O que muda na política externa e na diplomacia lulopetista depois de Kazan e do conflito com a Venezuela
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre uma possível conjuntura história de transformação na postura diplomática do governo Lula 3.
Durante quase 20 anos – quarenta se contarmos dos primeiros anos da existência do PT e da elaboração das suas primeiras posturas na área externa – a “política externa” e a “diplomacia” do PT, moldada não por Lula, mas pelos gramscianos que se incorporaram aos sindicalistas “alternativos” que fundaram o partido, permaneceu invariavelmente as mesmas, com as inevitáveis mudanças tópicas ou conceituais que surgiram ou se impuseram a partir do momento em que Lula e o PT assumiram o poder político federal pela primeira vez, em 2002-2003 (da eleição à posse, passando pela transição civilizada organizada pelo governo de FHC, com base em lei aprovada em meados de 2002). Desculpem as muitas aspas, mas elas são necessárias para denotar o caráter peculiar dos termos “aspeados” vis-à-vis o sentido que os termos assumem em seu uso normal no ambiente acadêmico; espero que me entendam.
O PT surgiu como típico partido esquerdista latino-americano – socialista, na linha do socialismo latino-americano –, mas com bastante influência da experiência histórica da revolução cubana e da produção intelectual dos acadêmicos que se juntaram ao partido desde os primeiros anos, geralmente os esquerdistas que lutaram (vários morreram), foram presos e torturados, partiram para o exílio ou foram anistiados a partir de 1979, e que se juntaram à pela reconstrução da democracia no Brasil nos últimos anos do regime militar. Com base nesse tipo de origem, o PT desenvolveu um pensamento e propostas para a ação identificados com o socialismo estatizante, anti-imperialista (ou seja, antiamericano), voltados para a implantação de um regime socialista vagamente assemelhado ao modelo cubano, mais do que ao planejamento totalmente centralizado do modelo soviético. Nos primeiros vinte anos, ou seja, dos anos 1980 ao final do século, o PT, o Sindicato dos Metalúrgicos, a CUT e seus “derivados” (nos meios acadêmicos e sindicais, sobretudo) receberam fortes apoios do exterior, começando pelo governo de Fidel Castro – daí a fidelidade integral aos cubanos, permanente –, por sindicatos e partidos socialistas do mundo ocidental, a exemplo da DGB e do SPD alemães, da CGT, da CFDT e do PS francês, dos socialistas espanhóis, e até da AFL-CIO, as duas centrais unificadas dos trabalhadores sindicalizados dos Estados Unidos, passando até, muito possivelmente, até por movimentos guerrilheiros esquerdistas da região. Essa ajuda nem sempre foi transparente ou reconhecida oficialmente pelo PT ou pela CUT.
Nessas condições, não se poderia esperar nenhuma proposta na área internacional que não fosse identificada com o socialismo estatizante, e até em suas vertentes mais radicais, retiradas do itinerário e do estilo cubano de fazer política interna e externa. A adesão de suas lideranças e de suas principais lideranças políticas (no sentido estrito, ou seja, de preferência às lideranças puramente sindicais) a esse universo limitado aos casos emblemáticos da própria região latino-americana, fez com que o PT passasse incólume de processo de mudanças e transformações profundas que afetaram os partidos e movimentos políticos da vertente socialista na Europa e em alguns outros lugares, como por exemplo, a tendência eurocomunista, que afastou as esquerdas europeias do socialismo estatizante de simpatia à União Soviética, em direção de propostas reformistas dentro do capitalismo democrático.
