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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 11 de maio de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação do post anterior.

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4)
Paulo Roberto de Almeida

(...)

Os anos 1970: do Brasil para o mundo
Vendi alguns poucos pertences, retirei meu FGTS, comprei uma passagem de terceira classe num navio espanhol, e saí do Brasil, no final do ano, pouco antes de um novo sequestro de embaixador, desta vez para libertar mais algumas dezenas de companheiros presos: a relação de troca estava cada vez mais alta, pois já devia ter mais companheiros na cadeia do que fora dela. Conclui que minha decisão fora acertada, mas ela foi menos no país de destino inicial: a Tchecoslováquia, recém saída da invasão soviética de agosto de 1968, e entregue a uma restalinização exemplar. Passei o inverno do início de 1971 em Praga, bela capital, mas como todas as capitais socialistas ainda trazendo algumas velhas marcas da guerra (que ali não eram importantes) e as novas marcas da deterioração socialista, com suas igrejas em ruinas ou fechadas, as ruas mal pavimentadas, os prédios públicos e privados sem tinta, sem reboco, janelas quebradas, enfim, a paisagem normal do socialismo burocrático.
A estada de três meses no socialismo real permitiu-me constatar, em primeiro lugar, que o socialismo era surreal. A propósito, visitei o Castelo de Praga, e a casa de Franz Kafka, adjacente, e aproveitei para ler O Processo, numa edição cubana da Casa de las Américas (que depois nunca mais publicou nada do gênero). Pareceu-me absolutamente fiel ao que eu estava vendo, todos os dias, nas filas intermináveis para comprar dois potinhos de iogurte búlgaro, nas estantes vazias dos supermercados, nos restaurantes com plaquetas de “Reservacje” em quase todas as mesas – “para que trabalhar, não é mesmo?, se o salario é o mesmo no final do mês?” – e aquele clima de medo, de intimidação, de denúncia, sem saber de onde, nem porque. Enfim, um Kafka perfeito, para ninguém botar defeito, se vocês percebem a ironia.
O que, além de tudo, eu mais descobri foi que, pior do que a miséria material, muito pior do que a falta de produtos, de calefação, dos mínimos serviços que você está em direito de esperar, mesmo num país subdesenvolvido como o Brasil, o que mais caracterizava o socialismo era a miséria espiritual, a miséria moral na qual viviam as pessoas, simples cidadãos, não especialmente politizados, apenas cidadãos comuns, querendo apenas viver a sua vida, sem se opor ao socialismo, às autoridades, nada; apenas uma miséria kafkiana.
Isso eu descobri ao frequentar a biblioteca da Alliance Française, de Praga, um dos únicos lugares onde se podia ler jornais ocidentais naquele canto do socialismo (o outro devia ser a biblioteca da Usia, da embaixada americana, que eu não frequentava, pois o meu inglês era muito pior do que o meu francês). Ao conversar com as velhinhas tchecas, que ali estavam não exatamente para ler o Le Monde, como eu fazia, mas apenas para poupar o carvão de casa (se é que o tinham), para se aquecer, simplesmente, naquele inverno de -10o, eu descobri que, realmente, muito pior do que a miséria material do socialismo real, era a real miséria moral na qual viviam todos eles, simples cidadãos e altos dirigentes políticos, todos obrigados a viver, a conviver, a suportar uma mentira imensa, todos os dias: a da democracia socialista, a do regime da igualdade social, do proletariado, do progresso, da paz e da solidariedade. Creio que foi ali, há poucas semanas de saído do Brasil capitalista, opressivo, desigual e ditatorial, foi ali que eu aprendi que o socialismo era muito pior; com isso fui temperando minhas crenças nas verdades infalíveis da história e revisando todas as minhas concepções sobre o mundo, sobre a economia, sobre a política, sobre a vida dos homens, enfim.
Larguei o socialismo real em três meses, e fui para o capitalismo ideal, não o da Suíça, que eu não tinha dinheiro nem contatos para fazê-lo, mas o da Bélgica, um pequeno país, meio francófono, meio flamengo, belgicano em suas cervejas e manias, mas ideal do meu ponto de vista: vida mais barata, podendo trabalhar e estudar ao mesmo tempo, o que me permitiu retomar minhas afinidades eletivas algo abandonadas desde vários meses: ler, refletir, resumir o que estava lendo, pensar muito no mundo, e retomar as bases de minhas concepções sobre a vida social, a política e a economia. Depois de inscrever-me novamente no curso de Ciências Sociais da Universidade Livre de Bruxelas – ah, esses sociólogos que sempre querem revolucionar o mundo – passei mais tempo lendo livros, jornais e revistas na biblioteca do Institut de Sociologie, do que propriamente assistindo aulas, que achava chatas e aborrecidas, com muito poucas exceções. Tracei um imenso programa de leituras – ainda razoavelmente marxista, mas já aberto aos “inimigos de classe”, como Raymond Aron e outros – e o cumpri pela metade, perdendo a outra na leitura de jornais e revistas e na retomada de contatos “revolucionários”. Eu ainda não havia abandonado todas as ilusões...
