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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Mercosul e União Europeia: vidas paralelas? (1994) - Paulo Roberto de Almeida

MERCOSUL e UNIÃO EUROPEIA: VIDAS PARALELAS?


Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas.
Ex-Editor do Boletim de Integração Latino-Americana.


O processo de integração na União Europeia apresenta atualmente alguns problemas de crescimento, típicos daqueles estados de transição que os cientistas “kuhnianos” chamariam de “rupturas de paradigma”. A presente fase da integração no Mercosul revela, por sua vez, dificuldades de implementação características dos momentos históricos de emergência de novas realidades econômicas e sociais, que são, como tais, sempre difíceis de serem aceitas ou integradas aos esquemas e comportamentos políticos tradicionais. 
Trata-se, num como noutro caso, de típicas crises de crescimento, aparentemente superáveis com alguma dose de imaginação jurídica e várias doses de vontade política, à condição, evidentemente, que os interesses sociais e econômicos nacionais dos países membros sejam razoavelmente coincidentes. 
O presente artigo, de natureza analítica e exploratória sobre o atual processo de institucionalização do Mercosul, em perspectiva comparada com o da União Europeia, persegue um duplo objetivo: por um lado, ele discute alguns dos problemas da “transição” em cada uma das regiões; por outro lado, ele tenta definir, em relação ao Mercosul, o que poderia ser feito para superar a aparente situação de desconforto político e de indefinição institucional.
A pergunta do subtítulo deste ensaio provocador tira sua evidente inspiração da obra mais conhecida do grande historiador grego do primeiro século de nossa era, dedicada a pares de biografias. Plutarco, ao contar em seu Bioi paralleloi o caráter e os nobres feitos dos soldados, legisladores, oradores e homens de Estado gregos e romanos, pretendia ressaltar, de maneira comparada, os elementos historicamente significativos e individualmente relevantes que podiam ajudar a explicar a grandeza intelectual das cidades gregas, de um lado, e o poderio militar da República romana, do outro. 
A intenção do Autor, ao reportar-se a processos comparados numa abordagem metodológica aparentemente sincrônica, não é a de explicitamente retirar da experiência histórica da integração na União Europeia, quaisquer que sejam os eventuais méritos instrumentais ou as supostas virtudes didáticas de seus “padrões” integracionistas, fórmulas organizacionais ou modelos de comportamento político para a conformação institucional do Mercosul, na presente fase de transição. O objetivo intelectual é, mais simplesmente, o de, numa perspectiva diacrônica, ressaltar o fato de que, em algumas oportunidades, retornar ao passado (europeu) é por vezes a melhor garantia de que a construção do futuro (no Cone Sul) possa ser feita em sólidas bases.

1. UE e MERCOSUL: problemas atuais
Comecemos pelo “estado” da União Europeia. Após quarenta anos de progressos contínuos, alternados com períodos de sensível acalmia (ou de relativa estagnação), o processo de integração na Europa enfrenta atualmente uma zona de tempestades, derivada basicamente dos problemas seguintes: 
a) estado moroso da economia, apontando para um novo ciclo de retomada de crescimento, mas, desta vez, extremamente parcimonioso em termos de geração de empregos;
b) crise latente no setor agrícola em face de novas necessidades de adaptação aos acordos derivados da Rodada Uruguai e à própria conjuntura econômica interna (limitações creditícias determinadas pela própria expansão orçamentária exagerada da PAC, a “loucura” agrícola comum);
c) problemas institucionais persistentes, com uma preocupante indefinição dos mecanismos (se comunitários ou intergovernamentais) que devem orientar a continuidade da construção europeia, tal como determinada pela agenda de Maastricht, o que pode colocar em risco a projetada conferência de revisão de 1996;
d) desigualdades regionais remanescentes e diferenças de visão política daí decorrentes, que poderão eventualmente agravar-se com o ingresso dos quatro novos países membros (os 3 nórdicos e a Áustria) ou com o previsto alargamento a novos parceiros nas fronteiras centro-orientais – países do Grupo de Visegrad (Polônia, República Tcheca, Eslováquia e Hungria) e os Estados bálticos, mais hipoteticamente a Ucrânia –, assim como a prometida abertura a novos postulantes na frente meridional (candidaturas já postas de Malta, Chipre e Turquia);
e) uma caminhada dolorosa em direção da prometida (e ainda longínqua) união monetária, com pouquíssimos países satisfazendo aos critérios de convergência definidos no tratado de Maastricht;
f) uma perda geral de entusiasmo, no seio da sociedade civil, com a própria ideia da integração europeia e o consequente surgimento de correntes declaradamente “anti-maastrichtianas” (quando não anti0europeias, como revelado nas eleições para o Parlamento Europeu na França) ou, pelo menos, favoráveis a uma “Europa dos cidadãos”, no confronto de uma suposta Europa “tecnocrática” conduzida a partir de Bruxelas;
g) as inevitáveis frustrações da (até agora inexistente) política exterior e de segurança comum e, last but not least, um atraso mais que revelador na implementação dos acordos de Schengen sobre a livre movimentação interna de pessoas.
No confronto com essa espinhosa agenda europeia de debates (ou de confrontos, alguns seriam levados a dizer), o processo de integração do Mercosul parece avançar como sobre patins. De fato, a conjuntura integracionista no Cone Sul conheceu avanços notáveis nos terrenos da liberalização comercial, dos investimentos recíprocos e da interpenetração das duas maiores economias da região, o Brasil e a Argentina. O crescimento do intercâmbio intrarregional foi várias vezes superior à taxa de aumento do comércio global em cada uma das economias, gerando um fluxo de novas oportunidades produtivas e comerciais e de iniciativas concretas nos setores de serviços jamais visto no contexto latino-americano. 
Sem dúvida, caminha-se no Cone Sul – podemos desde já associar, pelo menos de forma potencial, o Chile e a Bolívia a esse mercado regional emergente – para a conformação de um espaço geoeconômico caracterizado pela divisão “racional” de fatores produtivos e por uma crescente maximização dos ganhos de bem-estar. A interpenetração de agentes econômicos nacionais e os fluxos recíprocos de bens, serviços e outros fatores produtivos tendem a superar na prática os antigos conceitos estreitamente geográficos ligados ao equilíbrio bilateral das diversas rubricas dos respectivos balanços de pagamentos.
Os representantes da classe trabalhadora seriam certamente bem mais céticos quando apresentados a esse perfil “róseo” da integração regional, mas provavelmente concordariam também em que o processo vem representando, ainda que com pequenas diferenças nacionais, inegáveis oportunidades de crescimento econômico e, portanto, de defesa global do emprego. Aqui e ali, fenômenos setoriais de desocupação temporária poderão manifestar-se, com resultados por vezes socialmente penosos (ou mesmo traumáticos) de inadaptação profissional ou de não-reconversão produtiva, mas, a médio e longo prazo, a integração deve gerar em todos os países um patamar mais elevado de bem-estar social.
Mas, nem tudo pode ser considerado como perfeito nesse Mercosul sobre patins. Alguns elementos substantivos da atual fase de transição não lograram ainda desarmar as críticas dos eternos pessimistas de plantão, nem tampouco confirmar as fundadas esperanças de seus planejadores políticos. Sem pretender traçar, como acima e a exemplo dos diversos problemas políticos, econômicos e institucionais identificados na construção europeia, uma extensa lista de dificuldades concretas, não parece descabido dizer que o Mercosul atual se apresenta como que marcado por um bloqueio político e institucional, derivado de um certo número de dificuldades ligadas à:
a) conformação de uma zona de livre-comércio devendo conviver, durante uma certa fase ainda, com controles reforçados em pontos de passagem, para evitar os conhecidos problemas da triangulação comercial;
b) implementação prática de uma união aduaneira plena, na verdade, nesta fase, uma mera “pseudo” união aduaneira, parcial, pois que convivendo com listas nacionais de exceções à Tarifa Externa Comum;
c) impossibilidade prática de coordenação de políticas macroeconômicas, em vista dos diferentes estágios de implementação dos planos nacionais de estabilização macroeconômica, o que requer uma aproximação apenas gradual (e parcial) de políticas setoriais;
d) harmonização insuficiente das legislações e regras administrativas nacionais nos campos definidos como prioritários pelos agentes econômicos e pelos “guardiães” jurídicos do processo de integração.
Acrescente-se a essa panóplia de desafios colocados aos diplomatas e demais negociadores institucionais dos países do Mercosul o quadro decorrente de uma deficiente coordenação de posições em foros relevantes de âmbito regional e mundial, ou uma postura muitas vezes voluntariosa assumida por autoridades políticas de primeiro plano numa ou noutra ocasião e chegaremos a um cenário certamente pouco confortável para os encarregados de planejar a agenda diplomática e de conduzir a atividade negociadora quadripartite nesta fase crucial do processo de integração do Cone Sul. 
Teria o Mercosul esgotado suas possibilidades antes mesmo de iniciar o ciclo de sua plena implementação? Ou teria ele, segundo uma visão otimista do processo, confirmado inteiramente seu potencial econômico e político ao vincular, inarredavelmente, as estruturas econômicas e os comportamentos políticos dos países da região, conformando uma comunidade integrada de Estados cuja afirmação internacional é apenas uma questão de tempo? Com efeito, o processo de integração no Cone Sul, ao eliminar, aparentemente de maneira definitiva, qualquer possibilidade de conflito militar ou de competição estratégica entre o Brasil e a Argentina e ao suprimir a maior parte das barreiras nacionais à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos na região, já realizou obra notável e com isso poderíamos talvez dizer que o Mercosul cumpriu, basicamente, sua missão histórica. 
Entretanto, como qualquer observador poderá deduzir de uma leitura mesmo perfunctória do Tratado de Assunção, o Mercosul não veio “apenas” para instalar uma zona de livre comércio na região, ou para realizar (ainda que isso seja altamente meritório) um estado de “paz perpétua” entre os dois grandes da América do Sul. Seus objetivos econômicos e, de certa forma, políticos, são um pouco mais ambiciosos, daí a preocupação com as dificuldades práticas de se lograr o primeiro requerimento formal de um mercado comum, qual seja, a constituição material de uma união aduaneira plena, administrada de maneira uniforme. Frente a esse desafio e parafraseando um conhecido ideólogo, hoje fora de moda, também poderíamos perguntar: que fazer?

