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terça-feira, 5 de junho de 2018

Fouche, por Stefan Zweig - resenha-artigo de Paulo Roberto de Almeida

Zweig sobre Fouché: biografia primorosa de uma figura execrável

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: resenha de livro; finalidade: extratos de leitura]


Introdução: o camaleão francês e os diplomatas “gatunos”
Acabo de ler um livro excepcional, cuja leitura me tinha sido recomendada muitas décadas atrás, ainda durante a adolescência, por um amigo de aventuras bibliográficas, um apreciador, como eu, de história e da boa literatura. A obra é a biografia de Joseph Fouché por Stefan Zweig, o mais famoso dos escritores austríacos do século XX, cuja ficha completa é a seguinte: 
Zweig, Stefan (1881-1942): Joseph Fouché: retrato de um homem político; tradução de Kristina Michahelles; Rio de Janeiro: Record, 1999, 304 p.; título original: Joseph Fouché: Bildnis eines politischen Menschen (1929).
Já a orelha é uma magnífica síntese da carreira e da obra política desse grande personagem da história contemporânea da França, no entanto negligenciado pela maior parte dos historiadores por seu papel aparentemente “menor” no turbilhão de eventos que partem do Antigo Regime, passam pela Assembleia Constituinte, pela Convenção, pelo Diretório, pelo Comitê de Salvação Pública e pelo Terror, seguem no Consulado e no Império, voltam à Restauração, aos “Cem Dias”, e novamente ao restabelecimento da monarquia dos Bourbons, aqueles que, segundo Talleyrand, não aprenderam nada, nem esqueceram nada (ils n’ont rien appris, ni rien oublié) . Fouché, que quase se tornou padre, aderiu resolutamente, e de forma oportunista, à revolução, votou, como membro da Convenção, pela morte do rei Luís XVI, encarregou-se fanaticamente da obra de descristianização da França, foi chefe de polícia durante largos anos, e assim pode manipular vários personagens chave do processo revolucionário, inclusive o primeiro cônsul, depois imperador, Napoleão. 
“Considerado por Balzac um dos personagens mais interessantes da história da França, mas também classificado de traidor, desertor e amoral, Fouché se transforma, pelas mãos de Stefan Zweig, no protótipo do diplomata, categoria intelectual dos “jogadores profissionais” que é, para ele, “das mais perigosas do nosso mundo”. A atenção de Zweig por Fouché foi justamente despertada por Balzac, que dedica uma página de seu romance Une ténébreuse affaire a esse “espírito sombrio, profundo e extraordinário, tão pouco conhecido” (p. 10-11). Foi por isso, conta Zweig, em prefácio datado do outono de 1929, de Salzburgo, que “por puro prazer psicológico, comecei a escrever a história de Joseph Fouché como contribuição para um estudo biológico ainda inexistente porém necessário dos diplomatas, essa raça intelectual ainda não totalmente examinada, das mais perigosas do mundo”. (p. 12) 
Zweig aliás reconhece que biografias heroicas são mais populares do que a de personagens obscuros como Fouché, mas ele pondera: “Mas é precisamente no âmbito político que elas correm o risco de falsificar a história, ao levar a crer que – naquela época e sempre – os verdadeiros líderes também determinam o destino do mundo. Sem dúvida, por sua própria existência, uma natureza heroica domina a vida intelectual durante décadas e séculos, mas apenas a intelectual.. Na vida real, verdadeira, na esfera do poder político – e isto deve ser frisado como alerta contra toda a credulidade política –, raramente são as figuras superiores, as pessoas das ideias puras que decidem, e sim uma categoria muito inferior, porém mais hábil: os personagens dos bastidores.” (p. 13)
Zweig, não apenas no seu prefácio, mas em diversas passagens do seu romance biográfico-psicológico, aproxima Fouché e sua época da era contemporânea, que ele próprio tinha vivido e observado: “Em 1914 e 1918, vimos como as decisões de importância histórica universal sobre guerra e paz foram tomadas não conforme a razão ou à responsabilidade, mas por indivíduos ocultos, de caráter duvidoso e inteligência limitada. A cada dia verificamos que, no jogo ambíguo e muitas vezes pecaminoso da política, ao qual os povos ainda confiam cegamente seus filhos e o seu futuro, não são os homens de visão ética e de convicções inabaláveis que vencem, mas sim aqueles aventureiros profissionais que chamamos diplomatas, esses artistas de mãos gatunas, palavras ocas e nervos gélidos.” (p. 13). 

