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segunda-feira, 31 de março de 2014

O regime militar e a oposicao armada (5): O que foi a luta armada no Brasil? - Paulo Roberto de Almeida

regime militar e a oposição armada (5):
um retrospecto histórico, por um observador engajado

Paulo Roberto de Almeida

Sumário:
1. Antecedentes e contexto do golpe militar de 1964
(ver neste link)
2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
(ver neste link)
3. A passagem à luta armada: a insensatez em ação
(ver neste link)
4. A derrota da luta armada e suas consequências: uma história a ser escrita
(ver neste link)


5. O que foi a luta armada no Brasil: uma interpretação pessoal
Ela foi um empreendimento essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à “ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada “natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência” incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”).
Em outros termos, a luta armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” – como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica, como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria existido no Brasil.

 (continua...)

sábado, 2 de novembro de 2013

Um contraponto a Comissao da (In)Verdade: a versao dos militares que lutaram contra a esquerda - Orvil

Uma postagem meramente informativa, sem endossar o conteúdo do livro, que não conheço, mas que suspeito seja uma tentativa de se opor à versão, certamente enviesada, da esquerda derrotada pelos militares e que tenta eternizar sua história como sendo a de uma luta pela democracia e contra uma ditadura, quando na verdade todos os grupos de esquerda queriam implantar um regime socialista no Brasil.
Não acredito que esta versão dos militares seja totalmente isenta, pois tenta não reconhecer os crimes contra os direitos humanos que foram cometidos na repressão à esquerda, mas certamente é uma versão menos falsa, e sobretudo menos enganadora, do que a que tentam impingir os socialistas de todos os matizes, atualmente no poder.
Sou totalmente isento para expressar o que vai acima, pois lutei contra a ditadura militar, fui um dos milhares de esquerdistas que queriam um regime socialista no Brasil, saí do País para o exílio, onde fiquei por mais de sete anos e voltei sempre disposto a lutar pelo socialismo. Com base nas leituras, na experiência, e no simples reconhecimento dos fatos, constatei meus equívocos juvenis, e hoje procuro sinceramente a verdade sobre o regime militar e a dos grupos que lutaram contra o regime.
Creio ser importante ter todas as fontes de informação a respeito de ambos os grupos, ou posições, e com base nesse conhecimento formar uma opinião responsável sobre quais caminhos o Brasil deveria adotar.
Paulo Roberto de Almeida

Blog do Aluizio Amorim, quinta-feira, janeiro 17, 2013
LIVRO REVELA A LUTA DOS MILITARES CONTRA AS TENTATIVAS DE TOMADA DO PODER PELA SUBVERSÃO COMUNISTA NO BRASIL

Vendido em apenas quatro livrarias, mas lançado em clubes e círculos militares de 14 cidades, Orvil - Tentativas de Tomada do Poder, versão de oficiais do Centro de Informações do Exército (CIE) sobre a repressão, volta às prateleiras até o fim do mês com uma tiragem de mais dois mil exemplares. As três primeiras remessas, de mil exemplares cada uma, esgotaram-se em três meses. O livro é assinado pelo tenente-coronel reformado Lício Augusto Maciel e pelo tenente reformado José Conegundes Nascimento, que trabalharam sob a coordenação do general Agnaldo Del Nero Augusto, falecido em 2009. Outros oficiais que participaram do projeto não quiseram que seus nomes aparecessem.

Disponível pela internet no site da mulher do coronel reformado Carlos Alberto Ustra, que chefiou o DOI- Codi (órgão de informação e repressão do Exército, em São Paulo) e assina a apresentação, o texto original do Projeto Orvil ficou pronto em 1987, mas o então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, que havia autorizado o levantamento, não permitiu que fosse publicado. A iniciativa CIE pretendia ser uma resposta ao livro Brasil: Nunca Mais, de denúncias de prisões, torturas e assassinatos durante o regime militar, escrito por uma equipe ligada ao cardeal d. Paulo Evaristo Arns.

A publicação de Orvil (Editora Schoba, R$ 72,90), segundo o general reformado Geraldo Luiz Nery da Silva, autor do prefácio, é uma reação à criação da Comissão Nacional da Verdade. "Releva enfatizar neste prólogo", escreve o general, "que os revanchistas da esquerda que estão no poder -- não satisfeitos com as graves restrições de recursos impostas às Forças Armadas e com o tratamento discriminatório dados aos militares sob todos os aspectos, especialmente o financeiro - tiveram a petulância de criar, com o conluio de um inexpressivo Congresso, o que ousaram chamar de comissão da verdade".
Volume de 924 páginas, Orvil - livro, escrito ao contrário - destaca o golpe - ou contrarrevolução de 1964, como preferem seus autores - que derrubou o presidente João Goulart e a ação de organizações clandestinas que no período de 1966 a 1975 combateram o regime militar pela luta armada. A primeira parte trata da Intentona Comunista de 1935 e a quarta parte analisa a opção da esquerda por uma nova estratégia - a "doutrinação" pelos meios de comunicação, instituições de ensino, sindicatos e movimentos populares sobre a necessidade da revolução.