2. Desafios do momento: recuar para melhor saltar?
Na Europa, como se disse, o processo de integração foi, no passado, marcado por momentos históricos de progressos rápidos, impulsionados por grandes projetos que mobilizaram a vontade nacional das lideranças políticas em determinadas conjunturas: a coordenação dos recursos escassos para fins de reconstrução econômica no final dos anos 40, a partilha inovadora dos recursos do carvão e do aço em princípios dos anos 50, o salto comunitário em 1951 e 1957, a constituição de uma união aduaneira nos anos 60, o surgimento de políticas comuns nos setores industrial e tecnológico nos anos 70, o projeto de um grande mercado unificado para os anos 90, a partir do Ato Único de 1986, bem como a ideia verdadeiramente ambiciosa da união econômica e monetária e da cooperação política ampliada consubstanciada nos acordos de Maastricht.
Atualmente, percebe-se uma certa stasis do projeto federalista e, ao contrário, uma reação nacionalista apoiada na ideia da defesa da soberania e dos mercados nacionais, cujo testemunho mais visível é o crescimento da ideia antieuropeia em alguns países e mesmo entre correntes políticas eleitas para o próprio Parlamento Europeu.
Em todo caso, os desafios que se colocam aos dirigentes políticos europeus, neste lustro final do século XX, são certamente bem mais complexos do que os de um Mercosul ainda em fase incipiente de conformação. O Tratado de Maastricht, assinado em 7 de fevereiro de 1992 e entrado em vigor no dia 1° de novembro de 1993, após peripécias em diversos países (difícil passagem referendária na Dinamarca e na França, debates de procedimento no Parlamento britânico tornado “eurocético”, limitações de jurisdição ditados pela Corte Constitucional de Karlsruhe), traz em si, com efeito, um compromisso complexo entre vocação “federal” e realidades nacionais. 
A União Europeia é definida como um “quadro institucional único” (Artigo C), mas essa união não possui uma personalidade jurídica, ao mesmo título que, anteriormente, as Comunidades Europeias. O Conselho Europeu, ou seja, a instância intergovernamental onde se encontram os representantes supremos das legitimidades nacionais, continua a ser o governo político da União.  Essa realidade é o resultado de uma contradição nunca resolvida, praticamente desde o início do processo de integração, entre as impulsões supranacionais de alguns de seus ideólogos e promotores e as realidades mais prosaicas da afirmação das soberanias nacionais promovida por políticos e burocratas dos países membros. 
Essas tensões políticas entre pretensões comunitárias e limites intergovernamentais manifestaram-se ao longo de todo o período e ainda hoje marcam a natureza contraditória dos arranjos de Maastricht. Com efeito, como indicam quatro conhecidos especialistas, “o debate sobre a estrutura do tratado [de Maastricht] mergulha suas raízes no passado da integração europeia, caracterizada pela oposição sempre renovada entre os partidários de uma abordagem comunitária ou até mesmo supranacional e os partidários de uma abordagem intergovernamental. Ele traduz concepções diferentes da União Europeia e se abre, em consequência, a controvérsias filosóficas e ideológicas”.  Cabe, em todo caso, aos próprios europeus encontrar uma solução aos desafios por eles mesmos colocados a esse projeto fundamentalmente político que parece apontar cada vez mais longe no quadro institucional relativamente uniforme que leva, num primeiro momento, da CECA ao Mercado Comum e à CEE, depois às CCEE (ou simplesmente CE) e, finalmente, via Ato Único, à UE.
No Mercosul, ao contrário da experiência europeia, não se pode traçar uma linha evolutiva contínua, do ponto de vista doutrinal ou jurídico, ou mesmo uma simples derivação filogenética, entre os vários tratados regionais de integração, desde o Tratado de Montevidéu-1960 até o de Assunção de 1991, passando pelo de Montevidéu-1980, o bilateral de Integração Brasil-Argentina de 1988 e a Ata de Buenos Aires de 1990. Tal se dá pelo fato de não haver uma verdadeira continuidade institucional ou política entre esses diversos instrumentos diplomáticos, mas tão somente um objetivo vagamente partilhado de se aprofundar um processo empírico de integração comercial (considerado como conjunturalmente funcional do ponto de vista de projetos nacionais de desenvolvimento), por meio de mecanismos nem sempre uniformes de liberalização aduaneira ou de desarme tarifário, e respondendo a diferentes coberturas jurídicas multilaterais (GATT-1947 numa primeira etapa, cláusula de habilitação da Rodada Tóquio depois).
Num certo sentido, a integração quadripartite e tendencialmente (a qualificação se justifica) comunitária do Mercosul poderia ser considerada como um mero derivativo – um “side-effect” diriam os anglo-saxões – do processo bilateral Brasil-Argentina, inaugurado com uma forte visão “produtivista” em meados da década passada e ampliado por razões políticas, num sentido “livre-cambista”, em princípios desta. Do ponto de vista da “boa doutrina”, nada a objetar à construção jurídica traçada no Tratado de Assunção, que repete aliás, com as inevitáveis adaptações, o essencial do programa integracionista – isto é, apontando para um mercado comum do tipo Tratado de Roma – já previsto no Acordo de Alcance Parcial n° 14 entre o Brasil e a Argentina. 
Embora conformando uma arquitetura que poderia ser chamada de “híbrida”, com alguns elementos conceituais inovadores, o “TA” cumpriu razoavelmente bem a primeira parte de sua missão histórica, qual seja, a de liberalizar o comércio e limpar o “entulho anti-integracionista” que dificultava a natural e necessária aproximação e interpenetração das economias argentina e brasileira. Do ponto de vista prático, o cenário é algo mais contraditório, uma vez que, quaisquer que sejam suas virtudes intrínsecas, um simples instrumento diplomático não possui a capacidade material de alterar rapidamente uma realidade marcada por décadas de crescimento irregular em bases semi-autárquicas e fortemente impregnada por disfunções setoriais que levaram, de um e outro lado do Prata, a algumas graves distorções na alocação de recursos produtivos. 
Em todo caso, como foi possível constatar amplamente, ao abrigo do Tratado de Assunção concretizou-se uma fase de progressos notáveis no processo de liberalização quadrilateral, com aumentos contínuos do intercâmbio recíproco. Do ponto de vista institucional, contudo, uma vez que não foram cumpridos todos os requisitos apontados no Artigo 1° para a constituição de um “mercado comum” (e não do Mercado Comum do Sul), permanece um claro impasse quanto ao perfil político-jurídico que o esquema integracionista deve assumir na fase ulterior ao período de transição, isto é, a partir de 1° de janeiro de 1995. 
Seria o caso, então, de, seguindo o conselho de velhos estrategistas de muitas vitórias militares, recuar para melhor saltar ? No caso do Mercosul, não se trataria tanto de saltar no espaço físico da integração econômica quanto no tempo histórico da integração política. A chave da questão parece situar-se na definição de uma arquitetura evolutiva para a união aduaneira do Mercosul. As próximas seções deste ensaio provocador tentarão apresentar uma perspectiva mais ampla dessa questão. 