Creio que cheguei a me tornar um expert em Terceiro Mundo, tal a quantidade de leituras que devorei sobre a África, a Ásia e a América Latina. O ambiente ajudava: dezenas de estudantes estrangeiros, protestos contra a guerra do Vietnã, contra Israel, contra as ditaduras latino-americanas (Brasil certamente, mas o Chile teve de esperar mais um pouco), conferências e palestras dos mais finos marxistas, trotskistas, anarquistas (menos), e também estruturalistas, claro, pois essas pragas nunca acontecem sozinhas. Fui refinando minha leitura do mundo e das oposições políticas: eu ainda era marxista, obviamente, mas já não tinha certeza de ser leninista ou guevarista: leituras de Soljenitsin, do grupo “Socialismo ou Barbárie” e outros dissidentes do socialismo real, o conhecimento direto da nomenklatura e do seu modo hipócrita de reprodução, tudo isso me fazia refletir sobre como o mundo era mais complicado do que nossas pobres elaborações mentais sobre as desigualdades do capitalismo brasileiro e sua situação de “dependência” em relação ao imperialismo.
Duas outras atividades me ocuparam intensamente durante meus anos belgas, além do estudo, claro, menos na sala de aula e mais nas bibliotecas: viagens e trabalho “revolucionário”. As viagens eram de estudante, muitas de carona, ou de oportunidade, sempre que podiam ser combinadas ao trabalho “revolucionário”. Esse, na verdade, se limitava a repassar informações sobre a repressão no Brasil a jornalistas e aos habituais simpatizantes do Terceiro Mundo, como sempre se encontram nas economias ricas do capitalismo avançado. Colaborava, mais ou menos informalmente, com a Frente Brasileira de Informações, animada por exilados brasileiros um pouco em todos os países da Europa ocidental e apoiada em dinheiro e meios materiais dos esquerdistas e simpatizantes europeus.
Na verdade, esse trabalho de denúncia da repressão no Brasil nunca me atraiu especialmente, pois eu preferia aprofundar a discussão e a análise sobre as razões e os fundamentos de o Brasil ser o que é: país dependente?; sub-imperialista?; atrasado ainda que industrializado?; desigual, certamente, mas tão ditatorial quanto o socialismo real, que eu havia visto na Tchecoslováquia, depois na União Soviética e em outros países da chamada “cortina de ferro”? Todas essas questões eu me colocava todos os dias, quando adentrava uma biblioteca – e foram muitas – e percorria as fichas ou as estantes em busca de respostas nos livros e nos artigos de revistas especializadas, em várias línguas. Aprendi a ler – apenas ler – em várias línguas, e devorava tudo o que me caia sob as mãos, sobretudo gratuitamente nas bibliotecas ou nos centros de pesquisa: ainda me permitia gastar meus poucos tostões no Le Monde, algumas vezes por semana (e sempre na sexta, para o Le Monde des Livres), e no Le Monde Diplomatique (que considero ser, hoje, apenas um jornalzinho esquerdista simplista). Eu preferia escrever artigos de corte mais acadêmico, e lembro-me de ter publicado, gloriosamente, meus primeiros artigos em francês (revisto por um jornalista belga), um pequeno, sobre o “arrocho salarial” no Brasil e outro, mais alentado, sobre o Estado “fascista” militar. Nada que eu possa me orgulhar, atualmente, mas pelo menos feitos com pesquisa, dados e argumentos, ainda que falhos, no segundo caso.
Além de frequentar bibliotecas, ler e escrever – enchi vários cadernos de notas manuscritas, com resumos de livros, notas para artigos, simples observações casuais – o que mais fiz, além de pensar sobre tudo isso, foi viajar, para todas as partes acessíveis ao meu pequeno orçamento de estudante trabalhador (sim, passei todo o verão de 1972 lavando pratos na Suécia, o que me deu renda para quase um ano inteiro). Viajei para conhecer outros socialismos reais, e alguns surreais, e também os capitalismos dos diversos países da Europa, sempre um mosaico de culturas e de problemas. A Itália não era muito diferente do Brasil, no seu caos burocrático, apenas mais rica e agradável; a Inglaterra já estava há vários anos em decadência, e em algumas visitas me pareceu estar entrando num país do Terceiro Mundo; a França sempre orgulhosa, ainda que arrogante, a Alemanha e a Suíça, muito prussianas para o meu gosto, mas pujantes, em sua riqueza brilhante, toda a cheirar cobre. Em face da abundância capitalista, os países socialistas não eram sequer de uma pobreza franciscana, mas tampouco era africana: eles eram apenas bregas, kitsch, totalmente defasados em relação à modernidade, com os seus pepinos em lata, seus repolhos mal cheirosos, suas salsichas horríveis e seus carrinhos Lada impressionantes de atrasados. Quanto tive dinheiro para comprar um Citroen Dois Cavalos (daqueles que a porta abria para a frente) e viajei novamente a Praga, fiz sensação na cidade. Enfim, o socialismo era de uma mediocridade terrível.

(Continua...)

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (3) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação da postagem anterior.