Nas origens do comunismo, muito antes de Marx e Engels
A revolução francesa atravessa sua fase de radicalização sob a Convenção e sob o Diretório, quando o Terror é implementado contra os “inimigos do povo”. Fouché é designado, em 1793, pelo Comité de Salvação Publica para enquadrar os recalcitrantes no interior da França. Ele adere integralmente ao radicalismo exacerbado: “ele se comporta como um radical furioso em seu departamento do Baixo Loire... Vocifera contra os moderados, inunda a região com uma saraivada de proclamações, ameaça os ricos, os hesitantes, os indolentes da forma mais irada, usa da pressão moral e real para arregimentar grupos de voluntários nas aldeias para enfrentar o inimigo.” (p. 40)
Stefan Zweig faz novamente um paralelo com a história futura para enquadrar a nova posição de Fouché: 
... Fouché não permanece cauteloso em questões como a Igreja e a propriedade privada, considerada respeitosamente ‘intocável’ pelos famosos pioneiros da Revolução, Robespierre e Danton. Decidido, monta um programa radicalmente socialista e bolchevique. O primeiro manifesto comunista dos tempos modernos, na verdade, não é o célebre texto de Karl Marx, nem o Hessischer Landbote, de Georg Büchner, e sim aquela Instruction desconhecida e propositadamente ignorada pela historiografia socialista que, embora assinada conjuntamente por Collot d’Herbois e Fouché, foi incontestavelmente redigida por Fouché sozinho. Vale retirar do esquecimento esse documento enérgico, cem anos à frente do seu tempo nas suas reivindicações, um dos mais surpreendentes da Revolução, ainda que o seu valor histórico possa ser diminuído pelo fato de o futuro duque de Otranto [título aristocrático dado por Napoleão ao seu ex-chefe de Polícia, no período imperial] depois ter renegado desesperadamente aquilo que reivindicava na condição de simples burguês Joseph Fouché. Examinado à luz da época, aquela profissão de fé o rotula como o primeiro socialista e comunista da Revolução. Não foi Marat ou Chaumette quem formulou as exigências mais ousadas da Revolução Francesa, e sim Joseph Fouché, e o texto original esclarece melhor do que qualquer comentário o seu retrato sempre ambíguo.
Destemida, esta Instruction começa com uma declaração da infalibilidade de todas as ousadias: ‘Tudo é permitido àqueles que agem no espírito da Revolução, não há outro perigo para o republicano senão ficar atrasado em relação às leis da República. Quem as previne, as avança, quem quer que ultrapasse em aparência o fim muitas vezes está longe de ter chegado ao final. Enquanto houver um único infeliz na Terra, a liberdade precisa progredir mais e mais.’
Depois deste Prefácio enérgico, quase maximalista, Fouché define o espírito revolucionário da seguinte forma: ‘A Revolução foi para o povo, mas não se entenda por isto aquela classe privilegiada pelas suas riquezas, que usurpou todos os prazeres da vida e todos os bens da sociedade. O povo é a universalidade dos cidadãos franceses, e sobretudo a classe imensa dos pobres, esta classe que dá homens à pátria, defensores às nossas fronteiras, e que sustenta a sociedade pelo seu trabalho. A Revolução seria um monstro político e moral se tivesse por fim assegurar o bem-estar de algumas centenas de indivíduos e deixasse perdurar a miséria de vinte e quatro milhões de pessoas. Seria uma ilusão que faria a humanidade clamar incessantemente a palavra igualdade, se intervalos imensos de felicidade tivessem que separar sempre o homem do homem.’ Depois destas palavras introdutórias, Fouché desenvolve sua teoria predileta, a de que o rico, o ‘mauvais riche’, nunca poderá ser um republicano verdadeiro e honesto, e que, portanto, uma revolução apenas burguesa que deixasse persistir todas as diferenças de fortuna inevitavelmente voltaria a levar a uma nova tirania, ‘porque o homem rico não tarda a se considerar como sendo feito de massa diferente de todos os outros homens.’ Por isso Fouché reivindica do povo a energia mais suprema e a revolução ‘integral’ absoluta. ‘Não vos enganeis: para ser verdadeiramente republicano, é preciso que cada cidadão experimente e opere em si mesmo uma revolução igual à que mudou a face da França. Não há nada, absolutamente nada, de comum entre um escravo, um tirano e o habitante de um Estado livre; os hábitos deste último, seus princípios, seus sentimentos, suas ações, tudo deve ser novo. Estáveis oprimidos; é preciso esmagar os vossos opressores. Todo homem a quem este entusiasmo é estranho, que conhece outros prazeres, outros cuidados que não sejam a felicidade do povo, todo homem que calcula quanto lhe rende a propriedade, e que pode separar, um instante sequer, essa ideia da de utilidade pública, todo aquele que tem lágrimas de comiseração a dar a um inimigo do povo e que não reserva a sua sensibilidade para as vítimas do despotismo e os mártires da liberdade; eles não tardarão a ser reconhecidos e regá-lo-ão com seu sangue impuro. A república só quer pessoas livres, está decidida a aniquilar todos os outros, e só reconhece como seus filhos aqueles que por ela querem viver, lutar e morrer.’ No terceiro parágrafo dessa Instruction, a profissão de fé revolucionária torna-se clara e abertamente um manifesto comunista (o primeiro que se conhece, de 1793): ‘Todo homem que possui mais do que é necessário deve ser chamado para esta contribuição extraordinária, e esta taxa deve ser proporcional às grandes exigências da pátria. Portanto, teríeis que apurar de forma generosa e realmente revolucionária quando cada um pode contribuir com a causa pública. Não se trata de exatidão matemática nem do escrúpulo meticuloso com o qual se deve trabalhar na divisão das contribuições públicas; trata-se de uma medida extraordinária, que deve ter o caráter da circunstância que a fez nascer. Agi, pois, grandiosamente; tomai tudo o que um cidadão tem de inútil; porque o supérfluo constitui uma violação evidente e gratuita dos direitos do povo. Todo homem que gasta mais do que as suas necessidades o obrigam a gastar abusa da liberdade. Assim, deixando-se-lhe o estritamente necessário para viver, todo o resto pertence durante a guerra à República e às Forças Armadas.’
Nesse manifesto, Fouché frisa expressamente que estas recomendações não dizem respeito apenas ao dinheiro. ‘A pátria precisa de todos os objetos’, continua, ‘que estiverem sobrando e que podem ser úteis aos defensores da pátria, a Pátria os reclama neste momento. Existem pessoas que possuem um excesso inacreditável de lençóis e camisas, toalhas e botas. Todos estes bens e outros semelhantes são os que se pode requisitar para a Revolução.’ Da mesma forma, ordena a entrega de todo ouro e prata, ‘metais vis e corruptores’, que o verdadeiro republicano despreza, ao Tesouro nacional, para que ‘ali sejam cunhados com a efígie da República e, purificadas pelo fogo, só sirvam à coletividade. – Deem-nos aço e ferro, e a República triunfará.’ A conclamação finaliza com um terrível apelo. ‘Empregaremos com toda a rigidez possível a autoridade que nos foi delegada; puniremos como má intenção tudo aquilo que em outras condições podereis chamar negligência, fraqueza ou lentidão. O momento não permite meias medidas. Ajudai-nos a deferir golpes fortes, caso contrário eles vos atingirão. Liberdade ou morte – a escolha é vossa.’ (p. 41-4)

Como sublinha Zweig, Fouché não recua ante
 “as maiores forças da França, diante das quais até mesmo Robespierre e Danton recuaram prudentemente: a propriedade privada e a Igreja. Ele age rápido e decidido no sentido da ‘égalisation des fortunes’, a igualdade das fortunas, através da invenção do chamado ‘comitê filantrópico’, para o qual os ricos devem fazer donativos voluntários. Mas, para ser claro, de antemão ele adiciona uma suave advertência ao dizer que ‘se o rico não fizer uso do seu direito de fazer amar o regime de liberdade, a República tem direto de confiscar sua fortuna’. Ele não tolera nenhum supérfluo e define este conceito energicamente: ‘O republicano não precisa mais do que ferro, pão e quarenta escudos de renda.’ Fouché confisca os cavalos nas estrebarias, a farinha nos sacos, ele responsabiliza os arrendatários pessoalmente pela entrega de alimentos; institui o pão de guerra e proíbe a venda de qualquer pão ou biscoito de luxo. Toda semana, ele aciona cinco mil recrutas, abastecidos de cavalos, calçados, roupas e espingardas; à força, bota as fábricas para funcionar e todos obedecem à sua energia de ferro. O dinheiro entra na forma de impostos, taxas, donativos, fornecimentos e trabalho. Orgulhoso escreve à Convenção ao cabo de dois meses de atividades: ‘on rougit d’être riche’(‘aqui tem-se vergonha de ser rico’). Em verdade, deveria ter dito: ‘Treme-se aqui por ser rico’.  (p. 45).

Stefan Zweig, depois de revelar os instintos pré-bolcheviques de Fouché, desvenda igualmente seu lado anticlerical, traço surpreendente em alguém que tinha quase envergado as vestes sacerdotais, e dado aulas em seminários católicos durante certo número de anos.
Radical e comunista, Joseph Fouché – que mais tarde, quando milionário Duque de Otranto, se casará pela segunda vez na Igreja fingindo-se piedoso sob os auspícios de um rei – revela-se então ainda como selvagem e passional adversário do cristianismo. ‘Este culto hipócrita deve ser substituído pela fé na República e na moral’, vocifera ele numa carta incendiária, e logo as primeiras medidas de perseguição caem como raios em chamas sobre as igrejas e catedrais. Lei após lei, decreto após decreto. ‘É proibido, sob pena de prisão, a todos os padres, aparecerem fora de seus templos com vestes sacerdotais.’ Todas as prerrogativas lhes são cassadas porque, argumenta, ‘está na hora de esta casta orgulhosa entrar na classe dos burgueses voltando à pureza dos princípios da primeira igreja.’ Em pouco tempo, não basta mais a Joseph Fouché ser apenas o chefe militar supremo, o funcionário mais elevado da Justiça, ditador absoluto da administração: ele assume também todas as competências da Igreja. Revoga o celibato, ordena aos sacerdotes que se casem no prazo de um mês ou adotem uma criança, celebra casamentos e divórcios em praça pública, sobe ao púlpito (do qual foram cuidadosamente retiradas todas as cruzes e imagens religiosas) e profere discursos ateístas, em que nega a imortalidade e a existência de Deus. As cerimônias cristãs nos enterros são abolidas, e como único consolo resta a inscrição cinzelada nos cemitérios: ‘A morte é um sono eterno’. (...) Em Moulins, ele lidera um cortejo a cavalo que percorre toda a cidade, martelos na mão, para destruir as cruzes, os crucifixos e imagens santas, emblemas ‘infames’ do fanatismo. As mitras sacerdotais e as toalhas e as toalhas dos altares sãos colocadas numa fogueira, e enquanto as chamas sobem ao céu o povo dança aos gritos em torno desse auto-da-fé ateísta. (...) O verdadeiro triunfo, ele o alcança quando, rendendo-se à sua retórica, o arcebispo François Laurent arranca o habite e veste o boné vermelho, seguido por trinta sacerdotes entusiasmados – um sucesso que se propaga pela França como uma onda incendiária. Orgulhoso, ele pode se vangloriar juntos aos colegas ateístas mais fracos ter esmagado o fanatismo, de ter aniquilado o cristianismo na área sob sua administração. (p. 45-7)

