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segunda-feira, 16 de outubro de 2023

LIVRES: posicionamento sobre a guerra da Ucrânia; vale um novo posicionamento sobre a guerra Hamas-Israel?

A Invasão da Ucrânia

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“Ouçam-nos. O povo ucraniano quer a paz, assim como seu governo. Eles não apenas querem, mas demonstram esse desejo de paz. Eles fazem tudo o que podem. Não estamos sozinhos: é verdade que a Ucrânia é apoiada por muitas nações. Por que? Não se trata de paz a qualquer custo. Trata-se de paz e princípios, de justiça, de direito internacional. Trata-se do direito à autodeterminação, para que cada pessoa possa determinar seu próprio futuro. É direito de toda sociedade e de toda pessoa à segurança, a uma vida sem ameaças. Tenho certeza de que esses direitos também são importantes para você.

A verdade é que isso precisa acabar antes que seja tarde demais. Se a liderança da Rússia não quiser nos encontrar do outro lado da mesa pelo bem da paz, talvez ela se sente à mesa com você. Vocês russos querem uma guerra? Eu gostaria muito de saber a resposta, mas essa resposta depende apenas de você, dos cidadãos da Federação Russa. Obrigado pela sua atenção.”

No dia 23 de fevereiro de 2022, às vésperas da invasão do seu país, o presidente Volodymyr Zelensky transmitiu um pronunciamento dramático na televisão, direcionado não para o seu povo, mas para o povo russo. Ele o fez no idioma russo, por coincidência seu idioma nativo, e com o propósito de sensibilizar os cidadãos do país vizinho sobre os perigos de uma guerra, que poderia ter consequências imprevisíveis. Desde então, o que vemos é uma tragédia humanitária de proporções globais, na qual a Ucrânia tenta defender sua própria existência como país soberano e independente, enquanto a Rússia empreende uma guerra de agressão, confrontando a letra e o espírito da Carta das Nações Unidas, assim como as normas mais elementares do Direito Internacional e de todos os protocolos humanitários multilaterais.

O fato é que, desde que os primeiros soldados russos cruzaram as fronteiras da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, o mundo tornou-se um lugar muito mais inseguro. O temor de um confronto nuclear entre as grandes potências nos traz à lembrança os piores momentos da Guerra Fria; e hoje, a possibilidade de uma catástrofe na qual uma boa parte da humanidade pereceria não está mais fora de questão.

Os antecedentes desse conflito, que já pode ser considerado como um dos mais mortíferos das últimas décadas, são produto de um complicado contexto de relações bilaterais e regionais. Rússia e Ucrânia possuem, como seu ancestral comum, a “Rússia de Kiev”, uma confederação de tribos eslavas do Leste Europeu que existiu entre os séculos IX ao XIII. Durante o terrível século XX, a incorporação violenta da chamada “pequena Rússia” à recém criada União Soviética, quando da consolidação do poder bolchevique, assistiu à redução da Ucrânia à condição de estado-vassalo do novo império, sucessor da Rússia czarista. O povo ucraniano não só foi abusado e vilipendiado, como também dizimado pela fome, nos anos 1930, num evento histórico conhecido como Holodomor, “morte pela fome”, no qual a administração central soviética confiscava a produção de alimentos por parte dos camponeses ucranianos, causando a morte de mais de 4 milhões de pessoas. O ocorrido na década de trinta foi, de certa forma, uma terrível vingança de Stalin contra o povo ucraniano, que tinha tentando manter sua independência, durante dois anos, quando da criação do novo Estado soviético em 1918, e deixou cicatrizes profundas na sociedade ucraniana.

A União Soviética teve seu fim em 1991, mas as fronteiras da Ucrânia só foram formalmente asseguradas em 1994, através do Memorando de Budapeste, documento no qual a Rússia se comprometeu a respeitar as fronteiras da Ucrânia, em troca do seu armamento nuclear. Contudo, a fronteira geográfica ali delimitada não foi suficiente para romper laços culturais de parte da população ucraniana no leste do país, o Donbas, habitado em grande medida por russos étnicos, que continuou mais próximo de Moscou, o que abriria margem para a interferência russa e sua manipulação por Putin nos anos seguintes.

Mais recentemente, em 2012, o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych,  mesmo tendo posições pró-Rússia, foi pressionado por setores da sociedade ucraniana (sobretudo na parte ocidental do país) a iniciar negociações com a União Europeia (UE) para um Acordo de Associação abrangente nas disciplinas de comércio exterior e de cooperação, o que aproximaria a Ucrânia do bloco europeu, de modo análogo ao que já havia acontecido nas duas décadas antesriores com os países bálticos, e outros da Europa central e oriental. O acordo com a UE tinha a simpatia de grande parte da população, que o via como um primeiro passo da integração do país ao sistema ocidental, e pelos bons prospectos de investimentos e de facilidade no trânsito de pessoas, em prol do desenvolvimento econômico e político ao país. 