Dilma. A presidente Dilma Rousseff é citada três vezes e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso uma vez, no índice onomástico de mais de 800 nomes de militantes e teóricos do marxismo que se envolveram direta ou indiretamente na luta armada. Dilma Vana Rousseff Linhares aparece como membro do setor de logística do Colina (Comando de Libertação Nacional), depois na VAR-P (Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares), sempre em notas de rodapé. O livro informa que a ex-presidente foi presa.

"No Centro Brasileiro de Pesquisas (Cebrape) foram contatados Fernando Henrique Cardoso, José Artur Gianotti e outros elementos, em busca de inspiração", registram os autores, ao relatar a ação de Piragibe Castro Alves que viajou de Paris para São Paulo em busca de apoio para o Movimento Popular de Libertação (MPL). Esse grupo, liderado inicialmente por Miguel Arraes, então refugiado na França, tinha participação da Juventude Operária Católica e, segundo o CIE, de vários padres e religiosos, entre os quais o dominicano frei Tito de Alencar Lima, um dos frades que se envolveram no esquema de Carlos Marighella.

O livro descreve a agitação estudantil de 1968, citando o nome de José Dirceu de Oliveira e Silva, em rodapé, ao falar do congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), onde foram encontradas, segundo os arquivos, drogas, bebidas alcoólicas e grande quantidade de preservativos. "Alguns estudantes chegaram a declarar que havia, inclusive, uma escala de serviço de moças para atendimento sexual", afirma o texto. O deputado José Genoino é mencionado no episódio da guerrilha do Araguaia. Utilizava o codinome Geraldo e, ao ser preso na selva, teria dado "informações valiosas" sobre o armamento, nível de instrução e de suprimento dos "terroristas".

Outros episódios destacados, além do Araguaia, são a deserção, luta e morte do capitão Carlos Lamarca, a ação de Carlos Marighella e o caso Vladimir Herzog, sempre na versão oficial divulgada na época. Lamarca teria morrido num tiroteio no interior da Bahia, Marighella teria levado um tiro ao resistir a agentes de segurança na Alameda Casa Branca, em São Paulo, e Herzog se teria suicidado numa cela do DOI-Codi. Foram os frades dominicanos que entregaram Marighella, reitera o livro.

Os adeptos da teologia da libertação apoiaram a subversão e a luta armada, afirmam os autores. ao descrever o papel da Igreja Católica no período militar. O cardeal d. Paulo Evaristo Arns (São Paulo), os bispos d. Helder Câmara (Olinda e Recife), d. Waldir Calheiros (Volta Redonda-RJ) e d. Antônio Fragoso (Crateús-CE) e numerosos padres, muitos estrangeiros, são citados como líderes de uma corrente aliada dos subversivos.


Os autores de Orvil atribuem à censura dos meios de comunicação "a falta de conhecimento e de convicção que predisporiam a população a aceitar como verdade os fatos que lhe fossem oferecidos de forma racional ou emocional". Daí, segundo os militares, as repercussões negativas do Ato Institucional nº 5 (AI-5), a apresentação do regime como "brutal ditadura militar latino-americana" e a afirmação de que os órgãos de segurança e informações vinham sendo os algozes dos subversivos, "atingindo-os de forma sistemática e permanente". É uma referência à tortura, embora não se use a palavra. Do site do jornal O Estado de S. Paulo

sábado, 11 de maio de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (9, final) Paulo Roberto de Almeida


Continuação do post anterior e conclusão

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (9, final)
Paulo Roberto de Almeida
(...)


