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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 12 de novembro de 2023

Tempos estranhos construídos entre nós - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Tempos estranhos construídos entre nós

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

  Jornal da USP: 10/11/2023 

https://jornal.usp.br/artigos/tempos-estranhos-construidos-entre-nos/


Virou criminoso ter ideias, tomar partidos, expressá-los. Ficou démodé tratar assuntos sérios, complexos e dinâmicos com a gravidade e o zelo que merecem. Está, como nunca, perigoso afirmar ponderações, convicções, avaliações. A sociedade brasileira – como todas as demais ocidentais e extremo-ocidentais – passou de sólida a líquida; e de líquida a mole. Sendo mole, perdeu a fluidez. Sem fluir, entrou em transe. Nesse transe, estancou a transição de melhoramentos. Sem melhorar, regrediu. Ao regredir, desesperou-se. Acelerou na curva e avançou em marcha à ré. Iniciou namoro desavergonhado com a obscuridade e com a desrazão. Questionando a civilização, reprimindo a civilidade, naturalizando o descontrole de pulsões. Quanta desonra. Sim: descivilização.

O incidente do 7 de outubro de 2023 no Oriente Médio mobilizou a atenção do mundo inteiro – o Brasil incluso. A brutalização das relações entre judeus e islamitas ganhou intensidade poucas vezes anotada. Centenas de pessoas foram assassinadas em instantes e outras tantas foram sequestradas a cativeiros sabe-se lá de qual salubridade. Como tudo hoje contém imediatidade, as imagens, os sons e os clamores médio-orientais inundaram rápido retinas e sentidos em todo o planeta. A indiferença virou instantaneamente impossível. Sucumbir a ela se firmou como sinônimo de covardia, desumanidade, indecência.

Autoridades israelitas se apressaram em classificar as atrocidades como o seu 11 de setembro em menção aos incidentes terroristas que abriram o novo século revelando a impotência da potência norte-americana em seu próprio território. A gravidade do simbolismo dessa comparação dispensa observações. Entusiastas da causa dos palestinos não titubearam em aplaudir a audácia dos ismaelitas radicais que na senda de Osama bin Laden continuam querendo islamizar o mundo inteiro. O impacto moral dessa louvação também dispensa análise demorada. Ausência de meio-termo. Pura e simplesmente isso. Uma ausência de meio-termo que inebriou qualquer ponderação. Avec Dieu, on ne discute pas! [Com Deus, não se discute], lembrou um politólogo argelino.

O extremismo da situação ostracizou as penúrias eslavas e as misérias africanas. O presidente ucraniano segue desesperado sem saber o que fazer. O clamor de Kiev, Kinshasa, Abuja, Bamako, Bangui foi retirado inteiramente dos focos de atenção. A guerra dos mundos saiu do itinerário de Washington, Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Moscou e Pequim para se imiscuir nas batalhas milenares intermináveis dos herdeiros abraâmicos em seus destinos médio-orientais.

Com Deus, por certo, não se discute. Mas as pessoas, de lado a lado, estão morrendo. E não somente islamitas e judeus. Mas também católicos, protestantes, agnósticos, hinduístas, animistas e toda a infinita variedade de abstêmios de fé. Que fazer?

Um alto funcionário do Estado de Israel classificou os palestinos – e não simplesmente os elementos do Hamas que tocaram o terror em Israel – de “animais” antes de endossar a supressão do fornecimento de gás, alimentos e medicamentos aos moradores de Gaza. Lideranças do Hamas em Doha, Teerã e Beirute prometeram reunir forças para, desta vez, eliminar até o último de seus oponentes infiéis.

Quanto ressentimento, quanto ódio, quanta dor.