Entretanto, em meados de agosto de 2013, a Rússia – tradicionalmente o principal parceiro comercial da Ucrânia – sinalizou que mudaria seus regulamentos alfandegários de importações vindas Ucrânia, de modo a pressionar o governo ucraniano a desistir desse acordo com a UE. Em 14 de agosto de 2013, o Serviço de Alfândega da Rússia passou a bloquear todos os produtos vindos da Ucrânia, o que causou grande prejuízo econômico e comoção política. O acordo tinha assinatura prevista para 28 de novembro de 2013, em Vilna (Lituânia), mas em 21 de novembro de 2013, o governo de Yanukovych suspendeu a conclusão do acordo com a UE. Em vez disso, Yanukovych reuniu-se em 17 de dezembro com o presidente Putin em Moscou para anunciar a emissão de 15 bilhões de dólares em títulos de empréstimos para o país, bem como um desconto para a aquisição de gás. Entendia-se ali que a iniciativa de aproximação com o bloco europeu estava sepultada.

No entanto, a população ucraniana não entendeu dessa forma. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2014, protestos começaram a ganhar corpo, e as violentas tentativas de supressão por parte do governo apenas alimentaram o fervor dos manifestantes, que se reuniram na Praça (‘maidan’, em ucraniano) da Independência, no que ficou conhecido como “Euromaidan”. O episódio culminou na “Revolução da Dignidade” que resultou no afastamento de Yanukovych, que se refugiou em Moscou. A Rússia, por sua parte, aproveita-se da situação para anexar a Crimeia, região da Ucrânia cuja população é composta majoritariamente de falantes do idioma russo, e na qual o país tem importantes bases navais, como a de Sebastopol. 

A anexação ilegal da península da Crimeia foi legitimada por um referendo imediatamente contestado na esfera diplomática internacional, no qual 95,5% dos residentes supostamente manifestaram-se a favor de integrar a Federação Russa. A Ucrânia, fragilizada, não teve condições de reagir, e acabou violentada em sua soberania por essa primeira agressão russa. Ainda que um conflito entre os dois países não tenha se desencadeado ali – e sim na parte oriental da Ucrânia – o recado de Vladimir Putin havia sido dado para todos os países da região: o expansionismo da Rússia estava definitivamente de volta, e não tardaria muito para que uma nova crise fosse instaurada.

Da mesma forma, militantes separatistas, com claro apoio do governo russo, depuseram os governos de duas províncias, Donetsk e Luhansk, o que deu início à “Guerra do Donbas”, conflito que vitimou mais de 15 mil pessoas de 2014 a 2022, e que esteve na origem da derrubada, por um foguete russo, de um avião civil da Malásia sobre aquele território, com a perda de 289 vidas. A narrativa desses separatistas, e do governo de Putin, era de que a Ucrânia estaria cometendo constantes violações aos direitos dos russos étnicos. Durante todo esse período, no entanto, o governo ucraniano reiterou o caráter territorialista do conflito, e que o verdadeiro responsável por ele era o insaciável assédio imperialista da Rússia. Já em 2022, a justificativa foi a eventualidade do ingresso da Ucrânia na aliança militar ocidental, a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN. 

Mais do que meramente um conflito entre nações, a invasão e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia traz consequências globais, nos campos humanitário, político, econômico e geopolítico. Até o momento (meados de 2023), estima-se que cerca de 150 mil pessoas perderam suas vidas em ambos os lados, número que supera os 20 anos de guerra no Afeganistão, e se compara aos 10 anos da guerra civil na Síria. A guerra de agressão criou uma crise sem precedentes na diplomacia internacional, uma vez que um país dotado de armas nucleares, membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, está atuando em flagrante e frontal violação a vários de seus princípios basilares – notadamente, a soberania territorial e a não-intervenção nos assuntos internos dos Estados.

A Carta da ONU (1945) traz em seu artigo 2(4) que “todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas“. O artigo seguinte, 2(5), chega a estabelecer uma espécie de dever moral a todos eles: “Todos os Membros darão às Nações toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qual Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo”. A memória da Segunda Guerra Mundial forçou uma mudança de postura dos países: manter a paz tornou-se um compromisso geral. No entanto, nos dias atuais, o ato russo de agressão não provocada – insuscetível, portanto, de ser justificado como sendo uma “defesa preventiva”, como previsto em outro artigo da Carta – alterou toda a dinâmica moderna de manutenção da paz, e fugiu dos argumentos considerados plausíveis para uma guerra justa, o chamado jus ad bellum.

A Rússia é o maior país em extensão territorial do planeta, possui um sistema de espionagem avançado, tecnologia, armamento e um regime político autoritário, que ampara constantes violações de direitos humanos. A desproporção de forças para com a Ucrânia, o total descaso com as consequências da guerra de agressão e o aberto desprezo em relação às retaliações internacionais tornam ainda mais dramático o cenário corrente.

