BRASIL-CHINA: “SOB VELAS CHEIAS, POR MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS EM DIREÇÃO A UMA TRILHA BRASILEIRA”. “TAMO JUNTO”.
É sabido que os chineses são chegados a elaborar metáforas para descrever, tanto iniciativas de política interna (vide meu artigo, em 17 de novembro corrente) quanto para anunciar propostas de inserção internacional. Daí, antes de sua chegada ao Brasil, o Presidente Xi Jinping publicou artigo, na imprensa brasileira, no qual antecipa, com o emprego de “imagens folclóricas”, as parcerias que gostaria de ver implementadas, durante sua visita oficial realizada a nosso País, durante o mês em curso.
Seguindo a própria lógica metafórica chinesa cabe lembrar o pensamento de Deng Xiaoping de que “cabe procurar a verdade através dos fatos”.
Nessa perspectiva, caberia assinalar os fatos de que:
- O artigo do Presidente Xi em questão afirma que “ As relações diplomáticas China-Brasil, estabelecidas em 15 de agosto de 1974, têm resistido às mudanças e turbulências na situação internacional nesses 50 anos e são cada vez mais maduras e dinâmicas. Têm promovido efetivamente o desenvolvimento dos dois países, contribuído positivamente para a paz e a estabilidade do mundo e oferecido um exemplo de cooperação ganha-ganha e futuro compartilhado entre dois grandes países em desenvolvimento.”
Visão mais realista dos fatos revela que, desde o “estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China” houve, a partir de 1974, principalmente, concessões do Brasil, em favor da China. Desconheço, além do fato de que aumentaram, desde então, as importações de minérios e produtos agrícolas brasileiros, vantagens que a RPC nos tenha concedido nesta citada “cooperação ganha-ganha”.
Nessa perspectiva, quando transferimos a Embaixada do Brasil de Taipé, para Pequim, em 1974, influenciamos vários países na América Latina e África a agirem da mesma forma. Contribuímos, assim, para o reconhecimento internacional da RPC, com a redução da presença da “província rebelde de Taiwan” neste espaço.
- Um segundo fato, sempre com vantagens para a China, no sentido de uma “estratégia de parceria” com Pequim, foi realizado em junho de 1984. Durante visita do Presidente João Batista Figueiredo à China, naquele período, foram assinados importantes acordos que, enquanto beneficiaram ambas as partes, favoreceram mais a RPC no contexto da disputa que Pequim mantinha, então, com a antiga União Soviética, por liderança no “bloco socialista”, em momento que vigorava a “Guerra Fria” entre os EUA e a antiga URSS.
Pude acompanhar, como Segundo Secretário da Embaixada naquela capital, sob a Chefia do Embaixador Ítalo Zappa, a negociação para a assinatura de acordos: na área cultural; para a criação de Adidâncias Militares nas duas capitais; e o estabelecimento de consulados em São Paulo e Xangai. Cabe enfatizar que não concedíamos – no período do governo militar no Brasil - estas prerrogativas a país socialista algum, do “bloco soviético”. Mais uma vez, o exemplo foi seguido por países latino-americanos e africanos e tais providências foram passos adiante na nossa “estratégia de parceria” com vantagens para a China.
Após a ida do último Presidente militar brasileiro à RPC, foi assinado o acordo CBERS que é, como se sabe, um programa de cooperação tecnológica entre China e Brasil para a produção de uma série de satélites de observação da terra. Tive a oportunidade de, ainda em 1984, acompanhar a primeira missão brasileira, chefiada pelo Ministro Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, responsável então pelo programa espacial brasileiro. Nos deslocamos à cidade de Xian, para conhecer o avanço chinês, no setor de “sensoriamento remoto” e foi verificado, a propósito, que, naquele momento, contávamos com tecnologia superior aos chineses.
Em seguida, fomos a Xangai, para visitar o setor de fabricação de foguetes de lançamento de satélites, no qual havia evidente superioridade chinesa. A parceria continuava a avançar, com a transferência de tecnologia brasileira, na área de sensoriamento remoto, e chinesa, na fabricação de foguetes e lançamento de satélites.
