4791. Constituições brasileiras: ensaios de sociologia política, Brasília, 18 novembro 2024, 187 p. Livro completo com nove ensaios sobre as constituições e suas implicações para o Brasil, em especial no terreno econômico. ISBN: 978-65-01-23460-1. Em preparação para publicação.
“O problema brasileiro nunca foi fabricar Constituições, e sim cumpri-las.”
Roberto Campos, Lanterna na Popa (memórias), 1994.
Constituições brasileiras
ensaios de sociologia política
Índice
Apresentação: Constituições e desenvolvimento político no Brasil 11
1. Representação política no Brasil até a Constituição de 1824 19
2. Formação do constitucionalismo luso-brasileiro no século XIX 30
3. Da Constituinte de 1823 à Constituição de 1824: aspectos econômicos 51
4. A economia nas constituições brasileiras, de 1824 a 1946 64
5. As relações internacionais na ordem constitucional de 1988 86
6. Brasil: um Prometeu acorrentado pela sua própria Constituição 112
7. Análise crítica do conteúdo econômico da Constituição de 1988 134
8. A Constituição e a integração regional 172
9. Dois séculos de constituições e regimes políticos no Brasil, 1824-2024 177
Apêndices
Livros de Paulo Roberto de Almeida 179
Nota sobre o autor 185
Apresentação
Constituições e desenvolvimento político no Brasil
O Brasil já está em sua sétima constituição, um número não exatamente reduzido, mas em todo caso menor do que outros Estados da região, bem menos, por exemplo, do que a França, um país extremamente prolífico na adoção de novas constituições. Não se trata de algo excepcional na história política da humanidade. Constituições são, de fato, contratos sociais e políticos que as mais diversas comunidades humanas, organizadas em forma de Estados, contraem entre seus membros, como regras elementares de convivência pacífica, e que precisam ser revistos, eventualmente refeitos, ao longo de suas respectivas histórias. Como não deveria impressionar ninguém, imperadores, estadistas, partidos políticos, movimentos sociais, pensadores individuais, tendem a reproduzir ideias, formações políticas e instituições que, em democracias ou em regimes autocráticos, prolongam conceitos e organizações de coexistência social que perpassam toda a história humana, das próprias civilizações. As condições materiais e humanas sempre mudam, as circunstâncias políticas, econômicas e até morais vão se alterando ao sabor dos tempos, e com elas devem mudar também as “relações contratuais” que regem as interações dos estratos sociais entre si. Constituições nascem, são mudadas ou perecem no seu curso; elas podem ser estabelecidas consensualmente, ou impostas por algum poder dominante.
Quando Tocqueville escreveu O Antigo Regime e a Revolução, aproximadamente em 1848, ele tinha sido, por breve tempo, chanceler da Segunda República francesa, e o país já estava em sua quinta constituição, das quinze que acumulou até chegar na atual Quinta República (já um tanto abalada). Ou seja, a França já teve o dobro de constituições do que número exibido pelo Brasil, que, por sua vez, já teve quase tantas moedas quanto teve de constituições, um campeão absoluto na história monetária mundial (pelo menos até aqui, esperando que a Venezuela chavista ou a Argentina, peronista ou liberal, nos ultrapassem).
A prolificidade na feitura de novas constituições é uma característica da história política dos países modernos e contemporâneos, o que poderia indicar, na visão de Kant, que estaríamos nos aproximando da “paz universal”, a qual, segundo o filósofo de Konigsberg, só seria alcançável quando todos os Estados fossem regimes constitucionais. Por acaso, as cartas escritas do século XVIII para cá tendem a repetir dispositivos e instituições relativamente similares aos padrões estabelecidos por Montesquieu, com alguns toques de Benjamin Constant e, vez por outra, um liberalismo político à la Cádiz (Carta de 1812), com algumas peculiaridades da constituição americana em países presidencialistas, como os da América Latina, Brasil inclusive. Nessa visão, praticamente todos os países contemporâneos deveriam, com poucas exceções, consolidar a organização de seus Estados com base no conhecido esquema tripartite dos poderes, que seriam, pelo menos teoricamente, harmônicos e independentes entre si, com algumas instituições assessórias no plano judiciário ou no controle dos gastos públicos. Parafraseando George Orwell, se poderia dizer que “todos os animais constitucionais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.