3. Back to the future in the Southern Cone?
Tentando encontrar uma solução aos problemas da reconstrução europeia nos anos do imediato pós-guerra, um grupo de trabalho financiado pela “Carnegie Endowment for International Peace”, que operava paralelamente aos esforços de coordenação suscitados pelo Plano Marshall (OECE), fez figurar num relatório preliminar algumas dúvidas quanto ao caminho a ser seguido naquela oportunidade. As primeiras conclusões eram razoavelmente pessimistas, mas poderiam, quem sabe, ser aplicadas, mutatis mutandis, ao caso atual do Mercosul (cuja sigla deveria, portanto, substituir as referências à Europa na seguinte passagem): 
“Uma união aduaneira não poderia ser a panaceia para os males atuais da Europa e não seria razoável tentar fazê-la cumprir esse papel. Um estudo mais aprofundado mostraria talvez que ela poderia trazer uma contribuição efetiva à prosperidade futura da Europa, mas é preciso considerar que os ajustes iniciais acarretariam, no período imediato, sacrifícios consideráveis para as nações, as indústrias e os indivíduos, sacrifícios que teriam de ser aceitos de maneira resoluta”. 
Adaptando o argumento às presentes circunstâncias, estariam “as nações, as indústrias e os indivíduos” do Mercosul dispostos a aceitar de “maneira resoluta” os sacrifícios acarretados, durante um determinado período, pelos ajustes iniciais de uma união aduaneira? Na verdade, no caso europeu como veremos, uma experiência de união aduaneira trilateral já se encontrava em curso naquela ocasião e, numa fase ulterior, poucos sacrifícios tiveram de ser efetivamente consentidos, em forma individual ou coletiva, pelas sociedades europeias engajadas em diferentes (mas convergentes) processos de integração econômica. Uma “volta” ao passado da integração europeia – uma espécie de reprise de “De Volta para o Futuro, Parte III”, em versão livre – nos permitirá, talvez, ver mais claro o futuro do Mercosul
Desde já parece evidente que a atual fase de transição no Mercosul está destinada a prolongar-se por um período adicional de pelo menos 6 anos, até que se realize, em 2001 (ou mais tarde), a prometida convergência dos perfis tarifários nacionais numa única pauta aduaneira submetida a uma autoridade administrativa integrada (ou seja, o que era basicamente o Mercado Comum Europeu por volta de 1967). A razão se situa, de um ponto de vista prático, no fato de que as estruturas econômicas nacionais dos países membros do “TA”, mesmo ao cabo de 4 “longos” anos de abertura recíproca, estão longe de constituírem conjuntos homogêneos e intercomplementares dentro daquilo que se poderia chamar de um “sistema produtivo regional”. 
Do ponto de vista institucional, deve-se primeiramente reconhecer que os países signatários do Tratado de Assunção pretendiam chegar a um mercado comum não através dos mecanismos comunitários e moderadamente supranacionais de um instrumento diplomático do tipo da CECA ou do Tratado de Roma-1957, mas por meio do seria mais apropriado chamar-se de um “modelo BENELUX”, de tipo claramente intergovernamental, ou seja uma combinação da Convenção de Londres de 1944 com o Protocolo da Haia de 1947 (com umas leves pinceladas formais, é verdade, do Tratado de Roma). 
Em relação à experiência do Benelux, caberia sublinhar que, a não ser pela guerra e ocupação alemã, dois de seus membros (Bélgica e Luxemburgo) conformavam uma união aduaneira ininterrupta desde 1922, que um ensaio tripartite já tinha sido tentado em 1932 e que uma união monetária estava em curso há vários anos entre os dois citados países. Não é preciso, tampouco, lembrar o fato de suas três economias serem naturalmente interdependentes, como resultado de um processo de décadas, ou até mesmo de séculos, de integração física e social, combinado a etapas de “união política” (entre a Bélgica e os Países Baixos) mais ou menos involuntárias.
Em que consistiu, basicamente, a experiência Benelux dos anos 50 e princípios dos 60 e o que ela tem de relativamente similar com o processo atual do Mercosul? Uma avaliação ponderada dessa rica experiência integracionista é hoje obscurecida não só pelo fato do Benelux, processo original e bastante avançado (para a época) de união econômica, ter sido posteriormente “diluído” no Mercado Comum europeu, mas também em virtude de uma certa “ditadura conceitual” exercida pelo Tratado de Roma, involuntariamente convertido em uma espécie de nec plus ultra jurídico e organizacional, uma estrutura “acabada e perfeita” de integração, pela qual supostamente todas as demais experiências regionais deveriam necessariamente passar para receber um certificado de “bom comportamento” integracionista.
Parece evidente, contudo, que, constando de apenas 24 artigos, o Tratado de Assunção não pode ser comparado ao Tratado de Roma, muito embora ele persiga, grosso modo, os mesmos objetivos integracionistas de seu ancestral (mas não antecessor) europeu. Diferentemente, porém, do instrumento institucional que lançou o Mercado Comum Europeu, o “TA” não comporta nenhum procedimento de tipo comunitário, nem prevê órgãos supranacionais; tampouco ele contempla aspectos normativos de alcance tão vasto como, por exemplo, a política agrícola comum da CEE, cujos parâmetros são definidos ao seio da Comissão Europeia.
Do ponto de vista comparativo, portanto, o “TA” se aproxima mais da Convenção BENELUX de 1944 (firmada em Londres, em 5 de setembro de 1944, completada pelo Protocolo de Haia, de 14 de março de 1947), que instituiu uma união aduaneira entre a Bélgica, o Luxemburgo e os Países Baixos. Esses países se propunham, resumidamente, a criar um território econômico no qual nada se oporia à livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas, a eliminar qualquer discriminação entre produtos e produtores nacionais respectivos, a instaurar uma política econômica, financeira, fiscal e social coordenada, a instituir uma tarifa externa comum, a estabelecer uma política comercial e cambial comum em relação a terceiros países e a promover o bem-estar econômico e social de seus povos, ou seja, exatamente os objetivos a que aspiram os Estados membros do Tratado de Assunção. 
No plano institucional, a implementação do Benelux, também como no caso atual do Mercosul, deveria ser obra de conferências ministeriais – ou seja, de caráter intergovernamental – entre os três países, assim como de órgãos mistos, econômicos e técnicos, com funções meramente consultivas. A harmonização aduaneira deveria ser criada por intermédio de: 
a) um conselho administrativo de aduanas, encarregado de propor as medidas de unificação das disposições legislativas e regulamentares para a percepção dos direitos aduaneiros; 
b) uma comissão de litígios aduaneiros; 
c) um conselho administrativo de regulamentação do comércio exterior.
Os mesmos objetivos, mas ainda não os mesmos mecanismos, são encontrados, com as diferenças que se sabe, no “TA”, que também prevê, como no caso do BENELUX, uma Comissão Interparlamentar de caráter consultivo, (mas não um Parlamento dotado de poderes específicos no quadro de uma comunidade de Estados) e um sistema original de solução de controvérsias que, no caso do Benelux, desembocou num verdadeiro Tribunal de Justiça.
O Tratado de Roma, de sua parte, constituiu uma construção regional sistemática e progressiva de um conjunto de países relativamente uniformes do ponto de vista econômico e social (França e Alemanha, os três do Benelux e, com menor ênfase na homogeneidade socioeconômica, a Itália), cujo funcionamento dependia desde o começo de instituições, senão supranacionais, pelo menos comuns e em todo caso “desnacionalizadas”: a Comissão, guardiã do Tratado e independente dos Governos, deveria velar, junto com a Corte de Justiça, pelo cumprimento das obrigações (que eram muito precisas em termos de desarme aduaneiro e de tarifa externa comum). A Comissão por sua vez remete projetos de diretivas, de regulamento ou de decisão ao Conselho, cujas decisões, durante a fase de transição para o mercado comum, também requeriam a unanimidade. Mas, as decisões e regulamentos do Conselho tinham força de lei para os Estados membros, sendo diretamente aplicáveis nos territórios destes, ou, no caso das diretivas, necessitando de sua transposição na lei nacional.
Em que medida o processo de integração no Cone Sul e o Tratado de Assunção, na prometida conferência diplomática prevista em seu Artigo 18, poderiam operar a transmutação da atual fase intergovernamental para assumir plenamente esse ideal-typus comunitário? Caberia indagar, primeiramente, se o Mercosul tem realmente condições de se definir, segundo um modelo “ideal”, como um mercado comum efetivo, ou se ele pode apenas, em vista do quadro econômico e político prevalecente, apresentar-se como um Mercosul potencial.