Onde falta pão, vaticina o provérbio, todos brigam e ninguém tem razão. Todos ali, no Oriente Médio, islamitas, judeus ou não, desejam um simples seu lugar ao sol. Mas a Providência parece não cooperar. Tem mil e quinhentos anos que esse tormento dura. E vai seguir assim. E, por frigir assim, tudo exige imensa cautela, parcimônia, decência, honradez, civilidade e retidão. Não se deve, pois, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros como informa um outro adágio conhecido e de valor.

No entanto, a professora Francirosy Campos Barbosa, em seu artigo Cantando al sol como la cigarra: enquanto o terror, publicado neste espaço, no dia 23 de outubro de 2023, evidenciou que por aqui, pelo Brasil, brasileiros não se cansam de jogar e brincar com o sofrimento alheio. E, pior, parecem, inclusive, gostar.

Pelo que ela reportou no artigo, após colaborar com órgãos de imprensa para o esclarecimento de aspectos da tormenta no Oriente Médio, ela começou “a receber inúmeros ataques, por e-mail e pelo Instagram”. E, diante do temor, obrigou-se a revelar aqui, no Jornal da USP: “Temo pela minha segurança e integridade física”.

Três dias depois, no 26 de outubro de 2023, a Comissão Arns, presidida pelo eminente advogado José Carlos Dias e pela digníssima Professora Emérita da USP Maria Victoria Benevides, enviou um ofício ao magnífico reitor da Universidade de São Paulo solicitando a “Defesa e proteção de docentes ameaçados pela manifestação sobre o conflito Israel e Hamas”.

Dispensa-se o cotejamento pessoal para se ter a convicção de que a professora Francirosy – com quem tenho a honra e o privilégio de figurar côte à côte neste espaço – expressa as qualidades de uma pessoa simpática, sensível, correta, inteligente e intelectualmente honesta. Basta que se leia o que ela escreve por aqui e alhures.

Ninguém, como se sabe, toca fundo no imaginário nem na alma de outro alguém – mesmo em divergência – sem praticar a nobreza desses predicados supramencionados. Ninguém desprovido desses predicados consegue adentrar em assuntos tão moralmente complexos, como esses da nova fase das agonias médio-orientais, de modo parcimonioso e tranquilo como a professora Francirosy aqui, ali e em toda parte o faz.

Constrange, porquanto, simular J’accuse sem ser Zola nem ter a ilusão de querer sê-lo. A professora Francirosy possui gente mais consistente para protegê-la. Mas, de toda sorte, constrange muito mais lembrar que a liberdade de expressão segue em vigor como um valor no âmbito da legislação brasileira e no interior de todas as convenções sobre garantias civilizacionais em todo o planeta. Constrange, assim, rememorar que gente civilizada conversa, persuade-se, reconhece-se, harmoniza tensões e elimina aporias. Mesmo com o silêncio. Muita vez com a ausência. Outras tantas somente com a retidão.

Nada disso reside exclusivamente em Hegel nem simplesmente nos iluministas obcecados pelo imperativo da razão. Um apóstolo primitivo, que renasceu no caminho de Damasco para depois morrer decapitado em fúrias romanas, já dizia “sede meus imitadores”, “amai-vos uns aos outros”. O budismo, o hinduísmo, o judaísmo, o espiritismo, todos os animismos e o islamismo comungam nessa métrica e forjaram civilizações mundo afora assentadas nessa convicção. Mas a agonia permanece, o dissenso reina e uma renovada selva selvagem transvestida de descivilização parece em toda parte se avizinhar. Infelizmente, desta vez agora, ao que tudo indica, sem Dante nem Virgílio tampouco Beatriz para algo salvar.

A professora Francirosy não ficou isolada nesse torvelinho da desrazão brasileira dos últimos dias. O professor Salem Hikmat Nasser, da Faculdade de Direto da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, foi ainda mais hostilizado devido às suas sinceras e embasadas avaliações sobre as decorrências do 7 de outubro de 2023 em terras médio-orientais. Os seus contraditores, audazes e cruéis, permitiram-se formular uma petição pública solicitando o seu degredo. Inicialmente de seu espaço laboral, a FGV-SP. Em seguida de seu país, o Brasil. E, por fim, da face esférica deste firmamento; por assim dizer, desta vida.

