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quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Formação do diplomata brasileiro: uma obra em preparação - Paulo Roberto de Almeida

 Depois de já ter escrito sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil, no século XIX, com alguma extensão para o século XX, estou agora empenhado na confecção de uma outra obra, desta vez sobre a formação do diplomata brasileiro, das origens à atualidade.

Como sempre recorro à história, pesquisando em arquivos ou lendo literatura a respeito. Por isso, gostaria de destacar alguma informação coletada no período recente, ou nem tão recente assim, em 2007 por exemplo, mas objetivo sempre perseguido de maneira constante. Começo pela citação de um prefácio, depois vou à exposição da pesquisa em arquivos, em duas épocas características: 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 16 de agosto de 2023


“A razão de Estado e a soberania nacional, como a segurança do povo ou a garantia das fronteiras, a defesa do interesse do país, a autonomia decisória dentro de seus limites territoriais, o combate aos inimigos da sociedade, a resistência às ameaças externas (e internas), a proteção dos direitos intrínsecos e ancestrais – tantos véus cuja dança frenética por vezes encobre um complexo jogo de poder e ambição, que camufla conflitos, rivalidades, egoísmos políticos e econômicos, competição comercial, pretensões territoriais, ódios seculares ou recentes, adversários reais ou pretendidos, que turvaram as relações intrassociais de um país e que contaminam a cena internacional.

A cada época, uma ou mais de uma ideologia política pesa sobre o comportamento dos atores, pessoas comuns ou protagonistas institucionais. A história permite-nos detectar a trilha ideológica sob cujo compasso a dança dos véus ideológicos volteia vertiginosamente, distorcendo e esgarçando o tecido social, fabricando tensões, estigmatizando pessoas, grupos, sociedades, países. 

(...) O Brasil não ficou infenso ao movimento que contaminou o mundo, numa mescla de expectativa e de temor, de sonho e pesadelo.” 


Retirado do Prefácio do Professor Estevão C. de Rezende Martins (UnB), ao livro de Adrianna Setemy: Sentinelas das Fronteiras: a diplomacia brasileira e a conexão repressiva internacional para o combate ao comunismo (Curitiba: Editora Prismas, 2018),  p. 9-10.

 

Permito-me, acrescentar: nem o Brasil ficou infenso a esse movimento, nem alguns dos seus mais importantes “protagonistas institucionais”, como são os diplomatas, que tanto trouxeram de fora parte daqueles “véus ideológicos” circulando pelo mundo, informando seus pares da capital, como também podem ter repercutido o peso de alguma ideologia política no trabalho institucional de defesa dos interesses nacionais em face dos desafios do mundo exterior. Diplomatas são indivíduos como quaisquer outros, mas geralmente pertencentes a uma elite restrita da população, uma elite do saber, voltada justamente para as conexões entre o externo e o interno, entre a informação e a proposição, entre o saber e o fazer. Pretendo justamente tratar da formação do diplomata brasileiro em uma nova obra em preparação, ainda em fase de pesquisa e seleção de materiais, para as diversas etapas de uma evolução bissecular.

Paulo Roberto de Almeida


 

Permito-me acrescentar um ou dois parágrafos do livro da historiadora Adrianna Setemy sobre a postura dos diplomatas, não muito discrepante do que vieram a fazer depois, sob a ditadura militar de 1964, como informo mais abaixo: 

 

“A partir da análise dos telegramas que versavam sobre o problema do comunismo, trocados entre o Itamaraty e suas embaixadas no exterior, percebi que foi no luxo dos salões e repartições diplomatas que os chanceleres brasileiros, investidos da função de servidores, participam de maneira decisiva das atividades de segurança e repressão, a partir da execução de tarefas rotineiras, redigindo informes sobre as atividades de brasileiros exilados no exterior, sobre a presença ou passagem pelo Brasil de estrangeiros considerados suspeitos por suas ideia e atividades políticas, ou ainda, empenhando-se em defender nos foros internacionais a necessidade de ações repressivas conjuntas contra o perigo da infiltração comunista nos países do continente. O excesso de zelo com que alguns diplomatas desempenharam essas funções em alguns casos antecipando ou mesmo excedendo a própria iniciativa do Estado, são representativos de que dentro do Itamaraty, assim como dentro do aparelho do Estado como um todo, havia indivíduos que fizeram uso da posição pública que ocupavam para potencializar a aplicação de convicções pessoais, sem considerar a moralidade de seus atos. Apesar de não terem descido aos porões ou participado diretamente das prisões, das torturas e, em última instância, da morte de inimigos políticos do Estado, estes funcionários forma importantes agentes do processo de aceleração mórbida do maniqueísmo político.

... após as três vagas de exílio que se seguiram aos acontecimentos de 1935, 1937 e 1964, o Itamaraty teve papel de destaque nas negociações com os governos dos países de acolha, a fim de obter a cooperação das autoridades locais no controle das atividades de exilados brasileiros que representavam uma ameaça para ordem política e social do Brasil e do continente...” (p. 32-33)

 

A enorme pesquisa efetuada pela historiadora Adrianna Setemy se encerra no início do governo militar, mas o jornalista Claudio Dantas Sequeira efetuou uma pesquisa sobre desenvolvimentos ulteriores, a partir de registros agora depositados no Arquivo Nacional de Brasília sobre os documentos do CIEX, a unidade de informação do exterior do Itamaraty, e publicou suas descobertas em uma série de reportagens do Correio Braziliense no ano de 2007, “Os Serviços Secretos do Itamaraty”.


Suas matérias podem ser vistas de forma unificada nesta postagem "Os Serviços Secretos do Itamaraty - Claudio Dantas Sequeira, 2007 (Correio Braziliense)" do blog Diplomatizzando (23/07/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/07/os-servicos-secretos-do-itamaraty.html).

 

 Agora toca terminar a minha obra...