4. O Mercosul possível: a modest proposal
A aproximação do Mercosul ao modelo da CEE, ou seja a modelização do “TA” segundo a arquitetura definida idealmente no “TR”, deveria dar-se, em princípio, a partir da conclusão de um novo tratado de integração quadripartite ou da reforma do atual “TA”, a ser negociado e firmado no segundo semestre de 1994, quando então a instituição de órgãos comunitários definitivos significaria o ato efetivo de criação do MERCOSUL, isto é do Mercado Comum do Sul. Na verdade, sabemos que, em virtude dos problemas práticos e políticos acima apontados, o “TA” continuará a ser, pelo menos numa nova fase intermediária, essa espécie de “híbrido conceitual” consubstanciado no Mercosul atual, ou seja, uma estrutura intergovernamental de transição entre uma união aduaneira em formação e um mercado comum de tipo simplificado (como o dos primeiros tempos do Mercado Comum Europeu).
A razão, mais uma vez, é de natureza essencialmente prática e tem a ver com o grau relativamente insuficiente de intercomplementariedade entre as quatro economias envolvidas. No caso da experiência europeia, um analista, ao estudar, nos anos 50, os padrões de comércio no Benelux, descobriu que a especialização e o comércio depois da formação da união aduaneira tinham lugar mais dentro do que entre as diferentes categorias de produtos, sugerindo assim uma tendência a um comércio intra-indústria, mais do que inter-indústria.  No caso do Mercosul, se está longe ainda de se ter atingido esse padrão de comércio intra-ramos e intra-firmas, muito embora a composição e o volume do comércio recíproco tenham se densificado extraordinariamente nos últimos anos. Independentemente do fato dele também servir para desviar ou mesmo criar comércio entre seus membros, o Mercosul deveria basicamente estabelecer ligações dinâmicas entre empresas dos quatro países e com outras da região. Esta é, contudo, uma realidade que, como todos os processos históricos e estruturas sociais, é muito lenta a se instalar e desenvolver.
Paralelamente, um outro aspecto, vinculado à soberania dos Estados, deve ser aqui ressaltado: a opção fundamentalmente política – mas também por razões de ordem prática – em favor da adoção de um processo de tomada de decisões por consenso, em ambos órgãos políticos do Mercosul (Conselho e Grupo Mercado Comum), torna dificilmente aceitável, na atual fase de transição, uma mudança abrupta dos mecanismos institucionais em vigor. Teria sido conveniente instituir uma espécie de decision-making mix, ou seja, operar uma combinação de mecanismos decisórios, na qual determinadas decisões (de tipo constitucional, por exemplo), requeiram a unanimidade, outras uma maioria simples, outras ainda uma maioria qualificada ou ponderada.
A experiência das Comunidades Europeias, com diversas instâncias e sistemas decisórios, oferece, nesse terreno, um laboratório avançado sobre o funcionamento dos vários mecanismos possíveis de tomada de decisão no Mercosul. Mas, não se deve tampouco esquecer que a experiência histórica da primeira fase da Comunidade Europeia demonstrou a existência de problemas no sistema decisório quando prevalecia o critério da unanimidade, o que retardou consideravelmente os processos de conformação do mercado interno e de afirmação do poder comunitário até a assinatura do Ato Único de 1986. 
Quais são, finalmente, as características estruturais do modelo comunitário de integração do tipo proposto pela União Europeia? Elas estão definidas pela presença de instituições independentes dos Estados membros (Comissão, Parlamento, Corte de Justiça), dotadas de métodos supranacionais (direito de iniciativa dado à Comissão e, agora também, ao Parlamento Europeu, possibilidade do Conselho votar segundo o princípio majoritário, ou seja, superando eventuais oposições de Estados individuais), um sistema próprio de recursos e a transferência de certas competências à Comunidade. O Conselho de Ministros, integrado por representantes dos governos dos Estados membros, exerce em relação às competências comunitárias um poder de decisão separado dos Estados membros e vinculando diretamente os indivíduos e as empresas e agentes econômicos.  
Parece claro que, nas atuais circunstâncias, não se poderia sem riscos políticos (inclusive de credibilidade internacional) impulsionar no Mercosul, um processo de definição supranacional de instituições e métodos de tão vastas consequências jurídicas, políticas e econômicas como as acima descritas. Não se trata tanto de escolher neste momento entre a eficiência respectiva dos procedimentos normativos de uma tecnocracia comunitária, de um lado, e a das burocracias nacionais, de outro, ou entre o “federalismo” destruidor das barreiras nacionais ao grande mercado unificado e a soberania absoluta de uma comunidade de “nações”. A questão do Mercosul está, mais prosaicamente, ligada às necessidades intrínsecas, cabe repetir, de uma união aduaneira em formação. Nesse sentido, o “modelo Benelux” é mais relevante, política e institucionalmente falando, do que o “modelo Tratado de Roma”.
A emergência de uma estrutura econômica e política propriamente “comunitária” no MERCOSUL ficará portanto para mais tarde e deverá começar a ser discutida no decurso da segunda fase de transição que terá início em 1995, sem prejuízo de que, no segundo semestre de 1994, tenham sido definidos, nos termos do Artigo 18 do Tratado de Assunção, “a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum, assim como atribuições específicas de cada um deles e seu sistema de tomada de decisões”. Uma vez definidos tais órgãos, os próprios termos do Protocolo modificatório que, com toda probabilidade, será agregado ao “TA” neste final de ano podem determinar igualmente uma implementação diferida no tempo, um verdadeiro back to the future que os colocaria na dependência do acabamento ulterior da união aduaneira pretendida.
Esses órgãos permanentes podem ser, a exemplo da CEE, mas não necessariamente, um Conselho político intergovernamental, dotado de poder decisório em última instância, uma Comissão de caráter supranacional – ou seja, um órgão executivo dotado de poderes e atribuições propriamente comunitárias e não mais simplesmente intergovernamentais –, um Tribunal de Justiça – que funcionaria como corte constitucional e como instância de controle e de apelo e cujos laudos teriam aplicabilidade direta nos Estados Partes – e um Parlamento comunitário (provavelmente constituído, numa primeira fase, por via indireta, isto é, a partir dos legislativos nacionais, e, numa fase ulterior, por via eletiva direta). Em todo caso, um dos poucos avanços institucionais que poderiam ser introduzidos na segunda fase de transição que deve levar à implementação dos órgãos definitivos do Mercosul seria o estabelecimento de um verdadeiro Tribunal de Justiça em forma simplificada. 
A experiência histórica da Europa, tanto do Benelux quanto das Comunidades Europeias confirma que uma das tarefas mais difíceis da construção integracionista é a atribuição de poderes supranacionais a órgãos de constituição e funcionamento em regime propriamente comunitário. Na Europa essa tarefa foi facilitada pela percepção de um destino conjunto em face de uma ameaça comum – real ou ilusória, não importa aqui – representada pela União Soviética. Na América Latina, provavelmente mais do que em qualquer outro continente, os Estados nacionais e a própria doutrina do direito são extremamente ciosos em tudo o que toca à soberania nacional. Mas, a mesma experiência europeia indica também que a existência de uma Corte politicamente independente e soberana em suas decisões é também uma segura garantia de uma construção comunitária uniforme, por cima dos óbices colocados pelos Estados Partes. Com efeito, como não deixou de indicar um especialista, “os princípios constitucionais legais da Comunidade [Europeia] são basicamente encontrados nos julgamentos da Corte, e não no Tratado [de Roma]”. 
A opção continuada dos países membros do Mercosul por estruturas de tipo intergovernamental, submetidas a regras de unanimidade, pode portanto ser considerada como a mais adequada na etapa atual do processo integracionista em escala sub-regional, na qual nem a abolição dos entraves à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, nem a instituição da tarifa externa comum, nem a integração progressiva das economias nacionais parecem ainda requerer mecanismos e procedimentos supranacionais suscetíveis de engajar a soberania dos Estados. Esses objetivos podem, nesta fase, ser alcançados através da coordenação de medidas administrativas nacionais e da harmonização das legislações individuais. Ainda que os objetivos do Mercosul sejam similares aos do Mercado Comum Europeu e, eventualmente, em última instância, aos da União Europeia, não há necessidade, para o atingimento dos objetivos que são os seus atualmente, de que o seu sistema jurídico copie, neste momento, o modelo instituido no Tratado de Roma e, numa fase ulterior, o Tratado de Maastricht: basta atribuir-lhe personalidade de direito internacional e implantar um marco de disciplina coletiva no exercício das respectivas soberanias nacionais.
A estrutura institucional transitória do Mercosul em construção não deve, portanto, determinar o formato constitucional definitivo da nova área de integração no Cone Sul latino-americano. Diferentes possibilidades permanecem abertas, dentro e fora das diversas zonas de libre comércio em projeto na região, inclusive a da própria preservação do modelo Benelux atualmente privilegiado, ou seu aperfeiçoamento através de mecanismos ad hoc de consulta e controle intergovernamentais. O melhor mesmo, antes de “fechar” o próximo capítulo diplomático do Mercado Comum do Sul, seria deixar abertas as diferentes opções institucionais para um mercado comum no Cone Sul, dentro e fora de um processo de integração regional definido como de “geometria variável”, mormente numa conjuntura política em que o Brasil passa por uma mudança de governo e, eventualmente, por novas definições estratégicas e táticas na área da política externa.
Assim como o processo de integração da União Europeia é uma das poucas “invenções” geopolíticas genuinamente originais deste século, também o Mercosul não deveria temer a ousadia arquitetônica e a inovação institucional em seu processo de integração econômica e política: afinal de contas, como demonstrado amplamente pelos “eurocratas” de Maastricht, uma das poucas mercadorias ainda disponíveis no supermercado das ideias políticas, num fin-de-siècle aparentemente marcado pelo fim da história, é a criatividade dos juristas e dos diplomatas. Se os economistas parecem ter esgotado, pelo menos no Brasil, seu estoque de planos mirabolantes, tendo-se reconvertido às modestas virtudes da estabilização ortodoxa, certamente que os “mercocratas” em gestação no Cone Sul saberão propor algumas boas ideias para testar nos laboratórios da História. O Mercosul ainda se encontra aberto à imaginação criadora.


Nota: As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu Autor, não representando, no todo ou em parte, posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.

 [Paris: 29/07/1994]
[Relação de Trabalhos nº 441]

441. “Mercosul e União Europeia: Vidas Paralelas?”, Paris: 29 julho 1994, 16 pp. Artigo de natureza analítica e exploratória sobre o atual processo de institucionalização do Mercosul, em perspectiva comparada com a União Europeia. Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: n° 14, julho-agosto-setembro de 1994, pp. 16-25). Relação de Publicados n° 161.

Sobre as relações UE-Mercosul - Paulo Roberto de Almeida (2013)

Mercosul e União Europeia: questões sobre o seu relacionamento

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, Professor de Economia Política Internacional no Uniceub (www.pralmeida.org).
Respostas a questionário colocado por: Xxxx e Xxxxx  -  Curso de Pós-graduação em Comércio Internacional - XXX-USP (julho 2013)


1-  Qual a sua opinião (pessoal ou profissional) acerca do Mercosul?

