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sábado, 14 de dezembro de 2019

A patifaria intelectual de Olavo de Carvalho - Tomas Troster (Carta Capital)

A patifaria intelectual de Olavo de Carvalho

Tomás Troster
Carta Capital, 13/12/2019

Em meados de 2016, enquanto preparava uma citação da Dialética erística de Schopenhauer para um livro, comparei três traduções do filósofo alemão: uma para o inglês, uma espanhola e uma publicada no Brasil, comandada por Olavo de Carvalho (a quem me referirei pelo acrônimo “OdC”). Considerando as óbvias distâncias entre as línguas, a tradução inglesa se revelou bem diferente das outras duas, que, para meu estranhamento, pareciam quase idênticas.
A Dialética erística é uma obra na qual Schopenhauer expõe 38 estratagemas – subterfúgios ou artimanhas – usados inescrupulosamente para vencer um debate. Segundo Dionisio Garzón, a obra só saiu à luz quatro anos após a morte do filósofo alemão. Embora “dialética” seja um termo notadamente polissêmico, quando associado à erística – lembrando de Éris, a deusa grega da discórdia – trata-se de uma arte do combate verbal ou uma técnica de conseguir fazer com que um determinado público nos dê razão em uma discussão, ainda que não a tenhamos de fato. Além de descrever tais estratagemas, Schopenhauer também apresenta “meios de se defender contra eles, como uma arte de parar golpes nessa esgrima” (Parerga e Paraliponema II, 2, apud. Garzón, p. 10). Mesmo que o título original seja Dialética erística – em alemão, Eristische Dialektik –, a obra recebeu alcunhas diversas, mais ou menos apelativas, como uma edição francesa L’art d’avoir toujours raison (A arte de ter sempre razão).
Nos últimos meses, surpreso com o destaque que OdC ganhou no cenário nacional, decidi revisitar seu trabalho e avaliar o agora “guru do presidente”. Publicado pela editora Topbooks em 2003, o livro Como vencer um debate sem precisar ter razão é composto de uma tradução da Dialética erística – assinada por OdC e Daniela Caldas – e uma introdução e comentários de OdC. Repletas de referências a obras insignificantes como O imbecil coletivo, as páginas escritas por meu compatriota deixam a desejar em vários quesitos: OdC e o diagramador, por exemplo, não sabem escrever palavras em grego, mas acharam bonito tentar. Mais espantosa, ainda, é a versão brasileira do texto de Schopenhauer: uma adaptação ipsis litteris de quase toda a tradução espanhola de Dionisio Garzón (EDAF, 1996). Em casos especiais, vale ressaltar, OdC opera pequenas alterações e, por vezes, introduz erros inéditos.
Dois exemplos:
No estratagema 30, onde Garzón traduz:
“De hecho, no existe ninguna opinión, por absurda que sea, que los hombres no se lancen a hacerla propia apenas se ha llegado a convencerles que tal opinión es universalmente aceptada” (p. 40),
OdC verte:
“De fato, não existe nenhuma opinião, por absurda que seja, que os homens não se lancem a torná-la sua, tão logo se tenha chegado a convencê-los de que é universalmente aceita” (p. 167).
Para efeito de comparação, Milton Camargo Mota (Editora Vozes, 2017, edição digital) traduz a mesma passagem assim:
“Não há uma só opinião, por absurda que seja, que as pessoas não tornem sua com facilidade, tão logo tenham sido convencidas de que ela é geralmente aceita.”
Já Alexandre Pires Vieira (Montecristo editora, 2018, edição digital) a verteu como:
“Não há opinião, por mais absurda que seja, que os homens não aceitarão prontamente assim que puderem ser levados à convicção de que ela é geralmente adotada.”
No estratagema 9, vemos na tradução de Dionisio Garzón:
“Hacer las preguntas, en un orden distinto del que exige la conclusión que de ellas se pretende, con cambios de todo género” (p. 40).
Na de OdC:
“Fazer as perguntas numa ordem distinta da exigida pela conclusão que dela pretendemos, com mudanças de todo gênero” (p. 141).
Mota:
“Não fazer as perguntas na ordem exigida pela conclusão a ser extraída delas, mas com todos os tipos de deslocamentos.”
E Vieira:
“As perguntas não são feitas na ordem que a inferência a extrair delas requer, mas em todos os tipos de transposições.”
Repare que Schopenhauer fala de uma conclusão extraída de perguntas, no plural. Por isso, o correto seria “delas” – como fazem Garzón, Mota e Vieira. Jactando-se fazer um “esforço de compreensão propriamente filosófica”, “graças a Deus, porque não sou filólogo” (p. 24), OdC claudica até na concordância.
Em relação à edição espanhola – publicada antes, que se destaque –, o restante da tradução de OdC parece seguir os mesmos procedimentos: inverte-se aqui e ali uma ordem de predicados, troca-se “razão” por “fundamento”, esquece-se de um destaque em itálico, mas o texto nunca se descola substancialmente da versão de Garzón. Da comparação dos dois textos – e de sua discrepância com outras traduções – a autenticidade do trabalho do inverossímil “guru” é no mínimo eclipsada.
É certo que existem casos célebres de traduções indiretas. Nos anos 1940, assumidamente, Rachel de Queiroz traduziu duas obras de Dostoiévski a partir de edições francesas. Na coleção Os Pensadores, o volume de Aristóteles que contém a Ética a Nicômaco estampa nitidamente em seu frontispício: “Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross”. É o que se deve fazer quando se produz uma tradução indireta – além de, é claro, pedir a autorização do(s) detentor(es) dos direitos da obra.
