca de status como grande potência exige a escolha de lados – China – e o abandono de nossa tradição de autonomia em relação às superpotências.

Em síntese, a busca por status e prestígio internacional, por meio do envolvimento em numerosas iniciativas e sem uma estratégia definida, tem produzido uma política externa muitas vezes errática, com busca desenfreada por protagonismo e em detrimento do interesse nacional. Nesse sentido, retomando o título desse artigo, a superação do “complexo de vira lata” e a passagem para uma “diplomacia ativa e altiva” não significa evolução de nossa política externa. Ao contrário, talvez represente retrocesso. O primeiro qualificativo – ativa – pode levar ao ativismo, o segundo – altiva – pode conduzir à soberba. Nenhum desses dois padrões são atributos de uma política externa virtuosa.


Opinião por Sergio Florêncio

Ex-embaixador no Irã e na ONU e colunista do portal Interesse Nacional

 

sábado, 20 de abril de 2024

O enfrentamento Irã-Israel - Sergio Florêncio

 Rivalidade Israel x Irã. Da Guerra por Procuração àConfrontação Direta 

 

Os recentes ataques diretos armados entre Israel e Irã voltaram a inflamar o Oriente Médioa provocar realinhamento geopolítico e a potencializar instabilidade global . Em retaliação ao bombardeio israelense de sua Embaixada em Damasco em 1º de abril, o Irã atacou diretamente Israel, com dezenas de mísseis e centenas de drones no dia 13 de abril. Essas duas investidas armadas romperam o padrão dashostilidades entre os dois países. Por primeira vez Israel foi vítima de investida militar lançada diretamente de Teerã contra seu território.  De forma inédita, o Irã deixou de usar proxies do Eixo daResistência para atacar seu maior inimigo na região. Dia 18 de abril, apesar de apelos dos aliados, Israel alvejou instalações militares em território iraniano, em ataque considerado de baixa intensidade. Odois  países cruzaram o Rubicão, o risco de escalada continua elevado, e o mundo assiste inquieto o desdobramento do conflito entre as duas maiores potências bélicas do Oriente Médio.

Desde a vitória da Revolução, a política externa iraniana tem dois pilares – a sobrevivência da República Islâmica e o antiamericanismo. As monarquias conservadoras do Golfo sempre procuraram desestabilizar a República Islâmica e os EUA/Israel  alimentaram idêntico propósito, com a política de regime change com ataques à liderança dos Guardas Revolucionários. Em resposta, a estratégia iraniana consiste em alimentar grupos paramilitares, como Hezbollah, Hamas e Houthis, que atuam como seus procuradores – proxies – na desestabilização da região.  Ao mesmo tempo, o outro pilar – o antiamericanismo – consiste e em hostilizar os EUA no Iraque, no Sul do Líbano, na Líbia e na Síria em pregar a destruição do Estado de Israel

Ao longo de quarenta e cinco anos de existência da Revolução, o Irã se transformou na grande potência regional (com avançado programa nuclear) que rivaliza com Israele no  player global aliado da China (como exportador de petróleo) e da Rússia (como fornecedor de armamento para a guerra na Ucrânia). Poucos anos antes da vitória da Revolução, o Irã era uma  sociedade com 34 milhões de habitantes, sendo metade ruralAtualmente a população é de 80 milhões, 75 % urbana, metade dos universitários são mulheres, embora a taxa de desemprego seja o dobro  da dos homens. 

A consequência política dessas profundas transformações foi uma classe média emergente, com elevado nível educacional e altamente insatisfeita. Desde 1979, a cada dez anos, grandes movimentos de massa se insurgem contra a liderança religiosa e são violentamente massacrados. Isso levou Ali Vaeza assim caracterizar o atual regime“ É uma teocracia que inadvertidamente secularizou a população. É uma república que demoliu a base participativa para legitimar seu poder.”

Esse país, atualmente dotado de sofisticada tecnologia, de sólido aparato militar e de fortes alianças geopolíticas,  lançou, por primeira vez na história moderna, ataque armado ao território israelense diretamente de Teerã.  Como explicar tamanha inflexão nas guerras por procuração ? Que magnitude poderão ter as próximas retaliações de ambos os ladosA confrontação militar poderá escalar e envolver outros atores regionais e globais?