A crer na descrição que Zweig faz de Fouché revolucionário radical, no auge do Terror de Robespierre, sua atuação ultrapassa até mesmo as cenas mais chocantes da Tcheca leninista suprimindo os inimigos czaristas e contrarrevolucionários, ou os momentos iniciais da criação do homem novo cubano, após a vitória de Fidel e as demonstrações de prepotência revolucionária de um Ché Guevara no comando dos fuzilamentos em Cuba, ou ainda a instituição da ordem soviética nos países colocados sob a sua dominação logo após 1945. As cenas narradas por ele, com base em fontes não explicitadas em sua biografia, aproximam a repressão contra burgueses e religiosos do Baixo Loire dos piores momentos da repressão sob o Kmer Vermelho, no Camboja, do espetáculo deprimente no auge da Revolução Cultural chinesa, ou episódios do Holodomor soviético na Ucrânia. A Convenção o recebe de braços abertos em seu retorno dos seus “campos de reeducação” à la Pol-Pot – a expressão não é de Zweig – e imediatamente ordena que ele continue seu trabalho em Lyon, a cidade recalcitrante: 
Ao retornar de suas missões para a Convenção, Fouché não é mais o pequeno e desconhecido deputado de 1792. A um homem que colocou doze mil recrutas em marcha, que trouxa da província cem mil marcos de ouro, mil e duzentas libras de dinheiro puro, mil barras de prata, sem recorrer uma única vez à ‘navalha nacional’, a guilhotina, a Convenção não pode senão expressar a admiração ‘pela sua vigilância’. (...) Fouché já é conhecido como o mais radical dos extremistas, e como a revolta de Lyon exige a presença de um homem especialmente enérgico, intransigente e sem escrúpulos, quem mais adequado para executar o pior édito jamais inventado por esta ou qualquer outra revolução? ‘Os serviços que prestaste até agora à Revolução’, decreta a Convenção em seu estilo pomposo, ‘avalizam aqueles que ainda prestarás. Reacenderás a tocha do espírito burguês que está se apagando em Ville Affranchie (Lyon). Completa a Revolução, termina a guerra contra os aristocratas, e que as ruínas , que aquele poder derrubado [em Lyon] quer reerguer, caiam sobre eles e os destruam”. (p. 48-49) 

Ele se torna então, o “carniceiro de Lyon”, a mais cruel e impiedosa devastação perpetrada contra uma cidade inteira, como relata Zweig no segundo capítulo de sua biografia. Sua abertura já é um prenúncio do que virá em seguida: “No livro da Revolução Francesa raramente se abre uma página mais sangrenta que a da revolta de Lyon”. (p. 51) No dia 12 de outubro de 1793, a Convenção
...desenrola um documento terrível que propõe nada menos do que destruir a segunda capital francesa. Esse decreto pouco conhecido diz textualmente:
‘1. Por sugestão do Comité de Salvação Pública, a Convenção Nacional nomeia uma comissão extraordinária de cinco membros para imediatamente punir a contrarrevolução de Lyon.
2. Todos os moradores de Lyon serão desarmados e suas armas entregues aos defensores da República,
3. Uma parte das armas deve ser entregue aos patriotas que foram oprimidos pelos ricos e contrarrevolucionários.
4. A cidade de Lyon será destruída. Todas as casas das pessoas prósperas serão postas abaixo, so poderão sobrar as casas dos pobres, as habitações dos patriotas assassinados ou proscritos, os edifícios industriais e aqueles que servem a fins beneficentes e educativos.
5. O nome Lyon será apagado da relação de cidades da República. De agora em diante, o conjunto das casas que permanecerem terá o nome de Ville Affranchie.
6. Sobre as ruínas de Lyon será rígida uma coluna que servirá aos descendentes como testemunho dos crimes e das punições da cidade realista, com a seguinte inscrição: ‘Lyon liderou a guerra contra a liberdade, Lyon não é mais nada.’ (p. 55-6)

Fouché usa métodos expeditos. Como a guilhotina trabalha “lentamente demais”, ele manda amarrar algumas dezenas de contrarrevolucionários e faz os canhões dispararem contra eles, à beira do Ródano. Ele deixa o testemunho de sua obra para que todos saibam de sua obra, como repercute Zweig, nas palavras do “carniceiro de Lyon”:
‘É preciso que os cadáveres ensanguentados que atiramos no Ródano flutuem pelas duas margens até a sua foz, até a infame Toulon, para que evidenciem aos olhos dos ingleses covardes e cruéis a impressão do horror e a imagem da supremacia do povo.’ (p. 67)

O chefe da polícia de três regimes distintos
Este é o Fouché que depois será o chefe de polícia mais poderoso da França, lutando contra o próprio Robespierre, atravessando invicto, com poucas interrupções, todo o ciclo revolucionário, como ministro do Diretório e depois do consulado, e também do Império, que o promove a aristocrata, duque de Otranto, até a Restauração, quando ele entregará o poder novamente ao pusilânime Luís XVIII, sabotando mais de uma vez, e deliberadamente, Napoleão, antes e depois dos Cem Dias. Napoleão o tinha aceitado a contragosto: “assim como Napoleão fascina Fouché pelo seu gênio, assim Fouché fascina Napoleão pela sua utilidade”. (p. 254)
Durante mais de dez anos Fouché serviu a Napoleão, o ministro serviu o amo, o intelecto serviu ao gênio, e durante estes dez anos sempre foi o vencido. Em 1815, na luta final, a bem da verdade desde o início é Napoleão o mais fraco. (...)
Ele é de novo imperador, mas só de nome, pois o universo, antes submisso a seus pés, não o reconhece mais como senhor. (...) O vazio se instala em torno de Napoleão, os antigos amigos e camaradas estão dispersos aos quatro ventos. (...) Nem o próprio país reconhece mais a bandeira tricolor. Levantes irrompem no sul e no oeste. Os camponeses estão fartos dos eternos recrutamentos e atiram nos guardas que querem requisitar seus cavalos para a artilharia. (...)
Ao seu lado, Fouché está precisamente naqueles anos na plenitude de sua força. (...) Todos os partidos – fenômeno fantástico – confiam mais nesse ministro do imperador do que no próprio imperador. Luís XVIII, os republicanos, os monarquistas, Londres, Viena, todos veem em Fouché o único homem com o qual se pode negociar de verdade, e a sua razão fria e calculista inspira mais confiança num mundo exausto e ávido de paz do que o gênio de Napoleão, flamejante e vacilante nos ventos da confusão. Aqueles que recusam ao “general Bonaparte” o título de imperador respeitam o crédito pessoal de Fouché. (p. 246-9)