Paulo Roberto de Almeida

 

 

 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

1968-2018: 50 anos do AI-5: como impactou o Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida

Dez anos atrás, aos 40 anos do Ato Institucional, fui convidado a escrever um capítulo sobre o AI-5 e seu impacto no Itamaraty. Ao princípio recusei-me, pois não sou da geração impactada por esse Ato da ditadura militar, e na verdade eu estava na oposição ao regime, e por isso passei sete anos num exílio voluntário, a partir de 1970, para ingressar no Itamaraty em 1977, ainda na oposição ao regime militar. Eu não tinha a memória daqueles anos, inclusive porque era muito jovem e não havia ainda ingressado num curso universitário, o que faria no mesmo ano do AI-5. Aliás, eu resolvi deixar o Brasil, logo em seguida, por que o AI-5 do regime militar cassou metade dos meus professores do curso de Ciências Sociais da USP.
Acabei fazendo esse texto porque NENHUM dos diplomatas seniores, da época, que eu contatei, se ofereceu para faze-lo. Fiz uma pesquisa bibliográfica e documental, além de falar com vários dos diplomatas contemporâneos daqueles anos de chumbo.
O resultado está aqui:


O texto completo encontra-se disponível, em princípio, na plataforma Academia.edu:

https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_à_colaboração_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI-5_2008_

Se não estiver disponível, podem me pedir, pelo número do trabalho: 1847.

Aqui o sumário e os agradecimentos devidos aos diplomatas que colaboraram com sua redação:

Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante:
o Itamaraty em tempos de AI-5


Paulo Roberto de Almeida 
In: Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (orgs.),
'Tempo Negro, temperatura sufocante': Estado e Sociedade no Brasil do AI-5
(Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008; 396 p.;
ISBN 978-85-7866-002-4; p. 65-89). 

Sumário:
1. Introdução: uma Casa conservadora, dotada de pensamento avançado
2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria
3. Política Externa Independente: uma vocação recorrente
4. O realinhamento de 1964 a 1967: um interregno incômodo
5. Revolução na revolução: o Itamaraty na tormenta
6. Segurança e desenvolvimento: colaboração, ainda que relutante
7. Pós-história: os efeitos de longo prazo 
Referências bibliográficas


[As opiniões expressas neste ensaio são de exclusiva responsabilidade do autor, não representando posições ou políticas das entidades às quais o autor se encontra vinculado. Agradecimentos especiais são devidos aos diplomatas Amaury Banhos Porto de Oliveira, Claudio Sotero Caio, Flavio Marega,Geraldo Egidio da Costa Holanda Cavalcanti, Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão, Guilherme Luiz Leite Ribeiro, Marcelo Raffaelli, Márcio Dias, Rubens Ricupero, Sebastião do Rego Barros e Sérgio Bath, pelos seus comentários, correções e sugestões a uma primeira versão deste texto, sem que eles obviamente respondam pelos argumentos desenvolvidos neste ensaio.]


1. Introdução: uma Casa conservadora, dotada de pensamento avançado
As desventuras do Itamaraty e de seus diplomatas com o instrumento por excelência da ditadura militar, o AI-5, representam apenas um curto capítulo – talvez não o mais importante – na trajetória moderna desse órgão de Estado, de uma longa história de confrontos de idéias e de acomodações pragmáticas entre os partidários de diferentes correntes de opinião que perpassam e dividem a agência diplomática, como de resto sempre foi o caso com diversas outras instituições do Estado e com a própria sociedade brasileira. A luta de idéias sempre esteve presente em várias épocas de debate nacional: escravistas e abolicionistas, metalistas e papelistas, industrializantes e agraristas, liberais e protecionistas, estruturalistas e monetaristas, interdependentes (conhecidos também como “associados” ou “entreguistas”) e nacionalistas e outras combinações ocasionais. Embates dicotômicos não foram raros na moderna história brasileira, colocando pessoas e grupos que defendiam posições antagônicas na agenda política em confronto direto, redistribuindo cartas nos jogos de poder que inevitavelmente acompanham esses enfrentamentos e provocando cisões na elite – e apenas na elite – como resultado desses confrontos, de resto mais ruidosos do que verdadeiramente ruinosos, mais ideológicos do que materiais, num país bem mais propenso à conciliação do que à ruptura, na interpretação de historiadores como José Honório Rodrigues.
Com o AI-5 foi talvez diferente, na medida em que se tratou não de um debate no seio da sociedade, mas de uma imposição vinda do alto, de uma cisão no próprio grupo de poder, que provocou profunda rejeição na elite ilustrada que sempre esteve envolvida com a política exterior do Estado, como é o caso do Itamaraty e da comunidade de política externa. Havia, obviamente, uma divisão subjacente na política externa e no corpo funcional do Itamaraty entre, de um lado, os partidários (dentro e fora do Itamaraty) da orientação alinhada e anticomunista da política internacional do Brasil e, de outro lado, os propugnadores de uma nova postura, não alinhada, independente e progressista, para as relações exteriores do país. Os fatos mais relevantes, em termos de seleção de “alvos esquerdistas” no Itamaraty, precederam, na verdade, a “edição” do AI-5, que não trouxe, a rigor, consequências de maior relevo para o ministério ou para seu corpo funcional. As consequências mais importantes, talvez, foram as que incidiram sobre a própria política externa, mas ainda aqui o profissionalismo do Itamaraty atuou para reduzir ao mínimo os “ruídos” e interferências sobre a diplomacia profissional. No âmbito geográfico específico do imediato entorno regional, poder-se-ia talvez falar, nesses anos, de uma “diplomacia militar”, em certo sentido mais importante do que a sua versão tradicional, mais bem comportada, pelo menos no que se refere à colaboração informal com as demais ditaduras militares.

(...)

Ler a íntegra nos links acima...

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

CIEX: o Itamaraty e a ditadura militar - Fabiano Post (Opera)

