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sábado, 20 de abril de 2024

O enfrentamento Irã-Israel - Sergio Florêncio

 Rivalidade Israel x Irã. Da Guerra por Procuração àConfrontação Direta 

 

Os recentes ataques diretos armados entre Israel e Irã voltaram a inflamar o Oriente Médioa provocar realinhamento geopolítico e a potencializar instabilidade global . Em retaliação ao bombardeio israelense de sua Embaixada em Damasco em 1º de abril, o Irã atacou diretamente Israel, com dezenas de mísseis e centenas de drones no dia 13 de abril. Essas duas investidas armadas romperam o padrão dashostilidades entre os dois países. Por primeira vez Israel foi vítima de investida militar lançada diretamente de Teerã contra seu território.  De forma inédita, o Irã deixou de usar proxies do Eixo daResistência para atacar seu maior inimigo na região. Dia 18 de abril, apesar de apelos dos aliados, Israel alvejou instalações militares em território iraniano, em ataque considerado de baixa intensidade. Odois  países cruzaram o Rubicão, o risco de escalada continua elevado, e o mundo assiste inquieto o desdobramento do conflito entre as duas maiores potências bélicas do Oriente Médio.

Desde a vitória da Revolução, a política externa iraniana tem dois pilares – a sobrevivência da República Islâmica e o antiamericanismo. As monarquias conservadoras do Golfo sempre procuraram desestabilizar a República Islâmica e os EUA/Israel  alimentaram idêntico propósito, com a política de regime change com ataques à liderança dos Guardas Revolucionários. Em resposta, a estratégia iraniana consiste em alimentar grupos paramilitares, como Hezbollah, Hamas e Houthis, que atuam como seus procuradores – proxies – na desestabilização da região.  Ao mesmo tempo, o outro pilar – o antiamericanismo – consiste e em hostilizar os EUA no Iraque, no Sul do Líbano, na Líbia e na Síria em pregar a destruição do Estado de Israel

Ao longo de quarenta e cinco anos de existência da Revolução, o Irã se transformou na grande potência regional (com avançado programa nuclear) que rivaliza com Israele no  player global aliado da China (como exportador de petróleo) e da Rússia (como fornecedor de armamento para a guerra na Ucrânia). Poucos anos antes da vitória da Revolução, o Irã era uma  sociedade com 34 milhões de habitantes, sendo metade ruralAtualmente a população é de 80 milhões, 75 % urbana, metade dos universitários são mulheres, embora a taxa de desemprego seja o dobro  da dos homens. 

A consequência política dessas profundas transformações foi uma classe média emergente, com elevado nível educacional e altamente insatisfeita. Desde 1979, a cada dez anos, grandes movimentos de massa se insurgem contra a liderança religiosa e são violentamente massacrados. Isso levou Ali Vaeza assim caracterizar o atual regime“ É uma teocracia que inadvertidamente secularizou a população. É uma república que demoliu a base participativa para legitimar seu poder.”

Esse país, atualmente dotado de sofisticada tecnologia, de sólido aparato militar e de fortes alianças geopolíticas,  lançou, por primeira vez na história moderna, ataque armado ao território israelense diretamente de Teerã.  Como explicar tamanha inflexão nas guerras por procuração ? Que magnitude poderão ter as próximas retaliações de ambos os ladosA confrontação militar poderá escalar e envolver outros atores regionais e globais?

O ataque iraniano a Israel, com cerca de 350 drones e mísseis, foi precedido de numerosas investidas da Forças de Defesa Israelenses (FDI) a instalações militares e a oficiais de alta patente dos Guardas Revolucionários.  Essareiteradas incursões armadas  culminaram na morte de dois líderes da Guarda Revolucionária e na destruição parcial da Embaixada em Damasco, correspondente a um ataque ao território iraniano. Essa iniciativa radical do governo Netanyahu foi interpretada como insólita provocação, que fez romper a “paciência estratégica” de responder a ataques israelenses por meio de proxies, e protagonizar o ataque direto a Israel.

Os desdobramentos do ataque iraniano assumiram, entre outras, as seguintes principais dimensões. 