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (3)

Paulo Roberto de Almeida


(...)
Ocorreram perdas nessa fase – primeiro Ché Guevara, depois Marighella – (...) mas ainda restava Carlos Lamarca, que havia desertado alguns meses antes de um quartel em Quitaúna, SP, com muitas armas, e prometia ser o próximo chefe da revolução: as divisões, subdivisões, dissidências e reagrupamentos eram comuns, nesta fase (final de 1969, início de 1970), os grupos armados já se encontravam na defensiva, lutando apenas pela sobrevivência. Essa foi a realidade da luta armada, quase quixotesca, se não fosse trágica: muitas vidas sacrificadas, criminosamente ou por “acidente”, para nada.
Isso eu não sabia, exatamente, mas vim a descobrir imediatamente após: eu – e o pequeno grupo de colegas estudantes e trabalhadores de escritório que eu coordenava, informalmente – procurava justamente discutir as bases, os conceitos e os fundamentos programáticos dos grupos revolucionários, examinar com os “verdadeiros revolucionários” os caminhos da revolução no Brasil, um pouco como Lênin havia feito com seus colegas bolcheviques no exílio suíço. Minha intenção declarada era a de estabelecer com eles primeiro uma “colaboração de trabalho”, que antes de qualquer outro engajamento, seria intelectual, ou teórica, para depois levar ao grupo as propostas dos camaradas revolucionários e decidir conjuntamente “o que fazer”, como diria ainda o revolucionário russo. (...)
À minha indagação sobre as posições políticas do grupo armado, sobre nossa intenção de discutir os fundamentos da “ação revolucionária” antes de  decidir qualquer curso de ação, o que obtive como “resposta” foram algumas tergiversações em torno de quase nada...
(,,,) depois de ter recebido alguns papéis muito elementares, e terrivelmente mal escritos, sobre o fabuloso programa revolucionário dos companheiros – que nos decepcionaram terrivelmente, a mim e a meus colegas, pela pobreza argumentativa, já nem diria intelectual, apenas militante, daquelas mal traçadas linhas – decidimos que não cabia, realmente, ingressar numa causa tão mal costurada, tão mal justificada, feita apenas de revolta quase infantil contra a toda poderosa ditadura. Fiquei realmente surpreendido pela miséria intelectual dos documentos dos “revolucionários profissionais”, eu que estava acostumado com a “alta literatura” bolchevique-kominterniana, todas as obras filosóficas de Marx e Engels, e mais alguns materiais paralelos, de certa estatura intelectual. Enfim, decidi que não havia nada a ser feito no plano intelectual, e que a hora era mesmo de tentar “salvar os cacos” do movimento revolucionário, ou seja, tentar salvar os companheiros, antes que todos desaparecessem na voragem da repressão.
Nunca cheguei a pegar em armas, e nem tentei fazê-lo, por constatar a completa inanidade, talvez a insanidade, de qualquer decisão nesse sentido. Nos poucos meses que ainda permaneci no Brasil – antes de partir para um longo exílio de sete anos na Europa, no final de 1970 – tentei compreender as razões da insanidade... Os companheiros precisavam, é claro, de “companheiros de armas”, que os ajudassem a assaltar alguns bancos, ou quem sabe sequestrar algum burguês bem abastecido, para ajudar na simples sobrevivência física dos outros companheiros escondidos e clandestinos, coisas que eu não pretendia fazer, e isso estava claro.
(...)
 A única coisa que conclui desses meses agônicos do início do milagre brasileiro – e da vitória na Copa do Mundo, o que parece ter complicado nossa tarefa “revolucionária” – foi de que não havia nada a esperar de terrivelmente intelectual, ou de simplesmente politicamente sensato, desse bando de cowboys do asfalto, que pensavam estar fazendo a revolução, quando a única coisa que faziam era roubar alguns bancos, sequestrar alguns embaixadores (no desespero para libertar os companheiros presos) e roubar algumas armas, para se manterem no ofício maluco que tinham concebido para si mesmos. Já estava claro que a luta armada não tinha qualquer futuro.
Quanto a discussões políticas de alto nível, obviamente que não vi nada disso. Mas algumas coisas pude constatar pela leitura dos poucos e pobres documentos que nos foram repassados, talvez um pouco a contragosto pelos companheiros do “ponto” – “esses caras não veem que já superamos essa fase, que já estamos fazendo a revolução?”; “eles não ouviram falar da décima-primeira tese sobre Feuerbach, até aqui os filósofos interpretaram o mundo,...?” – e essas coisas podem ser resumidas nas “descobertas” seguintes. Qualquer que fosse o glorioso regime de justiça social e de igualdades estruturais que justificavam nossa luta contra a ditadura, nenhum de nós pretendia instaurar uma “democracia burguesa” no Brasil, longe disso.
Os documentos mais explícitos falavam claramente em ditadura do proletariado, como já tinha ensinado Lênin em 1917 e, antes dele, o Marx da Comuna de Paris; os mais enrolados falavam de “democracia de massas”, ou de “regime de transição para o socialismo”, o que, em qualquer hipótese significava derrubar o sistema capitalista e dar início à propriedade coletiva dos meios de produção. Parece que, no meio disso tudo, teríamos que inevitavelmente eliminar os latifundiários e, quem sabe?, meia dúzia de grandes capitalistas, para “dar o exemplo” aos demais. Quanto às Forças Armadas, a serviço da burguesia e do imperialismo, depois de derrotadas, elas seriam recompostas no formato do exército popular, ou de qualquer outra coisa que não fosse o exército antipopular, assassino e repressor. O modelo era o soviético, ou até chinês maoísta.
Essas não eram todas as loucuras companheiras, mas já era o bastante para eu concluir, como aquele personagem de desenho animado, que tudo aquilo não podia dar certo, que aquilo não daria certo (sem qualquer sorriso de hiena, claro). Foi suficiente para eu concluir que estava na hora de retirar o meu time de campo, antes que algo mais prejudicial à minha saúde, ou à minha integridade física, sobreviesse repentinamente. “Liberei” os “meus” companheiros de qualquer compromisso com a revolução, e lá fomos, cada um cuidar de sua vida, à espera de tempos melhores. Quanto a mim, resolvi sair do país, estudar na Europa e conhecer o mundo. Acho que foi mais salutar...