O Mercosul – Mercado Comum do Sul – conhece, desde o surgimento de mais uma crise em 2012 (com a expulsão do Paraguai e a aceitação da Venezuela, ambas medidas perfeitamente ilegais), uma fase de relativa decadência institucional, que parece prolongar-se na relativa indiferença, ou incapacidade, por parte de seus protagonistas principais, no sentido de recolocá-lo em suas bases originais, quais sejam, um projeto de integração econômica e de liberalização comercial. Aparentemente, ele já não dispõe mais das reações favoráveis, no seio da sociedade, de que se beneficiava nos primeiros nove anos de sua existência, tendo também deixado de ser o centro das preocupações prioritárias dos responsáveis políticos, mesmo se os discursos oficiais continuam a proclamar seu papel estratégico nas relações regionais. 
As razões desse estado negativo de coisas não são unicamente devidas à suspensão de um de seus membros originais – o Paraguai – e o ingresso em condições altamente controversas de um novo, a Venezuela, fatos recentes – como é, também, a aceitação em condições obscuras, da Bolívia e do Equador –, mas situam-se na mudança de lideranças políticas tanto no Brasil quanto na Argentina, a partir de 2003. Para bem entender como ocorreu a erosão do projeto original, e a deterioração do processo de construção da integração, cabe fazer um pequeno resumo de sua trajetória, para tentar oferecer, depois, uma reflexão sobre o possível futuro do bloco.
O processo de integração no cone sul começou sua trajetória institucional a partir de 1985, com os esquemas bilaterais entre a Argentina e o Brasil. Um tratado bilateral de integração, em 1988, prometia o estabelecimento de um mercado comum em dez anos, por meio de protocolos setoriais de integração, numa visão de complementaridade das duas economias. Em 1990, os presidentes Carlos Menem e Fernando Collor decidiram acelerar o processo, com posterior adesão do Paraguai e do Uruguai: o novo esquema de liberalização, consagrado no tratado de Assunção (de 26 de março de 1991), passou a ser automático, geral e de características fundamentalmente livre-cambistas. Os novos prazos de integração foram reduzidos pela metade e o “mercado comum” deveria ter sido alcançado até o início de 1995. Não é preciso dizer que tal não ocorreu.
A despeito de graves problemas de estabilização macroeconômica no Brasil e na Argentina, em meados daquela década, a liberalização comercial caminhou de forma mais ou menos rápida, abrindo espaço para o aumento do comércio intrarregional. Não obstante a expansão de comércio, dentro e fora do bloco, não foram criadas as condições estruturais para que os dois principais países – Brasil e Argentina – realizassem uma das premissas do tratado constitutivo, qual seja, a da abertura econômica continuada e a inserção de ambos na economia mundial. Ocorreu, contraditoriamente às expectativas dos primeiros anos, uma introversão do comércio, configurando aquela consequência nefasta dos processos de integração, que os economistas chamam de “desvio de comércio” (e de investimentos). Foi registrada uma espécie de “Brasil-dependência” na Argentina, uma vez que esta tinha no seu maior vizinho o destino para mais de um terço de suas exportações totais e um volume praticamente similar nas importações. O Brasil, embora menos dependente do comércio regional, também construiu para si uma espécie de “reserva de mercado ampliada”, o que pode ter arrefecido a busca de novos mercados.
O protocolo de Ouro Preto, assinado no final de 1994 para “completar” o tratado de Assunção, não criou instituições novas (com exceção de uma Comissão de Comércio que jamais conseguiu aprovar um código aduaneiro efetivo), nem estabeleceu mecanismos para facilitar a coordenação das políticas macroeconômicas dos países membros. Não obstante os avanços, não se chegou ao prometido “mercado comum” ou mesmo à união aduaneira completa, mantendo-se várias exceções à Tarifa Externa Comum. Muitos produtos continuaram fora da zona de livre-comércio, como açúcar e automóveis, por exemplo. Na verdade, depois da fase de transição, as orientações de política comerciais dos principais protagonistas jamais voltaram a se guiar pelas promessas de abertura e liberalização, caminhando no sentido contrário ao esperado.
Em 1996, Chile e Bolívia tornaram-se parceiros da “zona de livre-comércio”, mas a associação ao Mercosul dos demais parceiros do Grupo Andino teve de aguardar até os anos 2003-2005. A “ameaça” da Alca – projeto dos EUA para unificar numa mesma zona de livre-comércio todos os países do hemisfério – fez com que o Mercosul desenvolvesse uma estratégia comercial defensiva da qual ele jamais se separaria nos dez anos que se seguiram de processo negociador.
A desvalorização da moeda brasileira em 1999 representou um choque para a Argentina e o início de uma fase crítica para o Mercosul, que se prolongou até os nossos dias. A Argentina entrou em crise no final de 2001, o que coincidiu com o decréscimo nos fluxos de comércio: ela começou a recorrer, de modo frequente, a mecanismos de defesa comercial (salvaguardas unilaterais). O grande diferencial do Mercosul, em relação aos primeiros dez anos de sua existência, situa na mudança de lideranças políticas nos dois grandes países: os dois novos presidentes, Lula no Brasil e Nestor Kirchner na Argentina, não tinham, como não tiveram, nenhum compromisso com o projeto original, de abertura econômica, de liberalização comercial, de inserção no mundo globalizado, mas seguiram, cada um à sua maneira, trajetórias estatizantes, introvertidas, protecionistas, bem mais comprometidas com uma agenda política e social – que pode até ser importante, mas não é central no Mercosul – do que com o cumprimento dos compromissos básicos do bloco. 
A despeito da retomada do crescimento do comércio intrarregional a partir de 2003 permaneceram os desequilíbrios, motivando demandas de proteção por parte da União Industrial Argentina; o processo foi levado a extremos, com recurso a medidas claramente ilegais no âmbito do bloco e até mesmo do ponto de vista do sistema multilateral de comércio. Deve-se reconhecer que a atitude do governo brasileiro revelou-se estranhamente compreensiva com as infrações regulares às normas do bloco.
Em 2004 a Argentina começou a pressionar pela adoção de um instrumento de salvaguardas automáticas, eufemisticamente caracterizado como sendo um “mecanismo de adaptação competitiva”, que ela pretendia implementar de maneira unilateral. Antes, ela já tinha insistido num “gatilho cambial”, o que foi abandonado, em vista da persistente valorização da moeda brasileira a partir de 2003. No início de 2006, os dois países adotaram o projeto argentino para salvaguardas setoriais, recebido com reclamos por parte da indústria brasileira. No plano político, houve a criação de um fundo corretor de assimetrias estruturais – a ser utilizado sobretudo pelos dois sócios menores, mas com maior volume de financiamento por parte do Brasil – e a instituição de um “parlamento” do Mercosul, considerado um aperfeiçoamento institucional. Nem um, nem outro instrumento tocaram, de fato, nas pendências comerciais ou permitiram superar os obstáculos políticos à realização das metas inscritas do tratado de Assunção.
Assistiu-se, retoricamente, a demandas recorrentes pelo estabelecimento de “cadeias produtivas setoriais conjuntas”, iniciativas inviabilizadas na prática pela incapacidade dos governos de cada um dos países de prestar assistência financeira ou empreender investimentos em base a recursos públicos. Mas voltou-se a dar ênfase, naquele período, sobretudo sob impulso político do governo brasileiro, aos projetos de integração física continental, intenção consagrada na criação da “Comunidade Sul-Americana de Nações” (dezembro de 2004), depois convertida em União, pela ação do governo “socialista” da Venezuela. 
A Venezuela, justamente, foi admitida “politicamente” no Mercosul, em dezembro de 2005, tendo os termos de sua incorporação comercial sido consagrados no protocolo de adesão de 2006; ela nunca chegou a completar, porém, os requerimentos estabelecidos neste e em outros instrumentos do Mercosul. Com a diluição da “ameaça” da Alca – inclusive a partir de sua virtual paralisação na terceira cúpula hemisférica, em Mar del Plata, no final de 2005, por atuação conjunta da Argentina, do Brasil e da Venezuela –, os países sul-americanos passaram a construir, com estratégias e objetivos muito diversos, uma nova agenda integracionista para a região, menos voltada para a liberalização comercial e mais orientada para a cooperação política e o estabelecimento de ligações físicas. Esse esforço redundou na Unasul e em diversos outros mecanismos (Calc, e depois Celac, ademais de um conselho de defesa), de importância mais retórica do que efetiva: para todos os efeitos práticos, a América Latina encontra-se fragmentada em diferentes esquemas de integração, indo do livre-comércio ampliado a um retorno do nacionalismo estatizante, o que também diluiu a importância do Mercosul na região.
Com a crescente importância econômica da Ásia Pacífico, alguns países da região – notadamente México, Colômbia, Peru e Chile – voltam-se para diferentes iniciativas voltadas para essa grande bacia oceânica, num cenário que também se caracteriza pela existência de acordos bilaterais de livre comércio entre esses países e os Estados Unidos. A Aliança do Pacífico, formada por aqueles quatro países, se destina, provavelmente, menos a conformar um bloco comercial próprio à região, e mais à inserção conjunta nos esquemas que se desenham na região da Ásia Pacífico.
Os países do Mercosul parecem ter se conformado a um papel menor nesses grandes desenvolvimentos da economia regional e mundial. Em 2012, o bloco atravessou sua maioridade formal de 21 anos enfrentando a maior crise de sua história: usando como pretexto o afastamento do presidente eleito do Paraguai numa crise política puramente interna, Argentina e Brasil suspenderam a participação do país nas reuniões do bloco e procederam à admissão irregular da Venezuela, num gesto altamente controverso, tanto no plano do direito internacional como no das regras próprias do bloco. Permanecem indefinidas as condições sob as quais a Venezuela poderá cumprir os requisitos formais de sua adesão ao bloco, processo não concluído nos quatro anos estabelecidos no protocolo de 2006, quando as condições econômicas no país bolivariano não se tinham deteriorado como na atualidade. O fato é que o bloco ainda não conseguiu retomar sua agenda de integração regional e de inserção na economia mundial e persistem muitas dúvidas de que seja capaz de fazê-lo na presente conjuntura e com as lideranças atuais. Uma última palavra quanto a isso: o bloco não tem nenhum defeito estrutural, em si, e toda a responsabilidade pela sua situação atual cabe inteiramente aos governos dos dois principais países membros.


2-  Em sua opinião o Brasil é beneficiado diretamente pelo acordo? Por quê?

De fato, ao se definir não apenas como zona de livre comércio, mas como uma união aduaneira, e ao ter a sua Tarifa Externa Comum em grande medida baseada nos interesses industriais brasileiros, o acordo do Mercosul acaba beneficiando bastante as empresas exportadoras brasileiras, que se beneficiam de uma reserva de mercado nos demais países membros. Mas este é um benefício pelos motivos errados, pois o Mercosul deveria ser um bloco voltado para fora, não para dentro, como é o caso, atualmente. Os demais países se ressentem dessa desigualdade de tratamento e acabam “perfurando” a TEC, adotando alíquotas mais reduzidas – em conformidade com seu perfil mais importador do que exportador, de determinados produtos – o que faz do Mercosul uma união aduaneira altamente esquizofrênica, com uma verdadeira colcha de retalhos na sua plataforma tarifária externa. 


3-  Quanto à possível tentativa de integração entre Mercosul e União Europeia, quais seriam as vantagens e desvantagens para o Brasil?

Todo e qualquer processo de abertura econômica, de liberalização comercial, de rebaixa ou eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias – seja bilateralmente, seja plurilateralmente, seja multilateralmente – sempre é positivo, pois passam a atuar, uma vez concluído o acordo, os fatores positivos vinculados a esse tipo de processo: maior concorrência, economias de escala, oferta ampliada de produtos e serviços a preços rebaixados, harmonização de normas, investimentos recíprocos, enfim, liberdade de mercados, o que sempre beneficia os consumidores e até mesmo as empresas, desde que se reposicionem segundo as novas condições de competição. Entre os dois blocos persistem barreiras irracionais e antieconômicas, como podem ser o protecionismo e o subvencionismo agrícola na UE, e o protecionismo e a introversão industriais no Mercosul. Um acordo que desmantelasse ao menos parte dessas barreiras seria altamente positivo para os consumidores e as empresas dos dois lados.


4-  O Sr. Acredita que a posição atual do Brasil no Comércio Internacional, se deve ao fato de fazer parte do Mercosul, se sim ou não, por que?

Não. O Brasil sempre teve uma participação bastante limitada no comércio internacional, pouco mais de 1% dos fluxos globais. Isso não muda desde décadas, mas indica que o Brasil conseguiu, pelo menos, acompanhar o crescimento do comércio internacional, ao manter, e não reduzir, sua participação relativa. O Mercosul beneficiou em grande medida o Brasil, pois absorve grande parte de sua oferta de manufaturados, menos competitiva nos mercados globais. No resto do comércio, com o mundo, o Brasil vem acentuando sua posição como exportador de matérias primas, mas isso a seus próprios problemas internos, não devido ao Mercosul. O Mercosul garantiu uma boa reserva de mercado ao Brasil, mas sua importância relativa é hoje menor do que era ao final da primeira década, quando a parte do Mercosul tinha alcançado cerca de 15% das exportações; atualmente deve ser menos de 10%.


5-  Qual a sua opinião quanto aos países membros do Mercosul, em especial à Venezuela?