Ciex: A espúria relação do Itamaraty com os porões da ditadura

por Fabiano Post | Revista Opera
(Foto: Diego Baravelli)
Uma elaborada e austera malha de proteção – de desinformação e escamotagem – institucionalizada pelo Ministério das Relações Exteriores, que serviu de cortina de fumaça e supriu de forma eficaz, durante anos, o vazamento de informações sobre a íntima e vergonhosa relação de cooperação e conluio do Itamaraty com o regime militar. Associação essa que sempre foi negada, veementemente, pela instituição máxima da diplomacia nacional.
A luz esclarecedora dos fatos chegou no mês de julho de 2007, a partir da análise de 20 mil páginas de documentos secretos – acumulados ao longo de 19 anos -, e a partir dos quais foram produzidas uma série de reportagens pelo Correio Braziliense, que tiveram no entanto pouca visibilidade na mídia nacional.
Escancarou a inglória e nefasta operação que foi secretamente conduzida nos anos de chumbo no gabinete 410, 4º andar, do anexo I do palácio do Itamaraty, e que colocou em “xeque” os brios da imagem “ilibada” da diplomacia brasileira.
O Ciex (Centro de Informações do Exterior), pouco ou nada conhecido do grande público em geral, ainda hoje, foi uma poderosa agência de inteligência nos moldes do M16 e CIA, tutelada pelo SNI (Serviço Nacional de Inteligência) no âmago do corpo diplomático brasileiro, o Itamaraty, que atuou nas sombras, entre 1966 e 1985.
Seu mentor e criador foi o ultraconservador, conspirador, colaborador da CIA e apoiador do Golpe de 64, o embaixador Manoel Pio Corrêa – ungido e amigo dos déspotas Humberto de Alencar Castello Branco e Golbery do Couto e Silva – que do Uruguai, em 66, onde foi embaixador, engendrou o “plano piloto” do que viria a ser o CIEX.
No mesmo ano, Pio Corrêa foi nomeado secretário-geral do Itamaraty. Todo poderoso, trava um caçada “moral”, política e pessoal a diplomatas que considerava “inadequados”, como “pederastas, bêbados e vagabundos” – o poeta Vinicius de Morais foi uma das vítimas – e leva a cabo a materialização de seu sonho ultranacionalista; o Centro de Informações do Exterior, através de portaria¹, oficialmente batizado de Assessoria de Documentação de Política Exterior (ADOC).
Para saber mais sobre a personalidade do “pai do Ciex”, vale a leitura esclarecedora de seu livro de memórias, “O mundo em que vivi”, onde Pio escancara sua caixa de pandora pessoal com a soberba e empáfia típicas dos reacionários.
Mais do que um simples órgão de informação, o Ciex foi o aparato de repressão, da ditadura, responsável por espionar, no exterior, os brasileiros exilados e banidos pelo regime militar; políticos, militares, intelectuais, guerrilheiros, estudantes, que tiverem seu ir e vir, fora do país, monitorados de perto, passo a passo.
João Goulart, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Brizola – considerado extremamente perigoso, foi o exilado brasileiro mais monitorado – Miguel Arraes, Darcy Ribeiro: são essas algumas das personalidades vítimas da rede de espionagem do Itamaraty.
As missões dos arapongas da diplomacia incluíam “repatriação involuntária”, através de sequestro, e “delivery na bandeja” dos asilados nas mãos de seus algozes, para depoimentos e longas e sádicas sessões de tortura.
Constam nos arquivos do Ciex o nome de pelo menos 64 dos 380 cidadão brasileiros vítimas², mortos ou desaparecidos durante os anos de chumbo no Brasil. Foi uma atroz “caça as bruxas” patrocinada pela diplomacia brasileira.
Para tanto, se fez valer do recrutamento e aliciamento de diplomatas, agentes e informantes para compor sua ampla malha de atuação no exterior, que se estendia da América Latina, passando pela Europa, antiga União Soviética e norte da África.
Como pré-requisito eram muito “bem vindos” diplomatas – com viés “traíra” – que promoviam perseguições políticas em embaixadas brasileiras, que tivessem curso de planejamento estratégico da ESG (Escola Superior de Guerra), ou treinamento de agente da ESNI (Escola Nacional de Informações).
Consta que os diplomatas “espiões” eram malquistos entre os seus, porém subiam rapidamente na escadaria hierárquica da diplomacia tupiniquim, cortando caminho por “lamberem coturno”. Nos corredores do Itamaraty, existia uma espécie de hierarquia de “castas diplomáticas”, sub-dividida em três grupos distintos.
Os diplomatas “destiladores da quinta essência”, “doutos” e aplicados em temas jurídicos, politica internacional e defesa comercial; a baixo deles, os chamados “estivadores”, ou burocratas, atolados em toneladas de papel; e por fim, um degrau a baixo, chafurdando na lama, se encontravam os “lixeiros”, o pessoal capitaneado para o trabalho de informação e contra-informação, a arapongagem.
Os malfadados espiões jogaram no lixo as mais pétreas tradições da diplomacia internacional, com a sistemática prática de ações extralegais, onde deliberadamente violaram o direito internacional e o princípio da soberania, fazendo o monitoramento de cidadão estrangeiros, contrários ao Estado de exceção no Brasil, em seus países de origem.
O grande diferencial do “modus operandi” do Ciex versus seu tutor “bronco”, o SNI, era a sua abordagem sofisticada no campo da espionagem, muito por conta do nível intelectual e cultural de seus colaboradores e de uma ampla e sólida noção hierárquica – o contexto em que estava imersa ia além da simples operação de espionagem. Uma teia simbiótica sofisticada de informações, contra-informações e intrigas extremamente bem elaboradas tornavam as operações quase sempre um grande sucesso.
Os integrantes do Ciex faziam os agentes da SNI parecem ordinários guardas de trânsito. Em sua “távola hermética” os espiões do Itamaraty acreditavam compor uma elite de espiões dentro do aparato de informação da repressão.
É inegável que o alto escalão do Itamaraty sabia de tudo o que acontecia. Isso quer dizer que figuras bem dimensionadas de nossa diplomacia, reconhecidas internacionalmente, foram coniventes com a barbárie e respaldaram em níveis diferentes as operações ilegais do Ciex. O que contraria ética e moralmente aquilo que se espera e deseja do corpo diplomático de um país; uma ferramenta fomentadora da paz.
Coube ao embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima – secretário-geral entre 1985 e 1990 – salvaguardar a destruição, a contra gosto do SNI, do constrangedor material, uma chaga aberta da diplomacia nacional, composto por 32 arquivos com 8 mil informes.
Aqui consta uma lista de “distintos” diplomatas brasileiros colaboradores, ex-membros, do alto escalão do Ciex.
Interpretar empiricamente o turbulento momento político-econômico-social, pelo qual o país atravessa, se faz necessário. A quimera trevosa do autoritarismo novamente espreita a nação partida, e ameaça a nossa democracia com “esperanças” vazias. Nessa horas nebulosas as instituições fragilizadas, em bico de sinuca, se tornam alvo fácil para o aparelhamento ideológico austero e com finalidades vis.
Que sirva de alerta e lição o lamentável e vergonhoso episódio histórico ocorrido no tutano da diplomacia brasileira, através do Ciex. Que estejamos atentos e cientes sobre os impactos profundos, para o bem e para o mal, que nossas escolhas políticas – no conjunto da sociedade – podem ter sobre nossas vidas; afinal, a democracia não vive de trivialidades tampouco admite desaforos.
Notas:
1. O documento de classificação ultrasecreto sobre a criação do Ciex se encontra em um cofre colossal no subsolo do Itamaraty, segundo apurou o Correio Brasiliense com ex- integrantes do órgão.
2. O número oficial de vítimas – entre mortos e desaparecidos – segundo o relatório final da Comissão da Verdade seria de 434 pessoas. Algumas fontes dizem que esses números são bem mais expressivos, mas de difícil investigação, e que não foram contemplados pela CNV.