(Continua)

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (2) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação do post anterior.

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (2)

Paulo Roberto de Almeida

(...)


Tendo me politizado precocemente, justamente em função dessas crises do início dos anos 1960 e do “golpe militar”, acompanhei muito de perto, embora ainda adolescente, as movimentações que se seguiram à inauguração da nova fase política. Todo o ambiente universitário ao qual eu me vinculava intelectualmente – a despeito de ainda estar no secundário – era invariavelmente caracterizado por uma ideologia de esquerda, basicamente marxista, nas diversas variantes da época, mais a radicalização concomitante da chamada Igreja progressista. Como muitos outros jovens da minha geração, fui sendo levado quase naturalmente para a opção socialista, que na época se apresentava como uma solução “factível” e “possível”, tendo em vista os exemplos precedentes da revolução bolchevique, da guerra civil conduzida por Mao Tsé-tung na China e, sobretudo, porque bem mais perto de nós, da aventura guerrilheira cubana.
Tudo isso era muito teórico para mim, já que eu era, basicamente, um “rato de biblioteca”, ávido por ler de tudo, orientação que foi sendo concentrada na literatura marxista à medida em que eu me formava politicamente. Mal sabia eu – como vim a descobrir mais tarde – que grupos de pessoas, movimentos inteiros, considerando os partidos de esquerda (na verdade, representados quase unicamente pelo Partidão, o Partido Comunista de orientação soviética) muito conservadores, já haviam decidido seguir o exemplo cubano da guerrilha rural, alguns até o exemplo maoísta da guerra revolucionária camponesa. Vários jovens, como eu, participávamos de manifestações contra o regime militar, contra o imperialismo americano, basicamente na forma de panfletagens e de ruidosas passeatas contra as autoridades políticas e contra algum representante do império (lembro-me de ter protestado amplamente contra a visita ao Brasil do vice-presidente Nelson Rockefeller, símbolo do capitalismo, e contra os acordos do Ministério da Educação, então comandado pelo coronel Jarbas Passarinho, com a USAID, para a modernização do sistema universitário no Brasil).
Progressivamente, esses movimentos foram se preparando para a luta armada, de acordo com as diretrizes que então emanavam de Havana, onde tinha sido organizada, em 1965, a conferência tricontinental, para prestar solidariedade ao Vietnã do Norte, em sua luta contra a república pró-americana do sul, e para estimular a luta armada na América Latina, como recomendava Fidel Castro e como já tinha passado à ação Ché Guevara. Este era – parece que continua sendo, a despeito de todas as evidências em contrário – o símbolo da rebeldia juvenil contra a opressão capitalista, e a metodologia proposta para romper com o capitalismo e o imperialismo era dar início a um “foco guerrilheiro”, conforme teorizado pelo militante francês Regis Debray, em livrinho então muito lido por todos nós, ainda que clandestinamente. No Brasil, entretanto, na ausência de enormes massas camponesas sujeitas a algum tipo de dominação “feudal”, ou de alguma “Sierra Maestra” próxima das cidades e dos latifúndios, nem a solução maoísta da guerra camponesa, nem o modelo cubano da coluna de guerrilha rural pareciam aplicáveis, razão pela qual os líderes comprometidos com a luta armada adotaram a via da guerrilha urbana, como depois seria enfatizado no “Mini-manual do guerrilheiro urbano”, do dissidente do Partidão e líder da ALN, Carlos Marighella.
Essas nuances das táticas de combate não se manifestavam, contudo, de forma muito clara no debate político desses grupos guerrilheiros, que decidiram passar à ação mesmo na completa confusão do que fazer, de quem doutrinar, que tipo de mensagem política preconizar, ou que tipo de governo se pretendia, exatamente. O que é certo é que ninguém, nenhum desses grupos tencionava lugar contra a ditadura militar para colocar no lugar uma “democracia burguesa”, e sim alguma variante dos regimes cubano ou chinês (a União Soviética já era julgada então como muito burocrática e conservadora). Mas essas eram questões que não me afetavam ainda, ou a meus colegas de debate político, ocupados que estávamos principalmente com as lutas estudantis.
Desde essa época constatei que os grêmios estudantis e os diretórios acadêmicos vinham sendo sistematicamente tomados de assalto pelos militantes do PCdoB, uma tribo de fundamentalistas maoístas com os quais era impossível ter qualquer discussão racional: eles estavam dispostos a qualquer manobra suja, a todos os tipos de manipulações políticas, e a muita propaganda enganosa, para se apossar das representações estudantis (isso até hoje, como demonstra seu longo domínio sobre a UNE e outras associações de estudantes). Talvez tenha sido por isto que, com todo o meu radicalismo juvenil, chegando mesmo a me acreditar um “guevarista”, eu nunca suportei os hábitos de seita e as ações conspiratórias dos maoístas alucinados.
Mais adiante, durante e mesmo depois do completo fracasso da aventura guerrilheira de Ché Guevara na Bolívia, os grupos que se preparavam, de modo algo canhestro – como depois vim a reconhecer – para a luta armada no Brasil passaram à ação, com ataques a quarteis, atentados a bomba, assaltos a bancos (chamados de “expropriações”) e de municiamento em armas e munições, mas tudo isso de forma muito desorganizada e improvisada, como também vim a saber bem depois. Nessa época, ou seja, antes do AI-5, que representou um endurecimento do regime, ante o recrudescimento dos ataques desses grupos armados, eu não tinha contato direto com o “pessoal da pesada”, como chamávamos os guerrilheiros urbanos. Meu “trabalho”, auto-atribuído, de militante contra a ditadura era apenas o de um manifestante a mais, um participante de eventuais passeatas e um doutrinador voluntário de colegas de escola, tentando converter à “boa causa” aqueles a quem designávamos como “alienados”, segundo um termo marxo-marcusiano bastante usado nessa época. Alienados eram todos aqueles que não compartilhavam da nossa crença no futuro radioso da humanidade sob o socialismo, enfim liberta das taras do capitalismo e da dominação burguesa. Em outros termos, minhas ocupações eram totalmente marginais e acessórias ao verdadeiro trabalho de um revolucionário profissional, o que eu também aspirava ser, assim que a ocasião se apresentasse.
Na verdade, como eu vinha de uma família muito modesta, e tive de acumular trabalho e estudo desde muito cedo em minha vida, eu simplesmente não tinha tempo, como os “filhinhos de papai” – como eram chamados os garotos de classe média alta, que não precisavam trabalhar, e portanto podiam dedicar-se à “revolução” – de tornar-me um revolucionário profissional: acordar às 6:00hs da manhã, seguir para a fábrica às 7:00hs, retornar às 18:30 para casa, engolir uma comida rápida e correr para o colégio (depois para a faculdade), estudar até às 11:00 da noite, e voltar cansado para casa, não combina muito, convenhamos, com a dedicação integral que um verdadeiro profissional precisa dar à causa revolucionária. De resto, todo meu tempo livre era dedicado à leitura, seja dos textos necessários aos estudos, seja da literatura marxista, com a qual eu já estava amplamente familiarizado: uma leitura “de ônibus”, portanto, quando dava.
(...)
(Continua...)