Sim: em pleno século XXI, vivendo num país onde os seus paladinos se vangloriam do funcionamento das instituições, da qualidade de um regime político pretensamente democrático e da graciosidade de uma sociedade supostamente civilizada, professores são ameaçados de morte simplesmente por cumprir dimensões deontologicamente impostas pela sua função de elucidar.

Tem três anos que o professor Samuel Paty foi degolado à luz do dia na França pelo simples fato de lecionar uma das disciplinas alma mater das elucidações que segue sendo a história. Dominique Bernard, outro professor de História, foi assassinado, também sob a luz do sol, em seu ambiente de trabalho, semanas atrás, depois do 7 de outubro de 2023, pelas mesmas motivações radicais daqueles que acreditam e militam nas bases de absolutos étnico-religiosos impermeáveis à contradição, à divergência e à elucidação.

Pelo Brasil, ainda não se mata professor por isso. Ainda.

Excetuando-se matar, exemplos de agressão, hostilização, importunação, intimidação e humilhação de todo tipo viraram recorrentes no Brasil e em todas as partes do Ocidente e do extremo Ocidente. Cretinos, covardes e canalhas tornaram corriqueiro fustigar professor. E, por mais doentio que possa parecer, esses miseráveis parecem nisso orgasticamente se alegrar.

Instâncias públicas e privadas de monitoramento e controle seguem impotentes e sem nada efetivamente consistente aportar. O presidente Emmanuel Macron, na França, por Samuel Paty fez discursos, mobilizou recursos e pessoal, sinalizou campanhas e projetou ações. O assassinato de Dominique Bernard semanas atrás veio indicar, no entanto, que foi tudo – ou quase tudo – em vão.

Seguindo no velho mundo e retroagindo no tempo, vale sempre lembrar que Raymond Aron foi incontestavelmente um dos luminares do século XX. Seguramente um dos maiores intelectuais de sua época. Mas cometeu delitos gravíssimos aos olhos de seus coevos. Os seus principais desvios foram: 1) surfar a contravento; 2) recusar-se à hemiplegia de se enquadrar cega e ideologicamente à direita ou à esquerda; e 3) explicitar as suas posições, avaliações e elucidações a quem quiser e vier. Os seus contemporâneos não o perdoaram. Os seus detratores chegaram a afirmar ser melhor errar com Sartre (maoísta, esquerdista e confuso) que acertar com Aron. O ápice da contenda veio com os eventos de maio de 68. Diante daqueles espetáculos, Raymond Aron, que desceu às trincheiras da resistência ao nazismo com o general De Gaulle em 1940 para depois se afastar dele após a liberação de 1944, afirmou categoricamente ser “inadmissível e insuportável que um país sério como a França se permitisse retirar do poder o presidente-general Charles de Gaulle em favor do agitador-universitário Daniel Cohn-Bendit”. As suas razões e elucidações nesse expediente eram diversas. Mas a sua convicção profunda e inamovível remetia à memória dos ovos de serpentes que ele vira germinar na Alemanha dos anos de 1930. Ovos e serpentes que marinaram a ascensão de Hitler, do nazismo, do sem-nome, da Shoah. Em síntese, Aron acreditava no trágico. Sabia que por pouco, muito pouco, o nazismo e os demais totalitarismos deixaram de vencer. Antevia, assim, naqueles eventos de 1968, um perigo iminente. Um namoro incestuoso com o trágico. O trágico na vida e o trágico na história. Um namoro que poucos viam. E aqueles que viam fingiam não ver. Por tudo isso ver e dizer, esse gigante do século XX de nome Raymond Aron recebeu um lugar permanente no index da intelligentsia francesa até a sua morte no 17 de outubro de 1983.

