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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Argentina: a noite dos longos cassetetes, e a fuga de cerebros, depois - Revista Pesquisa Fapesp


50 anos esta noite

Invasão policial na Universidade de Buenos Aires em 1966 foi precursora da fuga de cérebros na Argentina



Revista Pesquisa Fapesp ED. 246 | AGOSTO 2016

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© ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN
Noche de los Bastones Largos: policiais federais invadiram e prenderam 400 alunos e professores da Universidade de Buenos Aires...
Noche de los Bastones Largos: policiais federais invadiram e prenderam 400 alunos e professores da Universidade de Buenos Aires…
Um grupo de antigos alunos e alguns professores aposentados da Universidade de Buenos Aires (UBA) foi homenageado, no último dia 29 de julho, em um complexo de prédios históricos da capital argentina onde funcionava até 1971 a Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da instituição. Ali, exatos 50 anos antes, os homenageados envolveram-se em uma jornada violenta que é apontada como um ponto de inflexão para a ciência do país, deflagrando a saída de levas de pesquisadores argentinos para o exterior. O 29 de julho de 1966 ficou conhecido como a Noche de los Bastones Largos, quando cinco faculdades da UBA foram tomadas por tropas da Polícia Federal argentina. Munidos de cassetetes compridos (os bastones largos) e bombas de gás lacrimogêneo, os policiais prenderam 400 estudantes e professores que ocupavam desde a manhã os prédios em protesto contra um decreto que suprimia a autonomia das universidades públicas e a forma de administração compartilhada por professores, alunos e ex-alunos. A violência foi um desdobramento de um golpe militar liderado pelo general Juan Carlos Onganía que derrubara um mês antes o presidente civil Arturo Illia.
A imagem de alunos e professores rendidos e ensanguentados depois de passarem por um corredor polonês de policiais tornou-se simbólica. “Aquela noite obscureceu não apenas a universidade, mas também um projeto de desenvolvimento do país”, discursou o atual reitor da UBA, Alberto Barbieri, para os homenageados. Após a ação policial – que não poupou dos cassetetes nem o pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Warren Ambrose, que visitava a UBA –, cerca de 1.400 docentes renunciaram a seus cargos em protesto e pelo menos 300 se exilaram. Metade foi trabalhar em universidades latino-americanas, principalmente no Chile, no México e na Venezuela. Quase uma centena mudou-se para os Estados Unidos e o Canadá e cerca de 40 foram para a Europa. Em alguns casos, grupos inteiros de pesquisa foram desarticulados, como o do Instituto de Cálculo de Ciências Exatas da UBA. Todos os seus 70 pesquisadores renunciaram e deixaram o país. Casos semelhantes ocorreram em institutos dedicados ao estudo de raios cósmicos e à psicologia evolutiva. Muitos dos cientistas que emigraram fizeram carreira no exterior, caso do historiador marxista Sergio Bagú, que morreu no México em 2002. Outros retornaram, como o matemático Manuel Sadosky (1914-2005), pioneiro da ciência da computação no país, que se tornou secretário de Ciência e Tecnologia em 1989, após a redemocratização.
© BIBLIOTECA DIGITAL/PROGRAMA DE HISTÓRIA DE LA FCEN/UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES
...deixando feridos como o matemático Juan Merlos
…deixando feridos como o matemático Juan Merlos
A partir de 1966, a Argentina se tornou conhecida como um país exportador de profissionais qualificados. Uma segunda grande onda de pesquisadores e jovens profissionais recém-graduados emigrou por razões políticas a partir de 1976, quando um novo golpe militar deu início a uma ditadura sangrenta que levou à morte ou ao desaparecimento de 30 mil pessoas – nessa fase, que durou até a redemocratização da Argentina em 1983, o Brasil recebeu vários pesquisadores argentinos. Em tempos recentes, a fuga de cérebros se deu por razões eminentemente econômicas, como após a profunda crise econômica que levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa em 2001. Um estudo feito pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), divulgado em 2006, mostrou que na virada para o século XXI a Argentina era o país da América espanhola que, proporcionalmente, mais fornecia mão-de-obra qualificada para o mercado de trabalho norte-americano, na forma de engenheiros, técnicos especializados e cientistas. A cada mil argentinos que haviam emigrado para os Estados Unidos, 191 eram altamente qualificados, ante 156 do Chile, 100 do Peru e 26 do México.