O próprio poeta Lamartine se rende ao gênio maquiavélico de Fouché: 
‘E preciso reconhecer’, escreve ele, ‘que ele revelou uma rara audácia e um sangue frio ativo. (...) De todos os sobreviventes da época da Convenção, era o único que não se mostrava gasto nem cansado em sua intrepidez. (...) Fouché intimidou o imperador, adulou os republicanos, acalmou a França, acenou para a Europa, sorriu para Luís XVIII, negociou com as cortes, correspondeu-se com o Senhor Talleyrand através de gestos, e com esta atitude mantinha tudo em suspenso – um papel cêntuplo, difícil, ao mesmo tempo baixo e elevando, mas imenso, ao qual a História ainda não deu a devida atenção. (...) Mesmo condenando Fouché, a História não poderá negar-lhe durante este período dos cem dias uma ousadia de atitude, uma superioridade no manejo dos partidos e uma grandeza nas intrigas que o igualariam aos principais estadistas do século, se houvesse verdadeiros estadistas sem dignidade de caráter nem virtude”. (p. 250-1)

E chega Waterloo:
Mal tomou conhecimento de Waterloo (naturalmente, bem antes dos outros), ele considera Napoleão um cadáver incômodo do qual precisa se livrar rapidamente. (...) Sem perder tempo, escreve ao duque de Wellington, para estabelecer contato com o vencedor desde a primeira hora. (...) O senhor da hora não é mais Napoleão Bonaparte, mas – finalmente! finalmente! – Joseph Fouché. (p. 260-1)

Sua queda e seu fim, objeto do nono e último capítulo da biografia de Zweig, chegam depois de uma última humilhação a que submete o novo rei, obrigado a designá-lo como seu ministro, depois de ter sido considerado um regicida, ao ter votado a morte do seu irmão, Luís XVI. Designado mais tarde como embaixador na corte de Dresden, é demitido de suas funções diplomáticas pouco tempo depois: o vencedor, desta vez, é Talleyrand. O duque de Otranto muda-se para Praga, em seguida para Linz e, finalmente, para Trieste, onde terminará os seus dias, em dezembro de 1820, no completo esquecimento dos contemporâneos. Durante sua estada em Linz, usando um pseudônimo, publica as Observações de um contemporâneo sobre o duque de Otranto, “apologia anônima que descreve seu talento”, sem grande repercussão (p. 300). 

Zweig: biógrafo de figuras trágicas, heroicas, dramaticamente humanas
Stefan Zweig conseguiu realizar um feito extraordinário para um escritor tão sensível: escrever uma biografia primorosa de uma figura especialmente execrável. O escritor austríaco, aliás, sempre foi um especialista em escolher figuras trágicas como personagens centrais de algumas de suas obras mais memoráveis: ele tinha começado pela biografia de seu amigo belga, o poeta Emile Verhaeren (em 1910), para depois tratar de “três mestres” dos grandes: Balzac, Dickens e Dostoievski (1920). Romain Rolland, seu grande amigo pacifista durante a Grande Guerra, da qual ele se separará mais tarde, é objeto de um estudo sobre o homem e suas obras (1921). Em meados dessa década, ele se ocupa, na “luta contra o demônio”, de outras três grandes figuras: Holderlin, Kleist e Nietzsche (1925). Ele traça, em seguida, três “auto-retratos”, dedicados a Casanova, Stendhal e Tolstoi (1929), antes de se voltar ao patético Fouché(1929). Num mesmo ano, 1932, ele consegue escrever sobre três “salvadores de almas”, ou a “cura pelo espírito”, voltando-se para Franz Mesmer, Mary Baler Eddy e Sigmund Freud, de quem se tinha tornado amigo, e quem lhe sugeriu, direta ou indiretamente, o tipo de abordagem psicológica que distingue suas biografias. No mesmo ano aparece mais uma de suas dramáticas biografias: Maria Antonieta, que ele tinha mencionado muito rapidamente em seu Fouché.
Em 1934, já com Hitler firmemente instalado no poder, e Zweig instalado na Inglaterra, sai publicado o seu Erasmo de Roterdã, “triunfo e tragédia”. O embate entre a razão e a tolerância do humanista da Basileia e o furor intolerante de Lutero tem muito a ver com o fanatismo que começa a se abater sobre a Alemanha e a cultura germânica. Maria Stuart, outra figura trágica, pois que condenada por traição, aparece logo em seguida, em 1935. Viajando ao Brasil e à Argentina pela primeira vez, em 1936, e desfrutando de todos os prazeres oferecidos por um moderno transatlântico, Zweig diz que começou a pensar nas dificílimas viagens da época dos descobrimentos, e resolve escrever sobre o homem que tentou a primeira viagem de circunavegação, Fernão de Magalhães (1938): a biografia traz ao final o contrato original entre o rei Carlos I (depois Carlos V, ao realizar-se a união com os Habsburgos) e o navegador português, que para realizar o empreendimento não hesitou em naturalizar-se espanhol; Zweig informa, em outro apêndice, que essa primeira “volta ao mundo” custou, em moedas da época, 8,3 milhões de maravedis, dos quais 6,4 milhões adiantados pelo rei. No intervalo entre as duas biografias, ele se dedica ao “direito à heresia”: Castellio contra Calvino (1936).
Um dia antes de seu suicídio, em Petrópolis, no Carnaval de 1942, era publicada uma outra biografia: Amerigo, sobre Vespúcio, o homem que deu o novo ao Novo Mundo. Outros projetos de biografias permaneceram inconclusas, no momento de sua morte: um Balzac, que ele começou a redigir em Petrópolis, mesmo sem ter acesso a todas as obras do escritor que conseguia produzir mais livros do que todo um batalhão de escribas, a despeito de Zweig, ao partir da Áustria, ter levado todas as suas notas para seu primeiro refúgio inglês, em Bath. Esse Balzacdeveria ter sido seu magnum opus, mas só conseguiu vir a público em 1946, graças aos esforços de grande amigo Richard Friedenthal, que também tinha fugido da Áustria natal, quando esta foi incorporada ao Reich hitlerista.
Finalmente, uma outra obra deixada inconclusa é o seu Montaigne, que, como Erasmo, encarnou as virtudes do humanismo, da tolerância, da inteligência, do amor ao conhecimento, da extrema sensibilidade e do espírito aberto às fraquezas humanas. Como escreveu o prefaciador da edição brasileira, Luís S. Krausz: 
Sábio numa era de fanatismo, Montaigne tornou-se um exemplo para Zweig em seus últimos meses de vida: Montaigne, em sua torre, era para ele um paradigma e também um companheiro de destino pois, como Zweig, lutava para preservar sua liberdade e lucidez em tempos de caos e escuridão. Os paralelos entre o século XVI e o século XX pareciam evidentes a Zweig que, numa carta a sua ex-mulher Friderike, que vivia exilada em Nova York, escreveu: ‘me sinto seduzido por escrever a respeito de Montaigne, cujas obras agora leio muito, e com muito prazer, um outro (e melhor) Erasmo, um espírito em tudo consolador... (cf. Stefan Zweig, Montaigne; São Paulo: Mundaréu, 2015, p. 10-11). 

