Formação de uma estratégia diplomática
Relendo Sun Tzu para fins menos belicosos
Paulo Roberto de Almeida
Os argumentos constantes do presente ensaio analítico se inserem num
conjunto de trabalhos – já feitos ou em preparação – que podem ser enfeixados na
categoria dos “clássicos revisitados”, entre os quais um Manifesto Comunista
adaptado a estes tempos de globalização,
e um Moderno Príncipe,
que pretende aproveitar os conceitos do florentino para a política atual. Da
mesma forma, pode-se reler Sun Tzu e aproveitar os ensinamentos contido na Arte da Guerra para
uma reflexão de caráter conceitual sobre a estratégia diplomática – referida simplesmente
como ED – no contexto das relações internacionais contemporâneas. A esse
título, não se trata de refazer, obviamente, uma “arte da guerra para
diplomatas”, e sim tão somente de tecer considerações sobre uma
(e não a) estratégia diplomática, com base nos argumentos basicamente
filosóficos – e, claro, muitas regras práticas – presumivelmente redigidos pelo
conhecido mestre chinês, legitimamente considerado o “pai da estratégia” (no seu
caso, militar).
Da
diplomacia como um instrumento do Estado
A diplomacia é de vital importância para o Estado. Talvez não tão
crucial quanto a defesa do Estado por suas forças armadas, pois destas depende
a própria sobrevivência física do Estado. Este pode, teoricamente sobreviver
sem manter intensas relações internacionais, ou sem exercer uma diplomacia
ativa. Mas ele dificilmente teria vida longa, ou conseguiria preservar seus
interesses vitais, sem uma capacitação adequada em matéria de instrumentos
defensivos (que são, igualmente, mecanismos ofensivos, credíveis, tanto para a dissuasão
quanto para o ataque).
A diplomacia é, todavia, crescentemente relevante não apenas para a
defesa dos interesses fundamentais de um Estado, mas sobretudo para se alcançar
os objetivos nacionais relevantes de uma nação no contexto contemporâneo, partindo
do pressuposto que a sociedade humana e a comunidade das nações se afastam,
cada vez mais, do direito da força para aderir à força do direito. O mundo
contemporâneo abandonou, progressivamente, os esquemas restritos dos arranjos
interimperiais – embora a última instância da política internacional permaneça
com as grandes potências – para adentrar no multilateralismo dos esquemas de
segurança coletiva consolidados nos instrumentos onusianos. Da diplomacia
depende – paralelamente ao exercício potencial do poder militar – a preservação
de um ambiente de paz e de estabilidade, tanto quanto de cooperação nos planos
bilateral, regional ou multilateral a que aspira todo Estado que privilegia a
solução de controvérsias pela via das negociações. Esta é uma condição
essencial, hoje indispensável, para o crescimento econômico sustentado, os
avanços tecnológicos, o progresso social, a preservação do meio ambiente, enfim,
para a prosperidade comum.
Adaptando nossa releitura de Sun Tzu ao contexto diplomático,
poderíamos dizer que a arte da diplomacia implica cinco fatores principais, que
devem ser objeto de nossa contínua reflexão, com vistas a aperfeiçoá-los e
incorporá-los cada vez mais às nossas práticas de servidores do Estado no campo
da política externa. Estes cinco fatores são: a doutrina, a interação entre a
conjuntura e a estrutura, os condicionantes econômicos e geopolíticos da ação
diplomática, o comando e a disciplina. A partir desses cinco fatores é possível
elaborar uma “estratégia diplomática”, que será objeto da segunda seção deste
ensaio introdutório.
A doutrina tem a ver com
a concepção mesma da diplomacia, a sua razão de ser. Ela diz respeito aos
princípios inspiradores da diplomacia, aos valores que fundamentam a sua ação,
às diretrizes que guiam essa ação na prática. Ela também se refere a uma noção
clara dos interesses nacionais e aos instrumentos indispensáveis à
implementação dos objetivos fundamentais do Estado, cujo pressuposto básico é, obviamente, o ato de dispor de uma
doutrina básica para sua atuação diplomática – sem esquecer uma estratégia
militar -- no cenário internacional.
A interação entre a
conjuntura e a estrutura pode ser vista como o equivalente funcional
daquilo que Sun Tzu chamava de tempo.