O trauma da fuga de cérebros transformou a repatriação de pesquisadores em política de Estado nos últimos anos. Em 2008, uma lei federal criou o programa Rede de Pesquisadores e Cientistas da Argentina no Exterior (Raíces, em espanhol), que estabelece um fundo para pagar as passagens de volta de pesquisadores argentinos radicados no exterior e trabalha em conjunto com empresas na oferta de vagas para fixá-los no país. O Raíces conseguiu atrair de volta cerca de 1,2 mil pessoas, entre cientistas que haviam deixado a Argentina há muitos anos e ex-bolsistas de pós-graduação no exterior que queriam voltar, mas não encontravam emprego. O programa também estabeleceu vínculos com 5 mil cientistas argentinos residentes em vários países, financiando visitas à Argentina durante as quais colaboram com universidades e empresas.
© MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA ARGENTINA
Ação deixou um rastro de destruição
Ação deixou um rastro de destruição
“O impacto da Noche de Los Bastones Largos foi enorme para um país que tinha grande tradição universitária e em pesquisa científica e sofreu com a expulsão de núcleos científicos inteiros por ondas autoritárias”, observa o historiador José Alves de Freitas Neto, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), um estudioso da história da Argentina. A formação do sistema de ensino superior e de pesquisa na Argentina teve uma trajetória diferente da dos demais países da América Latina. Ainda na segunda metade do século XIX, dedicou-se a universalizar a educação básica e, no século XX, investiu pesadamente no acesso ao ensino superior. Ostentava em 2014 uma taxa bruta de escolarização superior de 54,5% – o indicador é a porcentagem de matrículas no ensino superior em relação à população de 18 a 24 anos de idade. No Brasil o índice era de 34% no mesmo ano. Todos os que concluem o ensino médio têm o direito de ingressar nas universidades públicas, embora uma parte deles deixe o curso ao final de um ciclo básico de estudos. Com mão de obra bem formada, o país obteve um sucesso singular no campo científico, simbolizado pela conquista de dois prêmios Nobel de Medicina e Fisiologia, com Bernardo Houssay, em 1947, e Cesar Milstein, em 1984, e um de Química, com Luis Federico Leloir, em 1970.
A partir dos anos 1940, bons pesquisadores argentinos eventualmente eram atraídos por oportunidades de trabalho em outros países – o que não chegava a configurar uma fuga de cérebros. Um exemplo é o do neurofisiologista Miguel Covian (1913-1992), que formou um grupo de pesquisa na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) a partir de 1955. Em 1961, Cesar Milstein transferiu-se para a Universidade de Cambridge e acabou se naturalizando inglês.
© ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN
Estudantes tomam a Universidade de Córdoba em 1918: mobilização levou à reforma universitária
Estudantes tomam a Universidade de Córdoba em 1918: mobilização levou à reforma universitária
Se a circulação internacional dos pesquisadores argentinos não era incomum, os efeitos da instabilidade política na universidade já eram frequentes. Autor do livro Vizinhos distantes: Universidade e ciência na Argentina e no Brasil (EdUERJ, 2000), o sociólogo argentino Hugo Lovisolo, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, observa que a perseguição política a professores tinha antecedentes. “O próprio Bernardo Houssay foi posto para fora”, afirma, referindo-se a um episódio de 1943, quando o fisiologista perdeu sua cátedra na UBA após um golpe militar que derrubou o presidente Ramon Castillo. Houssay retornou à UBA em 1955.