Para Zweig, para Erasmo, para Montaigne, assim como para todo espírito nobre, para todo humanista, a questão central é a de como preservar a liberdade interior, a integridade intelectual, contra os ataques vindos de fora, dessas hordas de bárbaros que assolam de tempos em tempos a “cidadela” da razão da qual falava Goethe. O Brasil nunca viveu os horrores horripilantes – com perdão pela redundância – das barbáries totalitárias que afligiram a Europa “humanista” do século XX, mas pequenos bárbaros estão sempre à espreita, em todos cantos, quando menos se espera. A divisão atual do país se deve, em grande medida, a grandes e pequenos bárbaros que assolam a nossa política e destroem a economia duramente construída pelos produtores de riquezas.
Faltam-nos, infelizmente, já não digo Erasmos e Montaignes, para trazer um pouco de racionalidade a um ambiente seriamente deteriorado pela mediocridade intelectual, pela desonestidade pessoal de tantos homens públicos, de tantos capitalistas promíscuos, ao mesmo tempo em que abundam os candidatos a novos Torquemadas, a Fouchés, a pequenos Mussolinis e Hitlers de fancaria, assim como sobram os candidatos a Stalin, ainda que sem Gulag. Falta-nos pelo menos um Zweig, capaz de descrever em traços firmes, com toda a profundidade psicológica de que ele era capaz, o caráter de heróis e vilões que sempre existem em todas as sociedades. Suas memórias de tempos mais amenos, na Europa da belle époqueO Mundo de Ontem, publicado postumamente em 1942, e que ele concluiu no Brasil, não deixa de refletir o começo da barbárie na Europa dos anos 1930, um mergulho na escuridão que ele não suportou mais ver.
A epígrafe dessa última biografia, a sua própria, traz um verso de Shakespeare em CymbelineLet’s withdraw / And meet the time as it seeks us. Escritores humanistas como Zweig são extremamente raros, em todas as épocas, em todos os países. São como estrelas solitárias brilhando na escuridão do universo. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de junho de 2018

PS.: Agradeço ao amigo e colega Erlon Moisa, um apreciador de Stefan Zweig como eu, a cessão das duas biografias aqui citadas. Fico lhe devendo uma edição, em qualquer língua, do Erasmo, que li na edição em francês muitos anos atrás. Sempre a luta do bem contra o mal, que vence temporariamente, mas um tempo por vezes longo demais para uma única vida.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Quinze anos de política externa brasileira, 2002-2017 - Paulo Roberto de Almeida

QUINZE ANOS DE POLITICA EXTERNA ENSAIOS SOBRE A DIPLOMACIA BRASILEIRA, 2002-2017

Link:  https://www.academia.edu/33186849/QUINZE_ANOS_DE_POLITICA_EXTERNA_ENSAIOS_SOBRE_A_DIPLOMACIA_BRASILEIRA_2002-2017

A melhor diplomacia não se sustenta sem uma boa governança doméstica.
Seria a diplomacia brasileira um ponto fora da curva? 
Paulo Roberto de Almeida

Sumário:

Índice


Apresentação: Das vantagens de ser um diplomata acidental11

1. As relações internacionais nas eleições presidenciais de 1994 a 2002(2002), 15
2. A política internacional do Partido dos Trabalhadores (2003) , 51
3. Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula (2004), 77
4. Políticas de integração regional no governo Lula (2005) , 97
5. A diplomacia do governo Lula: balanço e perspectivas (2006) , 129
6. A diplomacia do governo Lula em seu primeiro mandato, 2003-2006 (2007) , 145
7.Bases conceituais de uma política externa nacional (2008), 161
8.Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica (2009), 183
9.Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica (2010) , 187
10.A questão da liderança regional do Brasil (2011),  205
11.Processos decisórios no âmbito da política externa (2012),  233
12.As relações Sul-Sul: um novo determinismo geográfico? (2012-2013) , 251
13. A política externa companheira e a diplomacia partidária(2014) ,  267
14.Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria(2015)  ,  277
15.O renascimento da política externa (2016) , 295
16.A política externa e a diplomacia brasileira no século XXI (2017),  309

Apêndices
17. Relações internacionais do Brasil: perspectiva histórica (2001),  325
18. Diplomatas que pensam: qual é a nossa função? (2017) ,  339
19. Relação cronológica seletiva de ensaios diplomáticos, 2002-2017, 345
20. Livros de Paulo Roberto de Almeida ,  361
21. Nota sobre o autor ,  365

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Das vantagens de ser um diplomata acidental