domingo, 1 de outubro de 2017

Desventuras de um diplomata etilico: comentario a postagem de 2009

A propósito de uma postagem que fiz em um antigo blog meu, "Textos PRA" -- voltado para postagens de terceiros justamente, um comentarista recente acrescentou a seguinte nota, que cabe destacar, embora ela tenha pouco a ver com a postagem principal, que vai repostada logo abaixo, a não ser pelo fato de que o diplomata bebum acabou cassado pelo Itamaraty nos tempos do AI-5, objeto de um outro trabalho meu: 

Comentário recente:  (30/09/2017)

Luiz deixou um novo comentário sobre a sua postagem "436) Repressão no Itamaraty: os tempos do AI-5": 

João Batista Telles Soares de Pina foi um conhecido arrumador de confusões expulso da Rússia e dos Estados Unidos. O livro "A noite do meu bem", de Ruy Castro, traz na página 101 o seguinte: "Em meados de 1947, o diplomata João Batista Soares de Pina, secretário do Brasil na União Soviética - Pina Gomalina para os amigos -, armou uma confusão num salão do Hotel Nacional de Moscou. Com várias vodkas acima do nível da humanidade, ele discordou de um violinista da orquestra quanto à execução por este de "O voo do besouro", de Rimsky-Korsakov. A querela converteu-se em troca de insultos, tabefes e empurrões, que sobraram também para o harpista, cujo instrumento caiu no chão. De repente havia três litigantes rolando sobre o parquete: Pina, o violinista e a harpa. O maitre tentou separá-los e apanhou também. Os garçons, os demais músicos e bebuns avulsos entraram na briga, alguns a favor de Pina, outros contra, com flautas e batutas sendo usadas como armas. Alguém chamou a polícia e, numa situação desprimorosa para um representante estrangeiro, Pina foi levado dali pedalando o ar e dando bananas para o Komintern, o Kominform, a Cheka, o Politburo e outras instituições locais. Atiram-no no xilindró e avisaram a embaixada." Na página 115 temos o seguinte: "Em 1949, dois anos depois de seu arranca-rabo em Moscou, Pina Gomalina foi servir em Los Angeles, na Califórnia. E, a provar que aquele episódio não tivera nada a ver com a URSS, tomou um pileque e meteu-se em nova confusão, agora com os americanos, numa recepção oficial em San Francisco. Como da outra vez, foi preso, esculachado e despachado de volta para o Brasil."


Postagem original:

segunda-feira, junho 29, 2009

436) Repressão no Itamaraty: os tempos do AI-5 

https://textospra.blogspot.com.br/2009/06/436-repressao-no-itamaraty-os-tempos-do.html

Itamaraty usou AI-5 para investigar vida privada e expulsar diplomatas
Homofobia e intolerância motivaram perseguições; Vinicius de Moraes foi um dos 13 afastados



Bernardo Mello Franco
O Globo, Domingo, 28/06/2009

No período mais sombrio da ditadura militar, o Ministério das Relações Exteriores usou a segurança nacional como pretexto para violar a intimidade de funcionários e expulsar diplomatas que, segundo o próprio órgão, eram considerados homossexuais, emocionalmente instáveis ou alcoólatras.

 Documentos obtidos pelo GLOBO no Arquivo Nacional, vinculado à Casa Civil, e no Itamaraty provam que a homofobia e a intolerância pautaram o funcionamento da Comissão de Investigação Sumária, que fez uma caça às bruxas em todos os escalões do Itamaraty. O órgão secreto deu origem a 44 cassações em abril de 1969, no maior expurgo da história da diplomacia brasileira.

A comissão foi criada pelo ministro Magalhães Pinto e chefiada pelo embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto, que teve 26 dias para confeccionar a lista de colegas a serem degolados com base no Ato Institucional no5.
Em vez de perseguir esquerdistas, como fizeram outros ministérios na época, o Itamaraty mirou nos funcionários cujo comportamento na vida privada afrontaria os “valores do regime”.

 Entre os aposentados à força, sem direito a defesa, estava o poeta e então primeiro-secretário Vinicius de Moraes. 

Mantido em segredo há 40 anos, o relatório da comissão confirma que o ódio contra homossexuais foi o fator que mais pesou na escolha dos cassados. Dos 15 pedidos de demissão de diplomatas, sete foram justificados com as seguintes palavras: “Pela prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”.

 A lista segue com “incontinência pública escandalosa, decorrente do vício de embriaguez” (três casos), “insanidade mental” (mais três), “vida irregular e escandalosa, instabilidade emocional comprovada e indisciplina funcional” (um caso) e “desinteresse pelo serviço público resultante de frequentes crises psíquicas (um)”.


Outros dez diplomatas “suspeitos de homossexualismo” deveriam ser submetidos a “cuidadoso exame médico e psiquiátrico” por uma junta de doutores do Itamaraty e da Aeronáutica.

 “Se ficar comprovada a suspeita que paira sobre esses funcionários, a comissão recomenda que sejam também definitivamente afastados do serviço exterior brasileiro”, diz o relatório. Ao lado dos nomes, Magalhães Pinto anotou: “Chamar a serviço e submeter ao exame médico”.

 Não há registros de realização das consultas.

 A comissão ainda receitou penas como repreensão e remoção do cargo a cinco diplomatas por motivos como “demonstrações de irresponsabilidade” e “desmedida incontinência verbal”.  Também pediu a demissão de oito oficiais de chancelaria e 25 servidores administrativos, além de exame médico para verificar a orientação sexual de outros quatro.