Desde fevereiro de 2022, cerca de um terço da população ucraniana buscou refúgio em outros países, notadamente na Europa Ocidental, na tentativa de proteger suas vidas. Segundo a ONU, o êxodo ucraniano compreende mais de 18 milhões de pessoas, entre os 44 milhões da população pré-guerra. Mas, a maior catástrofe humanitária desta guerra de agressão é, sem dúvida, a não-distinção entre alvos civis e militares pelas forças russas, que deliberadamente atingem áreas povoadas e suas estruturas de sobrevivência, como energia e alimentação, em total desrespeito aos protocolos existentes nessa esfera. De forma geral, todas as convenções atinentes às situações de guerra foram completamente ignoradas pela invasão de Putin, assim como foi destruído todo o arcabouço internacional para a promoção da paz e da segurança, advindo das duas guerras mundiais do século XX.

Por tais motivos, defender a neutralidade, no contexto desta guerra, é ignorar o Direito Internacional, especialmente o humanitário, e escolher apoiar o lado agressor. Para além de objetivos econômicos, é dever comum dos estados nacionais zelar pela vida de seus habitantes, lutar para a manutenção da dignidade humana. O valor da vida humana como superior aos conflitos vem sendo debatido por filósofos há séculos, como na obra clássica do jurista Hugo Grócio, “De Jure Belli ac Pacis”, na qual o autor defende um direito das gentes que serviria em períodos de paz e de guerra. Esse direito das gentes foi sedimentado com diversos instrumentos internacionais, para além da Carta das Nações Unidas, a exemplo das duas conferências da Paz da Haia (1899 e 1907), no tratado da Liga das Nações de 1919, no Pacto Kellogg-Briand (1928) e nas diversas convenções e protocolos de Genebra. Indiretamente, a cada vez que são ignoradas zonas de conflito, que civis são propositalmente atingidos e que direitos básicos são negados à população ucraniana, todos os países que se comprometeram com a paz são atingidos. Se a Rússia de Putin não pode ser contida, e corretamente sancionada, qual a esperança para seus vizinhos?

Diferentemente da Rússia, o direito de defesa da Ucrânia é inquestionável. Ao defender suas fronteiras e soberania, os ucranianos entram nos limites admitidos para a guerra, e utilizam a ação defensiva como condição para a defesa da sua integridade nacional e a dignidade do seu povo. Pela enorme diferença entre os países, e por todas as demais características dessa guerra de agressão não provocada, sugerir a neutralidade para terceiros países significa, na prática, deliberadamente ou não, apoiar o lado agressor, desrespeitar a dor de milhões de inocentes, uma postura covarde e contrária aos princípios básicos da liberdade.

A lógica do rationae personae demonstra que os não-combatentes devem ser salvaguardados das ações militares, mas o número crescente de crimes de guerra (estupros e assassinatos a frio), praticados por soldados e mercenários russos, os sequestros de pessoas e a retirada de crianças de seus pais, assim como ataques em zonas urbanas contra alvos civis provam o descontrole geral da guerra. A implosão deliberada da barragem de Kakhovka acrescentou um peso ainda mais dramático no contexto da guerra, pela extensão da tragédia humanitária e pela catástrofe ecológica que ela provocou, com efeitos econômicos e naturais de longa duração.

Para além da situação presente, os impactos futuros da guerra ainda estão longe de serem passíveis de estimativa. Só no tange aos dados sobre a infância, a UNICEF estima que mais de 7,8 milhões de crianças e adolescentes sofreram diretamente com a guerra de agressão, perdendo desde acesso à educação, saúde e alimentação, até suas famílias e vidas.

Mas, mais do que trazer números, falar sobre guerra é falar sobre pessoas e seu sofrimento diário. Não são Estados que passam noites em claro, não são governos que perdem entes queridos, não são presidentes que lotam as trincheiras de mortos. A postura adotada pelo Brasil, tanto pelo atual governo como pelo anterior, de apenas condenar a guerra de forma retórica e genérica, sem defender o Direito Internacional de forma enfática e inambígua, não pode ser entendida como democrática – ou sequer como postura política válida no contexto global, em face da clareza de princípios prescritos na Carta das Nações Unidas, ou nas próprias cláusulas de relações internacionais inscritas no artigo 4º da Constituição Federal de 1988.

Essa guerra de agressão não atinge diretamente o território brasileiro, mas a desestruturação econômica que a segue é partilhada por todos os países, sendo entre nós sentida principalmente no setor do agronegócio e no provimento energético. A relutância do governo brasileiro, pretensamente embasada em preocupações econômicas, nos traz à reflexão quanto aos limites da economia na equação da vida. Nem tudo no mundo é relativizável em prol de interesses materiais.

Já passou da hora de o governo brasileiro ter uma postura mais coerente com os valores e princípios históricos de sua diplomacia – sobretudo quanto aos compromissos assumidos no plano da defesa da paz e da segurança internacionais, como estabelecido na Carta da ONU. O atual “silêncio seletivo” do Brasil poderá se voltar contra o país no futuro; afinal de contas, quem se comprometeria a defender um país cujos únicos pronunciamentos recentes de seu governo foram em prol de ditaduras, como a Venezuela? Que confiabilidade tem um país que põe interesses pequenos à frente de seus princípios?