Essa interação supõe a combinação da sincronia e da diacronia – ou seja, o
momento presente e a flecha do tempo –, que constituem os dois vetores de
atuação diplomática ao longo de um determinado período. Toda diplomacia lida
com o aqui e o agora, mas ela o faz tendo em vista as consequências futuras das
ações adotadas na presente conjuntura e levando em consideração a herança
recebida do passado recente, que imprime sua marca sobre a mente dos diplomatas
e determina, em grande medida, a forma como eles vão agir no presente.
Os condicionantes econômicos e geopolíticos representam o fator que
Sun Tzu chamava de espaço, isto é, o
ambiente concreto no qual devem se movimentar os “exércitos” diplomáticos, em
busca da materialização dos objetivos nacionais.
O comando atende aos
mesmos critérios estabelecidos pelo mestre chinês da arte da guerra para esse
conceito. Ele tem a ver com a capacidade exibida pelas lideranças diplomáticas
– o estadista, o chanceler, os altos responsáveis pela formulação da doutrina e
pela definição das principais diretrizes diplomáticas – de indicar claramente
aos membros da comunidade diplomática nacional quais são os objetivos pelos
quais eles devem se bater.
Sun Tzu considerava que o comando deveria ter as seguintes
qualidades: sabedoria, sinceridade, benevolência, coragem e disciplina. Dessas
cinco qualidades, a primeira é certamente necessária ao comandante, assim como
a quarta, embora esta deva pertencer mais ao comandante militar do que
propriamente ao chefe da diplomacia. Maquiavel certamente descartaria a segunda
e a terceira, ou seja, a sinceridade e a benevolência, embora considerasse esta
última como um recurso a que o condotier
poderia apelar quando estivesse em situação de força, justamente. Quanto à
ultima, deve ser considerada mais como uma variante do rigor consigo mesmo do
que o exercício da disciplina “contra” seus próprios subordinados, que é o
objeto do último fator da arte da diplomacia.
A disciplina, no plano da
diplomacia, tem a ver com organização e métodos, ou seja, a construção de uma
ferramenta burocrática que seja, ao mesmo tempo, eficiente e inovadora,
prudente e ousada, preparada no plano da informação e do conhecimento e apta a
seguir instruções de forma ordenada e coerente, atuando como uma agência
homogênea e uniforme. Isto é possível quando o estamento
burocrático-diplomático possui processos de socialização e de construção de um
pensamento relativamente unificado e convergente.
Com base nesses cinco fatores, as autoridades diplomáticas de um
Estado podem planejar seus objetivos externos – a que chamaremos de “estratégia
diplomática – a partir de um conjunto adicional de fatores instrumentais que
têm a ver, essencialmente, com a implementação prática desses objetivos,
quaisquer que sejam eles. Entre esses fatores figuram os seguintes: a
capacidade dos dirigentes diplomáticos em formular metas realistas e adequadas
para a mobilização efetiva do estamento profissional diplomático; a avaliação
correta dos limites e possibilidades oferecidas pelo sistema internacional para
que aqueles objetivos possam ser alcançados; o uso eficiente de todos os
mecanismos e instrumentos do sistema internacional – instituições formais,
grupos informais, coalizões temporárias de interesse, combinação de iniciativas
bilaterais, coordenação regional e exploração dos canais multilaterais –
segundo a natureza de algum objetivo específico; coordenação interna das
agencias públicas que detêm alguma interface internacional e instruções claras
aos agentes diplomáticos nas diversas frentes negociadoras para se alcançar
eficácia máxima nas iniciativas diplomáticas desse Estado.
Mesmo sob condições democráticas, e portanto transparentes, a
eficiência e a eficácia na ação diplomática de um Estado depende, em parte, do
tratamento discreto que possa atribuir a determinados temas de seu interesse
crucial na frente externa. Toda negociação diplomática é, por definição, uma
barganha entre interesses por vezes convergentes, mas em certa medida
contraditórios, quando não divergentes ou opostos (na medida que todo e
qualquer acordo sempre implica em custos políticos e econômicos, a começar pela
perda relativa de soberania, o que se deve limitar o máximo possível). Daí a
necessidade de se encaminhar um determinado tema com base em argumentos de
utilidade geral e de benefício recíproco que podem oferecer a base para um
entendimento mais próximo dos interesses nacionais.
Esta questão implica também que o trabalho de avaliação deve
envolver não apenas os interesses próprios do Estado em questão, mas igualmente
os interesses do Estado, ou dos Estados com os quais se negocia, de maneira a
permitir as acomodações necessárias. Dito isto, caberia, portanto, passar aos
argumentos principais, que têm a ver com a elaboração e a implementação de uma
estratégia diplomática (ED).