Existiam quatro membros originais, sendo que três deles estavam já bastante integrados do ponto de vista comercial. O Paraguai, a despeito de também manter grande parte de seu comércio nacional com os dois vizinhos maiores, representava um mercado secundário para esses dois, e também mantinha regras de comércio especiais, como economia de “entreposto”, o que sempre dificultou sua integração plena ao bloco. Quanto à Venezuela, se trata de um grande país, com recursos energéticos consideráveis, mas cuja economia foi praticamente destruída por mais de dez anos de total irresponsabilidade econômica (e política) por parte do caudilho Hugo Chávez, o que inviabiliza sua integração “normal” no Mercosul. A Venezuela não consegue cumprir os requisitos do Mercosul, e portanto vai demorar muitos anos ainda, para normalizar seu tecido produtivo e suas relações econômicas externas: ela sofre com todos os tipos de manipulações econômicas e pode, eventualmente, até provocar crises no Mercosul, pela sua incapacidade econômica de assumir compromissos de abertura e de liberalização, e por sua baixa disposição política de se relacionar com alguns países associados ou com os quais o Mercosul já mantem acordos de liberalização comercial (como Israel, por exemplo). Não se percebe, por outro lado, como Argentina e a própria Venezuela poderiam aceitar compromissos de abertura nas negociações entre o Mercosul e a União Europeia.


6-  Vimos recentemente no Jornal Nacional uma reportagem sobre Aliança entre Europa e América do Norte, o chamado Tratado Transatlântico; qual é a chance de o Brasil se beneficiar deste acordo ou o da Aliança do Pacifico, que são acordos que prevê muitos benefícios aos países membros?

O Brasil e o Mercosul, por sua própria introversão econômica, protecionismo exacerbado e estatização crescente, estão à margem desses processos, e poderão se ressentir de que seus parceiros na região sul-americana busquem consolidar vínculos com essas duas regiões, diminuindo, assim, o aceso dos produtos do Brasil e do Mercosul aos mercados desses outros países. De forma geral, o Brasil e o Mercosul estão se tornando irrelevantes em relação aos principais movimentos que se registram no comércio e nos investimentos internacionais. 


7-  Qual é a sua opinião sobre a regra de negociação conjunta do Mercosul? 

Poderia ser útil se os países membros tivessem uma total abertura interna, recíproca, e plena disposição para se abrirem ao mundo. Como eles não conseguiram sequer assegurar a zona de livre comércio plena entre si, como não possuem uma união aduaneira funcional, homogênea, uniforme, e como eles não conseguem coordenar suas políticas macroeconômicas (a cambial, por exemplo) e setoriais, eles não possuem condições mínimas para negociar conjuntamente com outros parceiros. Todos os acordos extra-Mercosul concluídos até aqui são extremamente limitados em seu escopo, alcance e modalidades de abertura, contribuindo de modo muito marginal para a expansão geral do comércio externo do Mercosul ou os intercâmbios individuais dos países membros. Como a regra não dispõe dos pré-requisitos para tornar-se operacional, talvez seja o caso de aboli-la parcialmente. Na verdade, não se trata de uma regra do Mercosul, mas sim de uma norma totalmente política, ou seja, uma decisão adotada pelo Conselho do Mercosul, seu órgão político superior. Sendo uma resolução política, ele poderia ser modificada por outra decisão política, autorizando a negociação isolada de acordos de livre comércio dos seus membros individuais com terceiros países, desde que respeita a cláusula de nação-mais-favorecida, ou seja, que os benefícios estendidos a qualquer terceira parte seja automaticamente estendidos aos demais membros do Mercosul. Em princípio, uma união aduaneira deveria atual de forma conjunta, mas como o Mercosul padece de sérios problemas de descoordenação, uma norma política autorização negociações individuais talvez seja um expediente aceitável. 
No plano prático, sabe-se que a Argentina (e possivelmente a Venezuela) possui uma menor disposição de abertura, comparada ao Brasil, por exemplo. Assim, talvez o Brasil tivesse vantagens em se beneficiar de uma nova “norma” permissiva nesse terreno. 


8-  No atual cenário de globalização e Internacionalização, qual é a importância de fazer parte de Acordos Comerciais continentais e intercontinentais?

Acabo de escrever um livro inteiro sobre essa questão: Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013). Permito-me remeter a esse livro, no qual essa questão está amplamente debatida.


9-  Quais são os benefícios para o Brasil quando falamos dos Tratados de livre Comércio com Comunidade Andina, Israel e Egito?

Muito limitados, embora o acordo com Israel, um país dotado de alta tecnologia, possa ser potencialmente interessante, e prometedor. Os acordo com países sul-americanos membros da CAN não são muito significativos em relação ao que já existia no âmbito da própria Aladi, ao abrigo da qual foram contraídos esses acordos. Não creio que os acordos com Egito, Índia ou SACU (África meridional) sejam muito significativos, embora sempre possa haver alguma criação de comércio.


10-      Qual é a sua expectativa para o Mercosul, ele ainda deverá existir por quanto tempo.

