Continuação do post anterior.
A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (2)
Paulo Roberto de Almeida
(...)
Tendo me politizado
precocemente, justamente em função dessas crises do início dos anos 1960 e do
“golpe militar”, acompanhei muito de perto, embora ainda adolescente, as
movimentações que se seguiram à inauguração da nova fase política. Todo o
ambiente universitário ao qual eu me vinculava intelectualmente – a despeito de
ainda estar no secundário – era invariavelmente caracterizado por uma ideologia
de esquerda, basicamente marxista, nas diversas variantes da época, mais a
radicalização concomitante da chamada Igreja progressista. Como muitos outros
jovens da minha geração, fui sendo levado quase naturalmente para a opção
socialista, que na época se apresentava como uma solução “factível” e
“possível”, tendo em vista os exemplos precedentes da revolução bolchevique, da
guerra civil conduzida por Mao Tsé-tung na China e, sobretudo, porque bem mais
perto de nós, da aventura guerrilheira cubana.
Tudo isso era muito
teórico para mim, já que eu era, basicamente, um “rato de biblioteca”, ávido
por ler de tudo, orientação que foi sendo concentrada na literatura marxista à
medida em que eu me formava politicamente. Mal sabia eu – como vim a descobrir
mais tarde – que grupos de pessoas, movimentos inteiros, considerando os
partidos de esquerda (na verdade, representados quase unicamente pelo Partidão,
o Partido Comunista de orientação soviética) muito conservadores, já haviam
decidido seguir o exemplo cubano da guerrilha rural, alguns até o exemplo
maoísta da guerra revolucionária camponesa. Vários jovens, como eu,
participávamos de manifestações contra o regime militar, contra o imperialismo
americano, basicamente na forma de panfletagens e de ruidosas passeatas contra
as autoridades políticas e contra algum representante do império (lembro-me de
ter protestado amplamente contra a visita ao Brasil do vice-presidente Nelson
Rockefeller, símbolo do capitalismo, e contra os acordos do Ministério da
Educação, então comandado pelo coronel Jarbas Passarinho, com a USAID, para a modernização
do sistema universitário no Brasil).
Progressivamente, esses
movimentos foram se preparando para a luta armada, de acordo com as diretrizes
que então emanavam de Havana, onde tinha sido organizada, em 1965, a
conferência tricontinental, para prestar solidariedade ao Vietnã do Norte, em
sua luta contra a república pró-americana do sul, e para estimular a luta
armada na América Latina, como recomendava Fidel Castro e como já tinha passado
à ação Ché Guevara. Este era – parece que continua sendo, a despeito de todas
as evidências em contrário – o símbolo da rebeldia juvenil contra a opressão
capitalista, e a metodologia proposta para romper com o capitalismo e o
imperialismo era dar início a um “foco guerrilheiro”, conforme teorizado pelo
militante francês Regis Debray, em livrinho então muito lido por todos nós,
ainda que clandestinamente. No Brasil, entretanto, na ausência de enormes
massas camponesas sujeitas a algum tipo de dominação “feudal”, ou de alguma
“Sierra Maestra” próxima das cidades e dos latifúndios, nem a solução maoísta
da guerra camponesa, nem o modelo cubano da coluna de guerrilha rural pareciam
aplicáveis, razão pela qual os líderes comprometidos com a luta armada adotaram
a via da guerrilha urbana, como depois seria enfatizado no “Mini-manual do
guerrilheiro urbano”, do dissidente do Partidão e líder da ALN, Carlos
Marighella.
Essas nuances das táticas
de combate não se manifestavam, contudo, de forma muito clara no debate
político desses grupos guerrilheiros, que decidiram passar à ação mesmo na
completa confusão do que fazer, de quem doutrinar, que tipo de mensagem
política preconizar, ou que tipo de governo se pretendia, exatamente. O que é
certo é que ninguém, nenhum desses grupos tencionava lugar contra a ditadura
militar para colocar no lugar uma “democracia burguesa”, e sim alguma variante
dos regimes cubano ou chinês (a União Soviética já era julgada então como muito
burocrática e conservadora). Mas essas eram questões que não me afetavam ainda,
ou a meus colegas de debate político, ocupados que estávamos principalmente com
as lutas estudantis.
Desde essa época constatei
que os grêmios estudantis e os diretórios acadêmicos vinham sendo
sistematicamente tomados de assalto pelos militantes do PCdoB, uma tribo de
fundamentalistas maoístas com os quais era impossível ter qualquer discussão
racional: eles estavam dispostos a qualquer manobra suja, a todos os tipos de
manipulações políticas, e a muita propaganda enganosa, para se apossar das
representações estudantis (isso até hoje, como demonstra seu longo domínio
sobre a UNE e outras associações de estudantes). Talvez tenha sido por isto
que, com todo o meu radicalismo juvenil, chegando mesmo a me acreditar um
“guevarista”, eu nunca suportei os hábitos de seita e as ações conspiratórias
dos maoístas alucinados.
Mais adiante, durante e
mesmo depois do completo fracasso da aventura guerrilheira de Ché Guevara na
Bolívia, os grupos que se preparavam, de modo algo canhestro – como depois vim
a reconhecer – para a luta armada no Brasil passaram à ação, com ataques a
quarteis, atentados a bomba, assaltos a bancos (chamados de “expropriações”) e
de municiamento em armas e munições, mas tudo isso de forma muito desorganizada
e improvisada, como também vim a saber bem depois. Nessa época, ou seja, antes
do AI-5, que representou um endurecimento do regime, ante o recrudescimento dos
ataques desses grupos armados, eu não tinha contato direto com o “pessoal da
pesada”, como chamávamos os guerrilheiros urbanos. Meu “trabalho”,
auto-atribuído, de militante contra a ditadura era apenas o de um manifestante
a mais, um participante de eventuais passeatas e um doutrinador voluntário de
colegas de escola, tentando converter à “boa causa” aqueles a quem designávamos
como “alienados”, segundo um termo marxo-marcusiano bastante usado nessa época.
Alienados eram todos aqueles que não compartilhavam da nossa crença no futuro
radioso da humanidade sob o socialismo, enfim liberta das taras do capitalismo
e da dominação burguesa. Em outros termos, minhas ocupações eram totalmente
marginais e acessórias ao verdadeiro trabalho de um revolucionário
profissional, o que eu também aspirava ser, assim que a ocasião se
apresentasse.
Na verdade, como eu vinha
de uma família muito modesta, e tive de acumular trabalho e estudo desde muito
cedo em minha vida, eu simplesmente não tinha tempo, como os “filhinhos de
papai” – como eram chamados os garotos de classe média alta, que não precisavam
trabalhar, e portanto podiam dedicar-se à “revolução” – de tornar-me um
revolucionário profissional: acordar às 6:00hs da manhã, seguir para a fábrica
às 7:00hs, retornar às 18:30 para casa, engolir uma comida rápida e correr para
o colégio (depois para a faculdade), estudar até às 11:00 da noite, e voltar
cansado para casa, não combina muito, convenhamos, com a dedicação integral que
um verdadeiro profissional precisa dar à causa revolucionária. De resto, todo
meu tempo livre era dedicado à leitura, seja dos textos necessários aos
estudos, seja da literatura marxista, com a qual eu já estava amplamente
familiarizado: uma leitura “de ônibus”, portanto, quando dava.
(...)
(Continua...)
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