PrimeiroOs recursos militares envolvido no ataque iraniano foram de dimensão considerável. Entretanto, o resultado concreto foi nulo - quase 100% dos artefatos lançados foram interceptados. Isso teve duplo efeito de arrefecer as tensões de ambos os lados. As facções radicais no Irã sempre interpretaram a “paciência estratégica”, diante das reiteradas investidas israelenses, como sinônimo de fraqueza. A robustez do ataque silenciava essa oposição doméstica. Do outro lado, os EUA procuravam convencer as FDI e o governo de coalizão que o resultado do ataque foi uma clara vitória israelense, com o propósito de preparar uma eventual tréplica  capaz de esfriar os ânimos e, assim, evitar a escalada. 

Segundo, esse êxito do sistema de defesa antiaérea foi alcançados graças a uma coalisão de EUA, países europeus e surpreendentemente, de países árabes, tais como Arábia Saudita, Emirados Árabes e Jordânia.Embora o efeito real da participação árabe na coalizão tenha sido muito modesto, o simbolismo de países árabes lutado ao lado de Israel em uma guerra contra o Irã tem uma vigorosa carga simbólica na política e no imaginário popular.  

TerceiroA barbárie de mais de 35 mil civis mortos, praticada pelo governo Netanyahu,  transformouIsrael em algoz no Oriente Médio e  em pária internacional. Entretanto, a magnitude do ataque iraniano – dezenas de mísseis e centenas de drones, num total de cerca de 350 artefatos – inverteu a equação. Israel saida condição de isolamento internacional – criticado até pelos EUA – para receber apoio de uma multifacetada coalizão internacional, incluindo Arábia Saudita e outros países árabes

Quarto. Como visto, um primeiro efeito do ataque iraniano foi  alterar a percepção a respeito de Israel, que migrou da condição de algoz para vítima no Oriente Médio. Entretanto, esse ataque, ao se concentrar apenas em alvos militares e ao ser antecipado para os principais países envolvidos, passou a ser interpretado como uma resposta aceitável, sobretudo diante da expectativa de radicalização por parte do Irã.

Uma vez concretizado o ataque iraniano, a grande inquietação passou a ser a reação israelense. Essa era imprevisível porque, desde 7 de outubro, quando teve início a guerra entre Israel e Hamas, as insistentes pressões norte-americanas sobre Israel, destinadas a conter o ímpeto destruidor das FDI, tiveram eficácia próxima de zero. Nesse contexto, a resposta israelense de 18 de abril foi, de certa forma , um alívio. Não teve aquela intensidade capaz de projetar uma escalada do conflito. O fato de não produzir morte de civis e, sobretudo, de não danificar instalações nucleares iranianas constitui passo rumoa uma modesta distensão entre os rivais históricos. 

Apesar de pairar grande incógnita sobre o comportamento dos dois países, a nova equação que surgiu após os ataques mútuos dos dias 13 e 17 de abril corrente, produziram variáveis que parecem atuar mais em favor dcontenção do que da confrontação.  

Um olhar mais estrutural sobre a rivalidade entre Israel e Irã revela que nenhum dos atores tem interesse em uma guerra aberta. O primeiro porque o conflito direto agravaria de forma exponencial o isolamento internacional que  experimenta  desde a barbárie praticada sobre os palestinos na Faixa de Gaza. O segundo porque a guerra poderia comprometer os avanços em seu importante programa nuclear. Além disso, o Irã, juntamente com Rússia e China, são os beneficiários do enorme desgaste, em termos de poder e influência, sofrido por Israel e pelos EUA. Esse último perdeu credibilidade, pela incapacidade de conter a hegemonia destrutiva de Netanyahu, que compromete e abala a democracia israelense, sobrevivência do povo palestino e a paz no Oriente Médio.


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Um botafoguense terminal escreve um hino em homenagem ao seu time do coração para um neto genial - Sergio Florêncio

 [Pode haver um botafoguense assim fanático? Pode…]

[O titulo é meu, PRA]

Recebido em 14/11/2023, do embaixador Sergio Florêncio, o mais humano dos diplomatas que conheci. PRA

Sergio Abreu e Lima Florencio

Carioca de Vila Isabel, diplomata, Tricolor de Coração,Botafoguense por admiração. A família ampliada de tios, primos, filhos e netos tem cerca de 40 Tricolores e apenas 1 exceção, que confirma a boa regra !

Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2023

Meu neto Omar tem cinco anos de vida e muito mais de imaginação.  Ele tem Poderes Especiais adquiridos na Patrulha Canina,  talento.para percussão e forte vocação para Diretor de teatro. Quando vê mais de três pessoas, inventa logo um enredo e vai transformando os familiares em personagens de uma peça imaginária. Sua paixão pelo futebol é tanta, que lembra  Sócrates com a  Democracia Corintiana. É tão democrático que  torce por três times ao mesmo tempo. O Botafogo da avó Célia, o Flamengo da mãe Cris e o Fluminense do pai Thiago e do avô Sergio. Nasceu carioca mas vive nordestino no  Cariri cearense.

Ontem descobri que ele pode resolver a angústia da avó Célia doente pelo seu Botafogo. 

O time que teve gigantes da estatura de Nilton Santos, Garrincha, Didi e Jairzinho,  vinha brilhando com liderança isolada no Brasileirão. Com confortável  distância de 13 pontos para o vice-líder,o Fogão tinha toda pinta de campeão.  Já estava com uma mão no título. Mas eis que, nas últimas rodadas, a sombra do  anti-Sobrenatural de Almeida passou a perseguir o Glorioso Fogão.  Com um ataque ágil e talentoso, abria logo três gols de vantagem sobre o adversário.  Mas acabava perdendo pelo placar elástico de 4x3.  Nesta triste semana,perdeu a liderança.  E aquela vantagem maiúscula de 13 pontos ameaçava virar pó.

Mas ontem eu descobri que o neto Omar tem tudo para ser a salvação da lavoura para o Glorioso Fogão. A verdadeira esperança do Alvinegro. 

Por que, perguntaria o inquieto leitor? A razão insofismável para o neto Omar salvar o Botafogo é simples, e  clara!

No fundo, qual é o grande problema botafoguense? É a ameaça de "morrer na praia". 

Nosso poeta baiano Dorival Caymmi ensinou, com inspirados  versos, que " é doce morrer no mar ... nas ondas verdes do mar".

Meu neto Omar tem uma natural e nominal identificação com Caymmi. 

Ontem, ao ver a praia e o mar de Copacabana, pensei no destino cruel  que ameaça o Glorioso Fogão.  Assustado com o perigo de morrer na praia, lembrei que o neto com Poderes Especiais poderia ajudar o Bota a evitar a cruel injustiça de " morrer na praia", depois daquela confortável liderança 

 de 13 pontos para o segundo colocado. 

Olhei a praia ameaçadora, lembrei do neto Omar, evoquei Caymmi com seu " é doce morrer no mar". Num estalo de Vieira, mandei um whatsapp para o neto Omar no  Cariri.  Expliquei que   Omar , com esse nome, era a salvação do Botafogo dele e da avó Célia. Com espon taneidade infantil e lógica imediata, retrucou logo, lá do Cariri. " Não tô entendendo nada,  vô". Expliquei então que bastava o Fogão evocar,com fé, seu  nome - Omar- que estaria salvo do fantasma de " morrer na praia". Ele insistiu- "Piorou. Agora é que não é tô ente de do nada mesmo". Aí eu voltei a explicar porque ele, O mar, podia salvar o Botafogo, o impedindo de " morrer na praia". Agora eu explicava com a calma de um tricolor recém Campeão da Libertadores. Disse então que ele, O mar, com esse lindo nome tão marítimo,  nunca podia " morrer na praia". Simplesmente porque " O mar nunca morre na praia". Ele ficou em silêncio.

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Essa historinha vai para a avó Célia e.para meu primo médico Wilson, ambos apaixonados pelo Fogão. E para todos os botafoguentes angustiados com a ameaça de morrer na praia. Saudações Tricolores. (SF)


segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Interferência do STF na Economia - Embaixador Sergio Florêncio

 Notícia original:


Comentários embaixador Sergio Florêncio:

“ O STF que há muito vem, na política, exorbitando o papel de legislador e executivo o que deu margem para o Bolsonaro justificar seus lampejos ditatoriais, agora resolveu interferir diretamente na economia.

O povo nunca lhe deu um voto para exercer esse papel.