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (1) - Paulo Roberto de Almeida

Agora um texto mais pessoal sobre o mesmo tema da luta armada no Brasil, dividido em blocos, dada sua extensão.


A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (1)

Paulo Roberto de Almeida

A luta armada representou, no contexto das crises políticas vividas pelo Brasil nas décadas de 60 e 70 do século passado, uma conjuntura especial e um fenômeno específico, embora bastante grave, do ponto de vista do nosso destino futuro enquanto nação, que a maior parte da população desejava democrática e inserida numa economia de mercado. A despeito de ter sido relativamente circunscrita no tempo, com uma duração total inferior a dez anos, a luta armada deixou, entretanto, consequências permanentes, ou residuais, na história política nacional, que devem ser devidamente avaliadas, se a sociedade brasileira pretende, realmente, superar os traumas individuais e coletivos causados pelos tristes episódios daquele período.
Cabe registrar, inicialmente, que esses efeitos continuados da luta armada no Brasil se situam inteiramente no campo dos partidos e movimentos ditos de esquerda, que não parecem ainda ter se desligado de suas antigas crenças, bem como dos traumas e obsessões do passado, uma vez que os outros grandes contendores daquele fenômeno, as Forças Armadas, encontram-se totalmente inseridos no ambiente de reconciliação democrática e de construção de uma institucionalidade totalmente comprometida com os objetivos de paz, prosperidade e de normalidade política desejados pelo povo brasileiro. Isto me parece bem evidente na movimentação atual do governo e dos partidos de esquerda – que aliás, hoje em dia, são uma coisa só – em torno da chamada Comissão da Verdade e seu trabalho que me parece enviesado e muito longe de buscar ou estabelecer a verdade, parecendo bem mais um movimento vingativo contra os que derrotaram os promotores da luta armada naquele passado hoje distante.
Pretendo, neste curto depoimento pessoal, oferecer minha avaliação do passado remoto, como testemunha e ator secundário que fui dos dramas vinculados à luta armada, e efetuar, depois, um proposta sensata quanto aos desafios do presente. Espero ser bastante objetivo e imparcial na minha exposição de certos fatos, bem como muito realista quanto à maneira de interpretar esses fatos e de tirar deles consequências para os dias que correm. Trata-se de uma contribuição totalmente desinteressada focada em fatos, menos que em argumentos de cunho político – ao esclarecimento dos mais jovens e alguns menos jovens, mas que não passaram por essas vicissitudes, sobre aquela fase da vida brasileira, que justamente buscamos superar para o bom entendimento nacional.