Na primeira metade do século XX, as universidades argentinas se tornaram ambientes fervilhantes e politizados. O marco foi a Reforma Universitária de 1918, que serviria de inspiração para outros países do continente. A reforma seguiu-se a uma intensa mobilização estudantil na Universidade Nacional de Córdoba, que teve início em 1916 e conseguiu reformar o estatuto da instituição, ampliando a participação política dos alunos e reduzindo a influência dos jesuítas no comando da universidade. Em 1918, os estudantes rebelaram-se novamente, agora contra a escolha de um novo reitor ligado à Igreja Católica, feita por uma assembleia de docentes. O governo federal interveio, nomeou como reitor provisório o ministro da Justiça, José Salinas, e promoveu uma reforma baseada nas reivindicações dos estudantes, entre as quais autonomia política e administrativa para as universidades; um regime de administração compartilhada que previa a eleição dos mandatários por representantes de professores, alunos e ex-alunos; a seleção de docentes por concurso; a gratuidade do ensino superior; e a liberdade para os alunos assistirem ou não às aulas. “O que aconteceu em 1966 foi um marco porque quebrou o pressuposto da Reforma de Córdoba”, diz o historiador Freitas, da Unicamp.
© GALIO/WIKI MEDIA COMMONS
Sede atual da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais e alunos da UBA...
Sede atual da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais e alunos da UBA…
O Brasil acolheu cientistas argentinos principalmente a partir dos anos 1970, época em que o governo militar buscava consolidar o sistema de pós-graduação voltado para a formação de pesquisadores criado em 1966. O neurocientista Ivan Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), deixou a Argentina por motivos políticos em 1971 e se transferiu para o Brasil.
A Unicamp contratou dezenas de pesquisadores argentinos. O físico portenho de nascimento e criado na cidade de Mendoza Fernando Alvarez, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, deixou Buenos Aires em 1976, um mês após o golpe que destituiu a presidente Isabelita Perón, para fazer doutorado na Universidade de Delaware, nos Estados Unidos. Ele trabalhava como pesquisador no Instituto de Tecnologia Industrial e foi demitido pelo interventor militar que assumiu o comando da instituição após o golpe. Alvarez ainda tentou convencer o irmão, um físico que trabalhava na Comissão Nacional de Energia Atômica, e a cunhada, matemática, a deixarem o país, mas eles não quiseram. O casal foi sequestrado e seus nomes integram a lista de desaparecidos políticos.
© CRISTIAN O. ARONE /WIKI MEDIA COMMONS
...acesso amplo ao ensino superior
…acesso amplo ao ensino superior
Após vários anos morando nos Estados Unidos, encontrou-se num congresso na França com o físico argentino Ivan Chambouleyron, também um exilado político, que formava um grupo de pesquisa em energia solar na Unicamp e o convidou a vir ao Brasil. “Montamos um grupo forte, que hoje se dedica ao desenvolvimento de materiais avançados e dispositivos para uso de microeletrônica e já formou cerca de 40 doutores”, diz Alvarez, que fez sua carreira no Brasil. “Continuei a colaborar com pesquisadores argentinos e ajudei a formar vários deles em meu laboratório.” Já Ivan Chambouleyron voltou para a Argentina depois de trabalhar três décadas no Brasil. “Hoje, após mais de 30 anos em um país que me acolheu generosamente, considero que o Brasil é o meu lugar.”
Outro exemplo é o de Luis Bahamondes, especialista em reprodução humana da Faculdade de Ciências Médicas (FCM-Unicamp). “Eu era estudante de medicina na Universidade Nacional de Córdoba em 1966 e lembro que entramos em greve contra o golpe militar. Acabamos perdendo o ano letivo”, conta. “Os militares diziam que a universidade era um antro de comunistas, mas a verdade é que o movimento estudantil tinha simpatizantes de várias correntes políticas.” Bahamondes participaria de outras duas revoltas contra os militares, em 1969 e 1971, que ficaram conhecidas como Cordobazo e Viborazo.
Graduado em 1971, deixou o país dois anos mais tarde para trabalhar no Uruguai. Depois passou uma temporada no México e veio para o Brasil com um convite para trabalhar numa clínica particular em 1977, mas não se adaptou ao emprego, e foi atraído para a Unicamp em 1978. “O reitor da universidade na época, Zeferino Vaz, recebia até professores estrangeiros que ainda não tinham documentos para ficar no Brasil”, recorda-se. “A ditadura brasileira não era tão burra quanto a argentina e conseguia entender que o desenvolvimento do país passava pelas universidades públicas.” Voltou para a Argentina em 1983, mas não se satisfez com o ambiente de trabalho no país e aceitou um convite para retornar à Unicamp em 1988. “Hoje minhas raízes estão aqui. Tenho um filho, um genro e quatro netos brasileiros.”

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