Este livro de ensaios foi montado de maneira improvisada, e pode sofrer de alguma repetição, sobretudo nos trabalhos voltados para a análise dessa coisa que eu chamei de lulopetismo diplomático. Mas ele reflete, com certa acuidade, minha produção intelectual sobre a diplomacia brasileira ao longo desta primeira década e meia do século XXI. Tentando terminar rapidamente esta assemblagem de alguns dos muitos artigos que elaborei, desde 2002, não contei com o tempo adequado para escrever uma apresentação formal. Consoante, entretanto, meu forte espírito contrarianista, permito-me revelar aqui – o que não é exatamente uma confissão – que sou uma espécie de contestador das verdades reveladas, aquilo que os franceses chamam de idées reçues, ou seja, o pensamento banal, aceito como correto nos mais diferentes meios em que essas ideias se aplicam, mas geralmente de forma equivocada ou, talvez, ingênua. 
E por que digo isto, ao iniciar a apresentação de um livro de “ideias já recebidas”, ou pelo menos de ensaios já publicados? É porque eu já fui chamado, certa vez, de accident prone diplomat, ou seja, alguém que busca confusão, o barulho, no meu caso, de fato, mais a expressão de um ceticismo sadio do que uma simples provocação ou a contestação gratuita. Com efeito, eu não me deixo convencer com certas idées reçuesnos meios que frequento, e estou sempre à busca de seus fundamentos, justificações, provas empíricas, testemunhos de sua adequação e funcionamento no ambiente em que deveriam operar, em condições normais de pressão e temperatura, enfim, o entendimento convencional de como é ou de como deve funcionar a diplomacia, em especial, a nossa, esta tida por excelente e que, aparentemente, não improvisa. Talvez devesse fazê-lo, em certas ocasiões...
Na verdade, antes de ser um accident prone diplomat, se isto é correto (o que duvido), creio ser um diplomata acidental, alguém que se dava bem na academia, e que resolveu, num estalo, ser diplomata. Posso até recomendar esta profissão, aos que gostam de inteligência, de cultura, de viagens, de debates sobre como consertar este nosso mundo tão sofrido, aos que são nômades por natureza (como é o meu caso e, mais ainda, o de Carmen Lícia), menos talvez aos que pouco apreciam um ambiente meio estilo Vaticano, meio espírito Forças Armadas. Com efeito, hierarquia e disciplina são os dois princípios que estão sempre sendo lembrados aos jovens diplomatas como sendo a base de funcionamento desta Casa aparentemente tão austera, tão correta, tão eficiente no tratamento das mais diversas questões da nossa diplomacia. Confesso, também, que nunca fui um adepto zeloso desse rigorismo no trato de pessoas segundo convenções estabelecidas.
Atenção, acima eu disse diplomacia, que é uma técnica, e não política externa, que pode ser qualquer uma que seja posta em marcha pelas forças políticas temporariamente dominantes no espectro eleitoral do país. Política externa pertence a um governo, a um partido; a diplomacia pertence a um Estado, que possui instituições permanentes, entre elas essa que aplica a política externa de um governo por meio da diplomacia. E por que então o conceito de “acidental” que inaugura esta apresentação? Não preciso responder agora, e provavelmente nem depois, mas a resposta talvez esteja em cada um dos ensaios reunidos nesta coletânea de artigos escritos desde o início do milênio. Ninguém, por exemplo, há de recusar o fato de que, desde 2003 pelo menos, o Brasil vive tempos não convencionais, nos quais assistimos coisas nunca antes vistas na diplomacia, que por acaso é o título de meu livro mais recente: Nunca antes na diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais(Curitiba: Appris, 2014). Aliás, nossos tempos são decididamente não convencionais menos pela diplomacia do que por uma série de práticas exacerbadas naquele terreno que pertence ao domínio da moral.
Pois bem, reunindo tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores – diplomata acidental, hierarquia, disciplina, ideias de senso comum, etc. – e juntando tais conceitos aos ensaios aqui compilados, os leitores terão uma explicação para o sentido geral de minha obra, anárquica, dispersa, contestadora, por vezes contrarianista, mas explorando o lado menos convencional da diplomacia, aquele que destrincha certas verdades reveladas e ousa apresentar outras ideias que não necessariamente fazem parte do discurso oficial. Esta talvez também seja a razão de eu apreciar, muitíssimo, uma seção da revista Foreign Policy, desde a sua reorganização por Moisés Naím, que se chama “Think Again”, ou seja, reconsidere, ou pense duas vezes, pois a resposta, ou a explicação pode não estar do lado que você costuma encontrar, mas que talvez esteja escondida em alguma dobra da realidade, por uma dessas surpresas do raciocínio lógico, por alguma astúcia da razão ou por algum outro motivo que se encontra enterrado, e quase esquecido, na história.
A vantagem de ser um diplomata acidental está justamente no fato de poder perseguir (nem sempre impunemente) o outro lado das coisas, e de poder contestar algumas dessas idées reçues que passam por certezas consagradas, ou pela única postura possível no funcionamento convencional da grande burocracia vaticana, que também leva jeito de quartel (mas acordando um pouco mais tarde). Durante todos estes anos em que venho escrevendo sobre política externa, tenho podido exercer meu lado irreverente e pouco convencional para tratar de aspectos muito pouco convencionais de nossa diplomacia nestes anos do nunca antes (agora, felizmente, terminados). 
Atenção: muitos dos ensaios aqui coletados não brotaram, originalmente, de trabalhos de pesquisa, ou daquilo que se chama, usualmente, de scholarly work, isto é, o produto derivado de estudos meticulosos, ou objeto de revisão cega por pares, material que está mais propriamente coletado em meus livros publicados. Eles são, eu diria, peças de simples divertimento intelectual, ainda que vários deles contenham aparato referencial (notas de rodapé, bibliografia, citações doutas, etc.) e também sejam o reflexo de muitas leituras sérias e anotadas ao longo de meus anos de estudo e trabalho. Mas, destinados a veículos mais leves, e não a revistas científicas, eles constituem reflexões de um momento, de um problema, de uma conjuntura, de algum evento que valia a pena registrar em um artigo mais curto.
Vários ensaios foram publicados em veículos como Mundorama, ou Meridiano 47, ambos dirigidos por meu amigo Antonio Carlos Lessa, do IRel-UnB. Mas o que vai aqui compilado foi retirado de meus próprios arquivos, em processador usual de texto, para contornar os problemas de formatação de texto em suporte digital, mas corresponde, em princípio, aos originais, embora não necessariamente ao que foi publicado. Nem tudo o que publiquei vai aqui reproduzido, em ordem cronológica sequencial. Ficaram de fora diversos artigos circunstanciais, todas as resenhas de livros – já coletadas em outras publicações digitais que organizei – e alguns textos de menor importância.  Coloquei uma listagem seletiva dos ensaios mais importantes num apêndice, ao final do volume, onde também figuram os respectivos links para revisão eventual das publicações. Essa lista representa uma pequena parte de uma produção mais ampla, que se dedica também às relações econômicas internacionais do Brasil, à globalização, a temas regionais (como a integração, e dentro desta ao Mercosul), questões diversas da política internacional e da economia mundial.
O lado divertido de ser um diplomata acidental está justamente na possibilidade de se poder escrever livremente sobre assuntos sérios e menos sérios, com a liberdade editorial que só existe nos veículos leves, sem precisar cumprir todo o ritual passavelmente aborrecido dos requisitos acadêmicos ligados às revistas “sérias” – como a RBPI, por exemplo, com a qual também colaboro, de diversas maneiras – e sem precisar atentar para a langue de bois normalmente associada às publicações oficiais, onde aquele lado Vaticano inevitavelmente predomina. Foi nestes ensaios que eu explorei o lado meio escondido de certas verdades reveladas do meio profissional, uma atividade que sempre me deu imenso prazer por combinar com meu jeito contrarianista de ser. 
Dito isto, preciso voltar minhas energias para coisas mais sérias, como por exemplo o segundo volume de minha história das relações econômicas internacionais do Brasil, que me espera desde vários anos a partir da conclusão do primeiro volume (Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império; 2001, 2005, 2017). Em todo caso, sempre que posso estou me divertindo com este tipo de exercício intelectual, aqui representado por uma dezena e meia de textos supostamente “diplomáticos”, vários publicados apenas em revistas digitais, alguns outros em publicações mais sérias, inclusive em meus próprios veículos de divulgação. Tenho como regra coletar no blog Diplomatizzando(que me serviu de “quilombo de resistência intelectual” nos anos patéticos do lulopetismo), tudo o que encontro de inteligente circulando pelo mundo, o que também compreende vários dos textos aqui reproduzidos. Espero que eles sirvam a um debate igualmente inteligente.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de maio de 2017
(...)