A banalização de tragédias sem fim - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

A banalização de tragédias sem fim

Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

Jornal da USP,  16/10/2023: https://jornal.usp.br/?p=693695

Um famoso adágio latino informa que não se deve jogar nem brincar com o sofrimento dos outros. A face inquestionavelmente macabra na natureza humana que reemergiu com a agressão de altíssima intensidade perpetrada pelo Movimento de Resistência Islâmica, Hamas, ante a população do Estado hebreu de Israel assim como com a coalizão do Ocidente em apoio à investida de Israel na faixa de Gaza afirma que o conteúdo desse adágio foi simplesmente desprezado ao longo do tempo.

A tensão multimilenar desses povos judeus e ismaelitas remonta à legenda de Abraão, do Gênesis, nos mistérios da Bíblia. A materialização do ódio de parte a parte foi reforçada nas desventuras do imperador Nero nos anos de 60 da era cristã e, por mais de mil anos, em seguida, ambientou cruzadas intermináveis pelo domínio de lugares sagrados. O que acabou por enebriar os imaginários de todos os envolvidos.

Os descaminhos da reforma e da contrarreforma entre katholikós nos séculos XV e XVI provocaram uma carnificina tão letal quanto a peste dos tempos anteriores. O absolutismo europeu como instrumento de mediação para encerrar essas guerras civis religiosas implacáveis desembocou na famosa raison d’Était que forjou, inicialmente, a obliteração da presença de Deus no cotidiano corrente para depois retirar, integralmente, a convicção da fé cristã como princípio constitutivo da Europa e do Ocidente.

Os iluminismos ambientes nos séculos XVII e XVIII fizeram de tudo para acelerar essa degradação dos valores do cristianismo primitivo. Fomentaram numa crítica obstinada que produziu uma crise sem precedentes na natureza da própria realidade moderna dois para três séculos após ser iniciada. A decapitação do rei concretizou todo esse propósito de banalização da transcendência com a promoção de um desconjuntamento moral da vinculação entre sociedades, Estado e o divino. Os mandatários passaram a ter apenas um corpo em lugar de dois. Consequentemente, de súbito, como desejaram Voltaire, Kant e Hegel, “les enfants de la patrie” [crianças da pátria], também conhecidos por cidadãos – como, desde 1792, aduz La Marseillaise francesa – foram investidos das responsabilidades totais sobre a sua própria sorte terrena. A busca da felicidade, assim, virou um experimento da razão sendo a deferência ao divino relegada aos impérios de uma intermitente ilusão.

A Modernidade, planejada para rivalizar com o Deus presente, desse modo, parecia se confirmando de cabo a rabo. Com os dividendos da recente revolução industrial, demonstração mais eloquente da pujança dessa Modernidade, franceses, ingleses e afins, principais representantes desse novo paradigma, conquistaram um poder de gestão e arbitragem do mundo inteiro jamais vislumbrado desde os tempos do imperador Rômulo de Roma. Por consequência, após a Revolução Francesa, desde Paris, Londres e afins, trabalhou-se diuturnamente para esse mundo inteiro virar uma réplica ou duplicação em miniatura da Europa e do Ocidente. A europeização, ocidentalização, dessacralização e desencantamento do mundo estavam em curso. Tudo em nome da razão.

O primeiro grande choque dessa tentação da razão dos modernos veio do Caribe, de Saint Domingue, em 1804, das tropas de Toussaint L’Ouverture. Nesse momento, ficou evidente que na consciência de colonialidade – espelho de Próspero da Modernidade nos espaços coloniais – residia o antídoto para toda a prepotência da razão dos modernos. Começava-se, assim, a fase de afirmação da razão divergente, do reconhecimento dos outros e da emergência do resto.

Mesmo ignorando toda essa verdade paralela, Hegel viu na famosa batalha napoleônica d’Iena, em 1806, o início de uma viragem mental geral sem volta que parecia levar a história ao seu novo fim. Como no canto de Camões. Um fim da história que indicava novos começos. Onde “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Agora sem Deus, sem fé e com muita imanência.

Precisou Napoleão chegar à Campanha da Rússia, em 1812, para os hegelianos perceberem que, mesmo com a mudança de tempos e vontades, a razão dos modernos era impotente diante dos mistérios do divino. Os russos mobilizaram coragem onde eles próprios não a viam e resistências onde eles mesmos nunca foram capazes de perceber.

Basta se reler Tolstói para tudo isso se pressentir.

A força daqueles mujiques que enfrentaram – e venceram – a maior armada do planeta vinha do fundo dos anos, dos confins do tempo, de uma devoção sem fim. Não era algo terreno nem racional, tampouco moderno. Era a convicção atemporal de serem eleitos de Deus. Um Deus que lhes impingia a vontade para lutar até o seu último homem para defender o essencial da natureza de seu mundo eslavo.

Esse segundo choque de realidades, como o primeiro no Caribe, foi minimizado e rapidamente esquecido depois que o inglês William Pitty e o francês Talleyrand-Périgord tomaram as rédeas das tratativas de Viena de 1814-1815 e conduziram os europeus e os ocidentais às novas ilusões da razão moderna e iluminista que resistiram até o colapso geral de 1914.