Já tinha sido o caso do SPD alemão desde o congresso de Bad Godesberg, no final dos anos 1950, fazendo o partido abandonar a linha marxista tradicional em favor de uma ação dentro do capitalismo matizado pelo ordo-liberalismo. O mesmo ocorreu com os partidos comunistas italiano, francês, espanhol e os socialistas nesses países com mais ênfase, a despeito do atraso do Labour nessa modernização doutrinal e programática. O PT, seguindo fielmente o PC de Cuba, resistiu às mudanças, e até organizou, a pedido dos cubanos, o Foro de São Paulo, quando da implosão do socialismo soviético e do início da grande transição ao capitalismo em quase todos os países submetidos até então ao controle da URSS. O Foro de São Paulo é uma espécie de Cominform cubano, similarmente ao papel que o Cominform criado por Stalin em 1947, no controle da ação e das políticas dos partidos tradicionalmente afiliados anteriormente à III Internacional, extinta pelo próprio Stalin em 1943, no momento da aliança com as democracias burguesas durante a guerra contra o nazifascismo.
Quando o PT assume o poder em 2003, houve certa acomodação na área econômica, por necessidade ditada pelo pragmatismo, mas a política externa oficial e a diplomacia do Itamaraty passaram a ser fortemente influenciadas pelas diretrizes do PT, administradas pelo próprio conselheiro presidencial para assuntos internacionais no Palácio do Planalto, junto a Lula e em estreito contato com os diplomatas escolhidos para chefiar o Itamaraty, um velho e conhecido acadêmico e militante, aparatchik do PT desde a sua origem, e encarregado desde sempre de suas relações internacionais (por ter andado pelo exterior, nos tempos mais duros do regime militar e ter conhecimento de rudimentos de línguas estrangeiras, basicamente espanhol e francês). Marco Aurélio Garcia guiou algumas grandes decisões da política externa e da diplomacia dos governos Lula 1 e 2 (2003-2010) e continuou de exercendo sob Dilma, de 2011 até o final, em 2016. Em torno dele, do chanceler Celso Amorim e do SG-Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães gravitavam vários ideólogos do PT, militantes da causa ou acadêmicos gramscianos, que forneciam o essencial da “expertise” ao presidente na frente externa.
Acompanhei a “política externa” do PT, e sua forte influência sobre a diplomacia oficial desde o início, em artigos e livros que seguiram as principais etapas e tomadas de posição desde os anos 1980 até o período recente. Posso referir-me, por exemplo, sendo sintético, a este artigo síntese da fase pré-presidencial: “A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula” (Sociologia e Política (n. 20 jun. 2003, p. 87-102; disponível: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/4nshwsp5XKC3k8rvSpxvykx/?format=html). As análises subsequentes foram consolidadas em três livros que seguiram a “política externa” do PT até uma data recente: Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editora Appris, 2014); Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018) (Curitiba: Appris, 2019) e Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021).
Entre o final de 2022 e a atualidade, escrevi e publiquei diversos artigos, ou notas, acompanhando as principais tomadas de posição do governo Lula na área externa, que não são, ou até aqui não foram muito diferentes, pelo menos em intenção, das velhas propostas de políticas (bilaterais, regional e multilateral) que foram sendo explicitadas e implementadas desde o início dos anos 2000 até recentemente.
As novidades principais, naquele período de grande sucesso externo, foram as iniciativas regionais (Unasul e outras) e no âmbito do chamado Sul Global: primeiro o IBAS, depois o BRIC, ainda que este último não se enquadre perfeitamente nesse conceito geográfico, mas se encaixa totalmente ao espírito e à letra do antiamericanismo persistente no PT e em suas principais lideranças, sobretudo em Lula.
Pois foi exatamente no âmbito do BRICS ampliado que começaram a tomar forma desenvolvimentos que passaram a impactar as concepções do PT quanto à direção a ser imprimida à diplomacia brasileira no futuro de curto e médio prazo, paralelamente ao mais recente processo “eleitoral” na Venezuela chavista, ambos fenômenos que podem indicar uma tímida mudança nos cálculos de Lula e seus principais assessores no tocante às prioridades diplomáticas futuramente. Esses dois processos recentíssimos ainda não deixaram marcas decisivas nas grandes orientações doutrinas e políticas da diplomacia governamental, mas podem e promete fazê-lo de maneira ainda não muito clara, dependendo de como Lula e o PT, assim como suas forças “auxiliares” reagirão aos desafios do presente e do futuro breve. Dispenso-me de adentrar, na presente nota, nos detalhes desses processos paralelos, conectados de forma indireta, mas de maneira clara, reduzindo-a ao essencial dos fatos.