Uma última análise subjetiva da questão da luta armada
Infelizmente, a questão da luta armada no Brasil ainda não faz parte da História, ou pelo menos resiste a recolher-se à sua dimensão histórica objetiva, sendo ainda objeto de embates políticos e de tentativas de reescrita da história. A razão é a mesma já apontada anteriormente: os derrotados vingativos chegaram ao poder e pretendem se vingar de seus supostos algozes, se preciso for deformando a história e manipulando os acordos políticos já realizados durante a transição quase consensual da democratização.
De certa forma, elas já detém o monopólio da historiografia, como pode ser constatado por inúmeros exemplos da literatura didática e mesmo de livros que passam por sérios tratando do período. Os escribas universitários, não apenas os declaradamente de esquerda ou simplesmente progressistas, já internalizaram uma versão da história política brasileira, dos anos 1960 em diante, que transforma o período em uma oposição de preto e branco, uma interpretação maniqueísta que transforma os militares em servos da burguesia e do imperialismo, e os “resistentes” como bravos e impolutos defensores da democracia e lutadores desprendidos em prol das liberdades. A contrafação da história real é evidente, mas ela vem sendo servida durante muito tempo, inclusive no curso do próprio período militar, para não se impor como verdade para grande parte do povo brasileiro, jovens que nunca viveram aquele período que tendem naturalmente a acreditar nessa versão da luta dos bons contra os maus.
A “Comissão da Verdade” não constitui senão mais uma tentativa de impor essa versão à sociedade atual, pelos remanescentes dos derrotados de outrora. Faz parte, como outras iniciativas – como a “indústria” das indenizações –, das farsas montadas para alterar a história e obter ganhos políticos, quando não materiais, aos que ainda tentam fazer do Brasil outra coisa que não uma grande democracia de mercado. A chamada “relação de forças” pode dar aos derrotados vingativos algumas compensações temporárias, e é por isso que o trabalho didático de esclarecimento se revela importante pelo simples dever de respeitar a verdade dos fatos e defender a integridade intelectual dos que estão efetivamente comprometidos com a causa da democracia e das liberdades no Brasil. Como protagonista menor, e totalmente sem importância, da voragem de insanidade temporária que se abateu sobre o Brasil, entre meados dos anos 1960 e meados da década seguinte, meu dever era o de testemunhar. É o que fiz agora.

Paulo Roberto de Almeida - Hartford, 8 março de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (8) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação do post anterior

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (8)
Paulo Roberto de Almeida
(...)