O Brasil dos anos 1960: breve recapitulação histórica
Desde meados da década anterior, nos estertores do segundo governo Vargas, o Brasil vivia em permanente crise político-militar, agravando-se as turbulências no início dos anos 1960 em função do comportamento bizarro do presidente eleito Jânio Quadros e da momentosa posse do vice-presidente (eleito pela chapa concorrente) João Goulart. A situação, durante os seus três anos de mandato (primeiro em regime parlamentarista, depois no retorno ao presidencialismo), se caracterizava por constantes greves, inflação crescente, quebra de autoridade em diversas instâncias do poder estatal, inclusive no âmbito das Forças Armadas, e intensa radicalização política por parte dos movimentos que pretendiam para o Brasil opção semelhante à dos países comunistas, indo até, em certos meios, à preparação para a guerrilha rural, em moldes cubanos ou chineses.
O movimento civil-militar – não lhe cabe o nome de golpe, nem de revolução – que derrocou o regime da República de 1946 representou apenas o ponto culminante dessa fase de crise aguda, não sendo nem o resultado de uma conspiração organizada pela direita e pelas elites – como pretende a esquerda – nem o acabamento de algum desígnio imperial no contexto da Guerra Fria – como pretendem os paranoicos anti-imperialistas e antiamericanos das mesmas correntes. Ele ocorreu porque grande parte da sociedade, representada majoritariamente pela classe média, demandava uma solução aos descalabros administrativos, à corrosão do poder de compra, ao clima de desordem política, à percepção do aumento da corrupção que caracterizavam o governo Goulart.
Talvez os militares devessem ter aguardado as eleições do ano seguinte, e ter apostado numa solução democrática em face desse quadro turbulento, mas o fato é que o agravamento da situação induziu algumas lideranças civis e militares a atuarem de imediato contra o governo, sem que a necessária coordenação de todas as forças políticas se fizesse num sentido mais consentâneo com a legalidade constitucional. Existem momentos na história de um país nos quais a população decide assumir ela mesma as atribuições de um poder constituinte originário; foi o que parece ter ocorrido em março de 1964, quando a grande maioria da população brasileira secundou e se solidarizou com as Forças Armadas que assumiram o comando involuntário daquele movimento. A história poderia ter sido outra, mas ela é o que é: incontrolável.

(continua...)


sexta-feira, 10 de maio de 2013

A esquerda brasileira nos primeiros dez anos do regime militar: um depoimento pessoal


Segue um trabalho efetuado em 2011. Ele justamente não foi feito para ser divulgado, mas como subsídio a uma biografia que está sendo feito fora do Brasil de um estrangeiro que conheceu o Brasil, como jornalista, e aqui esteve durante a ditadura militar, com uma postura simpática aos militantes da esquerda armada.
Não é o caso, aqui e agora, de revelar quem seja, inclusive por que isso não tem nenhuma importância para a história do Brasil; e como foi feito sob a forma de um depoimento pessoal sobre essa pessoa, a quem conheci muito pouco, na verdade, eu me permito suprimir as passagens pessoais, justamente, porque esses aspectos não interessam à história objetiva.
Deixo apenas meu registro do processo histórico, que é a primeira parte do depoimento...
Paulo Roberto de Almeida

A esquerda brasileira nos primeiros dez anos do regime militar:
um depoimento pessoal

