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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Mr Slang e o Brasil - Monteiro Lobato

Coloquei este livro, na verdade uma coleção de crônicas e artigos sobre um inglês imaginário da Tijuca, entre os DEZ livros mais importantes para se conhecer o Brasil, como escrevi neste artigo mais completo: 

2987. “Dez obras para melhor entender os problemas do Brasil”, Brasília, 31 maio 2016, 20 p. Contribuição a pedido de Rodrigo da Silva. Publicado em Spotniks (06/06/2016; link: http://spotniks.com/dez-obras-que-voce-precisa-ler-para-entender-melhor-os-problemas-do-brasil/); divulgado no blog Diplomatizzando (12/01/2017; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/01/livros-dez-obras-para-entender-o-brasil.html).

Transcrevo aqui essa parte sobre esse livro de Lobato, "conversando" com Mr. Slang.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 28 de fevereiro de 2018

4) Monteiro Lobato: Mr. Slang e o Brasil

lobato
Já me referi, no mesmo trabalho citado acima, a esse pequeno opúsculo perdido no meio da imensa obra – infantil e adulta – do mais célebre publicista da primeira República e da era Vargas, o homem que prenunciou um presidente negro nos Estados Unidos (não exatamente num sentido “progressista”), que lutou pelo “petróleo é nosso” (mas não com o nacionalismo obtuso dos realizadores do slogan), e que sempre afirmou que um país “se faz com homens e livros” (uma frase talvez oportunista, uma vez que foi editor durante boa parte da sua vida). Todo o livro trata dos problemas do Brasil, tal como existiam nos anos 1920, e que parecem ter continuidade nos dias que correm. Como diria Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento não se improvisa. Na mesma época, Mario de Andrade, aliás “inimigo” de Lobato, um crítico acerbo da Semana da Arte, escreveu um poema no qual dizia que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade” (“O Poeta Come Amendoim”).
Mister Slang era um inglês imaginário, morador da Tijuca, com o qual o “autor”, um “homem comum”, se entretinha para tratar desses problemas do Brasil. Resultado de crônicas publicadas na imprensa carioca em 1926 (O Jornal, de Assis Chateaubriand), quando acabava o governo tumultuado de Artur Bernardes, um mineiro, e começava o de Washington Luiz, um paulista, publicada em forma de livro em 1927 (apenas 135 p.), a obra utiliza-se de um estratagema tão velho quanto as Cartas Persas de Montesquieu, no sentido de recorrer a um estrangeiro para falar das idiossincrasias do próprio país. Não deixava de ser um subterfúgio para falar mal do governo corrente.
Mas cabe não esconder, desde já, que Lobato foi de certa forma beneficiado por essas crônicas a favor da “paulistização” do país – isto é, o seu progresso impulsionado a partir da economia mais vibrante –, já que antes do final do governo, e instalado na capital federal desde 1925, foi nomeado adido comercial junto ao Consulado do Brasil em Nova York em 1928. Residindo alguns anos na mais importante cidade americana, ali reforçou a admiração que já exibia pela produção industrial em série, à la Henry Ford, pelo rádio e pelo telefone, e tantas outras inovações que reputava indispensáveis ao Brasil essencialmente agrícola (e ainda muito atrasado) de sua época.
Independentemente, porém, das motivações dessas crônicas, e de seu papel na própria promoção “comercial” do autor no mercado intelectual e editorial brasileiro, cabe refletir sobre os problemas levantados pelo inglês da Tijuca, todos eles apontando para a modernidade, para as reformas compatíveis com os progressos da tecnologia, quando não para o progresso moral na condução política dos assuntos públicos (como a simples instituição do voto secreto, por exemplo). As críticas de Lobato à capital da República – e ele concordava com o presidente Artur Bernardes na corrupção do Rio e na necessidade de transferência da capital para o interior de Goiás – eram encobertas pelas declarações do inglês quanto ao parasitismo da “cidade maravilhosa”, e Lobato parafraseava sua famosa condenação das saúvas, ao dizer que “ou o Brasil dá cabo desse [sic] Rio de Janeiro, ou o Rio de Janeiro dá cabo do Brasil”.