Onde a luta armada se desenvolveu? A “geografia humana” da luta armada é feita, basicamente, de idealistas de classe média guiados por uma adesão equivocada a certas causas – basicamente as da revolução cubana, mais até do que a do socialismo de inspiração soviética – e de alguns egressos do comunismo histórico, seduzidos pelo chamamento e o apoio cubano a um grande empreendimento que se pretendia de libertação do continente do latifundismo, do imperialismo e, em última instância, da burguesia capitalista. Ela raramente envolveu legítimos trabalhadores – senão alguns poucos “líderes” sindicais já adquiridos à ação militante, de natureza política, não exatamente sindical – e menos ainda camponeses típicos, senão alguns poucos agitadores políticos que já tinham base em zonas rurais. Ela foi basicamente urbana.
Foi um fenômeno essencialmente de, e restrito à classe média, em algumas metrópoles brasileiras, recrutando adeptos no mesmo universo de universitários conquistados às teses leninistas ou gramscianas, e emocionalmente estimulados pela epopeia vitoriosa – em grande medida romantizada e idealizada – dos revolucionários cubanos. Creio poder dizer que sou um típico representante dessas camadas de estudantes “revoltados” que viam na luta armada não apenas – ou talvez não exclusivamente – o meio de “libertar o Brasil dos generais gorilas”, mas basicamente uma via romântica de atuação política-prática, seguindo o exemplo daquele pequeno grupo de bravos guerrilheiros que conduziram uma luta exemplar até a vitória. Essa perspectiva da “tomada do poder” por colunas guerrilheiras, secundadas, no momento decisivo, por uma greve geral da população contra a ditadura opressiva, fazia parte do universo mental de todo candidato a guerrilheiro urbano, que forneceu, de modo geral, 90% do contingente humano para a luta armada (o experimento do PCdoB nas selvas do Araguaia jamais assumiu proporções significativas, em termos humanos e materiais, e nunca teria tido qualquer influência no debate político contemporâneo, se esse partido não fosse constituído de fundamentalistas devotados às suas causas esquizofrênicas).
Como a luta armada se desenvolveu? Jamais de forma coordenada, unificada ou organizada, de forma a representar um risco real para o governo, ou o próprio regime. Foram impulsos isolados, dispersos, desorganizados, improvisados, ao sabor das decisões dos líderes que se sucediam, alguns “históricos”, outros que ascenderam na própria luta armada, sem qualquer formação política especial – foi o caso de Lamarca, por exemplo, ou de alguns outros chefes “guerrilheiros”, que “subiram” na hierarquia por via de sequestros e assaltos a bancos. Era uma clara aventura, levada muito a sério pelos militares, que sempre tendem a maximizar a dimensão dos perigos, por instinto natural e pelo claro desafio à sua autoridade.
Os militares “overreacted” aos pequenos bandos de guerrilheiros armados que os desafiaram? Possivelmente, sim, e teriam provavelmente obtido os mesmos resultados com um pouco mais de inteligência e menos força bruta. Eles tinham razão em chamar os cowboys travestidos de guerrilheiros de “terroristas”? Efetivamente não, embora alguns o fossem, mas a maioria não o era. A guerrilha estava condenada, desde o início, a ser o que sempre foi: ações isoladas de cowboys do asfalto, incapazes de assumir o comando de qualquer movimento relevante de oposição ao governo militar, com um registro de algumas ações espetaculares, mas incapazes, por si só, de mobilizar o apoio da população para suas causas bizarras. A “luta contra a ditadura” era uma realidade apenas para uma minoria extremamente reduzida de uma fração também muito reduzida da classe média instruída, ou seja, um punhado de “patriotas equivocados”, como a eles se referia o Partidão. Nunca passaram disso, e seu movimento teria se estiolado, como ocorreu em diversos países europeus na mesma época – que não extravasaram nos métodos repressivos como no Brasil – na absoluta indiferença, e provavelmente até no repúdio, da maioria da população.
Como essas ações marginais vieram a assumir a dimensão que tiveram, seja na historiografia, seja na política prática do Brasil atual, estas são questões que merecem argumentos mais extensos que me eximo de adiantar aqui. Elas podem ser explicadas, porém, pelo absoluto monopólio de que gozam os escribas gramscianos no ambiente acadêmico – eles foram derrotados, historicamente, mas se encarregaram de escrever a sua própria história, deformando-a – e também pelo fato de que as forças, tendências, ideologias e personalidades derrotadas durante o período militar finalmente chegaram ao poder e tratam, agora, de reconstruir seus equívocos apresentando-os como algo que não foram, ou seja, uma luta em favor da democracia. Trata-se, portanto, de uma imensa deformação da história, agora conduzida porque temos no poder justamente aqueles a quem designei de derrotados vingativos.
E por que tivemos luta armada no Brasil? Como já evidenciei anteriormente, ela jamais teria existido na sequência “normal” do processo político brasileiro, mesmo em situação de “golpe militar”, ou de “ditadura”? Como consagrado em outro tipo de literatura – em obras menos passionais, de brasilianistas, por exemplo – existia já uma tradição de intervenção militar na política doméstica, e não se pode dizer que o mores político brasileiro fosse naturalmente democrático e civilista. As tradições positivistas, castilhistas, comtianas, e até fascistas, ou pelo menos corporativas, existiam desde até antes da República e na maior parte desta não se conheceu, de verdade, um sistema de representação política, aberta, transparente, accountable, enfim, democrático. Tanto quanto os militares, os líderes de esquerda também eram autoritários, quando não totalitários, e em nome da democracia pretendiam, na verdade, implantar um regime de “ditadura do proletariado”, ou o que lhe fosse equivalente, segundo as possibilidades e arranjos da fase “pós-burguesa”, que de todo modo se pensava superar rapidamente. Creio que não existe nenhuma dúvida quanto a isso, e desafio qualquer saudosista dos movimentos armados a me provar que se pretendia implantar no Brasil um sistema liberal, de livre competição política com partidos “burgueses”: se tratava justamente do contrário, de assegurar o predomínio da causa proletária ou alguma variante disso.
O mais importante, porém, e isso é preciso ressaltar sempre, é que ela não teria existindo sem o impulso, o apoio, ou praticamente o apelo dos dirigentes cubanos, para que seus verdadeiros amigos do continente empreendessem, rapidamente, outros processos revolucionários, com vistas a romper o isolamento cubano. O mesmo fenômeno ocorreu no início da revolução bolchevique, quando líderes como Lênin e Trotsky trataram de impulsionar a revolução comunista na Alemanha e em outros países, para romper o “cerco imperialista” ao regime bolchevique; a Terceira Internacional foi constituída justamente para isso e por isso, e foi em função de suas diretivas, e ordens diretas, que Prestes empreendeu a sua patética (mas traumática) intentona no final de 1935. O PCB era, até 1961, o Partido Comunista do Brasil, como o Komintern tinha exigido que se chamassem as “seções nacionais” da III Internacional. A revolução cubana tendeu recriar essas estruturas através da OLAS e da OPANAL, mas eram iniciativas totalmente artificiais, no contexto dos países latino-americanos, como foram artificiais, e por isso derrotadas, as aventuras guerrilheiras de inspiração castrista e guevarista em diversos países da região.
Não importa quais fossem as especificidades nacionais, o fato é que a luta armada no Brasil foi um empreendimento nacional, mas basicamente impulsionado de fora, com dinheiro, treinamento e suporte logístico vindos de fora, essencialmente dos amigos cubanos (que podiam repassar alguns recursos soviéticos, que sempre quiseram estar no comando de várias frentes de combate). O apoio cubano extravasou, aliás, o simples financiamento da guerrilha, e se manifestou, durante muito tempo, em diversas outras “frentes de trabalho”, algumas não de todo reveladas, ainda – embora não desconhecidas – e que poderão vir a público se a inteligência cubana não tiver tempo de destruir os seus arquivos antes da derrocada final daquele regime moribundo. Esta é uma realidade que muitos dos companheiros atuais não gostam de admitir, mas que eles sabem ser verdade, como o sabem também os órgãos de inteligência do Brasil. O dia em que a história for escrita, em todos os seus matizes e com todas as suas fontes, esses aspectos poderão aparecer em toda a sua luminosidade obscura, se ouso o trocadilho.