Durante as primeiras duas décadas de existência do Mercosul, o itinerário do bloco tinha sido marcado por uma característica básica: suas configurações essenciais foram construídas, não tanto a partir da arquitetura institucional ou do funcionamento interno do bloco, mas sim com base nas orientações políticas de seus dois principais membros, a Argentina e o Brasil. De fato, esse foi o elemento definidor do itinerário do Mercosul, desde suas primícias, até 2012, quando o processo foi alterado de forma substantiva, a partir do ingresso irregular da Venezuela, admitida na ausência e contra a opinião do Paraguai, temporariamente suspenso das reuniões do bloco en função de uma crise política interna no país guarani, identificada pelos três outros membros como constituindo uma “ruptura democrática”, no sentido definido pelo Protocolo de Ushuaia de 1998. Tudo leva a crer que esse será o molde formal no qual o Mercosul se desenvolverá – se desenvolvimento houver, no sentido substantivo e cumulativo da palavra – no futuro previsível: a partir das decisões políticas adotadas de forma voluntarista pelos três grandes sócios do bloco. 
Em outros termos, não são tanto os atos constitutivos – Tratado de Assunção, Protocolo de Ouro Preto – ou os instrumentos acessórios – protocolos e acordos setoriais, inclusive sobre solução de controvérsias – ou sequer o conjunto de normas definidoras de suas políticas setoriais – comerciais e outras – que determinarão o curso a ser seguido pelo Mercosul, e sim as políticas internas dos três sócios maiores, com seus reflexos no processo de integração. São estas políticas que se afiguram decisivas, não exatamente para influenciar no que ele deveria, ou no que ele poderia ser, mas para o que o bloco vai ser, concretamente.
Uma análise prospectiva com tais intenções teria de ser bem mais conceitual, e mais institucional, do que propriamente focada nas políticas nacionais, uma vez que é hipoteticamente o perfil geral do edifício integracionista que deveria determinar o curso atual e futuro do bloco. Ocorre, porém, que a presença política e o ativismo dos dirigentes máximos dos países membros são de tal forma relevantes para a definição de suas principais políticas, que a moldura institucional e os principais instrumentos operacionais acabam sendo relegados a segundo plano nas reuniões definidoras das grandes orientações do bloco. Desse ponto de vista, o Mercosul aparece como bem menos institucionalizado – e com menor respeito ao quadro legal – do que outros esquemas de integração, mais ou menos profundos, como podem ser experimentos complexos como o da UE, ou simples zonas de livre comércio, como é o Nafta. 
Não surpreende, assim, que qualquer digressão sobre a evolução futura do Mercosul se apresenta como difícil, senão impossível, pois que altamente dependente do comportamento aleatório – por vezes até errático – das lideranças políticas em cada um dos países, dada a personalização dos sistemas políticos nacionais e do próprio processo de integração. O caráter oscilante da evolução do Mercosul pode inclusive ser determinado por fatores totalmente contingentes, como ocorreu em junho de 2012, na reunião de cúpula de Mendoza, quando o Paraguai foi suspenso pelos três outros membros por suposta “ruptura democrática” – na verdade uma crise política interna – interpretada e sancionada sem que necessariamente tenham sido seguidos os requerimentos do próprio Protocolo de Ushuaia (1998), que determinavam consultas com a parte afetada antes de qualquer aplicação de sanções.
A despeito da adesão de todos a um conjunto mínimo de regras de política comercial, estas vêm sendo alteradas de maneira crescente e arbitrária pelo ativismo político-econômico de cada um dos Estados, na ausência de mecanismos mais aperfeiçoados para uma melhor coordenação das políticas econômicas nacionais, e até de vontade política para tanto. A base de qualquer empreendimento integracionista é a existência de uma vontade comum aos participantes, o mais possível convergente, no sentido de adotar as medidas necessárias, no plano interno, de maneira a viabilizar os requerimentos do processo de desmantelamento de barreiras à formação de um espaço econômico comum. Não é isso, exatamente, que vem ocorrendo no Mercosul atual.
Se, em algum momento, essa comunhão de propósitos existiu entre os membros do Mercosul – e ela foi bem mais evidente na dramática conjuntura de saída dos regimes autoritários militares, em meados dos anos 1980 – e se manifestou nos impulsos sucessivos que levaram do PICE (1986), ao Tratado de Integração Bilateral Brasil-Argentina (1988), logo depois à Ata de Buenos Aires (1990, que decidiu acelerar o processo) e finalmente ao tratado quadrilateral de Assunção (TA-1991), que criou o Mercosul em sua forma atual, essa vontade há muito parece ter deixado de existir. Não é difícil de se chegar a esta conclusão ao se constatar, no decurso da segunda década do bloco, a adoção progressivamente crescente, por parte dos dois membros mais importantes, de medidas unilaterais de caráter exclusivamente nacional que passaram a afetar o quadro regional no que ele tinha de mais relevante: sua conformação jurídica enquanto personalidade de direito internacional sob a forma de uma união aduaneira. Não é difícil imaginar que o ingresso da Venezuela no bloco, em condições particularmente bizarras, venha a contribuir para esse quadro errático no processo decisório e de ambiguidades na implementação das medidas institucionais e de funcionamento do Mercosul.
A disparidade de políticas econômicas nacionais parece ser o elemento central que explica o precário estabelecimento dos pilares essenciais do empreendimento integracionista em sua segunda década de existência. É ela que fundamenta a dúvida de saber se, no futuro de médio prazo, o Mercosul conseguirá, ou não, cumprir os requisitos básicos de seu projeto constitutivo: o acabamento de sua união aduaneira, com vistas a avançar para o prometido mercado comum. A incapacidade dos países em completar o próprio programa estabelecido na origem, para o Mercosul, constitui, atualmente, o elemento central de seu desenvolvimento no futuro de curto e médio prazo, ou seja, a partir da terceira década de sua existência.
Como seria possível interpretar, assim, as vias prováveis de evolução futura do Mercosul, em face dos problemas remanescentes e das tendências sistêmicas que se observam atualmente no bloco, em especial, no que respeita o comportamento dos seus protagonistas mais importantes? Duas linhas de explicações são aqui seguidas: quanto aos procedimentos, e quanto à substância do processo de integração.
No que respeita, em primeiro lugar, os procedimentos, e admitindo-se a premissa estabelecida ao início – que condiciona a evolução do bloco às orientações políticas dos seus maiores sócios, processo aliás vinculado ao alto grau de personalização do processo decisório, típico do presidencialismo altamente instável que vige na região – pode-se vincular o futuro do Mercosul ao que determinarem os presidentes e os mais altos responsáveis econômicos do Brasil, da Argentina e, doravante, da Venezuela. No que tange, em segundo lugar, à substância do processo, cabe enfatizar que, a despeito de toda a retórica política em torno do Mercosul e das iniciativas adotadas pelos governos dos Estados partes no terreno político (e em suas derivações sociais, culturais, educacionais e outras), a essência do processo só pode ser econômica e comercial: enquanto não se avançar nesse terreno, é propriamente um engodo falar-se do reforço ou da ampliação da integração. 
Se estas linhas explicativas guardam consistência com a realidade registrada em sua segunda década de existência, cabe reconhecer que o Mercosul desviou-se significativamente de seus objetivos originais, a ponto de raramente a agenda de reuniões na fase recente ocupar-se do cumprimento das metas estabelecidas no artigo 1o. do TA. O que deveria ser o ponto de partida da integração – o livre comércio pleno e o correto funcionamento da união aduaneira – parecer ter se convertido num objetivo distante, quase ausente dos discursos políticos da atualidade.
Resta saber, portanto, se o futuro imediato (e o mediato também) confirmará a tendência ao esvaziamento do processo econômico real – e sua conversão em um simples foro de questões gerais lidando com a integração superficial de países contíguos –, ou se o Mercosul conseguirá retornar, a partir de sua terceira década, a seu projeto original. Para isso cabe considerar o que ele foi, até aqui, e quais são os problemas e desafios que deveriam fazer parte de uma agenda real de integração: um exercício retrospectivo, focando as políticas desenvolvidas nos últimos anos, pode ajudar a antecipar o que pode – e o que deveria – vir pela frente.
Não é difícil identificar as grandes fases de desenvolvimento do Mercosul: todos reconhecem que, a despeito dos avanços realizados nos primeiros dez anos, os impulsos do Mercosul em direção de uma maior liberalização comercial e para a constituição de um espaço econômico unificado no Cone Sul foram paralisados a partir de 1999, e até retrocederam nos anos seguintes. A união aduaneira sequer consolidou-se sob uma autoridade comum, dotada de aplicação uniforme de suas regras, havendo a coexistência de enorme volume de exclusões à Tarifa Externa Comum. As causas principais foram a instabilidade econômica e as políticas econômicas divergentes, mas também um reduzido compromisso político com a realização das reformas necessárias ao alinhamento da agenda de trabalho do Mercosul com os objetivos do TA.
Chega-se, finalmente, ao momento de reversão do Mercosul, nos anos 1999-2001, quando tanto o Brasil, quanto a Argentina conhecem crises severas no plano cambial, o que determina uma queda significativa nos níveis dos intercâmbios no bloco (já que a conjuntura negativa afeta igualmente os dois sócios menores). Os fluxos serão restabelecidos gradualmente ao longo da segunda década do Mercosul, mas não o impulso liberalizador que deveria caracterizar o processo de integração. Pode-se, aliás, afirmar que essa fase de crise e de mudança de atitudes inaugurou um processo de reversão de fato – ainda que não de direito, mas sua importância diminui – no Mercosul, com um decréscimo político e econômico do impulso conhecido nos primeiros oito anos do processo de integração. 
Durante aquela conjuntura de crise, ainda se tentou compensar o desgaste da relação bilateral – evidente desde o momento da desvalorização cambial involuntária no Brasil (janeiro de 1999) – pela criação de um grupo ad hoc de harmonização de políticas macroeconômicas. De fato, a desvalorização do real e a introdução do regime de flutuação cambial dão a partida a uma grave crise política entre o Brasil e a Argentina, da qual o processo de integração parece jamais ter se recuperado. Medidas protecionistas adotadas antes e depois do episódio, pelo setor privado e pelo governo da Argentina contra produtos brasileiros (têxteis, avícolas, siderúrgicos, calçados, papel, linha branca, reforço de barreiras ditas sanitárias), continuaram durante toda a segunda década, e ameaçam prolongar-se pelo futuro previsível. O Brasil fez diversas vezes apelo ao mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul e, num caso, pelo menos, teve de levar o contencioso contra a Argentina à apreciação da OMC. Desde essa fase, o Mercosul jamais voltou a discutir seriamente a questão da coordenação macroeconômica, em especial a questão cambial. 
Os personagens determinantes da fase mais recente foram os presidentes eleitos do Brasil, Lula, e da Argentina, Nestor Kirchner, este inclusive com o apoio explícito do primeiro. Um primeiro encontro bilateral, logo após a eleição do argentino, serviu para o anúncio à mídia de um vago “Consenso de Buenos Aires”, que pretendia substituir o supostamente perverso “Consenso de Washington”, alimentando ambos os presidentes a esperança de que as novas regras – anti-neoliberais – servissem de modelo e inspiração para todo o continente. No entanto, propostas brasileiras para o aprofundamento da coordenação econômica no plano bilateral e para a consolidação da união aduaneira no quadro do Mercosul nunca puderam avançar de modo conveniente, em função, essencialmente, da oposição argentina a qualquer esforço real de liberalização comercial, seja interna, seja no plano regional ou multilateral.
O único entendimento possível, aqui incluindo a Venezuela, foi a oposição comum ao projeto americano da Alca, bem mais por motivos políticos (e até ideológicos), do que com base num cálculo econômico realista no que se refere a ganhos eventuais em termos de acesso a mercados americanos ou em novas oportunidades de atração de investimentos diretos nos setores industriais dos países da América do Sul. A colaboração entre eles foi bem sucedida, uma vez que conseguiram implodir a Alca na reunião de cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005.
A consequência mais evidente derivada da ascensão de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina – no caso, os já mencionados Lula e Kirchner – foi representada pelo nítido afastamento desses países (e, no mesmo movimento, do Mercosul) dos objetivos econômicos basilares do TA, em especial a liberalização comercial recíproca e a continuidade da abertura econômica no plano global. Em seu lugar, reingressaram na agenda velhas receitas substitutivas e industrializantes, sob forte dirigismo estatal e protecionismo aos empresários nacionais; em suma, não apenas um desvio em relação aos princípios “constitucionais” do Mercosul, mas igualmente um retorno de quase meio século na história econômica desses países.