Só dois casos de motivação política


A lista de afastamentos sumários inclui funcionários humildes, como oito serventes, cinco porteiros e auxiliares de portaria, dois motoristas e um mensageiro.

 Junto aos nomes, aparecem acusações vagas, como “embriaguez” e “indisciplina”.

 De todos os pedidos de cassação, só os de dois oficiais de chancelaria indicam alguma motivação política. Trazem a explicação “risco de segurança”. Outros documentos secretos mostram que eles eram acusados de simpatizar com o comunismo.


Entre os diplomatas cassados estava Arnaldo Vieira de Mello, que era cônsul em Stuttgart e acabara de ser promovido a ministro de segunda classe, penúltimo degrau na hierarquia da carreira. O episódio, anos depois, levou seu filho, Sergio Vieira de Mello, a buscar outra carreira.

 O diplomata brasileiro mais conhecido das últimas décadas se recusou a prestar concurso para o Instituto Rio Branco e foi trabalhar na ONU. Sergio — morto em 2003 num ataque terrorista em Bagdá — dizia não ver sentido em servir à casa que expulsou seu pai.


Os 13 diplomatas cassados na ocasião foram: Angelo Regattieri Ferrari, Arnaldo Vieira de Mello, Jenny de Rezende Rubim, João Batista Telles Soares de Pina, José Augusto Ribeiro, José Leal Ferreira Junior, Marcos Magalhães Dantas Romero, Nísio Batista Martins, Raul José de Sá Barbosa, Ricardo Joppert, Sérgio Maurício Corrêa do Lago, Vinicius de Morais e Wilson Sidney Lobato.


Para compor a lista, a comissão recrutou informantes civis e militares. Sua primeira medida foi despachar circular telegráfica aos chefes de missão no exterior, intimados a entregar os nomes de servidores “implicados em fatos ou ocorrências que tenham comprometido sua conduta funcional”. Arapongas das Forças Armadas cederam fichas individuais de mais de 80 diplomatas.

 Também assinam o relatório os embaixadores Carlos Sette Gomes Pereira e Manoel Emílio Pereira Guilhon, que auxiliaram Câmara Canto na missão sigilosa.


O chefe da comissão encerrou o texto com um autoelogio patriótico: “Tudo fizemos para atingir os objetivos colimados e preservar o bom nome do Brasil e do seu serviço exterior”. O chanceler Magalhães Pinto devolveu o documento assinado e com uma ordem escrita à mão: “Recomendo que se cumpram as determinações”.

 Cinco integrantes da lista seriam poupados até a publicação das aposentadorias, por ato do presidente Costa e Silva. Perderam o cargo 13 diplomatas, oito oficiais de chancelaria e 23 servidores administrativos. Os decretos de cassação ocupam três páginas do Diário Oficial de 30 de abril de 1969.

Quarenta anos depois, poeta pode ganhar promoção a embaixador
Os expurgos do Itamaraty

Vinicius de Moraes foi um dos diplomatas cassados



Autor de clássicos da MPB, Vinicius de Moraes foi a vítima mais conhecida da maior caça às bruxas do itamaraty: o afastamento de 13 diplomatas com base no AI-5.
Documentos do Arquivo Nacional mostram que, entre supostos motivos das cassações, estavam homossexualismo e ligações com a esquerda.

Ideia, defendida por Celso Amorim, esbarra na burocracia do governo federal 



Quarenta anos depois de ser cassado pela ditadura militar, Vinicius de Moraes pode ser agraciado com uma inédita promoção postmortem a embaixador. A ideia foi lançada em 2006 no antigo Palácio do Itamaraty, no Centro do Rio, que teve uma ala batizada com o nome do poeta.

Apesar das boas intenções, a proposta ainda não conseguiu vencer a burocracia do governo federal.

Uma minuta de decreto, a ser assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está engavetada desde agosto passado no Ministério do Planejamento. De lá, o documento ainda terá que passar pela Casa Civil antes de chegar ao presidente.

O documento já tem a assinatura do ministro das Relações Exteriores , Celso Amorim. O texto vai direto ao ponto : “ É promovido post-mortem a ministro de primeira classe da carreira de diplomata o primeiro-secretário Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes, mundialmente conhecido como Vinicius de Moraes”.

“Perto do Barão, o Vinicius foi um congregado mariano”
No Itamaraty, um dos principais defensores da homenagem é o embaixador Jeronimo Moscardo, presidente da Fundação Alexandre de Gusmão. Ele defende a medida com um argumento singelo: o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, teria aprontado muito mais que o poeta.

— Perto do Barão, o Vinicius foi um congregado mariano — brinca.

Por ironia, chegar ao nível máximo da carreira era uma ideia temida por Vinicius.

Ele explicou o motivo em depoimento ao Museu da Imagem do Som, no Rio de Janeiro, em 1967: — Nos escalões inferiores da carreira, ninguém presta atenção em você. O perigo é você virar embaixador, né? Minha grande luta no Itamaraty tem sido para não ser promovido.

Preconceito interrompeu carreiras em ascensão

Houve um silêncio acovardado do rebanho', lamenta diplomata aposentado compulsoriamente em 1969



O expurgo de 1969 interrompeu várias carreiras em ascensão no Itamaraty. O primeiro-secretário Raul José de Sá Barbosa servia na embaixada do Brasil em Jacarta quando recebeu um telegrama com a notícia da aposentadoria compulsória. 

Era considerado um dos melhores textos da sua geração de diplomatas. Aos 42 anos, encabeçava a fila de promoção por antiguidade.

 Ele atribui o afastamento ao fato de ser homossexual.

— Fui vítima de preconceito.

Cortaram minha carreira, destruíram minha vida.

 Minha turma de Rio Branco tinha 15 pessoas. Todos viraram embaixadores, menos eu.

 Barbosa sofreu uma pena adicional: passou dois meses na Indonésia recebendo apenas um salário mínimo, em cruzeiros.

 De volta ao Brasil, viu as dificuldades financeiras se agravarem.

 A discriminação, também: — Muitos colegas que considerava amigos nunca mais me procuraram. Houve um silêncio acovardado da carneirada, do rebanho.


O diplomata se tornou um tradutor respeitado de autores como Charles Dickens e Virginia Woolf. Vive com poucos recursos numa casa em Santa Teresa, sozinho e com um cachorro.

