O Brasil na maior encruzilhada de sua história: pode-se escolher uma “nova ordem mundial”?
Paulo Roberto de Almeida
Ordens mundiais — não necessariamente universais, ou globais, mas simplesmente dominantes regionalmente — não estão livremente disponíveis nos supermercados da História, para que um Estado qualquer, como um cliente entrado para as compras, possa escolher a que melhor lhe agrada ou aquela que seja a mais adequada às suas conveniências peculiares. O mundo não funciona assim, com um leque aberto de ordens econômicas e politicas entre as quais o cliente-Estado possa se servir à vontade, ao melhor de suas opções.
Nunca existiu, até a comunidade de nações precariamente organizada em Bretton Woods e logo em seguida em San Francisco, uma “ordem global” tal como a existente desde 1945, formalmente agrupada nas instituições onusianas (e alguns derivativos temáticos ou regionais) e dispondo de certa legitimidade dada por tratados e acordos em princípio aceitos por todos os Estados contemporâneo. O membership da ONU compreende, com certa boa vontade, a quase universalidade de Estados (ou circunscrições aduaneiras) legitimamente reconhecidos entre si: são 193 Estados, mais alguns observadores (como a Palestina, por exemplo) e duas partes contratantes ao Gatt com status especiais de territórios aduaneiros: Hong Kong, por um lado, Taiwan, por outro. A FIFA supera largamente a “universalidade” da ONU, com 211 federações nacionais (embora algumas, presentes apenas por razões históricas, como Escócia e País de Gales, por exemplo).
Anteriormente à ONU, nenhuma organização multilateral — mais exatamente interestatal — podia aspirar a tal abrangência “global”, muito menos a Liga das Nações, sua precária e muito incompleta antecessora. Todas as “ordens mundiais” precedentes não passavam de impérios regionais com maior ou menor abrangência geográfica ou populacional. O mundo, na visão abrangente de um Arnold Toynbee, assistiu à dominação concorrente ou sucessiva de duas dezenas de grandes civilizações, várias organizadas no formato de impérios, das quais a maior e mais bem-sucedida teria sido a civilização ocidental (na perspectiva dos anos 1930, quando ele comecou a escrever os diversos volumes de seu monumental Estudo da História, isso parecia fazer sentido, pois que impérios europeus e o americano “mandavam” no resto do mundo, à exceção do império russo-soviético).
O Brasil, incorporado colonialmente ao grande império marítimo lusitano (apud Charles Boxer) durante três séculos, passou a fazer parte, de modo informal, na sua independência, dos impérios europeus e americano (este um pouco mais tarde), ou seja, pertencíamos, por destino, herança e escolha própria, à “civilização ocidental” toynbeeana, dominante no mundo, desde os Descobrimentos, passando por Westfália e o arranjo oligárquico de Viena, até a Liga das Nações (da qual nos afastamos atabalhoadamente por caprichos do presidente Arthur Bernardes). Mas confirmamos nosso pertencimento à “civilização ocidental” desde Bretton Woods e San Francisco, mesmo quando insistíamos em afirmar nossa autonomia diplomática em face do arrogante Big Brother, representado pelo hegemon quase universal, o império americano do pós-Segunda Guerra Mundial.
A “ordem liberal ocidental” foi dominante enquanto o antigo Império do Meio — transmutado de República da China em República Popular, já na ONU desde 1972 — ainda atravessava seu declínio secular, desde os Qing até Deng Xiaoping, e enquanto o império soviético só era importante belicamente, em sua mediocridade econômica, financeira e política.
A plena inserção do Brasil na ordem liberal ocidental foi especialmente relevante, no plano diplomático, enquanto o mundo vivia a bipolaridade da “primeira” Guerra Fria, mesmo com um alinhamento onusiano mais próximo do que hoje se chama (equivocadamente) de Sul Global, ou do G77, do que dos votos e posturas do “núcleo duro” do bloco ocidental: EUA, Europa ocidental, G7, Ocde, Otan etc. Nunca tivemos de “escolher” uma outra “ordem mundial”, porque ela simplesmente inexistia, como proposta alternativa concreta. Nosso alinhamento autônomo à ordem economicamente, politicamente, culturalmente dominante do Ocidente foi confirmado mesmo nos momentos mais representativos de uma “politica externa independente”: a própria PEI, do início dos anos 1960, depois a partir do final dessa década, sem esse nome, mas, em tudo e por tudo, autônoma vis-à-vis os dois grandes blocos geopoliticos da segunda metade do século XX (até os anos 1990). Um “alinhamento ocidental” verdadeiramente independente, pois que nunca trocamos o status de observador pelo de membro do Movimento Não Alinhado, por exemplo.
Tal consistência diplomática foi mantida durante toda a segunda metade do século XX, até que algo começou a mudar, na substância d na forma, com o advento da diplomacia partidária lulopetista, já neste século, quando Lula e o PT assumem o poder em 2003. Nos dois primeiros mandatos, a diplomacia foi apenas parcialmente partidária e alternativa, mas não havia nenhuma proposta de alguma outra “ordem global” sendo oferecida nos supermercados da História: a Rússia recém emergia da “maior catástrofe geopolítica do século XX” e China, recém admitida no Gatt-OMC, ainda não tinha começado a flexionar os seus músculos econômicos, o que ela fez muito rapidamente a partir de então.
Lula e o PT, para não mencionar os diplomatas mais “autonomistas”, reforçaram as demandas por uma “reforma das instituições multilaterais da governança global”, com especial atenção para as de Bretton Woods, a OMC e, no coração da matéria, o Conselho de Segurança da ONU. Mas o conceito de “nova ordem global”, com o adjetivo multipolar agregado em seguida, não tinha sido ainda aventado de forma explícita nos primeiros três lustros do século. Ele passou a ser mencionado, primeiro de forma tímida ou ocasional, a partir da invasão e da anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia (de fato historicamente russa, mas pertencente à jurisdição da República da Ucrânia desde 1991), por Putin, em fevereiro de 2014, numa aventura militar mais ousada do que suas incursões igualmente ilegais na Georgia e na Moldávia algums anos antes.
Com a guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, o conceito se firmou, em declarações de Putin e de Xi Jinping, e rapidamente se tornou o princípio organizador de uma nova concepção de “ordem mundial”, ou global, com o apêndice “multipolar”, ele próprio uma recusa direta ou indireta da “ordem mundial ocidental”, agora expressamente recusada por suas tonalidades hegemônicas e, supostamente, por não ser verdadeiramente “democrática”.
Esta é pois a encruzilhada “existencial” para a qual o Brasil e sua política externa podem ter sido encaminhados, sem qualquer consulta mais ampla à nação, pela diplomacia partidária lulopetista, sem muita elaboração conceitual em torno de suas implicações mais relevantes para o pais por parte do corpo profissional do Itamaraty ou de outros setores da sociedade brasileira.
O tema apresenta importância maior na vida da nação para merecer reflexões mais profundas sobre o significado e as consequências dessa “adesão” governamental — talvez apenas personalista — a um conceito e um projeto mal definido ou explicitado, sendo patrocinado abertamente por duas grandes potências que já se colocaram em oposição declarada à alegada “ordem liberal ocidental”, ainda dominante. Um exercício reflexivo sobre essa “adesão não oficial” (mas repetida de forma recorrente) deve começar a fazer parte das preocupações conceituais e pragmáticas daquela pequena tribo de pensadores engajados no terreno das relações internacionais do país e da própria diplomacia da nação.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 30/11/2024