A organização política do Brasil precede a sua primeira constituição, a de 1824, pois que um “Estado”, ou algo equivalente, já existia, embrionariamente, desde que aqui chegou o primeiro governador-geral, Dom Tomé de Souza, em 1549, depois sucedido por vários vice-reis e, finalmente, pela Corte dos Braganças em sua inteireza, em 1808. Um dos Braganças fugidos da invasão napoleônica, o Príncipe Regente D. João, foi quem construiu os primeiros rudimentos de um Estado moderno no Brasil, entre 1808 e 1821, a partir de quando se assentam as bases de um futuro Estado independente, que toma forma, muito precariamente, já sob a regência do príncipe Dom Pedro, para depois se apresentar ao mundo como “Império do Brasil”, no final de 1822. O reconhecimento diplomático formal demorou um pouco mais, ainda que os Estados Unidos tenham dada a partida em 1824; mas as grandes potências europeias só começaram a reconhecer nossa existência depois que “acertamos as contas”, com Portugal e com Dom João VI, no tratado patrocinado pela Grã-Bretanha em 1825.
O ano de 2024 representa, portanto, o bicentenário de nossa primeira Carta, e cabe examinar como se organizou o novo Estado, a partir da Constituição de 1824 (outorgada, após o fechamento arbitrário, pelo jovem imperador, da primeira Assembleia Constituinte) e como se consolidou esse Estado, basicamente pela “parada institucional” oferecida pelo chamado Regresso, depois dos impulsos liberais dos primeiros tempos. Questões adicionais, que são tratadas pelos historiadores especializados, referem-se aos fundamentos conceituais, no plano econômico e político, da jovem nação americana, a segunda maior do hemisfério (mas muito atrasada em relação ao gigante anglo-saxão do Norte) e, também, quais foram, no início de nossa conturbada história política, os projetos para o Brasil, essencialmente o Estado unitário monárquico que Bonifácio estimava indispensável à preservação da própria existência da nação; ele se viu ameaçado, desde o ato da criação constitucional, por impulsos republicanos e progressistas avançados, por Frei Caneca por exemplo, um dos maiores intelectuais de nossa história, infelizmente ceifado pela prepotência da Corte do Rio de Janeiro, na breve experiência da Confederação do Equador, em 1824, proponente de um Estado federal, como finalmente a República se encarregou de instituir, 67 anos depois.
O foco central deste livro, uma compilação de ensaios de sociologia política, é essencialmente o Estado brasileiro, antes que a nação, pela simples razão – como já enfatizado anteriormente – de que o Estado precede a nação, e, de certa forma, ele a cria, a molda e a organiza (algumas vezes de forma brutal, como na escravidão do século XIX, ou nas ditaduras do século XX). O centralismo ibérico foi preservado na institucionalidade aqui implementada pelos Braganças e depois adaptado às peculiaridades da terra, como foi detectado desde cedo pelos liberais conservadores das Regências e do Regresso, ao início do Segundo Reinado. Foi quando o Estado brasileira deixa, finalmente, de ser “português”, como demonstrado em inúmeras inclinações políticas e diplomáticas do primeiro imperador.
Alguns intérpretes, como Manoel Bomfim, ao início do século XX, afirmaram que o Estado só se tornou realmente “brasileiro” depois de 1831, embora Hipólito da Costa, que pode ser considerado o primeiro estadista brasileiro – a despeito de jamais ter vivido na terra que ele considerava sua, desde os estudos em Coimbra, na última década do século XVIII –, tinha plena convicção de que a nação começou a ser forjada desde a transferência da Corte, quando ele também dá início ao seu grande empreendimento intelectual, o Correio Braziliense, editado em Londres de 1808 a 1822. Essa é exatamente a postura de dois grandes intelectuais brasileiros, ambos “súditos portugueses”, admiradores de Adam Smith, Cairu e Hipólito, que figuram em primeiro lugar entre os “construtores da nação”, no meu livro sobre os “projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior”, publicado em 2022.