(Continua... e termina.) 


A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação do post anterior

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7)
Paulo Roberto de Almeida
(...)


Vamos tentar proceder de maneira sistemática para tornar o debate mais racional. Podemos, por exemplo, abordar a questão por meio das perguntas clássicas dos jornalistas, que também servem, com o acréscimo final da análise interpretativa, de guia para o historiador de um fato ou processo objetivo qualquer: o que, quando, onde, como e por que?
O que foi a luta armada no Brasil? Ela foi um empreendimento essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à “ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada “natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência” incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”).
Em outros termos, a luta armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” – como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica, como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria existido no Brasil.
Quando ela se desenvolveu? Praticamente desde o início – por despeito de líderes que se pretendiam maiores do que efetivamente eram, como Brizola, por exemplo – e bem antes, em 1965 para ser mais exato, quando o regime estava longe de ser aquele monstro repressivo apontado numa historiografia enviesada, totalmente equivocada e, de fato, intelectualmente desonesta em relação à verdade. A repressão do regime militar se desenvolveu depois, não antes, que a guerrilha urbana começasse suas ações, e esteve em atraso durante praticamente dois anos, até que sua organização tardia passasse a demonstrar alguma efetividade prática. Ou seja, não foi a repressão política do regime que provocou a guerrilha supostamente de resistência contra um “governo opressivo”, e sim o deslanche de operações armadas, quando o governo tentava uma espécie de “reconstitucionalização” do regime – por meio da nova Carta aprovada em 1967 – que incitou, na verdade obrigou, o governo a reagir contra os grupos armados. Essa cronologia, absolutamente objetiva e aderente aos fatos, precisa ser lembrada, para que os derrotados vingativos não aleguem que não lhes restava outra opção (de luta política) que a luta armada contra um regime ditatorial.
Os militares brasileiros nunca foram os golpistas tirânicos ou despóticos que essa historiografia maldosa insiste em proclamar. Desde o início de seu envolvimento nos processos de governança – praticamente com o golpe militar que derrocou a monarquia, aliás sem o desejar, e inaugurou a República – as forças armadas, por vias institucionais, ou por revoltas de oficiais subalternos, sempre buscaram atender aos reclamos de uma classe média desejosa de mais liberdade, mais transparência política, mais honestidade eleitoral e, sobretudo, de preservação da ordem e dos fundamentos mínimos da normalidade política e econômica. Foi assim nas revoltas dos anos 1920, na sua posição “atentista” em relação à revolução da Aliança Liberal em 1930, na defesa da unidade nacional em 1932, na intentona comandada do exterior em 1935, na derrocada do ditador em 1945, e em algumas ações de estabilização nos anos 1950, antes da decisão (aliás não unânime) de marchar contra o governo em 1964; foi bem menos no golpe estado-novista de 1937 e em algumas revoltas episódicas dos anos 1950, mas sem que o espirito legalista das FFAA deixasse de se manifestar, sempre em defesa da ordem e da unidade nacional. Mesmo durante o regime “militar” de 1964 a 1985, o registro é de uma predominância civil nos gabinetes e um cuidado legalista bastante pronunciado, com a emissão de atos institucionais em conjunturas precisas, sem o arbítrio (e até a selvageria) a que se assistiu em diversos outros episódios de triste memória na história de nossos vizinhos latino-americanos. De forma geral, não há comparação possível entre a chamada “ditabranda” brasileira – apenas episodicamente mais dura – e as ferozes ditaduras militares em alguns desses países, como tampouco há qualquer similitude, absoluta ou relativa, entre o número de “vítimas” que se pode honestamente computar num e noutros casos.

(Continua...)