O Supremo cometeu excessos, sem dúvida, o que era inevitável num sistema político que dá poderes monopolista e  injustificáveis ao  Presidente da Câmara. Isso  impediu avançar o impeachment de um PR com inúmeros crimes de responsabilidade, prevaricação e outros. 

Isso e outras indefinições do legislativo obrigou o judiciário/STF a decisões fora de suas atribuições.  Mas, diante das ameaças gravíssimas à democracia, ao Estado de Direito e ao sistema eleitoral , o STF e o TSE tiveram papel exemplar. Como bem demonstra  Mounk em seu livro  O Povo contra a Democracia, os regimes autocráticos começam deslegitimando o Judiciário. O Brasil escapou  desse trágico destino. O STF foi a peça chave da resistência.“



quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Uma lição do México ao Brasil - Sergio Florêncio

Meu colega e amigo Sergio Florêncio foi embaixador do Brasil no México e até escreveu um livro sobre os mexicanos (Editora Contexto)

Uma lição do México ao Brasil

Sergio Florêncio 

Em 2010 o México passou um ano inteiro celebrando o Bicentenário de sua independência. No dia do aniversário o governo organizou atos cívicos em todas as capitais, com o propósito de resgatar seu passado,  de unir e integrar a nação , de  respeitar as comunidades indígenas e  de fortalecer a democracia.  

Hoje, em 2022, em flagrante  contraste com tudo isso, o Brasil sequestrou o Bicentenário e o usou para propaganda eleitoral. Uma festa patriótica virou mais um episódio   eleitoreiro . Nenhum presidente do Brasil no período da redemocratização transformou o 7 de setembro em palanque  eleitoral. Bolsonaro praticamente ignorou 200  anos de passado e o 7 de setembro do presente. Nenhuma palavra sobre como enfrentar os reais problemas do país  - desemprego , inflação,  fome de 33 milhoes de brasileiros , desempenho econômico . 

Em lugar de propostas para enfrentar os problemas do.presente e os desafios do futuro, o Presidente se concentrou em ofensas a adversário visto como inimigo, em manipulação politica da religiosidade do povo, em manifestações ridículas de machismo, em auto elogios vazios e em falsas  realizações .

 Conseguiu colocar multidões de seus fiéis seguidores nas ruas. Mas nao conseguiu comunicar qualquer mensagem que ajude a promover  crescimento econômico,   politicas sociais   sustentáveis e política externa que retire o país da condição de pária internacional. 

Nada construtivo foi mencionado.   Bolsonaro esqueceu o.passado de 200 anos, sequestrou a festa cívica do presente e omitiu o futuro. Diante de tantos absurdos, a sociedade deverá resgatar sua história e  afastar Bolsonaro para " o bem do povo e felicidade geral da nação".  A esperança vai vencer o ódio.


segunda-feira, 13 de junho de 2022

Lançamento-debate em torno de dois livros sobre a diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida



 Nesta terça-feira 14/06/2022, 17hs, lançamento-debate de dois livros meus, Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Appris) e O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021 (Kindle), pelo canal do IAB (https://www.youtube.com/tviab), na companhia do embaixador Sergio Florêncio, do acadêmico Arnaldo Godoy e do jurista e colega diplomata Paulo Fernando Pinheiro Machado, e ainda o presidente Sydney Sanches e a diretora Marcia Dinis, do IAB.


terça-feira, 26 de abril de 2022

Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira - resenha de Paulo Roberto de Almeida

 Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira


 
 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Resenha do livro: Sergio Abreu e Lima Florêncio, Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Appris, 2022; ISBN: 978-65-250-2114-0)


  

Diplomatas costumam ser funcionários discretos, afáveis, mas reservados; são muito cordiais, mas algo distantes; também são bem-informados, mas geralmente calados; quando escrevem memórias, elas são invariavelmente politicamente corretas, contando largos trechos do itinerário pessoal, mas evitando de ofender quaisquer parceiros diplomáticos, amigos ou “inimigos” do Brasil. Não é o caso deste livro de memórias pessoais e diplomáticas, de um grande e velho amigo de décadas na carreira e que teve uma das trajetórias mais fascinantes, tanto no plano pessoal e familiar, quanto no campo da diplomacia. 