Pois os incisos i e xi do artigo 7º da Lei de Direitos Autorais (LDA) estabelecem que são obras intelectuais protegidas pela lei: “i – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas”; e “xi – as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova”. Como Schopenhauer (1788-1860) morreu há mais de 150 anos, suas obras são de domínio público (LDA, art. 41). Suas traduções recentes, não. O artigo 29 da mesma LDA determina que “depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades”, tal como “iv – a tradução para qualquer idioma”. A citação de algumas passagens – como fiz acima – não constitui uma ofensa à LDA, já que são apenas recortes e “o nome do autor e a origem da obra” são indicados (art. 46). Porém, quando se trata da reprodução integral de uma obra, a lei é categórica:
Art. 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor.
Parágrafo único. Os comentários ou anotações poderão ser publicados separadamente.
É curioso que – en passant – OdC assume que sua “Introdução e Comentários nasceram de simples notas de leitura à margem da tradução espanhola de Dionísio Garzón; depois os conferi com o original, com a ajuda de minha querida amiga Daniela Spínola P. Caldas, professora de língua alemã” (p. 26). Fica claro, então, que a inspiração de OdC foi o trabalho de Garzón. Mas por que ele pediria ajuda a alguém que conhece o idioma alemão para revisar sua introdução e comentários (“os conferi com o original”) que foram escritos em português? Por que, em nenhum momento, a fonte da tradução é indicada de maneira explícita? Garzón, de sua parte, deixa claro (p. 13) que se baseou na edição de Hübscher. OdC nem mesmo menciona a obra original na ficha catalográfica.
Conjecturas à parte, ocorreu-me a possibilidade de que, para fazer sua tradução extremamente similar à de Garzón, OdC tenha pedido autorização à editora madrilenha EDAF. Liguei para lá, então, e, depois de conversar com algumas pessoas, recebi a seguinte mensagem: “lhe confirmo que nossa edição de El arte de tener razón foi traduzida diretamente do alemão por Dionisio Garzón, em virtude de um contrato que data de 6 de fevereiro de 1996. Em dito contrato, o Sr. Garzón se encarregava também da realização de um prólogo e um estudo da obra. Tanto a cessão da tradução, quanto do prólogo e do estudo são de caráter exclusivo. Revisando nossos arquivos, não nos consta de nossa parte que se tenha cedido nenhum dos três a alguma pessoa ou entidade no Brasil”.
Posteriormente galhardeado com a Ordem de Rio Branco, OdC fala algo sobre “patifaria intelectual” (p. 23). Para que o leitor tire suas próprias conclusões, apresento mais uma passagem comentada de ambas as traduções, seguida das duas implacáveis comparações. Do estratagema 32, Garzón traduz:
“Un modo rápido de eliminar o, al menos, hacer sospechosa una afirmación del adversario contraria a nosotros es reducirla a una categoría generalmente detestada, aunque la relación sea tan sólo de vaga semejanza y poco rigurosa. Por ejemplo, esto es maniqueísmo, esto es arrianismo, esto es pelagianismo, esto es idealismo, esto es espinosismo, esto es panteísmo, esto es brownianismo, esto es naturalismo, esto es ateísmo, esto es racionalismo, esto es espiritualismo, esto es misticismo, etc.” (p. 60)
OdC:
“Um modo rápido de eliminar ou, ao menos, de tornar suspeita uma afirmação do adversário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada, ainda que a relação seja pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança. Por exemplo: ‘Isso é maniqueísmo’, ‘É arrianismo’ [sic], ‘É pelagianismo’, ‘É idealismo’, ‘É panteísmo’, ‘É brownianismo’, ‘É naturalismo’, ‘É ateísmo’, ‘É racionalismo’, ‘É espiritualismo’, ‘É misticismo’, etc.” (p. 174)
Mota:
“Uma maneira rápida de eliminar ou ao menos tornar suspeita uma afirmação do adversário que nos seja contrária é a de colocá-la sob uma categoria odiada, ainda que tenha apenas uma semelhança com esta ou uma vaga relação – por exemplo, ‘isso é maniqueísmo; é arianismo; […] o; é espinozismo; […] é misticismo etc.’”
E Vieira:
“Se você é confrontado com uma afirmação, há um modo curto de se livrar dela, ou, pelo menos, de lançar suspeitas sobre ela, colocando-a em alguma categoria odiosa; mesmo que a conexão seja apenas aparente, ou sutil. Você pode dizer, por exemplo, ‘Isso é maniqueísmo’ ou ‘É arianismo’ […] ou ‘espinosismo’, ou […] ‘misticismo’ e assim por diante” (os destaques em negrito são meus).
Três notas: (i) OdC defenestrou o “espinosismo” da lista de Schopenhauer; (ii) a tradução de OdC ignora a ocorrência de “entgegenstehende” (sigo a edição disponível aqui), traduzida para o espanhol como “contraria a nosotros”; “que nos seja contrária”, por Mota; e “confrontado com”, por Vieira; (iii) em português, “arianismo” – a doutrina de Ário, o padre alexandrino dos séculos iii e iv – se escreve com um único “r”, curiosamente, o mesmo ocorre em alemão: “Arianismus”, ao passo que, em espanhol, o próprio nome é diferente: “Arrio” (e, consequentemente, “arrianismo”).

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.