Depois do que se viu e ainda se sente entre 1914 e 1918 – VerdunLa SommeLa MarneChemin des Dames e outras imitações de inferno terreno – virou natural também se minimizar o calvário da Guerra do Paraguai, as bestialidades da guerra civil norte-americana e os holocaustos coloniais pela África e pela Ásia entre Napoleão e o presidente Woodrow Wilson. Mas não teve jeito. A Grande Guerra de 1914-1918 desmascarou a Modernidade e pôs fim à ambição dos europeus de europeização, ocidentalização e miniaturização do mundo.

Quem duvidou de início, poucos anos depois, compreendeu tudo quando Paris, Londres, Washington e afins foram obrigadas a se aliançar com eslavos, africanos, médio-orientais e asiáticos para conter a sanha tétrica de Hitler e de suas inumeráveis reproduções em pequena escala em todas as partes do mundo. Mesmo assim, essa sanha sem graça nem Graça – desgraçada, portanto – acabou por ceifar a existência de mais de seis, sete ou oito milhões de judeus e conduzir à penúria, ao degredo e ao desespero mais de 50, 60 ou 80 milhões de seres humanos. Tudo simbolizado na Shoah, na raison d’Était e na razão iluminista tout court. Foi uma carnificina sem perdão. Que, por ser assim, justificou a criação de um Estado hebreu para os judeus e a privação dos muçulmanos aos seus espaços de reivindicação no Oriente Médio.

Esse terceiro choque de visões e razões do mundo dividiu ainda mais o mundo já dividido e reforçou a transcendência como fator de separação.

Ocidentais, europeus e norte-americanos, simularam não se tratar de nada disso. Seguiram minimizando o seu Deus em favor da sua democracia. Todo o mal-estar da civilização entre eles anunciava ruínas que ninguém queria ver. Sem Deus, mesmo que apenas um Dieu caché, a cultura do Ocidente ia se fragmentando. A fragmentação de culturas, em si, nunca representou um problema. A fragmentação de culturas pelo solapamento de seus fundamentos enseja um feito grave. Indica a aproximação de seu fim. Como notaram Nietzsche depois Auerbach. Com seu Deus ausente, o Ocidente não passava de um tipo de civilização que ia desaparecendo. Foi esse o recado dos 20 anos de crises, em longa noite escura, de 1914 a 1945. Um recado para o Ocidente. Não para os demais.

A gestão da dissuasão nuclear a seguir, ao longo da Guerra Fria, permitiu a minoração concreta dessa sensação de ruínas ocidentais e a contenção daquela percepção de separação entre os outros, notadamente os médio-orientais. Sempre que alguma pulsão se alterava por lá, a Otan, a URSS ou as Nações Unidas se mobilizavam para tudo arbitrar e estancar para nada se descarrilar. Foi assim em 1956 no Egito. Assim em 1967 na Guerra dos Seis Dias. Assim em 1973 no Yom Kippur, Grande Perdão, dos judeus.

Mas o fim da Guerra Fria alterou tudo. Um imenso vazio se instalou de fato entre os ocidentais, europeus e norte-americanos, especialmente em seu trato com os outros. Um novo fim da história foi propalado. Ares de triunfalismos rondaram, mais uma vez, os espíritos. A razão iluminista, anulada pelas guerras totais e pelo mal-estar da civilização, dava mostras de revivescência. Não surgia em chamas, mas suas brasas voltavam a crepitar. Só que agora transvestidas em conceitos mais novos. Globalização, democracia e consumo. Todos com pretensões universais.

Isso tudo levou ocidentais, europeus e norte-americanos, a voltar a querer europeizar e ocidentalizar o mundo. Como nos tempos de Hegel. Como nas tramas de Voltaire. Fizeram, assim, entender que o mundo, depois do ocaso da URSS, poderia, enfim, ser plano, unipolar e sem rugas. Uma verdadeira e integral miniatura do Ocidente. Um mundo condenado ao occidental way of life and meaning. Sem divergências mentais nem modificação de humores. Como num sonho comum, com amores, pudores e valores suspirando na mesma hora.

Mas nada durou sendo assim.

Os ataques do 11 de setembro de 2001, o 9/11, vieram anunciar as fraturas irreconciliáveis de um mundo inteiro com muita história e nenhuma salvação.

O notável historiador francês Robert Frank identificou nessas efemérides do 9/11 a revanche de quem foi historicamente retirado da história – a saber, a revanche dos fiéis e infiéis médio-orientais. Samuel P. Huntington, historiador e cientista político norte-americano, percebeu se tratar da revanche dos outros, novamente dos médio-orientais, impermeáveis às pretensões ocidentais. Já o búlgaro Tzevtan Todorov, de saudosa memória, permitiu-se anotar que tudo aquilo sinalizava o retorno dos bárbaros, o império das pulsões e os imponderáveis da desrazão.

O que se vê nessa recente afronta do Hamas aos hebreus de Israel demonstra a resultante de tudo isso. Fragmentação do Ocidente. Entropia da civilização. Mal-estar da Modernidade. Incontinências da Pós-Modernidade. Retorno dos bárbaros. Retorno da desrazão. Embate implacável entre civilizações. Revanche, sem perdão, de povos inteiros, historicamente, açoitados em sua cultura, fé e condição e obrigados a acreditar em globalização, democracia e consumo.