O embaixador Sergio Florência compôs um relato inédito nos anais da diplomacia brasileira, talvez até mundial, o que transparece, aliás, no subtítulo da obra, “de Vila Isabel a Teerã”, antes e depois da revolução dos aiatolás. O título já chama a atenção, não só pelos termos, mas sobretudo pela proporção, inversa, de seus componentes: as “memórias” começam por sete capítulos dedicados à “revolução”, mais exatamente pelo “filho da revolução”, o do próprio Sérgio e de Sonia, nascido na capital iraniana na turbulência dos anos em que ele se desempenhou como “encarregado de negócios” na embaixada do Brasil, depois que o embaixador, muito ligado à família do xá, foi retirado pelo Itamaraty. 

A “diplomacia” aparece na segunda parte, dez densos capítulos, menos dedicados a temas de política internacional e bem mais a “personagens” da convivência profissional do autor, inclusive este que aqui escreve, homenageado duplamente, numa recepção em sua casa, quando de minha tardia promoção, e no segundo capítulo deste bloco, onde sou tratado como “o embaixador ombudsman”. Finalmente, a terceira parte, a mais emotiva e sensível, trata dos afetos, aparentemente apenas 26 deles, mas muito mais do que isso, como transparece em cada uma das linhas dedicadas a filhos, netos, à sua mulher, familiares, conhecidos, interações inesperadas, até animais. Finalmente, dois apêndices voltam a tratar da revolução iraniana e um final relata o refúgio na embaixada do Brasil em Quito, onde Sérgio era embaixador, do presidente do Equador, escapando de um golpe de Estado.

Quando digo que este livro de “memórias” não se parece em nada com outras memórias diplomáticas, fica transparente logo no primeiro capítulo da terceira parte, a dos afetos, quando Sérgio discorre de forma amorosa sobre o seu “meio século de flor amorosa” ao lado de Sonia, primeiro cercando aquela moça “muito linda, sabida e irreverente”, depois inventando uma desculpa qualquer para visitar a jovem revisora do Jornal do Brasil, para culminar no pedido de casamento, em 1971, e o que veio depois, como ele mesmo descreve numa mensagem ao filho, em 2021, sobre a lua de mel improvisada:

Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, oito netos, 27 mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica, um golpe de estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar. (p. 80)

 

A crônica seguinte, “A menina do Sacré-Coeur e o sertanejo do Seridó” vai no memo tom, relatando a miscigenação cultural entre uma estudante que falava francês e o migrante do sertão para a aventura no Rio de Janeiro dos anos 1930, que se encontraram alguns anos depois nos corredores do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores do Estado Novo: 

Nesse ministério..., a Menina do Sacré-Coeur, que falava francês e tocava piano, apaixonou-se pelo Sertanejo do Seridó, que gostava de trovadores, repentistas e de baião. Em certo sentido era a elite que se encontrava com o povo. (p. 83)

 

Mas não só a parte dos “afetos” tem esse tipo de tratamento coloquial, uma narrativa sobretudo intimista, um Proust de Vila Isabel, onde o casal se instalou, mas as duas outras partes também tratam de assuntos “sérios” num linguajar coloquial, quase um Balzac do subúrbio do Rio. Impagável é o relato da “avó monarquista”, a atalhar os netos que pretendiam que a República era mais democrática: “E a Inglaterra? Você quer dizer que o Brasil, essa republicazinha, é mais é mais democrática que a Inglaterra? Ora bolas, vocês são uns bobos.” (p. 96). Impressionante também é o relato, bem mais dramático, sobre a retirada da família de Teerã durante a revolução e a guerra contra o Iraque, quando Sérgio contrariou as instruções de Brasilia e fez pessoalmente a viagem de carro até a fronteira da União Soviética, quanto o Itamaraty queria que os familiares saíssem pela Turquia, o que revela o espírito decidido do então jovem diplomata encarregado de negócios: 

Considerava uma irresponsabilidade colocar os brasileiros diante de graves riscos apenas para cumprir uma ordem que desconhecia a realidade. Tive um bate-boca com um diplomata que minha memória seletiva apagou do mapa. Só me lembro esbravejando um grito de independência: ‘Vocês têm poder para fazer o que quiserem. Mas fiquem sabendo de uma coisa: minha mulher e nossos três filhos não vão pela Turquia de jeito nenhum. Vão pela União Soviética. Nem com ordem do Presidente da República.” O bate-boca chegou aos ouvidos do então Chefe da Divisão de Comunicações, que depois vim a descobrir ser uma pessoa encantadora – Claudio Sotero Caio – e foi aprovada a rota via União Soviética. (p. 35)