O BRIC original e o Brics dos primeiros anos se situavam no universo conceitual que estiveram na origem de sua formação, como plataforma política com algum embasamento econômico e pretensões à consolidação como foro diplomático alternativo ao domínio do G7 e outros avatares ocidentais (Bretton Woods, OCDE, OTAN, UE, entre outros). Desde meados da década anterior, o agravamento das tensões entre China e, principalmente, Rússia de Putin contra a “hegemonia ocidental” sobre as principais organizações da governança global levou a que essas duas potências conduzissem o bloco do Brics e seus outros três membros a uma postura fortemente antiocidental, consoante uma aliança política, econômica, diplomática e militar entre ambas, o que passou a moldar os desenvolvimentos recentes do grupo, em especial sua ampliação no formato Brics+, com a adesão de novos membros – decididos na reunião de cúpula de Joanesburgo, em 2023 – e a “associação de mais de uma dezena de outros, na cúpula de Kazan, terminada ao final de outubro de 2024.
O outro processo que pode determinar mudanças nas posturas (não apenas regionais) do PT e do governo Lula na área externa tem a ver com a Venezuela e o aprofundamento de sua ditadura iniciada no início do século sob a liderança de Hugo Chávez. Observadores mais atentos já poderiam prever, com base no comportamento dos líderes chavistas, presididos por Nicolás Maduro, essa caminhada para uma ditadura aberta desde as eleições fraudadas de 2018, agora repetidas em grande escala em julho de 2024 e nos meses seguintes. O PT até chegou, igualmente de forma fraudulenta, a “atestar” a vitória do ditador chavista nessas últimas eleições, gesto “ousado” que sequer Lula e seus assessores chegaram a repetir, com base em acertos anteriores (acordo de Barbados de 2023) quanto à transparência, correção e um mínimo de confiabilidade nas eleições presidenciais.
O episódio do chamado “veto” brasileiro ao ingresso da Venezuela no Brics+ serviu de gatilho a uma rápida deterioração das relações entre Lula e Maduro, daí para a contaminação das relações diplomáticas e um “rompimento” entre os dois países para todos os efeitos práticos. Concorrentemente a outros episódios que já tinham marcado a diplomacia antiocidental de Lula e do governo brasileiro – guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e o agravamento do conflito entre grupos terroristas pró-palestinos e Israel –, o conflito entre o governo Lula e a ditadura chavista da Venezuela pode resultar numa revisão parcial da política externa do governo e da diplomacia brasileira com respeito às relações com as duas grandes potências eurasianas e alguns regimes esquerdistas da América Latina.
Ainda é cedo para determinar características e consequências dessa revisão talvez conceitual, mas mais provavelmente puramente operacional, em algumas vertentes, apenas, da interface externa do governo de Lula 3, com um impacto limitado sobre a diplomacia profissional, encarregada de administrar as ações levadas a efeito nos planos bilateral, regional e multilateral. Outro evento de consequências ainda indeterminadas é representado pelas eleições americanas de 5 de novembro de 2024, cujos resultados podem ser impactantes, se por acaso o candidato populista autoritário for o vencedor, uma vez que a continuidade da liderança dos Democratas não redundará em rupturas tão dramáticas quanto as eventualmente derivadas de um segundo mandato para o candidato republicano. Uma nova reflexão prospectiva será necessária para acompanhar os desenvolvimentos derivados dos três processos aqui comentados brevemente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4778, 3 novembro 2024, 5 p.
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