Da estratégia
diplomática como uma das artes especializadas do Estado
Analogamente a seu equivalente militar, mas nisso talvez destoando
um pouco de Sun Tzu, poderíamos dizer que a ED consiste na mobilização de
instrumentos políticos, econômicos e militares – ponderados com base
numa avaliação comparada e em análises conceituais e factuais sobre as
intenções dos demais participantes do jogo diplomático – com vistas à
consecução de objetivos nacionais bem definidos, mas sem o recurso à, ou a
ameaça do uso da, força militar ou à guerra. Nesse sentido, a ED se opõe à, ou
se distingue da, estratégia militar, que pressupõe, de sua parte, o uso ou a
ameaça de uso da força bruta, segundo linhas que já foram suficientemente
discutidas ao longo da história, desde Sun Tzu até os modernos estrategistas
militares, passando por Clausewitz, Henry Kissinger ou Raymond Aron.
No plano puramente conceitual, a formulação de uma ED implica a
análise dos fatores contingentes, de obstáculos conjunturais e de barreiras de
caráter estrutural que dificultam – em alguns casos até obstaculizam – o
atingimento dos objetivos nacionais, tais como definidos pelos estrategistas de
um determinado Estado, uma comunidade variada que pode envolver desde
estadistas até burocratas do planejamento governamental, passando por
representantes da cidadania e consultores independentes (membros da academia,
especialistas setoriais, etc.). No plano operacional, a ED pressupõe a
mobilização de todos os instrumentos à disposição desse Estado para o
atingimento daqueles objetivos, o que implica o uso dos meios propriamente diplomáticos,
mas também o apoio das forças armadas e da comunidade econômica do país.
Todo Estado moderno, atuante, inserido na comunidade internacional, normalmente
dotado de órgãos executivos e de planejamento, possui, ou deveria possuir, uma
ED. Não se deve, evidentemente, superestimar uma ED: não se trata de algo fixo
ou rígido, estruturalmente determinado, mas de uma concepção determinada por
fatores conjunturais e até contingentes, concomitante às iniciativas dos
Estados e às ações humanas.
Uma ED realista e flexível deve submeter-se, desde logo, a
constantes revisões, tantos são os fatores de mudança conjuntural e as
alterações no cenário político internacional que influenciam ou impactam os
objetivos nacionais de um Estado. Ela deve estar, portanto, sujeita a
avaliações regulares por parte de um staff
especialmente preparado para essa finalidade e dedicado funcionalmente a esse
tipo de tarefa. Não conviria, aliás, que o órgão encarregado da elaboração de
uma ED fosse exclusivo e excludente, ou seja, trabalhando unicamente em torno
da ED, e sim que ele seja aberto a insumos externos e à colaboração de
especialistas e consultores alheios ao próprio órgão, de forma a manter uma
atmosfera aberta inovadora, permitindo até revisões radicais da “velha” ED (ou
seja, indo temporariamente num sentido contrário à “razão de Estado”).
Uma ED, ainda que elaborada por um governo determinado, não é, ou não
deveria ser, uma concepção e uma ação de um governo, e sim uma iniciativa e uma
postura de Estado, ou seja, interessando antes à Nação do que aos partidos e
personalidades ocupando temporariamente o poder. Como atividade típica de
Estado, a ED deve estar sujeita ao escrutínio de todas as forças, movimentos e
grupos de opinião representativos da Nação, ser objeto de discussão e de
avaliação quanto a seus fundamentos concretos, seus instrumentos operacionais,
seus objetivos explícitos e suas metas implícitas. Normalmente é isso que
ocorre em sistemas democráticos, tanto mais intensamente quanto mais abertos e
transparentes são os elementos centrais que definem e ajudam a implementar uma
ED.
Os processos de concepção, elaboração e de revisão da ED se dão no
corpo do Estado, envolvendo as agências voltadas para as relações exteriores,
os órgãos de defesa e o governo central, ademais das instâncias voltadas
precipuamente para planejamento de políticas e de análises aplicadas; eles
passam pelo parlamento e alcançam a sociedade, por meio da opinião pública,
devidamente informada pelos órgãos de informação.
O planejamento de uma ED implica, antes de qualquer outra ação, tratar
dos meios próprios a uma organização diplomática: de nada serve ter uma ED sem
a ferramenta que a implementará. Estamos falando aqui de funcionários,
equipamentos, recursos, organização, enfim, todos os meios com os quais todo e
qualquer Estado leva sua ED da fase de concepção à de aplicação no terreno. Na
diplomacia, como na guerra, nada existe estaticamente, ou de forma puramente
passiva, mas, sim, compõe-se de interações dinâmicas; os meios precisam ser sempre
mantidos, aperfeiçoados, substituídos, instruídos e monitorados.