18. Diplomatas que pensam: qual é a nossa função?


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 fevereiro 2017, 3 p


A pergunta da segunda parte do título, depois dos dois pontos, está obviamente relacionada à primeira parte: diplomatas que pensam. Como isso? Existem diplomatas que não pensam? Todo ser humano pensa, por definição cartesiana. Minha categoria dos “que pensam” tem, no entanto, sua razão de ser: como em toda carreira, profissão, ocupação, trabalho ou emprego, existem aqueles que desempenham mecanicamente suas funções, por necessidades, digamos assim, alimentares e de sobrevivência, que levam a vida como ela é, acompanhando pachorrentamente o ritmo das atividades gerais de sua comunidade de inserção, e existem aqueles que, ademais de se desincumbirem das tarefas às quais estão assignados (para ganharem um salário, para sustentarem a família, para satisfação e consumo próprios), também pensam um pouco além de sua profissão ou ocupação imediata. Eles pensam no significado de suas atividades, para si mesmos e para os outros, e concebem novas formas de desempenharem essas mesmas atividades, ou de introduzir novos métodos de trabalho que representam, de modo geral, um progresso (material ou intelectual) sobre o estado da arte existente.
Pois bem, este meu texto está voltado unicamente para esta segunda categoria, que se enquadra no conceito geral de “produtividade do trabalho humano”, na qual eu mesmo espero estar enquadrado. Produtividade, sendo muito rudimentar, é tudo aquilo que melhora, ou aumenta, a oferta da produção existente, com os mesmos recursos ou volume de insumos disponíveis, ou que produz a mesma quantidade de produtos com um volume menor de trabalho mecânico. A isso se dá também o nome de inteligência.
As funções dos diplomatas todo mundo sabe quais são. Grosseiramente, são três, resumidas em três verbos: informar, representar, negociar. Mas tudo isso pode ser feito de maneira mecânica: lendo os jornais do dia, se informando pelos canais disponíveis, e resumindo tudo isso para os chefes ou para a instituição, em bases correntes, ou seja, conjunturais; fazendo o trabalho de intermediação entre duas chancelarias, pelos meios burocráticos normais, os mais costumeiros e frequentes, ou outros informais (coquetéis, jantares, encontros); e comparecendo a reuniões formais, ali defendendo as instruções recebidas de sua secretaria de Estado. Estes são os diplomatas normais; os “anormais” (ou diferentes) são aqueles que, além disso, vão um pouco à frente, ao lado, ou mais adiante do que normalmente se espera deles: saem do conjuntural para o sistêmico, e buscam os fundamentos de suas ações; não informam apenas o que está se passando, mas se permitem explorar novas vias de conhecimento, inclusive em direção do passado, das memórias de tempos pretéritos, ou em novos caminhos ainda ignotos da maior parte dos colegas; sugerem, ou até criam, novas instruções, para resolver alguns problemas mais complexos do que o trivial costumeiro. Inovar tem o seu preço, que é o de romper hábitos arraigados e a segurança do déjà vu, a que estão acostumados a maioria das pessoas, talvez 99% da humanidade (exagero?). 
Pois bem, uma segunda vez: meu texto está unicamente voltado para esta categoria de diplomatas, que pode ser (e costuma ser) uma minoria, e portanto sujeita à chamada “tirania da maioria”, de que falava Tocqueville (em outro sentido). Não importa muito: isso vale não só para os diplomatas, mas para todo mundo. Progressos da comunidade humana são impulsionados por aqueles que passam as noites nos laboratórios, lendo livros, imaginando coisas fora do comum, refletindo sobre como desempenhar suas atividades correntes de outra forma, mais cômoda, mais produtiva, mais imaginativa, fácil ou agradável; ou para responder a desafios terríveis: epidemias, catástrofes, trabalho penoso, carência de bens ou serviços para necessidades especiais, o que seja. Na vida diplomática, significa fazer com que seu país se adapte à dinâmica absolutamente impessoal, incontrolável, anárquica, com efeitos positivos e negativos ao mesmo tempo, decorrente do fluxo contínuo de interações humanas, sociais, “naturais”.
Vou ser mais claro: globalização não é de hoje, sempre existiu, sob diferentes formas. Ela geralmente se processa no plano micro: micro-social, microeconômico, micro-político, ou seja, no das relações humanas, em pequenas ou grandes sociedades. Ninguém controla esse conjunto de fluxos, que se processam espontaneamente, ou de modo deliberado, mas que respondem a necessidades naturais, a desejos humanos, à vontade das pessoas de terem segurança, bem-estar, riqueza, importância ou prestígio. São os governos os que tentam colocar em “ordem” essas interações e, ao fazê-lo, geralmente colocam um freio, ou impõem custos, a essas interações: por meio de impostos, tarifas, regulações, que dizem (ou pelo menos tentam dizer) o que os indivíduos ou as empresas podem, ou não, fazer. Governos, estados, são inerentemente antiglobalizadores, restritivos, cerceadores das liberdades humanas. Mas, num mundo babélico, entregue a nacionalismos estéreis, redutores, e até destruidores, se entende que elites dirigentes, governantes ou dominantes tentem colocar ordem em certos fluxos ou interações que podem se revelar temporariamente perturbadores da ordem existente.
Pois bem, uma terceira vez: o que os diplomatas que pensam têm a ver com tudo isso? Venho agora à segunda parte do título. Qual seria a nossa missão (já que estou me colocando entre os diplomatas que pensam)? Penso (ah, Descartes) que elas são de duas naturezas: uma didática, a outra facilitadora das interações humanas, sociais, ou seja, da globalização (que para mim é algo como a força dos ventos ou os fluxos das marés: eles existem, independentemente da nossa vontade, ou do cerceamento dos governos).
A didática é a de explicar para nossos concidadãos (mas não só eles) a natureza exata de nossa atividade, numa esfera que foge à compreensão e ao alcance da maioria das pessoas (que costuma viver em seu ambiente natural, local ou nacional). Mas ela é também dirigida aos nossos dirigentes, às elites que nos governam, que não são, longe disso, as mais esclarecidas possíveis. Políticos, em geral, são seres que vivem num mundo à parte, feito da reprodução de sua própria esfera de atividade: se eleger, se reeleger, e assim continuamente, constituindo uma classe em si e para si, no sentido hegeliano do conceito. Eles não têm tempo, disposição ou interesse para se informar sobre realidades mais complexas, e todas as realidades internacionais são sempre mais complexas do que as locais ou nacionais, nas quais vivem as pessoas, usualmente. 
O diplomata que pensa precisa desfazer preconceitos (ideias pré-concebidas, geralmente erradas, ou limitadas), insuficiência de conhecimento, desconhecimento de línguas, falta de expertise no tratamento de realidades externas que povoam as mentes dos políticos que nos governam. Sua primeira tarefa é a de instruir, educar, o chefe da chancelaria, que pode não ser (geralmente não é) um ser semelhante, ou seja, um diplomata já instruído, formado, treinado para justamente tratar de questões que estão acima, ou ao lado, das preocupações imediatas dos dirigentes (que é o seu eleitorado, digamos assim). Essa é uma função importante: não se dobrar, de modo submisso, à ignorância, preconceitos e interesses imediatos dos políticos que podem pretender dominar também a esfera das relações exteriores da nação.
Junto com isso vem a função didática mais ampla, mais geral, que é (ou seria) a de explicar à sociedade, inclusive à comunidade dos acadêmicos, não só a natureza das ações do Estado a que servem, mas de justificar a tomada de certas posições e não de outras, que podem eventualmente desfrutar de maior apelo popular. Por exemplo: todo economista sensato, racional, deveria ser a favor do livre comércio, pois é a única forma eficiente de trazer mais prosperidade para o conjunto da humanidade, qualquer que seja ela, da tribo mais primitiva às sociedades mais avançadas. Que alguns economistas não o sejam, não importa, pois estes não são racionais, ou eles não conseguem explicar, com evidências empíricas, como o livre comércio seria prejudicial à sua própria sociedade.  Pois bem (uma quarta vez), todo político sensato diz que é favor do livre comércio, mas de fato persegue formas diversas de protecionismo, por simples razão de sobrevivência no voto dos seus “constituintes”, aqueles que podem perder o emprego pela competição da produção estrangeira. A concorrência, em qualquer plano no qual ela se dê, é sempre uma ameaça aos espíritos acomodados, aos hábitos arraigados, aos conservadores.
Sendo perfeitamente (em duplo sentido) didáticos, em nossa primeira função, poderemos viabilizar igualmente a segunda função, que seria a de facilitar, estimular as interações humanas e sociais, contribuir para a prosperidade do seu próprio povo e a de todos os demais. Todo os diplomatas – ou os que pensam – estão de acordo com minha definição de funções, que me parece ser também uma obrigação dos que pensam? Pois bem: o que estamos esperando para fazer aquilo que é a obrigação dos que pensam: ensinar e facilitar ações de maior volume possível de interações sociais, internacionais?
Digo isto, porque tenho encontrado mais burocracia do que didatismo entre os diplomatas, e pouco sentido de missão (acima do trivial costumeiro) no trabalho que desempenhamos. Tenho encontrado mais submissão do que inovação, mais repetição mecânica do déjà vudo que propostas em ruptura com o costumeiro, mais conformismo do que rebeldia (que é a base de todo progresso humano e social). Por falta de didatismo (que significa primeiro aprender por si mesmo, antes de ensinar aos outros) temos talvez incorrido em equívocos fundamentais, que perpetuam o atraso relativo do país, nossa fraca inserção internacional (que considero um erro extremamente grave, prejudicial ao nosso futuro), e que podem até ter feito o país retroceder no conjunto de comunidades humanas que se arrastam (por vezes penosamente) em direção a mais prosperidade e bem-estar, a despeito de todos os entraves colocados pelas burocracias nacionais (e seus políticos respectivos) a maiores fluxos livres de interações de todos os tipos entre os indivíduos e as comunidades que compõem a humanidade. 
Por conformismo, temos colaborado muito pouco com as marés da globalização, com os ventos incontroláveis das interações humanas, lutando em primeiro lugar contra a mentalidade tacanha dos introvertidos, dos protecionistas, dos regulacionistas puros, daqueles que pretendem nos levar aos extremos do corporatismo sob o qual já vivemos (que também significa um pouco de fascismo mental). Os diplomatas que pensam poderiam, ao menos, pensar um pouco nisso, nessa nossa missão...


Brasília, 11 de fevereiro de 2017
(...) 