Não precisa muito se dizer que a reação norte-americana ao 9/11 foi a conhecida guerra terrorista ao terror que brutalizou todas as relações entre os eleitos de Deus médio-orientais. A pacificação entre judeus e ismaelitas ensejada desde Oslo desapareceu. A autoridade da Autoridade Palestina começou a esmaecer. A tentação do islamismo mundializado passou a tomar conta. Osama Bin Laden e o presidente George W. Bush ditaram a pauta de tudo. O nós e eles ficou instalado. Nunca mais se conseguiu entre todos algo acordar.

O presidente Barack H. Obama tentou minimizar as ilusões dos imperativos universais de globalização, democracia e consumo entre os médio-orientais. Foi, assim, ao Cairo em 2009. Ofertou uma reconciliação. Propôs um recomeço. Indicou empatia à alteridade. Mas tudo em vão. Não dava mais. O Cícero africano, que presidia a Costa do Marfim, decidiu, meses depois, desrespeitar o pleito eleitoral de seu país e, com isso, inaugurou a Primavera dos Árabes. Os marfinenses, de início, se rebelaram. Inundaram praças e ruas. Chamaram a atenção em protestos. Como resposta, o presidente Laurent Gbagbo, resistindo na função, decidiu reagir. Colocou tanques de verdade nas ruas. Autorizou o uso de munição de verdade nesses tanques. E permitiu que se alvejassem manifestantes de carne e osso – e, portanto, também de verdade – em protestos pelas ruas das cidades. Quanto horror! Ocidentais, europeus e norte-americanos, quiseram intervir. E intervieram. Mas a desgraceira já se anunciava sem fim. Mais uma distopia do 9/11. Mais um choque da desrazão. Agora infestando todo o Magreb e regiões médio-orientais.

A Primavera dos Árabes de braço com a guerra terrorista ao terror do presidente George W. Bush e à fúria islamista de Osama bin Laden promoveram, dessa maneira, a maior hecatombe humana desde as guerras totais de 1914-1945. Hecatombes essas que internacionalistas, de modo pomposo, denominam crises humanitárias. Cidades inteiras, neste início de século XXI, foram destruídas, pela África e pelo Oriente Médio, em nome dos barbarismos da desrazão. Países inteiros, africanos e médio-orientais, seguiram iludidos pelos mantras do consumo, da democracia e da globalização. Regiões inteiras foram conflagradas em nome do Deus Mercado que esses conceitos ensejam. Criou-se, assim e contudo, o maior contingente de miseráveis deste mundo, geralmente vagando por terras estranhas às suas e ansiando um singelo lugar ao sol.

Quem viu tudo isso desde as capitais do Ocidente – Paris, Londres, Nova York, Washington, Berlim – ficou perplexo e quis desconversar sobre uma responsabilidade que também era sua. O seu autoconsolo vinha já de tempo de todo o seu esforço silencioso em acolher partes de toda essa nova miséria do mundo desde o colapso das descolonizações. Mas esse seu tudo, neste conflagrado século XXI, virou pouco. Mas esse pouco mostrou a sua face adstringente nas capitais ocidentais depois que o Hamas voltou a brutalizar as interações médio-orientais nas semanas recentes.

Desde o 7 de outubro de 2023 que as grandes cidades europeias e norte-americanas vivenciam as tentações médio-orientais. Subitamente, as suas populações se descobriram majoritariamente não ocidentais e não sabem o que fazer. Eternos fiadores do Estado hebreu israelense, a Europa e os Estados Unidos foram surpreendidos por um apoio interno sem precedentes de seus concidadãos à causa dos palestinos e aos desvarios do Hamas. O presidente Emmanuel Macron se obrigou a baixar decretos censurando manifestações pró-islamistas na França. Os mandatários de Bruxelas, Berlim, Londres e Washington fizeram o mesmo. Ninguém no que restou do Ocidente presumia algo similar. Uma traição dentro de casa. Ninguém sabe se por Emma ou Capitu. Mas, simplesmente, um novo choque de desrazão sem precedentes simbólicos no coração desses ainda ocidentais, europeus e norte-americanos, e, portanto, bem ao fundo, cristãos.

Adicione-se aos fatos o reconhecimento de que esses desavergonhados apoiadores dos barbarismos islamistas do Hamas não são leninistas nem trotskistas, tampouco stalinistas ou afins. São os próprios islâmicos que passaram a povoar demograficamente a Europa e os Estados Unidos e conseguiram desmoralizar todos os apelos de laicidade e assimilação. O que um dia foi o debate sobre portar ou não um véu, agora virou a deliberação sobre permitir ou não o apoio a ações terroristas de macabra ventura em terras médio-orientais.

Voltaire nem Kant tampouco Hegel imaginaram uma tamanha transgressão de valores ocidentais pretendidos universais.