O ataque iraniano a Israel, com cerca de 350 drones e mísseis, foi precedido de numerosas investidas da Forças de Defesa Israelenses (FDI) a instalações militares e a oficiais de alta patente dos Guardas Revolucionários.  Essareiteradas incursões armadas  culminaram na morte de dois líderes da Guarda Revolucionária e na destruição parcial da Embaixada em Damasco, correspondente a um ataque ao território iraniano. Essa iniciativa radical do governo Netanyahu foi interpretada como insólita provocação, que fez romper a “paciência estratégica” de responder a ataques israelenses por meio de proxies, e protagonizar o ataque direto a Israel.

Os desdobramentos do ataque iraniano assumiram, entre outras, as seguintes principais dimensões. 

PrimeiroOs recursos militares envolvido no ataque iraniano foram de dimensão considerável. Entretanto, o resultado concreto foi nulo - quase 100% dos artefatos lançados foram interceptados. Isso teve duplo efeito de arrefecer as tensões de ambos os lados. As facções radicais no Irã sempre interpretaram a “paciência estratégica”, diante das reiteradas investidas israelenses, como sinônimo de fraqueza. A robustez do ataque silenciava essa oposição doméstica. Do outro lado, os EUA procuravam convencer as FDI e o governo de coalizão que o resultado do ataque foi uma clara vitória israelense, com o propósito de preparar uma eventual tréplica  capaz de esfriar os ânimos e, assim, evitar a escalada. 

Segundo, esse êxito do sistema de defesa antiaérea foi alcançados graças a uma coalisão de EUA, países europeus e surpreendentemente, de países árabes, tais como Arábia Saudita, Emirados Árabes e Jordânia.Embora o efeito real da participação árabe na coalizão tenha sido muito modesto, o simbolismo de países árabes lutado ao lado de Israel em uma guerra contra o Irã tem uma vigorosa carga simbólica na política e no imaginário popular.  

TerceiroA barbárie de mais de 35 mil civis mortos, praticada pelo governo Netanyahu,  transformouIsrael em algoz no Oriente Médio e  em pária internacional. Entretanto, a magnitude do ataque iraniano – dezenas de mísseis e centenas de drones, num total de cerca de 350 artefatos – inverteu a equação. Israel saida condição de isolamento internacional – criticado até pelos EUA – para receber apoio de uma multifacetada coalizão internacional, incluindo Arábia Saudita e outros países árabes

Quarto. Como visto, um primeiro efeito do ataque iraniano foi  alterar a percepção a respeito de Israel, que migrou da condição de algoz para vítima no Oriente Médio. Entretanto, esse ataque, ao se concentrar apenas em alvos militares e ao ser antecipado para os principais países envolvidos, passou a ser interpretado como uma resposta aceitável, sobretudo diante da expectativa de radicalização por parte do Irã.

Uma vez concretizado o ataque iraniano, a grande inquietação passou a ser a reação israelense. Essa era imprevisível porque, desde 7 de outubro, quando teve início a guerra entre Israel e Hamas, as insistentes pressões norte-americanas sobre Israel, destinadas a conter o ímpeto destruidor das FDI, tiveram eficácia próxima de zero. Nesse contexto, a resposta israelense de 18 de abril foi, de certa forma , um alívio. Não teve aquela intensidade capaz de projetar uma escalada do conflito. O fato de não produzir morte de civis e, sobretudo, de não danificar instalações nucleares iranianas constitui passo rumoa uma modesta distensão entre os rivais históricos. 

Apesar de pairar grande incógnita sobre o comportamento dos dois países, a nova equação que surgiu após os ataques mútuos dos dias 13 e 17 de abril corrente, produziram variáveis que parecem atuar mais em favor dcontenção do que da confrontação.  

Um olhar mais estrutural sobre a rivalidade entre Israel e Irã revela que nenhum dos atores tem interesse em uma guerra aberta. O primeiro porque o conflito direto agravaria de forma exponencial o isolamento internacional que  experimenta  desde a barbárie praticada sobre os palestinos na Faixa de Gaza. O segundo porque a guerra poderia comprometer os avanços em seu importante programa nuclear. Além disso, o Irã, juntamente com Rússia e China, são os beneficiários do enorme desgaste, em termos de poder e influência, sofrido por Israel e pelos EUA. Esse último perdeu credibilidade, pela incapacidade de conter a hegemonia destrutiva de Netanyahu, que compromete e abala a democracia israelense, sobrevivência do povo palestino e a paz no Oriente Médio.


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