Mais no link do livro completo: 


Corrupção noregime militar: telegramas da Embaixada dos EUA

O Globo, 4/06/2018

Telegrama secreto liga ditadura à corrupção
 Como era de sua rotina, no dia 1º de março de 1984, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil despachou para o Departamento de Estado, em Washington, o telegrama com carimbo “confidencial” número 1413z. Era um dos grandes. Impresso, preenche quatro páginas — três delas com o texto digitado em duas colunas com letras bem pequenas. O conteúdo era extenso porque o tema era vasto: a corrupção no país. O assunto dominava o noticiário à época e, segundo os informantes americanos, não apenas enfraquecia o governo de João Figueiredo (1979-85), como indicava o apodrecimento e o fim próximo da ditadura militar, no poder desde 1964. O telegrama, obtido pelo GLOBO, faz parte de um lote de 694 documentos enviados pelo governo do então presidente Barack Obama ao de Dilma Rousseff. Foram três remessas, entre 2014 e 2015, para a Comissão da Verdade, que examinou abusos de direitos humanos durante a ditadura. Devido ao prazo curto para o relatório final da Comissão, vários deles deixaram de ser analisados. Numa introdução didática para burocratas de Washington, o telegrama explica o que é o “jeitinho”, um fenômeno brasileiro, seu papel na prática cotidiana e como, devido a isso, a corrupção seria parte indissociável da política e da economia. O informe diz que “jeito is king” para explicar que o “jeitinho brasileiro” dominava a política. A partir daí, o texto traça um quadro da decadência do governo Figueiredo, ao mencionar uma série de acusações de corrupção. “No nível nacional existem muitos escândalos que lançam nuvens sobre o governo Figueiredo”, diz o informe.
Certamente o homem mais poderoso na economia durante a ditadura, o então ministro do Planejamento, Delfim Netto, é citado como um exemplo de alvo de acusações do alto escalão de Brasília. São dois os casos. Num deles, o das polonetas, havia suspeitas em torno de empréstimo de US$ 2 bilhões à Polônia a taxas de juros consideradas baixas. Em outro, um documento conhecido como “relatório Saraiva” — que nunca veio a público na íntegra — acusava Delfim de, quando embaixador em Paris, receber propina para intermediar negócios entre bancos estrangeiros e estatais brasileiras. Delfim nega qualquer relação ou irregularidade nos dois casos — como negou na ocasião: “As polonetas o governo da Polônia pagou, em um momento de grande dificuldade para o Brasil, US$ 3 bilhões. O relatório Saraiva foi arquivado pelo SNI porque não havia nada de concreto”. diz Delfim, que minimiza o papel dos informantes americanos. “Esses funcionários vinham para o Brasil e fingiam trabalhar enviando a Washington informações que já estavam em todos os jornais. Como diz Delfim, o informe de 1984 não cita casos desconhecidos do público”. Tampouco há informações secretas. Estão lá menções ao escândalo da mandioca (desvio de verbas para produtores) e as suspeitas contra os dois pré-candidatos do PDS — hoje PP, na ocasião o partido do governo — à Presidência, o ex-governador Paulo Maluf e o então ministro Mário Andreazza. O GLOBO não localizou a assessoria de Maluf.
O valor do documento está no fato de mostrar a avaliação que os americanos faziam do último ano do regime militar. O diagnóstico da embaixada é que a roubalheira corroía a legitimidade do governo. O texto vai contra certo revisionismo disperso por alguns grupos hoje, de quea corrupção não existia durante o regime militar. Ao contrário: era um problema tão grande e presente no Brasil governado pelos militares quanto é hoje.
O texto de 1984 se preocupava com outro aspecto. Afirma que a corrupção corroera tanto a imagem dos militares entre a população, que era um fator decisivo para sua saída do poder. “Entre muitos oficiais, dos mais baixos aos mais altos, há uma forte crença que os últimos 20 anos no poder corromperam os militares, especialmente o alto comando e que agora é hora de deixar a política e suas intempéries e voltar a ser soldado”, diz. Contudo, o alerta dos informantes é que os militares iriam embora, mas os efeitos negativos da roubalheira ficariam e poderiam desestabilizar a política: “O que está claro é que a corrupção, real ou imaginária, está erodindo a confiança dos brasileiros em seu governo”.

domingo, 3 de junho de 2018

Richard Cobden: o apostolo do livre comercio, citações - Gary M. Galles (FEE)

Peace, Harmony, and Free Trade: 10 Uplifting Quotes by Richard Cobden, the Shining Knight of Classical Liberalism

Cobden recognized free trade as the key to creating material prosperity.

June 3rd marks the 1804 birth of “the Apostle of Free Trade,” Richard Cobden. He earned that name spearheading the campaign against England’s protectionist Corn Laws, whose repeal in 1846 spread liberalized trade through much of Europe. Some have said free markets owe him their existence.
Cobden recognized free trade as the key to creating material prosperity. But far more, he emphasized the moral superiority of free trade over the injustice of protectionism, in which government uses its power to help one group by unjustifiably harming others. Further, he saw that markets’ exclusively voluntary arrangements formed the basis of peace. As Jim Powell described the ensuing period of liberalized trade:
"Peace prevailed, in large part, because non-intervention became the hallmark of foreign policy...There was unprecedented freedom of movement for people, goods, and capital...Trade expanded, strengthening the stake that nations had in the continued prosperity of one another as customers and suppliers. While free trade was never a guarantee of peace, it reduced the danger of war more than any public policy ever had."
In an era of occasional trade liberalization, but a great deal of protectionism for government favorites, along with too little reliable peace, Cobden still has much to teach us.
"The progress of freedom depends more upon the maintenance of peace, the spread of trade, and the diffusion of education, than upon the labors of cabinets and foreign offices."
"Protection...takes from one man’s pocket, and allows him to compensate himself by taking an equivalent from another man’s pocket…a clumsy process of robbing all to enrich none, and ties up the hands of industry in all directions."
"Holding…eternal justice to [include] the inalienable right of every man freely to exchange the result of his labor for the productions of other people, and maintaining the practice of protecting one part of the community at the expense of all other classes to be unsound and unjustifiable...carry out to the fullest extent...the true and peaceful principles of Free Trade, by removing all existing obstacles to the unrestricted employment of industry and capital."
"Look not to the politicians; look to yourselves."
"Free trade is a principle which recognizes the paramount importance of individual action."
"Peace will come to earth when the people have more to do with each other and governments less."
"[We] advocated Free Trade, not merely on account of the material wealth which it would bring to the community, but for the far loftier motive of securing permanent peace between nations."
"Our principle...would bring peace and harmony among the nations."
"People…must be brought into mutual dependence by the supply of each others’ wants. There is no other way of counteracting the antagonism of language and race…no other plan is worth a farthing."
"I see in the Free-Trade principle that which shall act on the moral world as the principle of gravitation in the universe, drawing men together, thrusting aside the antagonism…and uniting us in the bonds of eternal peace...man becomes one family, and freely exchanges the fruits of one’s labor with his brother man...the speculative philosopher of a thousand years hence will date the greatest revolution that ever happened in the world’s history from the triumph of the principle."
Richard Cobden knew that free trade was the natural result of self-ownership and voluntary arrangements, which produced justice by preventing government-sponsored robbery by some from others. He knew that it broke down privilege and barriers hindering economic progress and replaced them with mutually beneficial relations among participants. In a world far from that ideal, we should remember Cobden’s wisdom that emancipating commerce would expand both economic progress and peace.

Gary M. Galles is a professor of economics at Pepperdine University. His recent books include Faulty Premises, Faulty Policies (2014) and Apostle of Peace (2013). He is a member of the FEE Faculty Network.