Não há por que esconder a origem europeia de nossas instituições de Estado, e não poderia ser de outro modo, dados os vínculos de toda a sorte que nos prendiam ao molde português e, em parte, ao espírito liberal da Carta de Cádiz, que foi brevemente adotada em Portugal depois da Revolução do Porto, em 1820, e que, portanto, influenciou, em certa medida, os constitucionalistas eleitos e os membros da comissão que redigiu a Carta no final de 1823. Estes são alguns dos temas históricos que perpassam os ensaios que aqui coletei sobre nossa formação constitucional, não de um ponto de vista jurídico, mas essencialmente sociológico.
Desde o Brasil do Segundo Reinado, se não antes, o Estado brasileiro começou a se organizar, sob o domínio das oligarquias, como um pequeno Leviatã burocrático, chegando, na República, a se apresentar como um grande Leviatã que invade e controla a vida de todos os cidadãos. Já no século XIX, esse Estado havia criado múltiplas formas de “extorsão” fiscal, um comportamento bastante bem preservado em todas as épocas, até nossos tempos. A tributação já tinha estado presente, inclusive, nas questões do tráfico e da escravidão, provavelmente a maior tragédia nacional em mais de quatro séculos de história, pois que deixou marcas indeléveis na nacionalidade, mesmo depois de terem sido ambos abolidos. A ideia, falsa, de que Rui Barbosa “destruiu” os registros da escravidão, se refere, mais exatamente, ao apagamento dos comprovantes de tributos recolhidos sobre transações privadas envolvendo escravos, para evitar justamente que o Estado fosse acionado pelos proprietários não ressarcidos de qualquer demanda agressiva por parte dos frustrados senhores de escravos, que se consideravam esbulhados. O Brasil, por sinal, é o mais antigo e frequente “cliente” dos relatórios anuais da primeira ONG do mundo, a British Anti-Slavery Society, pois que nunca deixamos de figurar em seus registros, seja durante o tráfico, depois enquanto durou o regime escravo, seja ainda, contemporaneamente, na parte das “formas análogas à escravidão”, que são ainda abundantes no vasto heartland brasileiro, e até em algumas grandes cidades (e até capitais dos estados). Essa ONG se tornou internacional, também uma das primeiras, logo depois que o Reino Unido aboliu a escravidão.
Os fundamentos doutrinais e jurídicos desse primeiro Estado – e dos que se seguiram, nos dois últimos séculos – foram formulados nas duas faculdades de Direito criadas ainda no Primeiro Reinado, reformadas ao final do Império e na República. O Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco são dois dos mais conhecidos representantes da nossa tradição bacharelesca, que continua dando um prestígio talvez exagerado aos bacharéis de Direito. Estes integram a quase totalidade da diplomacia profissional, à qual pertenci e na qual trabalhei durante quase meio século. Ela hoje está aberta aos mais diversos talentos – como queria o verdadeiro “pai” da política externa brasileira, Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai –, mas ela sempre essencialmente lotada de bacharéis em Direito. Talvez, não por outra razão, os privilégios associados ao nosso Leviatã florescem mais em favor daqueles que servem ao próprio Estado do que sobre aqueles que “florescem” na sociedade civil como meros produtores de bens tangíveis e intangíveis: o Brasil sempre “produziu” mais advogados do que engenheiros.
Centenários, ou datas redondas, nos oferecem uma oportunidade de refletir sobre o que fizemos em nosso passado, como anda o estado presente das coisas e o que ainda nos resta fazer para completar os projetos formulados pelos grandes estadistas da nação. Em 1922, as comemorações oficiais do primeiro centenário da independência se fizeram por meio de uma Exposição Internacional do Rio de Janeiro, uma iniciativa que procurava emular as exposições universais que estavam voga desde a Grande Exposição do Palácio de Cristal, em Londres, em 1851. Ela foi precedida, no começo do ano, pela Semana de Arte Moderna, em São Paulo, um empreendimento vagamente afiliado ao futurismo que então agitava os círculos intelectuais europeus; o seu organizador, Mário de Andrade, já era um dos grandes intelectuais brasileiros, justamente especialista em identificar algumas de nossas excentricidades, como mais tarde representado pela figura de Macunaíma. Do lado menos oficial, tivemos, logo depois, a fundação do Partido Comunista do Brasil (seção brasileira da III Internacional), nosso mais conhecido Partidão, ou PCB: ele foi o mais longevo partido clandestino de nossa história política, embora tenha conseguido influenciar, por alguma mística atraente, boa parte da chamada intelligentsia brasileira.