Esse movimento regressista foi bem mais forte, numa primeira fase, na Argentina, do que no Brasil, que não atravessou uma crise tão grave quanto aquela enfrentada pelo país platino no início do novo milênio. No caso do Brasil, consoante a vontade das novas lideranças do Partido dos Trabalhadores de exercer uma não-assumida liderança política no continente – ou seja, ultrapassando inclusive o quadro formal do Mercosul – o que se observou foi uma espécie de fuga para a frente, em direção de objetivos sociais e políticos não concebidos originalmente como partes essenciais do processo de integração: tratou-se nitidamente de um efeito substituição.
Os governos dos países membros favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas posturas nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida contradição com os requisitos tradicionais da integração, que são a abertura econômica e liberalização comercial. A incorporação da Venezuela às instâncias deliberativas – ainda que não todos os procedimentos de adesão tenham sido efetivamente ratificados e seguidos pelo novo membro – contribui para reforçar os elementos constitutivos objetivamente anti-integracionistas no Mercosul.
O governo brasileiro apoiou ativamente a constituição de novos órgãos para o Mercosul – Instituto Social, Parlamento, esforços adicionais de “inserção social”, etc. – mesmo quando os objetivos primários do TA, que são o livre comércio e a união aduaneira, continuaram submetidos a contínua erosão, tanto pelas crescentes restrições adotadas no plano interno, quanto pelo protecionismo ampliado no plano externo. A Argentina foi bem mais enfática, e explícita, nos mecanismos defensivos do seu mercado interno, sob o olhar complacente do governo brasileiro, mesmo contra os interesses de seus exportadores em geral, dos industriais em particular. A despeito de todas as políticas defensivas da Argentina, e do fato que elas foram e continuam sendo ilegais e abusivas, os fluxos do intercâmbio bilateral – que constituem ainda o grosso do comércio intra-Mercosul – continuaram a beneficiar os exportadores do Brasil, cujos superávits com o vizinho permanecem significativos.
A acumulação de saldos comerciais e a volta ao crescimento dos fluxos intra e extra-regionais não impediram que a parte do comércio regional recíproco dos países do Mercosul diminuísse em relação ao volume global dos intercâmbios do bloco, em especial no caso do Brasil. A Argentina se mantém ainda na condição que já foi várias vezes caracterizada como de “Brasil dependência”, que ela se esforça em diminuir, mas recorrendo a métodos claramente anti-integracionistas, no limite antibrasileiros. Desde meados dos anos 1990 que ela recorre – no início moderadamente, nos anos 2000 de forma intensa e aberta – a diferentes mecanismos protecionistas (como antidumping, salvaguardas, licenças de importação, quotas informais, etc.), muitas vezes de forma ilegal e abusiva, não apenas contra o espírito e a letra dos instrumentos constitutivos do Mercosul, mas também em oposição a dispositivos do sistema multilateral de comércio (como o Código de Salvaguardas, por exemplo).
Mas é também um fato que a parte do Mercosul no comércio global brasileiro, depois de ter aumentado em dez pontos percentuais, a partir de sua pequena base de 4% ao início da criação do bloco, tornou a diminuir na segunda década; ainda que os valores absolutos tenham voltado a crescer a partir de meados dessa década, relativamente eles passaram a representar parte decrescente do comércio exterior brasileiro. Isto significa que o Mercosul continua a ser significativo no plano microeconômico – ou seja, representa um importante mercado para empresas individuais – mas já pode não ser macroeconomicamente relevante para o Brasil quanto foi nos primeiros nove anos.
Pode-se agora adentrar no campo prospectivo e tentar antecipar o que poderá ocorrer – e, talvez até, o que deveria ocorrer – no Mercosul, com apoio na experiência acumulada do próprio bloco, nas tendências detectadas anteriormente e, também, no conhecimento das políticas em curso nos países membros. Independentemente, porém, do perfil econômico de médio e de longo prazo do Mercosul, e das características políticas e institucionais que ele poderia assumir, em decorrência das ações futuras dos governos dos Estados partes, um aspecto parece seguro, qualquer que seja seu itinerário no horizonte previsível: o Mercosul não corre qualquer risco de desaparecer pela vontade deliberada de seus membros. Nenhum dos líderes políticos, atuais ou futuros, parece pronto a descartá-lo como projeto, ou estaria disposto a assumir o ônus de decretar seu fracasso e inadequação, apenas por ineficiência relativa de seus mecanismos ou devido ao aumento das irracionalidades econômicas dos últimos anos.
Depois de vários anos de restrições ilegais à importação de produtos brasileiros em seu mercado, a Argentina caminha no sentido, não de desmantelar, mas de “aperfeiçoar” os mecanismos defensivos e protecionistas: ademais do recurso habitual a salvaguardas e antidumping, o governo argentino tem apelado para licenciamentos não automáticos e outros expedientes restritivos ao acesso de produtos brasileiros aos mercados locais. Ocasionalmente, se faz recurso a algum tipo de retaliação, mediante a aplicação similar de restrições nas fronteiras, numa demonstração pouco usual de “machismo comercial”. Quando os estoques de produtos barrados aumentam dos dois lados da fronteira, uma reunião política desarma o potencial de conflitos durante algum tempo, até a próxima contenção ilegal. Eventualmente, os supremos mandatários dos dois países se reúnem, anunciam algum “plano estratégico”, e prometem que, no futuro, “tudo vai ser diferente”.
Em outros termos, não existem muitas perspectivas de que os grandes parceiros do Mercosul, na vigência dos instintos protecionistas existentes atualmente, se reconciliem no liberalismo comercial “neoliberal” dos anos 1990, o que não permite, portanto, prenunciar a retomada da construção do projetado mercado comum bilateral – e menos ainda plurilateral – prometido desde os anos 1980. Não é, por outro lado, previsível – e, de certa forma, é praticamente impossível – que o acesso de novos membros plenos ao esquema do Mercosul, sobretudo em se tratando dos “bolivarianos”, como a Venezuela, a Bolívia ou o Equador, venha a resultar em livre comércio ampliado. Ao contrário: o que se prevê é mais comércio administrado, mais regulações intrusivas na atividade empresarial, mais inserção social e distribuição de benefícios estatais, em uma palavra: maior controle dos mercados, de maneira a permitir um espaço econômico equilibrado, dotado de salvaguardas necessárias ao fluxo responsável de bens e serviços, sem que os benefícios sejam concentrados em algum parceiro, dotado de vantagens indevidas em função de “assimetrias estruturais”.  
Se não existe liberalização ampliada dos intercâmbios no Mercosul, mas apenas comércio administrado ou monitorado pelas autoridades econômicas – sempre preocupadas em corrigir os desequilíbrios –, não existem motivos suficientes ou os requisitos necessários para a chamada coordenação de políticas macroeconômicas ou a harmonização de políticas setoriais. Isso afasta ainda mais os países de um saudável processo de reformas que eles deveriam de toda forma empreender, apenas para manter condições de competitividade de molde a prepará-los para enfrentar concorrentes externos. Isso, obviamente, no caso de os parceiros do Mercosul pretenderem praticar o regionalismo aberto, o que talvez não seja o caso. Não se pode, por outro lado, culpar a falta de institucionalização no Mercosul por essas carências detectadas na liberalização recíproca, uma vez que são as próprias políticas nacionais que obstaculizam o bom funcionamento da zona de livre comércio ou a plena implementação da união aduaneira.  
Em última instância, o que está em jogo, em cada um dos países, são os instintos soberanistas de cada um dos parceiros, sentimentos bastante exacerbados nos dois grandes sócios do empreendimento integracionista. O retraimento na defesa dos mercados nacionais e a proteção dos produtores locais ainda são iniciativas mais fortes, e de forte apelo político, do que as dolorosas decisões pela abertura e pelo desmantelamento de barreiras, ainda que apenas e tão somente no bloco, exclusivamente. Compreende-se que a ausência de reformas dificulte a abertura, o que por sua vez reforça a tendência à inércia: reformar a estrutura fiscal, renunciar a tributos, eliminar controles que servem aos instintos burocráticos das corporações estatais, modificar os direitos sindicais que produzem reservas de mercado (e, de fato, desempregos setoriais), alterar a paridade do câmbio ou deixá-lo flutuar sem controles, todas essas medidas são extremamente difíceis de serem tomadas, e não é provável que Brasil e Argentina consigam se entender sobre uma plataforma comum de reformas internas e sobre uma agenda partilhada de retomada do processo de integração.  
Na verdade, os dois países – e outros países na região – não deixam de fazer ajustes, cada vez que circunstâncias inesperadas alteram as condições do jogo econômico num ou noutro país. Mas essas medidas são adotadas de forma ad hoc, sem obedecer a uma visão compartilhada de quais medidas são favoráveis, ou não, ao processo de integração, o que afasta ainda mais a perspectiva de uma coordenação de políticas entre os dois grandes parceiros do Mercosul. Uma simples listagem de todas as medidas de política fiscal, tributária, cambial, comercial ou industrial adotadas em cada um dos países permitiria que se chegasse à constatação que sua orientação se deu, não num sentido integracionista, mas objetivamente com propósitos restritivos ou protecionistas: de fato, o grau de proteção efetiva aumentou, não diminui, desde 1995, e não apenas para terceiros países, mas internamente ao Mercosul igualmente.
Para não dar a impressão de imobilismo, ou até de retrocesso, se adota nova estratégia de “fuga para a frente”, deslocando os objetivos do processo para a ampliação do bloco, não para a sua consolidação ou aprofundamento. Não se vê, aliás, em que medida, e com quais objetivos, o ingresso de novos membros em condições facilitadas – ou seja, sem passar pela  adoção obrigatória da TEC – possa reforçar o Mercosul, em lugar de debilitá-lo. Aparentemente, o Mercosul está se transformando numa Aladi sub-regional, quase um simples cartório de registro de atos de natureza diversa, de implementação relativamente vaga e de obrigações muito tênues. Tampouco se imagina como a extrema flexibilidade na implementação das disposições essenciais do Mercosul possa contribuir para o outro objetivo alegadamente importante, que é a redução das “assimetrias estruturais” entre os membros. Cada vez que a qualquer um dos membros é permitido seguir uma implementação “flexível” das normas comuns, o que se tem é um reforço de assimetrias, não sua atenuação, inclusive devido ao fato de que as “assimetrias” mais relevantes são aquelas derivadas de políticas econômicas, não de supostas dotações diferentes de fatores (que são elementos sistêmicos, ou seja, presentes em qualquer relação comercial, em todas as demais partes do mundo). 
Uma análise realista do “estado da arte” no Mercosul poderia, por exemplo, chegar à conclusão de que o projetado mercado comum, ou sequer a união aduaneira proclamada são factíveis, de fato, cabendo, então, dar lugar a uma discussão sobre os meios e os procedimentos aplicáveis a um processo ordenado de construção de uma simples zona de livre comércio, formato que é, de longe, um dos mais comuns – junto com os simples esquemas de preferências tarifárias – dos experimentos de integração conhecidos no sistema multilateral de comércio. Seria um reconhecimento de que a arquitetura concebida no momento da redemocratização dos países do Cone Sul foi ambiciosa demais para as capacidades organizacionais dos parceiros nesse tipo de empreendimento, cabendo, assim, reconhecer as virtudes mais modestas dos esforços de cooperação focados em metas realistas de liberalização comercial de escopo mais limitado ou de alcance não tão profundo. 
Se o Mercosul quiser ser bem sucedido ele tem de voltar ao básico, e cumprir o acordado no artigo 1o. do TA, ou então começar por assumir a responsabilidade de efetuar uma reforma profunda de seus instrumentos constitutivos. A reprodução mimética de um esquema do tipo europeu sempre foi uma quimera do ponto de vista prático, e não existem soluções institucionais indolores que consigam fazer do Mercosul um edifício integracionista para o qual lhe carecem fundações apropriadas.
Um bom começo de um processo de reformas seria um diagnóstico realista dos impedimentos sistêmicos ou contingentes ao acabamento da união aduaneira, a partir do qual se poderia prescrever uma arquitetura institucional com a qual as autoridades políticas dos atuais parceiros poderiam concordar em dar o seu apoio. Nenhuma solução “cooperativa” em torno de um processo de integração elude, porém, a necessidade de reformas internas em cada um dos países participantes. E um compromisso inquebrantável com o respeito à legalidade democrática e aos bons princípios do Estado de direito seria uma condição essencial para o sucesso de todo e qualquer esquema integracionista que se empreenda na região.  

Paulo Roberto de Almeida

Hartford, 13 de julho de 2013.