Perguntar-se-ia, sutilmente, um desavisado onde estaria a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão e a liberdade tout court.

Melhor não perguntar nem imaginar tampouco procurar. Há index em toda parte, a todos os gostos, com variada motivação.

De toda sorte, o passar dos anos foi evidenciando que as preocupações de Raymond Aron estavam recheadas de sentido e de razão. A trama por detrás do mantra do é proibido proibir impulsionou uma horizontalização da sociedade que, com o tempo, começou a retirar a bússola de todas as relações humanas não somente na França, mas em todo o Ocidente e Ocidente extremo. Avant la lettre, portanto, o sociólogo francês avistou o que hoje nos carcome: um pós-modernismo desvairado de mistura identitária e fúria woke.

Focado no Brasil, Nelson Rodrigues, um dos maiores luminares brasileiros de todos os tempos, foi dos primeiros a sentir os sinais de perigo aludidos nas preocupações do sociólogo francês. Perdida em vários lugares de sua extensa obra existe o alerta insistente ao fato de os “idiotas estarem perdendo a modéstia. [Pois] outrora silenciosos e contidos, agora – nos tempos do mestre pernambucano – esses canalhas, cretinos e covardes já maiorais, cheios de si, seguem loucos para aparecer”.

Morto no 21 de dezembro de 1980, quase três anos antes de Raymond Aron, Nelson Rodrigues foi – como Aron – privado da contemplação dos infortúnios que ele próprio percebeu e anunciou para os brasileiros. A imbecilidade dos idiotas foi pouco a pouco tomando conta da pátria Brasilis que ele tanto amou – mesmo sendo ele, Nelson Rodrigues, um simpatizante da máxima de Samuel Johnson que informa: patriotism is the last refuge of a scoundrel [o patriotismo é o último refúgio de um canalha].

Três lustros antes, no dia 2 de abril de 1964, o mineiro Tancredo de Almeida Neves classificou de “canalhas, canalhas” aqueles senhores que surrupiavam o poder para apagar as luzes da Revolução de 1930. Vinte anos depois, o deputado Ulysses Guimarães considerava que os gestos autoritários, inconsequentes e descivilizados daqueles canalhas, canalhas, fardados e sem farda, com dinheiro e sem dinheiro, seguiam vivos, abundantes e contagiando e amealhando seguidores com roupagens libertárias. E não tido por contente na recepção de sua avaliação, o marido da dona Mora Guimarães ainda vaticinou aos céticos que aguardassem, “pois os próximos [canalhas] serão ainda piores”.

Quase trinta anos depois, a gravidade dessa profecia macabra do sábio da redemocratização somada à desesperação de Nelson Rodrigues subiu à superfície da compreensão todos com os protestos das noites de junho de 2013. A partir deles, os imbecis, os canalhas, os covardes, os cretinos e os idiotas, outrora soterrados no anonimato de sua irrelevância, começaram a dominar, barbarizar e terrorizar ineditamente o espaço público brasileiro com a fluidez da internet. Umberto Eco – mais que Olavo de Carvalho – tinha razão: as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.

Se esses imbecis devem ou não se manifestar, trata-se de uma outra discussão. Entretanto, segue fora de parlamentação se esses incontestáveis pulhas – imbecis ou não; fardados ou não; parlamentares ou não; políticos ou não; empresários ou gente do comum – devem ou não importunar, intimidar, fustigar, ameaçar, humilhar professor em geral, professor universitário em particular ou qualquer concidadão brasileiro de qualquer matiz. Não. Mil vezes não.