 

O resto desse relato é eletrizante, como se fosse um roteiro de filme de Hollywood, com lances sempre inesperados, inclusive trafegar a toda velocidade, com faróis apagados, numa Teerã em pleno toque de recolher. Mas não só os capítulos “revolucionários” são absolutamente fascinantes, todo o livro transparece a maneira otimista, e divertida, de relatar casos os mais bizarros e inusitados num estilo próprios dos grandes mestres da escrita, como aliás confirma o prefaciador, sob a pena do embaixador Rubens Ricupero: 

Se o livro de Sergio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schumann, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann. (p. 11)

 

Tenho especial satisfação de fazer esta resenha, não pela generosa dedicatória que Sérgio me fez, ao entregar-me o livro na Biblioteca do Itamaraty – na qual ele reconhece meu “trabalho competente e corajoso de denunciar os graves equívocos (e acertos) de nossa política externa” – mas também por dedicar um capítulo inteiro a este diplomata contrarianista, chamado de “embaixador ombudsman”, como já referido. Já seu primeiro parágrafo me soa inteiramente elogioso, mas também correto no plano institucional: 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função.

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. (p. 54)

 

Sou imensamente grato ao Sérgio Florêncio por ter reconhecido minhas tribulações profissionais, já pela segunda vez, durante a “tragédia” que foi a gestão do ex-chanceler acidental, como eu sempre me referi ao autor dos delírios diplomáticos durante a primeira metade do governo negacionista e antiglobalista: 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do presidente e do Chanceler. (p. 55; texto de 30 de janeiro de 2021, pouco antes da queda do desequilibrado gestor)

 

Mas ele também presta homenagem a um dos seus mais agradáveis chefes de posto, o romancista e acadêmico Josué Montello, que foi o titular da delegação do Brasil junto à Unesco, em Paris, quando Sérgio ali serviu com esse “Grande Contador de Histórias”, como se chama esse capítulo, no qual descreve o “método” de um escritor compulsivo que, acometido por insônia, encontrou a técnica para “enganar” a necessidade de dormir, com isso conseguindo produzir mais de cem livros:

Todas as madrugadas, por volta das três da manhã, ele despertava, sentava em frente a uma folha de papel em branco e não resistia. Era preciso preencher aquela ‘tabula rasa’ que nada continha. Mas que despertava irresistível encanto em meu Grande Contador de Histórias. (...)

Compreendi então sua máxima a respeito da irresistível atração que uma folha de papel em branco exerce sobre todo homem. Seria essa atração um movimento, uma inclinação de toda a humanidade? Seria o mero resultado de um metabolismo individual que passou a ser respeitado? Fica a pergunta no ar. (...)

Mas a atração da folha virgem alimentava uma criatividade exponencial, gerava frutos de uma mente que não parava de produzir histórias, de contar um conto sempre acrescentando um ponto. Tão grande era sua pulsão criativa, que nas manhãs de trabalho, como Embaixador do Brasil na Unesco, precisava contar a seu colaborador a arte de ocupar o espaço de uma folha de papel em branco. (p. 72)

 

Creio que eu e Sérgio padecemos do mesmo “mal”: não podemos ver uma folha de papel em branco, no meu caso prolongando a noite durante várias horas, madrugada adentro, nos velhos tempos preenchendo cadernos e mais cadernos de notas, de uns tempos para cá, contemplando uma desafiadora tela em branco no processador de textos. Assim concluo, pois, às 3hs da madrugada, a leitura deste fascinante livro de Sérgio Florêncio. Recomendo a todos que façam o mesmo, nos horários que julgarem mais convenientes. Comecem pelos afetos, depois enfrentem o roteiro da revolução e terminem pela diplomacia. Mas, em qualquer ordem, as crônicas desta autobiografia emotiva são absolutamente encantadoras.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4135: 26 abril 2022, 4 p.


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Permito-me incluir aqui, nesta postagem, o capítulo do livro que ele dedica a mim: 


 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 


     In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 54-55) 


 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios. 

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heroicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricúpero e do próprio nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.