Não se pretende dizer aqui que o trabalho de Lobato – que se esconde atrás de um inglês imaginário para expressar suas próprias ideias sobre o que caberia reformar no país do seu tempo – seja um retrato perfeito de problemas estruturais que até agora permanecem não resolvidos, ou que as ideias do inglês, de Lobato, fossem, ou sejam, as mais apropriadas para resolver esses problemas, antes ou atualmente. Provavelmente, a maior parte dos problemas atuais – os da política corrupta, os da economia errática, os da enorme, extraordinária em seu tempo, miséria material do povo e, sobretudo, os do espantoso baixo nível educacional, que está na origem da medíocre produtividade do trabalho – não será resolvida com base nas percepções de um inglês déplacé na Tijuca, ou nos “repentes” de Lobato (ele tinha muitos), inadequados então e também agora. Mas, uma das primeiras condições para tentar, ao menos, oferecer soluções a problemas desse tipo, seria começar por fazer um diagnóstico preciso dos problemas do país. E isso Lobato podia fazer, ainda que tivesse mudado ao longo do tempo suas prescrições para os problemas do país: primeiro o Jeca Tatu eternamente doente, depois as saúvas, ou a falta de aço e petróleo, enfim, tudo aquilo que acorrentava o Brasil ao atraso.
Além das críticas mais frequentes às insuficiências materiais do país, o que mais enfastiava o inglês da Tijuca era a incapacidade dos brasileiros pensarem com suas próprias cabeças, sempre predispostos a adotar esta ou aquela postura de seus jornais de preferência ou a de algum político de destaque. A falta de ideias próprias dos brasileiros seria, para Mr. Slang, uma das razões do atraso do Brasil, o que obviamente era um argumento do próprio Lobato. São apenas 21 crônicas, todas criticando as inadequações da república “carcomida”, como revelado nas constantes revoltas dos jovens militares. Ele já tratava de questões como a necessidade de estabilização monetária – efetivamente tratada por Washington Luiz e seu primeiro ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, mas que não chegou a completar o processo, trocando o mil-réis por uma nova moeda, o que só seria feito pelo próprio Vargas, em 1942 –, de questões políticas (num contexto de revoluções tenentistas e da própria coluna Prestes), do peso dos tributos sobre a produção nacional – o que já tinha sido a causa da falência de sua primeira editora – e até do protecionismo comercial, que ele queria substituir por uma sadia concorrência.
A burocracia estatal é também criticada pelo “inglês”, mas a sua causa seria a “miséria do funcionalismo público”, um aspecto que parece ter sido amplamente corrigido desde então, a ponto de os servidores públicos terem se convertido em mandarins privilegiados, com salários cinco ou seis vezes superiores aos equivalentes funcionais do setor privado. A ineficiência do serviço público é um desses disfarces do patrimonialismo, chamado por Lobato de “parasitismo camuflado”. As Forças Armadas tampouco escapam de suas críticas, por serem igualmente ineficientes, ao deixarem de usar aviões, por exemplo. O provimento de serviços públicos, em especial nas vias de comunicações e transportes, era lastimável (o que não é propriamente uma novidade): Mr. Slang, quer dizer, Lobato, recomenda aqui o reforço da importação de cérebros, ou seja, o estímulo a fluxos imigratórios mais intensos. A corrupção do antigo governo federal (sob Artur Bernardes) era contrastada com a operosidade de São Paulo, motor da nova economia industrial que despontava. Com isso, Lobato obteve a sua mencionada remoção para Nova York, para servir de adido comercial segundo as novas orientações da política econômica externa traçadas pelo chanceler Otávio Mangabeira.
Essa modalidade da troca de “conversa fiada” com um estrangeiro, amplamente usada por Lobato, sempre foi um bom recurso dos reformistas sinceros que não querem romper inteiramente com o governo em vigor. Em todo caso, as ambiguidades políticas do escritor paulista não podem obscurecer o sentido de suas críticas, todas elas ainda plenamente válidas nos dias que correm. Se o voto de cabresto e o escrutínio aberto foram banidos da legislação eleitoral, a corrupção política segue tão vibrante quanto na República Velha. Gilberto Amado, um tribuno dessa República, depois diplomata e grande internacionalista, dizia que, nessa época, “as eleições podiam ser falsas, mas a representação era verdadeira”, no sentido em que o voto “a bico de pena” servia para eleger próceres cosmopolitas, perfeitamente educados, membros das melhores “elites”.
O que mudou na vida política do país? Eu diria que as eleições, atualmente, são amplamente verdadeiras, mas que a representação é perfeitamente falsa, no sentido em que não temos mais os tribunos educados de antigamente, mas apenas um baixo clero totalmente representativo de uma classe política comprometida unicamente com seus próprios interesses pecuniários. A representação, aliás, tornou-se altamente corporativa, com suas bancadas de sindicalistas, ruralistas, evangélicos, advogados, e até políticos profissionais, representantes deles mesmos e das corporações que os elegem. O Brasil parecer ter retornado ao regime eleitoral de 1934, típico do fascismo disfarçado. Não sei se Lobato concordaria comigo, mas Mr. Slang certamente estaria pronto a assentir…