Quem se dedicar a meditar sobre as tensões civilizacionais por detrás de toda essa delicada discussão vai notar que instituições escolares, academias e universidades não representam que uma porção periférica, limitada e reduzida do imenso sistema universal de transmissão de conhecimentos, saberes e valores que é a educação. A educação formal – diga-se assim para se referir a instituições formais de ensino – vive sabidamente hodiernamente estágios de miséria, pilhéria e regressão no mundo inteiro. Especialmente nos espaços ocidentais e extremo-ocidentais. A razão essencial dessa queda aos infernos dessa dimensão da educação se deve ao fato de que, salvo exceções, a educação formal deixou de funcionar como elevador social. Os seus frequentadores descobriram que o seu futuro econômico, social, intelectual e cultural pode independer de um diploma de uma instituição de ensino. Como consequência, salvo melhor demonstração, os seus frequentadores que ainda não totalmente desertaram começaram a se autoimpor a incultura como missão. Ou seja, estão virando incultos obstinados. E, infelizmente, nada indica que disponham de motivação para voltar a desejar se cultivar.

O fim da história (que não aconteceu) trouxe paradoxalmente consigo o fim do gosto pelo saber como um valor em si. As consequências civilizacionais gerais disso estão aí para quem quiser ver, entender e sentir. Mas no cadinho limitado da educação formal esses efeitos parecem ser vistos sem ser notados. Desditos sem ser ditos. Sublimados sem ser contraditos. Dito de modo direto: com a desvalorização do gosto pelo saber, o professor, intermediador desse saber, virou objeto da desconstrução e do escárnio de uma civilização em acelerada putrefação.

Em contrário, perceba-se que no Brasil desde as noites brasileiras de junho de 2013 que uma verdadeira chusma de canalhas defende e difunde impune e inadvertidamente o imperativo da necessidade da desconstrução e da destruição das instituições formais de ensino no País. Especialmente daquelas públicas. Notadamente das universidades. Conseguintemente de seus profissionais. Singularmente de seus docentes.

Chegou-se ao cúmulo de se inocular no imaginário da população brasileira hors les murs que as universidades seriam simplesmente um antro de doutrinação marxista, iniciação a psicotrópicos, conivência com imoralidades, além de espaço de deformação de caráter e bons costumes.

Muitos, claro, acreditaram e acreditam.

Como consequência, a integralidade das categorias dos profissionais universitários – e muito especialmente os segmentos docentes – passou a amargar perseguições morais e funcionais, dentro e fora de seus locais de trabalho, como jamais se viu.

Sim. É isto mesmo. A descivilização na sociedade brasileira parece que chegou aonde ela deveria terminar. Foi, assim, portanto, ficando, por evidente, perigoso ser docente, ter ideias, tomar partidos, expressá-los.

Quando se lê na petição da Comissão Arns que: “Por fim, solicitamos que nos sejam informadas as medidas tomadas pela Universidade de São Paulo para a defesa do direito à livre expressão da professora Dra. Francirosy. E ficaremos agradecidos com as providências administrativas tomadas pela Reitoria para a defesa dos princípios citados e para a proteção dos docentes ameaçados”, a perplexidade generalizada fica tão imensa que chega a obliterar a dramaticidade da situação da Francirosy Campos Barbosa, do professor Salem Hikmat Nasser e de tantos outros anônimos interpelados diuturnamente pela desrazão. Inicia-se outra reflexão. Menos amena, muito profunda e sem respostas seguras. Começa-se a, singelamente, meditar sobre que sociedade é esta, que país é este, onde foi que nos permitimos tanto errar.

Tempos estranhos construídos entre nós.

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(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)

O custo do Estado brasileiro - Percival Puggina

 FACA SEM CABO E SEM LÂMINA 

Percival Puggina - 06/11/2023 

 

Conta-se que uma fábrica de facas reuniu seus executivos para estudar uma forma de se tornar mais competitiva. Era imperioso diminuir o custo de suas facas. No meio da reunião, um dos participantes, cogitando da hipótese de que o custo do cabo afetasse demasiadamente o custo da faca, perguntou: 

 

- Quanto custaria nossa faca, se fosse fabricada sem o cabo? 