Paulo Roberto de Almeida
Depoimento oferecido como contribuição a uma biografia estrangeira.
Precedentes
O Brasil do início dos anos 1960 enfrentava uma típica crise de instabilidade do sistema político, não muito diferente de dezenas de outras, que surgem, se desenvolvem e desaparecem em quaisquer outros sistemas políticos, especialmente na América Latina. Desde meados dos anos 1950, a classe política, extremamente dividida quanto a soluções consensuais típicas de países em crescimento – inflação, gastos do governo, tributação, reformas estruturais e administrativas, etc. – não conseguia encontrar mecanismos democráticos para encaminhar as pressões do crescimento e das demandas por participação popular. Daí o velho recurso e o apelo dos políticos aos militares, como “pesos decisivos” na balança política, para “corrigir os problemas”.
De fato, os militares tinham uma longa tradição de intervenção nos assuntos políticos, desde o próprio golpe de derrocada da monarquia e de proclamação da República, até as crises político-militares dos governos JK e Jânio Quadros, passando pelas revoltas tenentistas dos anos 1920, pela revolução que derrubou a Velha República, pelo golpe de instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, e também pelo que determinou sua extinção, em outubro de 1945. Depois foram ativos participantes dos diversos episódios de turbulência da República de 1946, até culminar na implantação do parlamentarismo, em 1961, e na própria derrubada dessa República três anos depois. Aqui a historiografia brasileira ainda se divide quanto à natureza do golpe, suas origens políticas, suas raízes sociais, suas justificativas econômicas ou geopolíticas, segundo se é contra ou a favor, ainda hoje, em relação a esse evento decisivo no Brasil moderno. A esquerda, obviamente, interpreta o golpe militar como o avanço das forças reacionárias, alinhadas ao imperialismo, contra a ascensão dos “movimentos populares”, em favor de reformas democráticas; a direita coloca o golpe como uma reação às forças comunistas que ameaçavam tomar o poder e colocar o Brasil – como uma nova Cuba, ou uma nova China – na esfera do movimento comunista internacional, liderado pela URSS. No caso do Brasil, curiosamente, as forças de “direita” ganharam, mas a História foi escrita pela “esquerda”, assim que todo o processo político que levou às crises político-militares dos anos 1954-1964 e o próprio golpe e seus efeitos mediatos e imediatos são interpretados segundo a ótica dos “perdedores”, que, aliás, ascenderiam ao poder em 2003.
Seja qual for a interpretação que se decida adotar ainda hoje, o golpe militar de 1964 contra o regime de João Goulart – ou a “revolução”, segundo seus promotores – provavelmente não representou nada de muito diferente do que ocorreu na mesma época em diversos outros países latino-americanos; talvez não tenha sido realmente nada de muito diferente inclusive no que respeita às forças de esquerda que lutavam contra os regimes oligárquicos ou de burguesias alinhadas ao imperialismo americano durante a era da Guerra Fria: depois de uma primeira preeminência dos partidos comunistas de orientação (e subserviência) soviética, ocorreram as primeiras divisões na esquerda latino-americana, basicamente representadas pela criação de partidos comunistas pró-chineses (tendentes a apoiar o conceito de guerra popular de base camponesa, conforme o modelo maoísta) e de movimentos identificados com a visão foquista-guerrilheira do processo de luta contra o Estado burguês, privilegiando os métodos fidelistas-guevaristas de tomada do poder. A esquerda brasileira também acompanhou essas divisões dos movimentos de oposição aos regimes pró-EUA e passou a se organizar em função dos modelos respectivos de lutas políticas e militares.