 O mais novo da lista era o segundo secretário Ricardo Joppert. 

Em abril de 1969, ele servia no consulado de Gotemburgo quando foi convocado a voltar às pressas para o Brasil. Ao embarcar num avião da Varig, leu num exemplar do GLOBO a notícia da sua aposentadoria.

 Tinha apenas 28 anos.

— Nunca escondi que era homossexual. Na época isso era visto como problema, porque a sociedade não estava preparada para encarar as minorias — analisa ele, que foi reintegrado em 1986 e hoje serve no Museu Histórico e Diplomático, no Rio.


Para a oficial de chancelaria Nair Saud, a demissão significou uma ruptura traumática com a casa onde conseguiu seu primeiro emprego, aos 17 anos. Aos 86, ela ainda não se conforma com a cassação por “risco de segurança”, como indica o relatório secreto da Comissão de Investigação Sumária.

— Meu irmão ficou oito anos sem falar comigo.

 Disse que preferia ter uma irmã prostituta a uma irmã comunista.

 Era tudo mentira, porque eu nunca me meti com política. Mas gente que frequentava minha casa deixou de me cumprimentar, como se eu tivesse uma doença — emociona-se.

Vinicius: vida boêmia vigiada de perto

Gosto pela noite e pela bebida foi o motivo usado para afastar o poeta



Como pode um poeta ameaçar uma ditadura? No caso de Vinicius de Moraes, o risco parecia ainda mais remoto. Nos anos 60, enquanto os militares caçavam comunistas, ele cumpria uma rotina inofensiva e movimentada.

 De dia, dava expediente como diplomata no Palácio do Itamaraty. À noite, fazia a ronda pelos bares de Copacabana, quando não estava no palco de boates ao lado de colegas da bossa nova como Tom Jobim e Nara Leão. Com os livros, os discos e os sucessivos namoros e casamentos, às vezes simultâneos, sobrava pouco tempo para pensar em política.

 Mesmo assim, os arapongas mantiveram vigilância cerrada sobre os passos do poetinha. 

Um dossiê secreto do Serviço Nacional de Informações (SNI) a que O GLOBO teve acesso revela que Vinicius esteve na mira de diversos órgãos de espionagem antes de ser cassado, em 1969. A lista vai da polícia da antiga Guanabara ao temido Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Até a aposentadoria pelo AI-5, o resumo do seu prontuário registra 32 anotações, em cinco páginas batidas à máquina.


A maior parte dos arquivos narra fatos sem importância, como a participação em shows e manifestos de intelectuais.

 Outras folhas descrevem Vinicius como “comunista e escritor” e sócio do Centro Brasileiro de Cultura, “organização de fachada do movimento comunista internacional”. Em 1966, a agência gaúcha do SNI tratou o poeta como “marginado, que é ao mesmo tempo diplomata e sambista”.
Em 1968, um araponga do Centro de Informações do Exército (CIE) redigiu uma nota mais sucinta: “Boêmio, parece ter errado de profissão”.

 A preferência pela noite foi a desculpa da Comissão de Investigação Sumária para incluir Vinicius entre os cassáveis.

 A justificativa aparece num dossiê da Aeronáutica sobre as demissões. Junto a seu nome, o documento traz a explicação: “alcoólatra”.


Surpreendentemente, o relatório secreto elogia o poeta e oferece uma alternativa à demissão.

 “Considerando que a conduta do primeiro-secretário Vinicius de Moraes é incompatível com as exigências e o decoro da carreira diplomática, mas em atenção aos seus méritos de homem de letras e artista consagrado, cujo valor não desconhece, a comissão propõe o seu aproveitamento no Ministério da Educação e Cultura”.


Não se sabe se a sugestão era para valer, mas Vinicius foi aposentado compulsoriamente dias depois, aos 55 anos. Ficou indignado com o ato arbitrário, mas manteve o bom humor. Quando circulou que a degola atingira homossexuais e bêbados, apressou-se a avisar: — Eu sou alcoólatra! Apesar da brincadeira, o poeta se abateu com a demissão sumária.

— Foi uma sacanagem a forma como me expulsaram do Itamaraty — desabafou, numa entrevista em 1979.


A imagem de vagabundo traçada pelos militares não combina com os registros funcionais do poeta. Dividida em três pastas amareladas, a ficha de Vinicius contém fartos elogios a seu talento e conduta profissional. Três boletins de avaliação interna o classificam como “acima da média” nos quesitos “atento e aplicado no trabalho”, “permanece durante todo o expediente” e “realiza os serviços com presteza”.

 O documento mais recente antes da aposentadoria atesta, para os devidos fins, que o poeta “não responde a processo administrativo e goza de bom conceito funcional”. Tem data de 1968. A página seguinte reproduz o Diário Oficial com a cassação.


Embora sua expulsão ainda seja tratada como tabu, Vinicius é personagem de algumas das melhores histórias do Itamaraty.

 Em 1946, após manter um caso ostensivo com a arquivista Regina Pederneiras, casou-se em segredo com ela numa igreja de Petrópolis. A relação durou pouco — entre outros motivos, porque ele já era casado.

 Mas deixou os versos da “Balada das arquivistas”.


Um dia, na mesma época, um colega se espantou com o volume de cartas na mesa de Vinicius. Assim descobriu que ele mantinha um segundo emprego: escrevia o consultório sentimental da revista “Flan”, assinado sob o insuspeito pseudônimo de Helenice. 

Nos 24 anos de Itamaraty, o poeta nunca escondeu o fastio com a burocracia e a formalidade da carreira.

 — Detesto tudo o que oprime o homem, inclusive a gravata.

Ora, é notório que o diplomata é um homem que usa gravata — queixou-se, numa conversa com Clarice Lispector em 1967.


Mas a boemia confessa não era sinônimo de vadiagem. Pelo contrário: foi nesse período que Vinicius escreveu a peça “Orfeu da Conceição” e compôs as músicas mais famosas com Tom Jobim, como “Garota de Ipanema”.

 Em 1979, o poeta tentou ser readmitido com base na Lei da Anistia. O ministro Ramiro Saraiva Guerreiro respondeu pelo Diário Oficial, em 4 de junho de 1980: “Indeferida a reversão”.

 Vinicius morreria no mês seguinte. Seus papéis estão guardados no Itamaraty e no Arquivo Nacional de Brasília.