 

Alguém da contabilidade fez as contas e concluiu que essa faca sem cabo custaria 80% da faca inteira. Um outro foi além: 

 

- E quanto custaria cada faca se a fizéssemos sem lâmina? 

 

Por curiosa que fosse a ideia de uma faca sem lâmina, a contabilidade fez os custos e informou que ela sairia por 60% de uma faca completa. Por fim, a pergunta aparentemente mais delirante: 

 

- E se fizéssemos a faca sem lâmina e sem cabo, qual seria seu custo? 

 

O chefe da contabilidade, calculadora em punho, informou, irritado, que aquela hipótese de faca, “essa coisa sem cabo e sem lâmina, custaria 40% da faca inteira”. 

 

O diálogo serviu para mostrar a todos que os custos fixos, incluídos impostos e salários, inclusive o deles, chegava a 40% do preço da faca. Mesmo sem fazer nenhuma faca, ainda assim a fábrica tinha um gasto elevado. Se quisessem baixar o preço da faca teriam que reduzir as despesas da administração. 

 

Isto é um aviso para todos nós e para o Brasil. Num processo de crescimento lento, ou recessivo, podem acontecer duas coisas e nenhuma é boa. Na primeira alternativa, os preços sobem porque os custos fixos têm que ser repartidos entre uma quantidade menor de produtos vendidos. 

 

Nós já tivemos isso: recessão e inflação. O que é uma loucura. 

 

Na segunda hipótese, o governo ou os cidadãos passam a importar de onde os produtos, sem inflação e sem recessão, custam menos. E aí a indústria nacional quebra. O Estado brasileiro é uma fábrica de facas sem cabo e sem lâmina. Custa caríssimo para existir e sua entrega é desproporcional à sua despesa. O pouco que entrega é caro demais. 

 

Por isso, as pessoas de bom senso insistem na necessidade de reforma administrativa para reduzir o tamanho do Estado e na redução do gasto público como forma de diminuir a carga tributária – sem dúvida o maior estímulo ao consumo e à produção. 

 

O baixo crescimento econômico é sinônimo de desemprego ou subemprego; sinônimo, também, de maior índice de pobreza, ou seja, de aumento do gasto público, situação em que uma faca, sem cabo e sem lâmina, na mão do Estado, corta nosso pescoço.

Project Synducate tem um número especialmente interessante este 12/11/2023

 

This week at Project Syndicate, Nouriel Roubini warns that markets are assigning far too low a probability to worst-case scenarios in the Middle East; Daron Acemoglu and Simon Johnson criticize American leaders' failure to consider why China exhibits the strengths that it does; Melissa Parke shows how artificial intelligence can make nuclear war more likely; and more.

Economics & Finance

The Economic Consequences of the Gaza War


Nouriel Roubini outlines four scenarios for how the conflict could play out and affect markets and the global economy.

Economics & Finance

America’s Real China Problem


Daron Acemoglu and Simon Johnson shine a light on the institutions underpinning US rivals’ apparent strengths and comparative advantages.
The Oligarchs’ Grip: Fusing Wealth and Power


Sponsored by De Gruyter

The Oligarchs’ Grip: Fusing Wealth and Power

By David Lingelbach and Valentina Rodríguez Guerra

“The book argues oligarchs are opportunists. They seize their big chance during times of turmoil.”
– Financial Times

Innovation & Technology

Preventing AI Nuclear Armageddon


Melissa Parke warns that applying artificial intelligence to weapons systems compounds an already unacceptable risk.

Economics & Finance

Doing Economic Nationalism the Right Way


Dani Rodrik touts East Asian developmentalism as an enduring model for shaping domestic strategies.
PS Longer Reads: The Hidden Gender Wealth Gap

The Hidden Gender Wealth Gap


Céline Bessière and Sibylle Gollacdocument an underappreciated form of inequality that threatens to set women back once again.