Se isso não bastasse, após a selvageria do Hamas, o reflexo legítimo do Estado hebreu seria, em nome de sua honra, contra-atacar. E o contra-ataque começou. Fechou-se um cerco à Faixa de Gaza. Privou-se a todos de água, gás e eletricidade. Bombardeou-se edifícios, praças e ruas. Tudo isso antecipando um confronto anunciado terrestre para caçar até o último homem dos radicais do Hamas.

Nessa incursão terrestre – se acontecer – as forças israelenses vão experimentar o que os oficiais brasileiros do Bope experienciam na Rocinha, no Jacarezinho, na Nova Brasília, na Vila do Vintém no Rio de Janeiro: uma guerrilha urbana sem regras nem solução onde as maiores baixas são colaterais e de inocentes. O problema é que esse tipo de investida foi – e continua sendo – imensamente condenado por ocidentais, europeus e norte-americanos, quando utilizado pelas tropas russas na Ucrânia. Será que no caso israelense se vai aprovar?

Muitos pesos e muitas medidas. Não tem como suportar.

E, justamente, por não se suportar que os africanos se rebelaram em cascata nos últimos meses e anos no Sahel e em seus arredores quando notaram que europeus e norte-americanos esboçaram um zelo pela democracia, pelo consumo e pelos direitos humanos dos ucranianos que nunca sinalizaram engendrar ao encontro dos africanos no Sudão, na Nigéria, no Mali, no Congo, no Burundi, no Burkina Faso nem no Gabão. Mesmo o cinismo, a mentira e a complacência, já forjava Shakespeare, um dia encontram o seu fim.

Muitos ainda se perguntam, nesse sentido e não em qualquer outro, a razão pela qual uma vastíssima quantidade de países, notadamente africanos, outrora subservientes aos ditames do Ocidente, dos europeus e dos norte-americanos, preferiu simplesmente ignorar os reclamos de Paris, Berlim, Londres e Washington para o fazimento de uma condenação internacional implacável de embargos e sanções contra o povo russo. A resposta desde muito vem evidente: os sonhos de diferentes são divergentes. Os ponteiros dos relógios do Ocidente e do resto não batem a mesma hora. Assim, quase ninguém dos divergentes apoiou a ofensiva europeia e norte-americana contra o presidente Vladmir Putin. E quem, desavisadamente, hesitou e apoiou, logo em seguida recuou e declarou neutralidade.

Nada disso quer dizer que o famigerado “Sul Global” seja uma realidade. Qualquer observador honesto e minimamente informado compreende que essa imagem meridionalista sugere uma simplificação extremamente perigosa das fraturas expostas de um mundo contemporâneo em dissolução. A China e a Rússia, por exemplo, vedetes de primeiro plano desse arranjo meridional, estão no hemisfério norte. A Austrália e a Nova Zelândia, inquestionáveis entrepostos extremo-ocidentais na Oceania, estão ao Sul. A Síria, o Irã e o Catar sonham sonhos eslavos, asiáticos, médio-orientais, mas jamais ocidentais. A Arábia Saudita ainda espera, um dia, se norte-americanizar. A Malásia se imagina virar uma Arábia Saudita. A Zâmbia namora vez a China vez a Rússia, desejando ser um grande da Eurásia. O Uruguai daria tudo para não pertencer ao Sul nem ao Mercosul. O Chile, nem se fale. O Sudão do Sul gostaria muito de estar no hemisfério norte. E o Brasil e a Argentina, que, por evidência, possuem bons corações, nunca conseguiram sincronizá-los para pulsar no mesmo tom.

Esse mosaico de uma realidade em decomposição pode ser ainda evidenciado pela dificuldade que todos esses países têm tido em se posicionar diante da inquestionável carnificina impetrada pelo Hamas. Ninguém dos isolados meridionais deu um apoio cerrado à Israel como a Argélia, a Síria, o Líbano, o Catar e o Irã deram à Palestina e ao Hamas. A Rússia nem a China, membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, preferiram se manifestar. Aprovaram em silêncio o regozijo de ver mais uma arquitetura ocidental – no caso, Israel – desmoronar. O presidente brasileiro, inquestionavelmente o chefe de Estado mais experiente, mais importante e mais expressivo entre os mandatários do Brics e do mundo de tinos meridionais, não soube o que dizer e ainda não se decidiu sobre como fazer para redizer o que não disse imaginando dizer.

Note-se a magnitude do problema.

E que ainda seja anotado que tudo fica mais grave quando se reconhece que o Egito alertou repedidas vezes aos israelenses – como de resto o fizera em 1973, nos ataques sobre o Yom Kippur – da iminência de um ataque islamista de gigantescas proporções. Por que se ignorou?

Uma primeira explicação poderia se aninhar no complexo de superioridade de um povo judeu que suportou as maiores perseguições registradas pela história da humanidade. Esse sentimento de superioridade confere aos mandatários israelenses níveis extremos de orgulho e desprezo frente aos demais. Especialmente ante aos seus vizinhos magrebinos. O orgulho precede a queda, já diziam os Provérbios de Salomão. As gentes de Telavive e Jerusalém sabem bem disso. Portanto, olhando mais de perto, existem outras razões mais tangíveis para essa sua indiferença e não ação. No recente alargamento dos Brics, o Cairo foi indicado com mais uma capital desse aglomerado de antagonistas meridionais. Virou, desse modo, razoável aos israelenses suspeitar das tramas dos mandatários do Egito.