 Foram consultados pelo GLOBO com autorização de suas filhas.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Argentina: a noite dos longos cassetetes, e a fuga de cerebros, depois - Revista Pesquisa Fapesp


50 anos esta noite

Invasão policial na Universidade de Buenos Aires em 1966 foi precursora da fuga de cérebros na Argentina



Revista Pesquisa Fapesp ED. 246 | AGOSTO 2016

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© ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN
Noche de los Bastones Largos: policiais federais invadiram e prenderam 400 alunos e professores da Universidade de Buenos Aires...
Noche de los Bastones Largos: policiais federais invadiram e prenderam 400 alunos e professores da Universidade de Buenos Aires…
Um grupo de antigos alunos e alguns professores aposentados da Universidade de Buenos Aires (UBA) foi homenageado, no último dia 29 de julho, em um complexo de prédios históricos da capital argentina onde funcionava até 1971 a Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da instituição. Ali, exatos 50 anos antes, os homenageados envolveram-se em uma jornada violenta que é apontada como um ponto de inflexão para a ciência do país, deflagrando a saída de levas de pesquisadores argentinos para o exterior. O 29 de julho de 1966 ficou conhecido como a Noche de los Bastones Largos, quando cinco faculdades da UBA foram tomadas por tropas da Polícia Federal argentina. Munidos de cassetetes compridos (os bastones largos) e bombas de gás lacrimogêneo, os policiais prenderam 400 estudantes e professores que ocupavam desde a manhã os prédios em protesto contra um decreto que suprimia a autonomia das universidades públicas e a forma de administração compartilhada por professores, alunos e ex-alunos. A violência foi um desdobramento de um golpe militar liderado pelo general Juan Carlos Onganía que derrubara um mês antes o presidente civil Arturo Illia.
A imagem de alunos e professores rendidos e ensanguentados depois de passarem por um corredor polonês de policiais tornou-se simbólica. “Aquela noite obscureceu não apenas a universidade, mas também um projeto de desenvolvimento do país”, discursou o atual reitor da UBA, Alberto Barbieri, para os homenageados. Após a ação policial – que não poupou dos cassetetes nem o pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Warren Ambrose, que visitava a UBA –, cerca de 1.400 docentes renunciaram a seus cargos em protesto e pelo menos 300 se exilaram. Metade foi trabalhar em universidades latino-americanas, principalmente no Chile, no México e na Venezuela. Quase uma centena mudou-se para os Estados Unidos e o Canadá e cerca de 40 foram para a Europa. Em alguns casos, grupos inteiros de pesquisa foram desarticulados, como o do Instituto de Cálculo de Ciências Exatas da UBA. Todos os seus 70 pesquisadores renunciaram e deixaram o país. Casos semelhantes ocorreram em institutos dedicados ao estudo de raios cósmicos e à psicologia evolutiva. Muitos dos cientistas que emigraram fizeram carreira no exterior, caso do historiador marxista Sergio Bagú, que morreu no México em 2002. Outros retornaram, como o matemático Manuel Sadosky (1914-2005), pioneiro da ciência da computação no país, que se tornou secretário de Ciência e Tecnologia em 1989, após a redemocratização.
© BIBLIOTECA DIGITAL/PROGRAMA DE HISTÓRIA DE LA FCEN/UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES
...deixando feridos como o matemático Juan Merlos
…deixando feridos como o matemático Juan Merlos
A partir de 1966, a Argentina se tornou conhecida como um país exportador de profissionais qualificados. Uma segunda grande onda de pesquisadores e jovens profissionais recém-graduados emigrou por razões políticas a partir de 1976, quando um novo golpe militar deu início a uma ditadura sangrenta que levou à morte ou ao desaparecimento de 30 mil pessoas – nessa fase, que durou até a redemocratização da Argentina em 1983, o Brasil recebeu vários pesquisadores argentinos. Em tempos recentes, a fuga de cérebros se deu por razões eminentemente econômicas, como após a profunda crise econômica que levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa em 2001. Um estudo feito pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), divulgado em 2006, mostrou que na virada para o século XXI a Argentina era o país da América espanhola que, proporcionalmente, mais fornecia mão-de-obra qualificada para o mercado de trabalho norte-americano, na forma de engenheiros, técnicos especializados e cientistas. A cada mil argentinos que haviam emigrado para os Estados Unidos, 191 eram altamente qualificados, ante 156 do Chile, 100 do Peru e 26 do México.
O trauma da fuga de cérebros transformou a repatriação de pesquisadores em política de Estado nos últimos anos. Em 2008, uma lei federal criou o programa Rede de Pesquisadores e Cientistas da Argentina no Exterior (Raíces, em espanhol), que estabelece um fundo para pagar as passagens de volta de pesquisadores argentinos radicados no exterior e trabalha em conjunto com empresas na oferta de vagas para fixá-los no país. O Raíces conseguiu atrair de volta cerca de 1,2 mil pessoas, entre cientistas que haviam deixado a Argentina há muitos anos e ex-bolsistas de pós-graduação no exterior que queriam voltar, mas não encontravam emprego. O programa também estabeleceu vínculos com 5 mil cientistas argentinos residentes em vários países, financiando visitas à Argentina durante as quais colaboram com universidades e empresas.
© MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA ARGENTINA
Ação deixou um rastro de destruição
Ação deixou um rastro de destruição
“O impacto da Noche de Los Bastones Largos foi enorme para um país que tinha grande tradição universitária e em pesquisa científica e sofreu com a expulsão de núcleos científicos inteiros por ondas autoritárias”, observa o historiador José Alves de Freitas Neto, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), um estudioso da história da Argentina. A formação do sistema de ensino superior e de pesquisa na Argentina teve uma trajetória diferente da dos demais países da América Latina. Ainda na segunda metade do século XIX, dedicou-se a universalizar a educação básica e, no século XX, investiu pesadamente no acesso ao ensino superior. Ostentava em 2014 uma taxa bruta de escolarização superior de 54,5% – o indicador é a porcentagem de matrículas no ensino superior em relação à população de 18 a 24 anos de idade. No Brasil o índice era de 34% no mesmo ano. Todos os que concluem o ensino médio têm o direito de ingressar nas universidades públicas, embora uma parte deles deixe o curso ao final de um ciclo básico de estudos. Com mão de obra bem formada, o país obteve um sucesso singular no campo científico, simbolizado pela conquista de dois prêmios Nobel de Medicina e Fisiologia, com Bernardo Houssay, em 1947, e Cesar Milstein, em 1984, e um de Química, com Luis Federico Leloir, em 1970.