- Na área cultural, o referido artigo do Presidente Xi, na imprensa brasileira, antes de sua chegada aqui, houve, a meu ver, omissão ou retrocesso significativos. Isto porque, no texto publicado ele menciona “as fofinhas capivaras, a bossa-nova, o samba e a capoeira são populares na China, enquanto festivais tradicionais como o da primavera e outros elementos de cultura chinesa como a medicina tradicional são cada vez mais conhecidos pelos brasileiros”.
Esquecido parece que ficou o fato de que, no início de 1985, no auge da popularidade de novelas brasileiras na televisão chinesa, se deu a visita de Lucélia Santos, com sucesso que divulgou enormemente o conhecimento do Brasil junto ao público chinês, que apenas recentemente era permitido acessar o que se passava pelo mundo, após o turbulento período da “Revolução Cultural”.
Na ausência do embaixador, eu exercia as funções de encarregado de negócios da embaixada em Pequim — com o pomposo título em chinês de “Taipan” [expressão que significa “poderoso estrangeiro”]. Cabia a mim, portanto, colaborar na elaboração do programa da atriz brasileira durante o período de sua permanência na China.
O evento inicial foi a organização de conferência de imprensa na sede de nossa representação diplomática. Cabe ressaltar que, naquela ocasião, havia mais jornalistas chineses presentes do que os que compareceram à embaixada dos EUA por ocasião da visita do Presidente Ronald Reagan, havia apenas algumas semanas.
Entre as curiosidades quando da ida de Lucélia à Grande Muralha, foi a multidão de fãs que quase desabavam da imensa construção, com enorme destaque na imprensa, enquanto, quase coincidindo com a mesma data, lá havia estado a atriz norte-americana Elizabeth Taylor, que só mereceu uma modesta foto em jornal.
O principal objetivo da ida de Lucélia à China era para receber o troféu “Águia de Ouro”, concedido a artista estrangeiro, na cidade de Hangzhou – conhecida por seu lindo lago e prato típico: A Galinha do Mendigo, cercado de uma história longa para contar. Fomos de trem, com passagens por Wuxi – antiga capital chinesa – Sujhou – minha cidade preferida, famosa por seus jardins e rios, que muito me lembra minha terra natal, Recife, – Shangai – maior centro industrial do país – até chegarmos ao local da premiação. Durante todo o percurso Lucélia era cercada por centenas de fãs, gritando “Isola”, tendo em vista sua personagem “Escrava Isaura” e o idioma chinês dificultar a pronúncia de palavras estrangeiras com a letra “R”.
A propósito, a referência a “capivaras fofinhas” no artigo em questão, me deixou a impressão de “interesse culinário”, tendo em vista a diversidade de ingredientes constantes da cozinha chinesa. De minha parte, por exemplo, enquanto servi naquele país, desenvolvi o gosto por sopa de cobras e abelhas fritas.
Cabe lembrar que, após sua visita inicial à China, em 1985, Lucélia Santos foi incluída em sucessivas visitas presidenciais brasileiras àquele país, nos Governos dos Presidentes Sarney e Fernando Henrique. Sempre foi recebida com afeto por dirigentes e povo daquele país.
- Em 1994, foi estabelecida a “parceria estratégica” entre Brasil e China, proposta pelo então Primeiro-Ministro Zhu Rongji, em visita ao Brasil. Na preparação de sua vinda a Brasília, tive o privilégio de estar em missão transitória na Embaixada em Pequim - a convite do Embaixador Roberto Abdenur, cuja competência profissional muito contribuiu para o sucesso da missão do dirigente chinês a nosso país.
Lembro, a propósito – conforme me traduziu um diplomata chinês – que a China já cultivava “parcerias” com diferentes países. O conceito de “estratégica”, no idioma chinês, contudo, variaria de acordo com cada parceiro. No caso da parceria estratégica com a Rússia (herdeira da URSS) significaria “paz”. Quanto aos EUA, “competição”. No que diz respeito ao Brasil aquele conceito significaria “cooperação futura”.
Essa breve recapitulação da evolução política da estratégia da parceria Brasil China – que não pretende ser exaustiva e omite os detalhes econômicos e comerciais – almeja, pretensiosamente, contribuir para a reflexão sobre uma futura “parceria para a prosperidade”, entre os dois países – conforme expressa em linguagem cheia de metáforas o mencionado artigo do Presidente Xi - de forma a criar vantagens mútuas (“win-win situations”), inclusive em projetos conjuntos a serem desenvolvidos na África e América Latina.