Engajamento
Assisti a esses primeiros desenvolvimentos da esquerda brasileira basicamente como um espectador indeciso, pois até meados dos anos 1960 não tinha condições de realmente compreender quais conceitos, processos e métodos de luta eram os mais apropriados para o Brasil e seus reformistas radicais. Até 1964, pelo menos, ou  seja, até o golpe militar, meu conhecimento do marxismo era perfunctório, se algum, consistindo apenas na leitura do que constava em livros e enciclopédias estudantis e em algum material anticomunista traduzido das “seleções” do Reader’s Digest, publicada em português com apoio oficial do governo dos EUA. Minha politização, algo confusa, começou com a revolução cubana, e seus episódios posteriores, mas me lembro particularmente da crise dos foguetes de outubro de 1962, por causa dos temores de uma possível guerra nuclear entre EUA e URSS. Obviamente não tinha nenhuma posição nessa época, mas comecei a ler mais intensamente sobre esses temas, e a buscar livros sobre os mais importantes movimentos políticos do século XX: a revolução bolchevique, os fascismos dos anos 1920 e 30, a dominação soviética sobre metade da Europa e alguns episódios da Guerra Fria.
Nenhum foi tão marcante, justamente, quanto a revolução cubana, e seu desfilar de “guerrilheiros heroicos” lutando contra um ditador de opereta. Ché Guevara simbolizava essa luta e foi com ele que nos identificamos todos os jovens que também pensavam libertar o Brasil da hegemonia americana e instaurar um regime de justiça social e de democracia popular, basicamente identificado com os socialismos russo e chinês. Cuba era um exemplo de como se podia derrocar um regime corrupto e criar o “homem novo”, base de toda a transformação radical que se esperava fazer.
Minha evolução para posições marxistas ocorreu, assim, naturalmente, acelerada que foi pelo golpe militar de 1964 e pelas primeiras reações ensaiadas pelos militantes que recusavam a via reformista e pacifista do Partido Comunista Brasileiro e pensavam que só a luta armada poderia representar a verdadeira libertação do Brasil. Posso confirmar que fui um dos mais entusiastas apoiadores da revolução cubana, como em geral toda a esquerda no Brasil, ainda que divergindo quanto aos caminhos a seguir a partir do golpe militar. Entre 1964 e 1966 li intensamente meus primeiros livros de marxismo teórico, e até alguns de “revolucionário prático”, como pode ter sido o pequeno ensaio de Regis Debray, Révolution dans la révolution, em uma edição brasileira clandestina (sem entender muito bem suas posições, pois confesso que não percebia claramente as diferenças táticas, ou até estratégicas, entre as diferentes formas de luta preconizadas e suas relações com o alinhamento de forças de que seria preciso dispor para cada uma delas).
Minha atividade política, quando no ciclo colegial de estudos – curso “clássico”, constante de três anos de humanidades, depois de 4 anos de ginásio – entre 1966 e 1968, consistiu em uma intensa participação em manifestações estudantis contra o regime militar, contra a visita de dirigentes americanos ao Brasil – entre eles David Rockefeller, em 1968 – e também na tentativa de vinculação a alguns dos grupos políticos que então tentavam se organizar para lutar contra o regime, derrocá-lo e, depois, gloriosamente, implantar um modelo de “democracia popular” muito similar ao modelo cubano. O período que vai de 1964 a 1968 é o da ascensão dos movimentos de resistência ao regime militar, de organização das primeiras ações armadas e dos primeiros reveses, também.
Todos os que militavam na esquerda brasileira sabiam das divisões nos grupos tradicionais, sobretudo em detrimento do “Partidão” (o “velho” PCB) e foram muitas as ocorreram, geralmente com o sentido de “passar à ação”, de acentuar a importância das correntes e tendências que pretendiam “começar a luta armada”, atendendo ao apelo das conferências realizadas em Havana, a Tricontinental (reunindo militantes dos três continentes do Terceiro Mundo) e a dos movimentos guerrilheiros da América Latina, da qual resultou a criação da OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, uma mini-internacional que pretendia estimular o modelo cubano em todos os países do continente. Repercutia então – em torno de 1966 – a palavra de ordem de Ché Guevara que era a de “criar dois, três, muitos Vietnãs”, como forma de vencer o imperialismo. Não se sabia, então, onde estava o comandante Ché Guevara, que se tinha despedido oficialmente de Cuba, e de seus cargos cubanos, desde 1965, para continuar, como diziam os líderes cubanos, sua obra de revolucionário em outros continentes. Dois anos depois ele terminaria a vida nas selvas da Bolívia, maltrapilho e entregue à sua sorte.
Em 1966, o dirigente do PCB Carlos Marighella tinha participado das reuniões de Havana e de fato rompido com o Comitê Central, que não pretendia segui-lo no caminho cubano. Com vários outros companheiros e jovens recrutas do movimento estudantil, ele criou a Ação de Libertação Nacional e passou a emitir palavras de ordem imediatamente, todas no sentido de atacar os militares e outros representantes da ditadura. Numa primeira fase se tratava de ações simbólicas, e logísticas – ou seja, de levantamento de fundos – que seriam seguidas, esperava-se, de revoltas populares e de greves de trabalhadores, que todas contribuiriam para o “acirramento de contradições” e a passagem à fase ulterior da luta, com brigadas e unidades completas armadas, que seriam capazes de vencer o exército a serviço da burguesia e do imperialismo. Outros grupos também se constituíram em várias regiões do Brasil, em alguns casos envolvendo militares, em outros militantes de classe média, geralmente do movimento estudantil, que estava na vanguarda da resistência ao governo militar.
Como vários outros estudantes de minhas relações, eu esperava passar logo de manifestações de rua para ações mais ousadas, armadas se possível. Mas não era fácil contatar os grupos guerrilheiros, obviamente clandestinos e com um esquema de enclausuramento muito forte, para evitar perdas na fase de construção de forças. Os grupos organizados que atuavam dentro do movimento estudantil – Partidão, PCdoB, Ação Popular – tinham suas próprias prioridades, e não eram suficientemente cubanos, ou guevaristas, segundo nossas prioridades da época.
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O ano de 1968 parecia ensejar grandes progressos para os movimentos de resistência à ditadura. A despeito da morte de Ché Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, pipocavam por todas as partes, na região e no Brasil, ações armadas que pareciam prenunciar a ascensão dos grupos guerrilheiros que iriam se lançar na “guerra” contra o regime militar. Não se percebia muito bem que, por mais espetaculares que fossem as ações do punhado de militantes que tinham decidido pegar em armas – assaltos a bancos, roubos de armas, ataques a quartéis, “justiçamento” de um “espião americano” (como o capitão Charles Chandler) ou de algum “esbirro da ditadura” –, elas não iriam levar, por si só, à formação das colunas guerrilheiras (ao estilo cubano) ou do “exército popular” (como no exemplo chinês) que nos conduziria à tomada do poder.
A população permanecia relativamente indiferente a esses apelos à “luta armada”, e os trabalhadores já tinham preocupação suficiente com a defesa de seus salários, num ambiente inflacionário que permanecia renitentemente inercial e sustentado. A relativa intensidade dos ataques a bancos e a outros alvos táticos dava a impressão que os movimentos de luta armada estavam crescendo, quando na verdade eles apenas procuravam sustentar-se a si próprios, independentemente de qualquer debate político mais estratégico ou de ações efetivas de organização da população.
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Paulo Roberto de Almeida, Brasília, 16/10/2011