A partir dos anos 1940, bons pesquisadores argentinos eventualmente eram atraídos por oportunidades de trabalho em outros países – o que não chegava a configurar uma fuga de cérebros. Um exemplo é o do neurofisiologista Miguel Covian (1913-1992), que formou um grupo de pesquisa na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) a partir de 1955. Em 1961, Cesar Milstein transferiu-se para a Universidade de Cambridge e acabou se naturalizando inglês.
© ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN
Estudantes tomam a Universidade de Córdoba em 1918: mobilização levou à reforma universitária
Estudantes tomam a Universidade de Córdoba em 1918: mobilização levou à reforma universitária
Se a circulação internacional dos pesquisadores argentinos não era incomum, os efeitos da instabilidade política na universidade já eram frequentes. Autor do livro Vizinhos distantes: Universidade e ciência na Argentina e no Brasil (EdUERJ, 2000), o sociólogo argentino Hugo Lovisolo, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, observa que a perseguição política a professores tinha antecedentes. “O próprio Bernardo Houssay foi posto para fora”, afirma, referindo-se a um episódio de 1943, quando o fisiologista perdeu sua cátedra na UBA após um golpe militar que derrubou o presidente Ramon Castillo. Houssay retornou à UBA em 1955.
Na primeira metade do século XX, as universidades argentinas se tornaram ambientes fervilhantes e politizados. O marco foi a Reforma Universitária de 1918, que serviria de inspiração para outros países do continente. A reforma seguiu-se a uma intensa mobilização estudantil na Universidade Nacional de Córdoba, que teve início em 1916 e conseguiu reformar o estatuto da instituição, ampliando a participação política dos alunos e reduzindo a influência dos jesuítas no comando da universidade. Em 1918, os estudantes rebelaram-se novamente, agora contra a escolha de um novo reitor ligado à Igreja Católica, feita por uma assembleia de docentes. O governo federal interveio, nomeou como reitor provisório o ministro da Justiça, José Salinas, e promoveu uma reforma baseada nas reivindicações dos estudantes, entre as quais autonomia política e administrativa para as universidades; um regime de administração compartilhada que previa a eleição dos mandatários por representantes de professores, alunos e ex-alunos; a seleção de docentes por concurso; a gratuidade do ensino superior; e a liberdade para os alunos assistirem ou não às aulas. “O que aconteceu em 1966 foi um marco porque quebrou o pressuposto da Reforma de Córdoba”, diz o historiador Freitas, da Unicamp.
© GALIO/WIKI MEDIA COMMONS
Sede atual da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais e alunos da UBA...
Sede atual da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais e alunos da UBA…
O Brasil acolheu cientistas argentinos principalmente a partir dos anos 1970, época em que o governo militar buscava consolidar o sistema de pós-graduação voltado para a formação de pesquisadores criado em 1966. O neurocientista Ivan Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), deixou a Argentina por motivos políticos em 1971 e se transferiu para o Brasil.
A Unicamp contratou dezenas de pesquisadores argentinos. O físico portenho de nascimento e criado na cidade de Mendoza Fernando Alvarez, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, deixou Buenos Aires em 1976, um mês após o golpe que destituiu a presidente Isabelita Perón, para fazer doutorado na Universidade de Delaware, nos Estados Unidos. Ele trabalhava como pesquisador no Instituto de Tecnologia Industrial e foi demitido pelo interventor militar que assumiu o comando da instituição após o golpe. Alvarez ainda tentou convencer o irmão, um físico que trabalhava na Comissão Nacional de Energia Atômica, e a cunhada, matemática, a deixarem o país, mas eles não quiseram. O casal foi sequestrado e seus nomes integram a lista de desaparecidos políticos.
© CRISTIAN O. ARONE /WIKI MEDIA COMMONS
...acesso amplo ao ensino superior
…acesso amplo ao ensino superior
Após vários anos morando nos Estados Unidos, encontrou-se num congresso na França com o físico argentino Ivan Chambouleyron, também um exilado político, que formava um grupo de pesquisa em energia solar na Unicamp e o convidou a vir ao Brasil. “Montamos um grupo forte, que hoje se dedica ao desenvolvimento de materiais avançados e dispositivos para uso de microeletrônica e já formou cerca de 40 doutores”, diz Alvarez, que fez sua carreira no Brasil. “Continuei a colaborar com pesquisadores argentinos e ajudei a formar vários deles em meu laboratório.” Já Ivan Chambouleyron voltou para a Argentina depois de trabalhar três décadas no Brasil. “Hoje, após mais de 30 anos em um país que me acolheu generosamente, considero que o Brasil é o meu lugar.”
Outro exemplo é o de Luis Bahamondes, especialista em reprodução humana da Faculdade de Ciências Médicas (FCM-Unicamp). “Eu era estudante de medicina na Universidade Nacional de Córdoba em 1966 e lembro que entramos em greve contra o golpe militar. Acabamos perdendo o ano letivo”, conta. “Os militares diziam que a universidade era um antro de comunistas, mas a verdade é que o movimento estudantil tinha simpatizantes de várias correntes políticas.” Bahamondes participaria de outras duas revoltas contra os militares, em 1969 e 1971, que ficaram conhecidas como Cordobazo e Viborazo.
Graduado em 1971, deixou o país dois anos mais tarde para trabalhar no Uruguai. Depois passou uma temporada no México e veio para o Brasil com um convite para trabalhar numa clínica particular em 1977, mas não se adaptou ao emprego, e foi atraído para a Unicamp em 1978. “O reitor da universidade na época, Zeferino Vaz, recebia até professores estrangeiros que ainda não tinham documentos para ficar no Brasil”, recorda-se. “A ditadura brasileira não era tão burra quanto a argentina e conseguia entender que o desenvolvimento do país passava pelas universidades públicas.” Voltou para a Argentina em 1983, mas não se satisfez com o ambiente de trabalho no país e aceitou um convite para retornar à Unicamp em 1988. “Hoje minhas raízes estão aqui. Tenho um filho, um genro e quatro netos brasileiros.”