Sabe-se que, em países daqueles continentes, uma vez incluídos em projetos da RPC de “cinturão e rota das sedas”, ouvem-se críticas frequentes a formas autoritárias e métodos de produção restritivos a trabalhadores chineses, com a exclusão de nacionais onde empresas da RPC se instalam. É citada, ademais, a concentração de lucros para os investidores orientais, enquanto os receptores adquirem dívidas excessivas.
Nessa perspectiva, poderia haver esforço para alinhar a “eficiência e necessidades chinesas de acesso a insumos para seu continuado crescimento econômico”, com a nossa capacidade de “promover o diálogo entre diferentes culturas”[1], bem como procurar soluções comuns para problemas compartilhados entre países em desenvolvimento, enquanto se busca a geração de benefícios mútuos.
Nesse sentido, inicialmente, no que diz respeito às relações com a China, caberia definição clara de nossos objetivos de inserção internacional, que não poderiam se resumir a “reagir” a propostas chinesas de “cinturão e rota das sedas”. Para a continuação de uma “estratégia da parceria”, cabe pensar, por exemplo, em uma “trilha” brasileira.
No momento, a China está expandindo seus interesses, em busca de acesso a recursos naturais e novos mercados na África e América Latina, onde, conforme mencionado acima, tem encontrado incentivos e resistências.
Daí, na perspectiva sugerida, a “soft power” brasileira, no sentido da facilidade de “negociação cultural” e a identificação de interesses compartilhados, com vistas à prosperidade de todas as partes, poderiam, gradativamente, vir a configurar mais uma vertente da “estratégia da parceria” que se pretende estabelecer entre o Brasil e a China.
O objetivo seria manter um fluxo de livre comércio e intercâmbio de ideias, facilitando a integração de mercados e a convivência entre diferentes formas de governança. Assim, a parceria sino-brasileira almejaria novos “networks” de integração de cooperação (“conectividade” para empregar o termo preferido por Pequim) entre os países a serem “conectados pelo cinturão e rota chineses” e por eventual “trilha” brasileira.
Caberia, no entanto, introduzir conceito dinâmico, como o da “prosperidade compartilhada” para consolidar no Atlântico Sul uma região de paz, estabilidade, democracia e desenvolvimento. Esta parte do mundo se apresenta como uma imensa fonte de oportunidades, não apenas para o Brasil, mas para todos os países que o margeiam.
Nossa capacidade de transformar essas oportunidades em benefícios concretos depende da coordenação cada vez mais estreita com os demais países da região.
Nesse contexto, seria de grande importância para a “trilha” brasileira um “Corredor Bioceânico”, que ligasse áreas de produção agrícola no Brasil, por ferrovia, ao Porto de Chancay, no Peru. O investimento chinês, por exemplo, neste projeto teria especial valor, de forma a facilitar o escoamento de nossa produção de commodities, que é grande parte do comércio que temos com a China, bem como baratearia essa produção.
De retorno ao imaginário antecipado pelo dirigente chinês, seu artigo aqui publicado afirma, também, que “No mundo de hoje, transformações de escala nunca vista em um século estão ocorrendo em um ritmo acelerado, e novos desafios e mudanças continuam surgindo. Diz um ditado chinês: "Em corrida de barcos, vencem aqueles que remam com força; em regata de veleiros, ganham aqueles que ousam avançar sob vela cheia." China e Brasil, dois grandes países em desenvolvimento nos hemisférios leste e oeste e membros importantes do Brics, devem se unir mais estreitamente, ousar ser pioneiros e caçadores de ondas, e juntos abrir novas rotas de navegação que levam a um futuro mais belo que os povos dos dois países e a humanidade merecem.”
- Em conclusão, talvez fosse um fato mais realista – sempre na lógica de Deng Xiaoping - simplificar a proposta do Presidente Xi, que visaria a uma evolução da suposta “parceria estratégica” atual para uma “parceria estratégica global”, com capivaras fofas, caçadores de ondas, por apenas “velas cheias” que, no idioma codificado que empregamos no “beach-tennis” em Copacabana, signifique apenas rumo a um “tamo junto”.
[1] Vide “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, em 1928, que nos indica o caminho brasileiro de aceitar o que nos é estranho sem deixar de transformá-lo em algo mais próximo de nossa personalidade nacional.
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