Dois anos depois da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, constatando que o Brasil ainda não tinha deslanchado para o futuro, confessou, de forma talvez decepcionante num poema-revelação, bizarramente chamado “O poeta come amendoim”, que as melhorias demorariam ainda para chegar: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Os bacharéis da diplomacia aproveitaram o centenário da independência para organizar e publicar, entre 1922 e 1926, os Arquivos Diplomáticos da Independência. O Itamaraty ainda se encarregou de republicar uma nova edição facsimilar dos Arquivos no sesquicentenário da Independência, em 1972, quando os militares no poder preferiram organizar um bizarro “passeio” dos ossos do primeiro imperador por várias “províncias” brasileiras, como uma espécie de resgate histórico da nossa “lusitanidade”. Esses Arquivos foram novamente republicados no bicentenário, em 2022, também pelo Itamaraty, e na exata forma em que tinham sido pela primeira vez editados nos anos 1920.
O primeiro centenário da nossa primeira Carta Constitucional, em 1924, não foi devidamente comemorado, provavelmente porque se queria esquecer a monarquia e, também, porque já tínhamos entrado no ciclo das revoltas tenentistas que desembocariam na Revolução “Liberal” de 1930. Paradoxalmente, ela abriu caminho a um dos períodos autoritários mais tenebrosos de nossa história, junto com o segundo, poucas décadas depois, ambas fortalecendo o poder Estado, acima e à margem das constituições surgidas, mudadas e desaparecidas à sombra de cada um deles. Elas foram as de 1934 (derivada de uma Constituinte corporativa), a imposta em 1937, inaugurando a ditadura do Estado Novo, e a de 1946, votada democraticamente por uma Constituinte, reformada em 1961, para a introdução do parlamentarismo e revertida ao presidencialismo por um plebiscito em 1963; o golpe de 1964 a desfigurou mediante atos institucionais, até ser substituída pela de 1967, ela própria emporcalhada por um ato adicional autoritário em 1969. A Carta democrática de 1988 segue sendo acrescida de inúmeras emendas, e é a mais prolixa de todas elas, o que é justamente a razão de tantos acréscimos puramente circunstanciais, quando não oportunistas.
Este livro deveria estar centrado unicamente nas constituições brasileiras, mas ele trata, em grande medida, do peso crucial do Estado sobre nossas vidas. Este, há muito, já deixou de ser aquele agente do crescimento e dos grandes empreendimentos nacionais para se converter num freio, talvez até um obstáculo, a um processo de crescimento sustentado, e bem menos um promotor do desenvolvimento social e cultural. Da “altura” destes 200 anos da primeira Constituição, e baseando-nos nas seis outras, podemos traçar um modesto balanço, e talvez até um diagnóstico mais preciso, de nossas insuficiências acumuladas até aqui, como reveladas nas instituições e experiências formuladas e implementadas quando do “primeiro Estado brasileiro”, para concebermos novos projetos no decorrer do terceiro centenário da Independência, que já se iniciou, à sombra de algumas nuvens estatizantes sempre presentes em nossa história.
Ainda não conseguimos superar os entraves burocráticos, jurídicos e políticos, do atual Leviatã inzoneiro, o Estado que, aparentemente moderno, preservou os traços essenciais do patrimonialismo que, segundo Raymundo Faoro, deita raízes na era medieval portuguesa. Depois de duas décadas de tecnocracia autoritária, chegamos a uma “Nova República” prometedora no itinerário dos direitos e das liberdades, mas que já parece estar ameaçada em seus fundamentos doutrinais pela divisão política da nação em dois projetos populistas que nos remetem ao lugar comum dos populismos latino-americanos. À luz dos “Estados” incompletos que tivemos nos últimos dois séculos, um exame circunstanciado das antigas e da atual Carta constitucional talvez nos ajude a rever nossos acertos e desacertos nos duzentos anos passados, assim como a prevenir desenvolvimentos indesejáveis para o futuro do atual Estado brasileiro ao longo do seu terceiro centenário.
Este livro pretende oferecer uma modesta contribuição ao conhecimento de algumas das edificações constitucionais que balizaram a organização da nação, desde aquela que esteve presente no nascimento do Estado brasileiro, até a atual Carta, que fez promessas de novos avanços democrático nas próximas etapas de nosso desenvolvimento histórico.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de novembro de 2024
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