Diferentemente da guerra, porém, não é preciso ter um planejamento
logístico destinado a concentrar forças e operações ofensivas num espaço de
tempo delimitado e num terreno previamente estudado. Em outros termos, as ações
diplomáticas não necessitam de uma “concentração de fogo” para se lograr alguma
vantagem decisiva no calor da batalha. A dinâmica diplomática é mais cumulativa,
do que “destrutiva”, e as operações podem ser delongadas em função de uma
avaliação contínua e mutável das condições do “terreno”, em função da interação
com o “adversário”, que, no ambiente diplomático, não significa uma atitude de confrontação
como na guerra e nas demais operações militares. A ED é bem mais intangível do
que a EM, baseada no planejamento, certamente, mas em última instância na força
bruta.
Diferente da guerra, também, a conduta diplomática se baseia menos
em meios materiais, ou equipamentos “pesados”, e mais em negociações diretas,
quase pessoais, entre os atores. Não se trata de “aniquilar” o inimigo, mas sim
de convencer e compor com um parceiro, mais que um adversário. A guerra
desgasta, se mantida durante muito tempo, ao passo que a diplomacia avança, com
a composição de interesses. A “logística” da diplomacia possui uma lógica
própria, baseada – aliás, como no caso das operações militares – na presença
sobre o “terreno” e na interação constante com o “adversário”; diferentemente,
porém, não se trata de vencê-lo, mas de compor com ele um novo terreno de
interações e de cooperação.
Essa presença tem um “preço”, que é o custo da manutenção de
representantes diretos – os “agentes avançados” dos serviços de inteligência
militar – e do envio de missões temporárias e permanentes, assim como o
engajamento pleno em negociações em nível bilateral, regional ou multilateral.
Esse preço pode ser o equivalente funcional da manutenção, bastante custosa no
âmbito militar, de equipamentos pesados que se destinam, na verdade, a não
serem usados, mas que servem basicamente para dissuasão. No caso da diplomacia,
a “dissuasão” é na verdade o diálogo e o entendimento, se possível no mais alto
nível (mas de ordinário mantida pelo representante permanente, normalmente
chamado de embaixador).
A condução da diplomacia será, evidentemente, diferente, segundo o
Estado ostenta um regime político centralizado ou unitário, próximo do
autoritarismo, ou se esse Estado exibe características claras de
descentralização, com dispersão relativa dos centros de poder e participação de
vários atores políticos e sociais. O Estado do mestre chinês da arte da guerra,
não obstante a descontinuidade ocasional trazida por uma sucessão extraordinária
de dinastias, invasões e de reconstruções sucessivas do sistema político,
exibiu notável continuidade na centralização imperial, no limite do despotismo “hidráulico”.
Nesse tipo de regime, a condução da diplomacia obedece, simplesmente, à vontade
do soberano, com alguma participação dos cortesãos e membros do aparato estatal
restrito (antigos mandarins, modernos aparatchiks).
A condução da diplomacia nas modernas condições democráticas se faz
sob forte pressão de forças sociais suscetíveis de expressar posições distintas
e de influenciar o processo de tomada de decisão no plano externo. A despeito
da legitimidade que possam exibir essas demandas, seria conveniente que o
Estado, em especial seu aparelho diplomático, preservasse sua latitude de ação
e ampla margem de opções, de maneira a escolher as melhores vias – que envolvem
alianças ocasionais, coordenações formais e até iniciativas individuais – para
alcançar os objetivos nacionais desse Estado. Pode-se inclusive conceber certa
autonomia de iniciativa e de ações atribuída ao negociador principal, da mesma
forma como se concede pleno poder de comando ao general em seu campo de
batalha. Em momentos decisivos, essa autonomia deve ser plena, posto que a
autoridade responsável pelo sucesso (ou fracasso) de uma negociação ou
iniciativa diplomática é o próprio agente no terreno, não o soberano em sua
capital distante.
Em todas essas questões, Sun Tzu tem muito a ensinar aos diplomatas
profissionais (e até aos iniciantes).
Brasília, 5 março 2011.
Resumo: Releitura introdutória do clássico Arte da Guerra, de Sun Tzu, adaptando seus argumentos para o
objetivo de formulação de uma estratégia diplomática, necessariamente distinta
da concepção militar que presidiu à sua elaboração.
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