Politics & World Affairs

Preparing for a Russian Nuclear Meltdown


Bennett Ramberg urges American policymakers to start planning for scenarios in which Vladimir Putin’s regime collapses.

Economics & Finance

An Industrial Strategy for Europe


Daniel Gros explains why the EU needs to look beyond direct subsidies to boost the continent’s tech sector.
PS Big Question: Will the Israel-Hamas War Spread?

Will the Israel-Hamas War Spread?


Comfort EroNegar MortazaviDjavad Salehi-Isfahani, and Sinan Ülgen assess the likely behavior of regional powers such as Saudi Arabia, Iran, and Turkey.

Politics & World Affairs

The Wars of the New World Order


Brahma Chellaney examines the forces and trends that are driving a global geopolitical reckoning.

Economics & Finance

Certain Uncertainty in the US Bond Market


Barry Eichengreen thinks that investors who are piling back into US Treasuries could be in for a rude awakening.
PS Say More: Jayati Ghosh on greedflation, debt, corporate taxation, and more

Jayati Ghosh on greedflation, debt, corporate taxation, and more


Jayati Ghosh argues that advanced-economy rate hikes were unnecessary and damaging, proposes ways to reduce the power of agribusiness, and more.

Innovation & Technology

The Attention Economy Goes to Court


J. Bradford DeLong examines the arguments being put to the test in the antitrust case against Google.

Politics & World Affairs

How Poland Won Back Its Democracy


Maciej Kisilowski highlights five critical factors that propelled the country’s anti-populist opposition to victory.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

POR QUE CERTAS IDEIAS IMPORTANTÍSSIMAS MORREM NA INUTILIDADE? -Bolivar Lamounier (apresentação Paulo Roberto de Almeida)

 Artigo importante do Bolívar Lamounier, pessimista porque realista sobre a situação calamitosa do Brasil, muito pior do que sequer imaginamos que possa ser, e que resumo na seguinte observação que ele faz: temos o crime organizado crescendo três vezes mais rápido do que o PIB e elites medíocres, ineptas e incapazes de pensar um futuro para o país, que navega sem cartas náuticas e sem direção por um mar encapelado sem sequer ter consciência de para onde vai e sem ideia de para onde quer ou pretenderia ir. Estamos perdidos no nevoeiro, e tudo o que o atual governo tem a oferecer é mais do mesmo, ou seja, a continuida da extorsão praticada pelo estamento político predatório sobre os poucos recursos duramente amealhados pelos empresários que ainda tentam se manter ante as barreiras colocadas ao empreendedorismo privado pelas fortalezas estatais construidas para escapelá-los e despojá-los do que conseguem produzir como valor agregado. Somos uma Argentina em marcha lenta, volto a dizer.

Paulo Roberto de Almeida

POR QUE CERTAS IDEIAS IMPORTANTÍSSIMAS MORREM NA INUTILIDADE?

Bolívar Lamounier 

Sim, estou seguro de que meu título expressa uma verdade profunda. Se um indivíduo martelar 10 vezes uma ideia que mereceria ser repetida 10 mil vezes, ele granjeará uma sólida fama de chato e a ideia nunca voltará a ser lida. Será abandonada como inútil. Trata-se do que os cientistas denominam “efeito perverso”. 

Tonto como sou, volta e meia me atrevo a ultrapassar o limite de dez vezes e repito alguma ideia que me pareça relevante. E vou mais longe: às vezes repito todo um argumento, presumindo que as ideias que o compõem são igualmente relevantes. 