Enfim, não se deve, de fato, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros. Quem ainda não reconheceu a pugnacidade desse ensinamento, que volte a meditar sobre todas essas indeterminações destes tempos interessantes, desencantados e sem perdão que a Modernidade, a Pós-Modernidade e o século XXI apresentam.

O formidável diplomata francês Maurice Gourdant-Montagne, antigo secretário-geral do Quai d’Orsay [Itamaraty francês] e conselheiro especial do presidente Jacques Chirac, nesse sentido, vem de publicar um livro simplesmente extraordinário sob o título Les autres ne pensent pas comme nous [em tradução livre, Os outros não pensam como nós pensamos]. Desde o enunciado do título já vai evidente uma mudança de mentalidade sem precedentes no ideário franco-europeu-ocidental.

Desde os tempos de André Gide que os franceses, europeus e ocidentais acreditavam verdadeiramente que os médio-orientais, latino-americanos, asiáticos e afins eram europeus e ocidentais alfabetizados em outro idioma. Esse seu reflexo foi assim por praticamente todos os séculos do XVIII ao XX. Talvez uns e outros ainda o mantenham assim. Mas a ascensão da China, da Ásia e da Eurásia e a projeção de imensos oásis de prosperidade pela África, América Latina e América do Sul informam que o parêntese de cinco séculos de europeização e ocidentalização dos negócios do mundo está terminando. Tudo que se vivenciou depois de 1492 chegou ao século XXI integralmente estraçalhado. Nada disso consegue mais se sustentar. E isso tem implicações gravíssimas para o ordenamento internacional. Ou, como anunciava o presidente Ronald Reagan, para a new world order. Perceba-se que a mesma Organização das Nações Unidas que não consegue selar o destino da intempérie da Rússia versus a Ucrânia, desde 1948 também não consegue impor uma paz sustentável aos fiéis e infiéis médio-orientais. Do contrário, só pioram a situação. E, aqui, o caso do Irã, nesse intercurso, parece o mais ilustrativo.

Com o escalpelamento da Al Qaeda e, em seguida, do Estado Islâmico, a responsabilidade pela afirmação do islamismo mundial ficou a cargo de Teerã. Os promotores da revolução iraniana empunharam essa responsabilidade como a missão final de suas vidas. O aglomerado denominado irmandade muçulmana virou o seu principal aliado nessa mundialização. E tem muito que já deixou de ser enigma que essa irmandade encarna o Hamas na Palestina.

A Palestina continua um ambiente pobre, limitado e desprovido de recursos. Quem rever com vagar o que os integrantes do Hamas fizeram no dia 7 de outubro de 2023 poderá notar que seria impossível a um grupo local empobrecido pelas circunstâncias e amputado em sua razão possuir tamanha proeminência de materiais, inteligência e logística assim como tantos aparatos táticos e estratégicos para tamanha operação. Parece evidente que tudo veio do Irã e de suas coalizões africanas e médio-orientais pela causa islâmica. Isso quer dizer que um cessar-fogo entre os israelenses e o Hamas na Faixa de Gaza vai depender da arbitragem dos iranianos. Sim: vai ser necessária uma conversação com o diabo. Ou, melhor, com os outros.

Os ocidentais, europeus e norte-americanos, identitários, pós-modernos e de disposição woke, desde que começaram a matar o seu Deus no século XVII iniciaram a desprezar o diabo. Muitos nem sabem que ele existe. O diabo são, literalmente, os outros. Tal e qual o inferno que dizia Sartre. A prepotência moderna da razão iluminista retirou da consciência do Ocidente, dos europeus e norte-americanos, o compromisso de reconhecimento dos outrosOutros que, definitivamente, ne pensent pas comme nous.

Todos esses feitos e fatos recentes ao longo do século XXI indicam que os ocidentais começaram a, sem perceber, virar esses outros. O ocaso do Ocidente ainda figura num futuro incerto. Mas a sua perda de relevância vai se fazendo inquestionável e conduzindo os seus praticantes a uma considerável irrelevância. Irrelevantes viram os outros.

O 11 de setembro de 2008, a crise financeira mundial de 2008, a pandemia de covid-19, a nova fase da tensão russo-ucraniana e agora as escaramuças entre fiéis e infiéis médio-orientais evidenciam que um novo mundo já nasceu. Sem os controles antigos, sem os seus autoritarismos nem os seus constrangimentos. Ninguém consegue presumir o devir de tudo isso. Mas uma coisa é certa: se a superação das ilusões das certezas ocidentais não for, logo, realizada, seguir-se-á nessa onda de tragédias e estupefação sem fim. Como que se brincando com fogo, banalizando-se o mal. Sem um reposicionamento do Ocidente, dos ocidentais, europeus e norte-americanos, no cenário mundial, uma nova história vai ter fim. Mas, dessa vez, talvez, o seu último.