Por exemplo: a ideia de progresso como um destino único e necessário para a humanidade. Trata-se de uma tolice. Assim como há progresso, há retrocesso. Há retrocesso manso, quase horizontal, como acontece no Brasil, e há retrocesso abrupto, quase catastrófico, como o da Argentina. Nossos “hermanos” do Sul chegaram a constituir uma das nações mais ricas do mundo, mas regrediram. Chegaram a ter uma renda anual por habitante superior à da metade da Europa, um sistema de ensino exemplar já na segunda metade do século XIX e um metrô em Buenos Aires em 1910. Mas caíram, despencaram ladeira abaixo e esborracharam lá embaixo, onde hoje se encontram. Nós, brasileiros, nã o acreditamos nisto. Somos panglossianos: acreditamos piamente que nossa história será uma sequência irreversível de felicidades. Tampouco acreditamos em temores. Um de nós jamais escreveria, como Camões, “que nos perigos grandes, vinte vezes maior é o temor que o perigo”.

Para abreviar, e apesar de tudo o que acima vai dito, relembro aqui alguns pensamentos que tenho incessantemente martelado. Primeiro, o Brasil não está estagnado, está em retrocesso. Debater todo ano se o déficit fiscal do ano seguinte será inferior a 1% do PIB é pior que irresponsabilidade, é um ridículo atroz. Imaginar que nossa economia um dia crescerá vigorosamente apenas com recursos estatais (dada a nossa relação carnal com o Estado, nossa hostilidade à empresa privada e nossa absoluta recusa a uma economia mais aberta ao exterior), beira a idiotia.  Desse conjunto, a única inferência possível é que somos mesmo um país de lorpas e pascácios.  < /span>

Acrescentemos, para não deixar barato, que temos uma Constituição irreformável. Quando lhe encheram os intestinos com uma infinidade de freios e estipularam que a elaboração de outra mais sensata requer a convocação do “poder constituinte originário”, os constituintes de 1988 encestaram a bola sete. Na prática, acabaram com o jogo. Queira Deus que nossos atuais congressistas não metam na cabeça a ideia de se arvorar em “poder constituinte originário”, porque a segunda da lavra deles sairá pior, com certeza. A emenda sairá pior que o soneto.

Noves fora, há como desarmar essa armadilha em que nos meteram? Ou nossa única alternativa é nos pormos a cogitar que país teremos daqui a 10 ou 20 anos, com o crime organizado crescendo a uma taxa anual muito mais elevada que o PIB?

Os três países que se industrializaram tardiamente – quero dizer, nas últimas três décadas do século XIX: Alemanha, Estados Unidos e Japão – o fizeram quando venceram guerras sangrentíssimas. 

Nós não temos nem queremos tal alternativa. E da elite estatal – quero dizer, das cúpulas dos três Poderes, salvo melhor juízo, há o que esperar? Nada o indica. Como, então, escapar da armadilha?

O palpite que lhes posso oferecer, é anêmico, débil, e minúsculo como um grão de areia. É o caminho das ideias. É formar, fora do Estado, de fora para dentro, uma elite pensante e atuante, que sirva como um muro de arrimo, balizando seriamente as ações públicas e impedindo que o país despenque para valer.   

Dizendo-o de forma abreviada, preocupa-me o fato de a situação econômica e social brasileira ser muito mais grave do que em geral se tem presumido, a julgar pelo que nos é dado avaliar pela mídia e pelo debate público em geral. Mesmo que nossa renda per capita crescesse continuamente (hipótese inverossímil)   3% ao ano, levaríamos praticamente uma geração para dobrá-la, atingindo uma cifra ainda aquém da que os países desenvolvidos atingiram décadas atrás. Não se requer muito esforço para visualizar o sombrio o horizonte que emergirá de tais condições. 

Para pior, como antecipei, não dispomos, fora da máquina do Estado – ou seja, fora do sistema institucional constituído pelos três Poderes-, de uma elite competente, culta e suficientemente devotada ao bem do país.

O grão de areia que estou começando a montar é um programa interdisciplinar de economia, política e história (nada a ver com os ralos currículos atualmente oferecidos na maioria das universidades), a fim de trocar ideias em reuniões presenciais, on line e em vídeo com profissionais e universitários de alta qualificação a respeito da situação brasileira no curto e no médio prazo, e uma cogitação de cenários para o médio prazo.”